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Para além do equilíbrio

Desenvolvimento sustentável e dignidade da pessoa humana

Gabriel Mota Maldonado


NUSP 1023698

Resumo
Esse artigo busca contribuir para a consolidação do desenvolvimento sustentável
enquanto norma de direito. Pretende, nesse sentido, demonstrar a imprescindibilidade de
uma fundamentação normativa e axiológica consistente, especialmente para uma
construção jurídica altamente vulnerável a interpretações que restringem seu sentido e
comprometem sua força prática. Nesse propósito, como se verá, a juridicidade do
desenvolvimento sustentável, conceito ético-normativo, está ancorada na noção de
dignidade da pessoa humana e dela retira sua força e sua qualidade de princípio jurídico.
Enxergando assim, é possível encontrar a normatividade do desenvolvimento sustentável
no direito brasileiro, dando a esse conceito condições sistêmicas para funcionar como
princípio jurídico.
Palavras-chave: desenvolvimento sustentável; dignidade; princípio jurídico.

Introdução

Não raro, o desenvolvimento sustentável é descrito como mera representação


dos efeitos das preocupações ambientais no direito e circunscrito a uma espécie de
fórmula de compatibilização entre economia e meio ambiente. Além de não fazer jus a
sua complexidade, essa maneira de enxergar o desenvolvimento sustentável esvazia sua
juridicidade porque deixa obscura – se é que não apaga – a ligação entre o conceito, sua
história e razões de existência, e os fundamentos da ordem normativa: torna o
desenvolvimento sustentável, em suma, uma alegoria com feições jurídicas e políticas,
não uma norma. Com isso, embora seja palatável para a sensibilidade social em tempos
de centralização da pauta ambiental, o desenvolvimento sustentável nunca se consagrou
como ferramenta normativa firme e segura, sendo, frequentemente, submetido a
interpretações casuísticas que esvaziam o potencial transformador, o quilate do conceito
como amparo e fundamento de decisões, pronunciamentos e ações que buscam dar conta
de problemas contemporâneos que desafiam o direito brasileiro.

1
A expressão desenvolvimento sustentável ganhou proeminência em 1987,1 no
relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD),
Nosso futuro comum,2 ocasião em que designava o modelo de desenvolvimento “que
atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações
futuras atenderem a suas próprias necessidades”.3 A CMMAD foi estabelecida pela
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, que reafirmou, naquele momento,
a pertinência dos vinte e seis princípios norteadores para a proteção ambiental da
Declaração de Estocolmo, elaborada na Conferência de Estocolmo sobre o Ambiente
Humano, de 1972. Reconheceu-se, além disso, a insatisfatória implementação do Plano
de Ação daquela que foi a primeira tentativa global de criar uma visão comum sobre o
impacto do ser humano no meio ambiente e acordar iniciativas que deveriam ser tomadas
pela comunidade internacional. Coube à Comissão, então, identificar os problemas e
projetar as ferramentas adequadas de proteção ao meio ambiente para o século XXI.
À época do Nosso Futuro Comum, a relação (ou conflito) entre desenvolvimento
e meio ambiente já era pauta das discussões globais sobre proteção ambiental. A própria
Declaração de Estocolmo, onde se registram as primeiras diretrizes do direito e da política
ambientais com larga aceitação pelo mundo, endereça essa relação, por exemplo, ao
lembrar da importância do desenvolvimento na garantia a um meio ambiente saudável
(princípio 8) e no tratamento de determinados problemas ambientais (princípios 9 e 10);
ou mesmo ao dizer que as políticas ambientais devem contribuir e não prejudicar “o
potencial desenvolvimentista e o futuro dos países em crescimento” (princípio 11).4
Pouco antes de Estocolmo, por iniciativa do Brasil, a Assembleia Geral já havia adotado
a Resolução nº 2849, chamada Desenvolvimento e Meio Ambiente, pela qual o órgão
máximo das Nações Unidas reconhece que as políticas ambientais poderiam ter efeitos
adversos sobre o crescimento dos países pobres e “reitera a primazia do desenvolvimento
econômico e social independente como o principal e mais primordial objetivo da

1
Ela foi criada em 1980, pelo relatório publicado em conjunto pelo Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente, o World Wildlife Fund (WWF) e a União Internacional para a Conservação da Natureza
(IUCN), nomeado World Conservation Strategy. Living Resource Conservation for Sustainable
Development (disponível aqui: https://portals.iucn.org/library/efiles/documents/wcs-004.pdf).
2
Também conhecida pelo codinome “Relatório Brundtland”, em referência a sua presidente, a diplomata e
médica norueguesa Gro Harlen Brundtland.
3
Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. 2. ed. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 46.
4
Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Meio-Ambiente/declaracao-de-estocolmo-
sobre-o-ambiente-humano.html

2
cooperação internacional, nos interesses do bem-estar da humanidade e da paz e
segurança mundiais".5
O pano de fundo da discussão é científico, ético e econômico-político.
Descobertas e publicações demonstravam os efeitos nocivos da atuação humana sobre o
meio ambiente, o que sensibilizou a comunidade internacional e provocou a busca por
uma forma de endereçar problemas que não se circunscrevem a um determinado país ou
mesmo à geração vivente. Ao mesmo tempo, uma série de nações conquistavam a
independência e iniciavam sua construção como países autônomos, em momento de
grande crescimento econômico e social no primeiro mundo e de incremento do
intercâmbio de valores e mercadorias em escala global. Vigia, então, com força de
unanimidade, em especial entre os Estados recém-independentes, a noção de Soberania
Permanente sobre os Recursos Naturais, consagrada, dentre outros, pela Resolução nº
1962, da Assembleia Geral da ONU, que declarava que “o direito dos povos e nações à
soberania permanente sobre seus recursos e riquezas naturais deve ser exercido no
interesse do desenvolvimento nacional e do bem-estar de sua população”.6 Limitações a
esse mandamento se circunscreviam à possibilidade de acordo entre países e empresas
internacionais para exploração de seus recursos naturais. Uma outra categoria de
limitações, no entanto, proveniente de uma "incipiente regulação ambiental",7
capitaneada sobretudo pelos países industrializados, alertava os países emergentes sobre
uma possível intromissão externa que prejudicasse a capacidade de utilização desses
recursos e, consequentemente, suas condições de desenvolvimento econômico.
Essa contextualização ajuda a entender não só a natureza do conflito econômico
ambiental, como o próprio nascimento do desenvolvimento sustentável: era preciso
compatibilizar duas necessidades prementes e reconhecidamente legítimas; era preciso
atender às necessidades do presente sem comprometer as do futuro. O conceito, então, foi
de grande utilidade para a evolução do direito ambiental internacional, pois permitiu que
Estados distantes em matéria de desenvolvimento – e mesmo de contribuição para a
degradação ambiental planetária – se sentassem para elaborar programas que
endereçassem problemas comuns. Advém daí o sucesso da Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em
1992. A Eco/Rio-92, como comumente é lembrada, resultou na criação da Comissão para

5
Parágrafo 11.
6
Parágrafo 1º.
7
Dupuy e Viñuales, International environmental law, 2018, p. 8.

3
o Desenvolvimento Sustentável, instalada no Conselho Econômico e Social das Nações
Unidas, e na sedimentação do conceito de desenvolvimento sustentável como chave para
a busca pelo equilíbrio da equação frequentemente conflituosa entre crescimento
econômico e proteção ambiental.
A discussão travada no Rio de Janeiro em 1992, na prática, reescreveu essa
equação, agregando elementos importantes. Um contraste próximo entre a noção
registrada em Estocolmo e na Eco-92 mostra bem isso. Na primeira, a comunidade
internacional consignou que, para assegurar o uso racional dos recursos naturais, os
Estados devem adotar um enfoque integrado e coordenado de planejamento de suas
economias, como forma de assegurar a compatibilidade entre o desenvolvimento e a
necessidade de proteger e melhorar o meio ambiente (princípio 13). Na Declaração do
Rio, por sua vez, estipulou-se que a proteção do ambiente deverá constituir parte
integrante do processo de desenvolvimento e não poderá ser considerada de forma isolada
(princípio 4). Embora pareçam similares, as duas prescrições marcam sentidos bastante
distintos: em Estocolmo, enuncia-se uma forma de compatibilizar o desenvolvimento
com os reclames da proteção ambiental; vinte anos depois, a determinação expõe a ideia
de que preocupações com o meio ambiente estão dentro do processo de desenvolvimento.
Ao sair da compatibilidade para a integração, a comunidade internacional amadurece o
sentido de desenvolvimento sustentável, que não trata o meio-ambiente como um fator
acessório do processo de crescimento; não mais uma externalidade – em geral, incômoda
– da atividade econômica, mas ingrediente elementar do desenvolvimento.
No Brasil, essa diferenciação é marcada no processo de construção das
ferramentas jurídicas de proteção ao meio ambiente. Lembre-se, nesse ponto, que a Lei
da Política Nacional do Meio Ambiente, documento fundante do direito ambiental
brasileiro,8 descreve como seu objetivo a "compatibilização do desenvolvimento
econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio
ecológico",9 emulando em plano interno o vocabulário consagrado internacionalmente.10
Já a Constituição Federal de 1988 (CF/88), realiza o aprofundamento que será

8
Como bem destacam Sarlet e Fensterseifer, antes da edição da Lei n. 6.938/81, o direito brasileiro não
possuía propriamente uma vertente ambiental, em que a proteção ambiental é a sentença marcante, mas tão
somente instrumentos voltados ao controle do uso de bens naturais por particulares (Cf. Direito ambiental
constitucional: constituição, direitos fundamentais e proteção do ambiente, 2018).
9
Art. 4, I.
10
Do mesmo modo, a Lei n. 12.651/12, cujo objetivo, ipsis litteris, é o desenvolvimento sustentável,
consagra o “compromisso do País com a compatibilização e harmonização entre o uso produtivo da terra e
a preservação da água, do solo e da vegetação”.

4
referenciado quatro anos mais tarde pela Conferência do Rio ao trazer a "defesa do meio
ambiente" para dentro dos princípios da ordem econômica, anunciando, de vez, que a
proteção do patrimônio natural não é externa ao planejamento das atividades produtivas:
é um elemento que o integra, o qualifica.
A CF/88 também foi pioneira na coligação entre meio-ambiente, crescimento
econômico e justiça social. Ao fazer constar, nos princípios da ordem econômica, ao lado
da defesa do meio ambiente, a "redução das desigualdades regionais e sociais" e a "busca
pelo pleno emprego", colocando-os sob o objetivo fundamental de "assegurar a todos
existência digna", a Constituição Federal brasileira descreve a ordem econômica como
um todo composto pelos elementos econômicos, sociais e ambientais, como o fez mais
tarde a Declaração da Eco-92, em seu 5 princípio.11 Sob os auspícios da Carta de 1988,
então, passa a ser inconstitucional toda e qualquer atividade que contrarie as normas
sociais e ambientais, o que, por certo, integra definitivamente o desenvolvimento
sustentável ao direito nacional.
Nada obstante, a qualificação do desenvolvimento sustentável como princípio de
direito é de difícil acomodação. No Brasil, reconhece-se o desenvolvimento sustentável
como princípio, mas, em geral, esse reconhecimento não vem acompanhado do suporte
teórico que promova sua densificação normativa e qualifique seu papel estruturante.
Aqui, a partir de 1988, a sustentabilidade, embora não citada nominalmente na
Constituição, deixa-se entrever como uma nova dimensão da juridicidade, vez que o
desenvolvimento sustentável consegue concatenar princípios e objetivos fundacionais da
ordem constitucional, abraçando desde o próprio princípio da defesa do meio ambiente,
até os objetivos de garantir o desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza,
passando pelos princípios e regras que prescrevem a sociedade livre, justa e solidária que
se pretende construir. Essa capacidade de amalgamação exercida pela ideia de
sustentabilidade é, ao mesmo tempo, sua força e sua fraqueza. Força porque concatena
em uma só rubrica a emergência de questões intimamente conectadas mas frequentemente
isoladas no cotidiano; fraqueza porque ele, como nos lembra Canotilho, é um princípio
aberto, "carecido de concretização conformadora e que não transporta soluções prontas,
vivendo de ponderações e de decisões problemáticas".12 Conforme se defenderá, no

11
“Todos os Estados e todos os indivíduos, como requisito indispensável para o desenvolvimento
sustentável, irão cooperar na tarefa essencial de erradicar a pobreza, a fim de reduzir as disparidades de
padrões de vida e melhor atender às necessidades da maioria da população mundial”.
12
Canotilho, O princípio da sustentabilidade como princípio estruturante do direito constitucional, 2010,
p. 8.

5
entanto, além de ser um elemento aglutinador de questões profundas e caras à sociedade
e a seus patrimônios jurídico e material, o desenvolvimento sustentável é o nome certo a
ser dado a uma nova consciência a respeito do papel do Estado e do direito, um princípio
jurídico que, densificado e bem aplicado, descreve com precisão o projeto ensaiado pela
Constituição Federal e assegura a consagração de valores humanos e o sucesso de
empresas materiais, dando suporte à ordem jurídica e vazão principiológica aos projetos
econômicos. Essa conclusão, contudo, só faz sentido se a vinculação entre
desenvolvimento sustentável e dignidade da pessoa humana for bem compreendida, pois
é a dignidade que qualifica e dá normatividade ao desenvolvimento sustentável.

Genealogia da sustentabilidade

Muito antes do Relatório Brundtland, sustentabilidade foi um conceito trabalhado


por cientistas florestais na Europa desde o século XVII. Seu significado primordial
remonta à ideia de “máximo rendimento sustentável” como aquele ativo natural
explorável sem provocar o esgotamento e desabastecimento de bens naturais.
Sustentabilidade, portanto, dizia respeito a limitações do meio ambiente para
aproveitamento de seus produtos. Isso não impediu o advento de uma nova crise ecológica
em meados do século XVII. Como acontecera três séculos antes, a falta de madeira
ameaçava as economias dos países europeus, dessa vez em plena expansão e altamente
dependente dos insumos florestais para fabricação de estaleiros e embarcações marítimas,
para o suporte à indústria de mineração e para o aquecimento e construção civil. A
situação ambiental e o desejo de fortalecimento da frota naval levou a Marinha britânica
a encomendar à Real Sociedade um estudo que indicassem caminhos para viabilizar o
abastecimento de madeira. O estudo foi condensado por John Evelyn, em 1664, no
relatório Sylva, ou Discurso sobre Árvores da Floresta e Propagação da Madeira em
Domínios de Sua Majestade. Nele, o biólogo e historiador faz contundente crítica aos
setores de ferro e de vidro pelo uso desmesurado de carvão e à agricultura pelo
desmatamento para o cultivo, atribuindo a falta de insumos florestais para a indústria
naval ao aproveitamento não planejado e exagerado uso de recursos naturais.
Convocando a nobreza e os proprietários a mudarem de comportamento e
auxiliarem no reflorestamento, Evelyn descreve técnicas de plantio, criação de parques e
gerenciamento florestal, sustentando-se na ideia de compromisso com a “posteridade” e

6
de “respeito pelo futuro”.13 Cinco anos mais tarde, era lançado pelo ministro de Luís XIV,
Jean-Baptiste Colbert, o decreto real Grande Ordonnance des Eaux e Forêts, que
unificava o direito que regia a matéria, organizava a administração do patrimônio natural
e promovia a uniformização do modo de exploração das florestas, visando o controle e
dos recursos para a expansão da frota marinha. Considerada a base do atual código
florestal francês, a Ordonnance impôs a necessidade de autorização para corte de árvores,
restringiu a criação de gado e criou programas de reflorestamento, tudo sob o signo do
“bom uso” (bon usage) dos bens florestais, que consubstanciava a ideia de que o ritmo
do uso dos recursos florestais deveria ser igual a sua capacidade de reprodução.14
A palavra sustentabilidade (nachhaltigkeit) aparece em 1713, no tratado do
cientista alemão (e ex-aluno de John Evelyn) Hans Carl Von Carlowitz, “Economia
Florestal ou Guia de Cultivo da Árvore em Conformidade com a Natureza” (Sylvicultura
Oeconomica oder Naturmassige Anweisung zur Wilden Baum-Zucht), cujo objetivo
anunciado era investigar “como a conservação e o cultivo de madeira podem ser geridos
de modo a proporcionar o uso continuado, duradouro e sustentável (nachhtalig)”.15
Diretamente influenciado pelos trabalhos anteriores,16 Carlowitz argumenta que o cultivo
economicamente orientado para o curto prazo e sem preocupações ambientais levará a
silvicultura à ruína, reputando a sustentabilidade como algo elementar para garantir a
própria “existência do país”.17 Para orientar o aproveitamento sustentável dos recursos
florestais, Carlowitz propõe a “arte da preservação da madeira”,18 baseada em técnicas de
conservação de energia, replantio sistemático e substituição de matéria-prima. Suas
propostas são tributárias de uma compreensão sobre a natureza muito diferente da (hoje)
habitual. Para ele, a natureza é um “espírito vivo”,19 nunca totalmente apreensível pelo
entendimento humano e responsável por “maravilhas” e “milagres” com as quais a
humanidade conta para seu sustento e felicidade.

13
Evelyn, Sylva, 2007, p. 205 e 273.
14
Veiga Para entender o desenvolvimento sustentável, 2015, p. 26.
15
Carlowitz, Sylvicultura oeconomica, 2000, prefácio.
16
Além do Sylva e da Ordonnance, nota José Eli da Veiga que, à época em que Carlowitz iniciava seus
trabalhos (entre 1665 e 1669), tratados e manuais de silvicultura poderiam ser encontrados, dentre outros
lugares, no Japão, o que corrobora a ideia de que a sustentabilidade, em especial na sua vertente identificada
com o manejo sustentável, era tendência em outras civilizações, ainda isoladas da Europa (“não fossem os
dois séculos de total isolamento que se impôs ao Japão, talvez Carlowitz também tivesse se inspirado no
edital de 1666 do xógum, assim como em um dos principais tratados nipônicos de silvicultura, publicado
em 1697 por Miyazaki Antei, o Nogyo Zensho”. Veiga, Para entender o desenvolvimento sustentável, 2015,
26)
17
Carlowitz, Sylvicultura oeconomica, 2000, p. 107.
18
Idem, p. 43.
19
Ibidem, p. 22.

7
A partir daí, Carlowitz faz defesa contundente de uma lógica de manejo que
previna o desperdício e privilegie o uso em detrimento da exploração dos recursos
naturais, numa junção entre a visão holística e afetiva com o racionalismo pragmático da
produção. Ao lembrar das limitações às atividades econômicas impostas pela finitude das
florestas e reconhecer que a humanidade não pode simplesmente depender das dádivas
do meio ambiente, o autor exalta a necessidade de harmonia na relação com a natureza,
contrária ao formato exploratório caracterizado por uma “atuação contra a natureza”.20
Com isso, Carlowitz articula preocupações ambientais, sociais e éticas, incluindo no
conceito que mais tarde será chamado de “integridade ecológica” a justiça social e
preocupações com as gerações futuras.
Essa vinculação tem efeitos claros sobre a organicidade do pensamento que
veicula a sustentabilidade e enuncia uma peculiaridade dos trabalhos de Carlowitz e dos
documentos contemporâneos ao Sylvicultura Oeconomica. Não existia conflito – nem em
tese – entre justiça social e intergeracional e o cuidado com o meio ambiente. Ao
contrário, a relação é de identidade. Além disso, como se vê, a abordagem dos cientistas
florestais é cada vez mais atenta aos efeitos do padrão de exploração de bens naturais,
deixando claro o necessário entrelaçamento de razões geopolíticas, sociais e econômicas,
mesmo porque os problemas reais apontam para uma aparente incompatibilidade entre o
modo de uso das florestas e a capacidade de regeneração do meio ambiente que ameaça
a segurança nacional e o próprio modo de vida social. A preocupação com as gerações
futuras, nesse sentido, acumulava as angústias advindas das possibilidades de
esgotamento das fontes naturais de insumos básicos para as atividades humanas, mas
também reverberava as dúvidas com relação às condições sistêmicas de perpetuação dos
entes nacionais. Assim, a busca por instrumentos e técnicas de manejo sustentável dos
recursos passa a ser imprescindível para a perpetuação das condições de sobrevivência
natural e econômica em uma época de intensas modificações nas relações entre povos e
de enormes desafios sociodemográficos: a gestão de florestas se torna uma ferramenta
imprescindível para as sociedades que ambicionam sua perpetuação e coesão internas e a
consolidação de sua posição internacional, além de ser absolutamente essencial para o
amadurecimento de um sistema de reprodução econômica e social que então se
desenvolvia.

20
Carlowitz, Sylvicultura oeconomica, 2000, 39.

8
Isso talvez explique o sucesso das ideias de Carlowitz e a profusão de trabalhos
sobre sustentabilidade e ética ambientais nos principados alemães ao longo dos séculos
XVIII e XIX. Nomes como Wurttemberg Gottfried Wilhelm Moser (cujo trabalho
Princípios de Economia Florestal (1757) já descrevia o compromisso com as gerações
futuras e deu ao termo “sustentabilidade” sua grafia atual), Heinrich Cotta (1763-1844),
Georg Ludwig Hartig (1764-1837); além de célebres cientistas naturais como Alexander
von Humboldt e Georg Forster, foram claramente influenciados por pensadores como
Johann Gottfried Herder (1744-1803) e Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que
subvencionaram uma forma de enxergar a natureza em seus usos e relações com os seres
humanos definitiva não só para o nascimento da ecologia como ciência, como para a
formatação de uma visão holística e orgânica do meio ambiente, essencial para a
discussão e desafiadora das acepções de meio ambiente comumente encontradas.
Os próceres do debate sobre a sustentabilidade mostram que, no final das contas,
será necessário encontrar uma forma de usar os recursos naturais que não force os limites
dos sistemas ecológicos: ou, mais objetivamente, não se pode aceitar, nem prática nem
eticamente, uma forma de vida que se sustente na matéria (capital natural) e não na
produção (safra). Isso, obviamente, depende de uma série de instrumentos, de ciências e
lugares diferentes, que deem não só possibilidades fáticas de planejamento e segurança
no abastecimento, mas também vocabulário ético e normativo para uma maneira nova de
lidar com a natureza. A onda que espalhou a temática da sustentabilidade nas regiões
centrais da Europa permitiu que as ciências naturais e sociais articulassem soluções de
problemas que poderiam comprometer as condições de existência de sociedades inteiras,
dando conta de que, desde o início, sustentabilidade é um conceito e uma ferramenta para
a leitura de problemas e a busca por soluções cada vez mais complexas.21 Com isso,
lembra Bosselmann, a “ideia de gestão sustentável não se limitou à silvicultura, mas se
popularizou entre economistas, planejadores e teóricos do desenvolvimento”.22

21
“Aos poucos a ideia de uso razoável ou responsável (wise use, bon usage) foi evoluindo para o de
“rendimento sustentável” (sustainable yield, nachhaltig) e sendo adotada por outras disciplinas
tecnológicas e comunidades científicas mais diretamente voltadas à exploração de recursos naturais
renováveis. Particularmente pela engenharia de pesca, ao pretender calcular a quantidade de capturas que
podem ser retiradas de uma unidade populacional sem que sua capacidade de regeneração seja posta em
risco” (Veiga, Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI, 2010, 26-27).
22
Bosselmann, O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança, 2015, 40-41.

9
Sobre o desenvolvimento sustentável

O desenvolvimento sustentável é, muitas vezes, tido como um conceito vago e


aberto demais para ser norma jurídica. Muito embora a generalidade seja um traço
comumente atribuído aos princípios do direito, o caso parece ser o da falta de um acordo
mínimo que garanta o colchão básico para o trabalho de interpretação e aplicação do
desenvolvimento sustentável. Para que fosse possível a tarefa de encontrar esse terreno,
seria necessário trabalhar os dois termos articulados na noção de desenvolvimento
sustentável separadamente. Isso porque ambos são, como todos os conceitos ligados às
ciências sociais, “historicamente densos”,23 ou seja, possuem características advindas do
tempo e espaço em que se comungam tanto do desenvolvimento quanto da
sustentabilidade como padrões de valor e objetivos da comunidade e sua relação com o
mundo. Desenvolvimento sustentável é, obviamente, a junção de dois termos muito
diferentes e que, juntos, carregam as histórias próprias que ajudam a entender melhor os
significados dessa união para a sociedade e para o direito.
Desenvolvimento, “o mais político dos temas econômicos”, faz parte do núcleo do
modelo de sociedade em que vivemos, pois nele “se funda o processo de invenção cultural
que permite ver o homem como agente transformador do mundo”.24 A partir e em torno
dele se instalam uma série de reflexões e de ações que promulgam ideologias e visões de
mundo que vão muito além da materialidade, modificando termos das discussões
públicas, mobilizando inteligências e canalizando energias políticas e sociais.
Sustentabilidade, por sua vez, adquiriu status similar ao da democracia, liberdade e
justiça, se transformando no que alguns autores aduzem como sendo “um novo
paradigma secular, do gênero daqueles que se sucederam na gênese e desenvolvimento
do constitucionalismo (humanismo do séc. XVIII, questão social no séc. XIX, democracia
social no séc. XX, e sustentabilidade no séc. XXI)”.25 Como característica desse quilate
da sustentabilidade, ela é “universalmente desejada, diversamente definida, complexa em
sua extensão, extremamente difícil de se alcançar e impossível de se deixar de lado”.26

23
Nota de Fernando Henrique Cardoso, em Desenvolvimento: o mais político dos temas econômicos. In:
Revista de Economia Política, vol. 15 n. 4 (60), out.-dez. 1995, p 148-155.
24
Veiga, Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI, 2010, p. 30.
25
Canotilho, O princípio da sustentabilidade como princípio estruturante do direito constitucional, 2010,
p. 8.
26
Voigt, Sustainable development as a principle of international law, 2009, p. 48.

10
Para entender bem as consequências jurídicas disso é preciso voltar ao início da
modernidade.
Como visto, os paradigmas éticos e os usos jurídicos típicos dos séculos XVIII,
XIX e XX são absolutamente incompatíveis com as ideias subjacentes aos regimes da
Allmende e dos commons, por exemplo. Sustentado em um individualismo contumaz e
alimentado na poderosa ideia de progresso, arquétipo axiológico central para a
modernidade, a sociedade liberal que se engendrava promulgou uma forma de enxergar
e proteger a propriedade que não deixava espaço para as soluções de cunho comunitarista
de épocas anteriores. Como efeito, tornaram-se por demais prosaicas (quase ingênuas)
ideias como a de meio ambiente como um “espírito vivo” ou a de cuidado e preocupação
com gerações vindouras: no final do século XIX, problemas ambientais tratados
juridicamente se limitavam quase totalmente às questões envolvendo a exploração de
recursos comuns ou ao debate relativo às possíveis consequências de atividades
domésticas em território estrangeiro, o que é muito diferente do desafio de prevenir e
remediar situações que comprometiam a “existência do país”.
Contudo, os problemas ambientais que vão se aprofundando no decorrer do século
XX vão, paulatinamente, impedir que a temática ambiental continue a ser tratada como
um simples anexo de outros assuntos. Problemas que refletem, outrossim, um mundo em
que a crise ambiental alcança a todos e as relações sociais e econômicas possuem poucas
(ou nenhuma) amarras locais. Em outras palavras, começa a proliferar a consciência de
que os problemas são muitos, muito graves e atingem a comunidade internacional como
um todo, conduzindo à compreensão de que as abordagens transfronteiriças não dariam
conta do tamanho do problema.27 Novamente, o cenário imaginado pela ciência aponta
para a necessidade de mudança nos padrões de consumo e produção sob pena de serem
comprometidas as condições de vida humana saudável. Episódios como o assustador
envenenamento por mercúrio da população de Minamata, no Japão, em janeiro de 1956;

27
Nesse sentido, Cançado Trindade fala da “evolução” da abordagem do direito ambiental no cenário
interestatal, passando da internacionalização para a globalização, resultado de uma consciência a respeito
das dimensões da problemática que terá efeitos jurídicos e políticos indeléveis: “No início da
regulamentação internacional, a atenção voltou-se para a proteção ambiental em zonas sob a competência
territorial dos Estados. Dessa forma, falava-se do controle da poluição transfronteiriça (terminologia
semelhante à usada pela OECD), com ênfase acentuada sobre as relações entre países vizinhos, ou sobre os
contatos ou conflitos entre Estados soberanos. Logo se tornou claro que, para fazer face a ameaças mais
vastas ao meio ambiente, como é o caso da poluição marinha ou atmosférica (chuva ácida, redução da
camada de ozônio, aquecimento global), era necessário considerar também os princípios aplicáveis, urbi et
orbi, tanto nas áreas onde os interesses do Estado fossem imediatamente afetados (poluição transfronteiriça)
quanto nas que não parecia ser (proteção da atmosfera e do meio ambiente marinho, por exemplo)”
(Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos – Volume II, 1999, p. 169-170).

11
o derramamento de petróleo na costa da Califórnia, em janeiro de 1969;28 além das
notícias e publicações que, como visto, denunciavam a destruição da camada de ozônio e
o aniquilamento de espécies; impulsionaram movimentos populares como o Earth Day
(1970) e documentos históricos como o Limites do crescimento, do Clube de Roma, que
mobilizaram (e mobilizam) centenas de milhares de pessoas e atraíram de forma
definitiva a atenção para a problemática ambiental, agora emergencial. Esse é um tempo
de episódios representativos da convergência de fatores a que já se chamou de
“ecologização do pensamento”, que exige a reformulação de modos de conviver entre as
pessoas e a natureza, com consequências políticas, materiais e éticas profundas. Esse
movimento é certeiramente ilustrado por Edgar Morin:

[…] it was in California, in 1969, when the union took place between scientific ecology and
awareness of the degradations of the environment, not only local (lakes, rivers, cities) but globally
thereafter (ocean, planet), which affect food, resources, health and the psychism of human beings.
This is how the passage from ecological science to ecological awareness occurred. Moreover, the
union took place between ecological awareness and a modern version of the romantic feeling
about nature that had developed, mainly among youths, during the 1960s. This feeling found a
rational justification in the ecological message. Until then, any return to nature had been seen, in
modern western history, as irrational, utopian and in contradiction with the evolution of
“progress”. In fact, the aspiration to nature does not only express the myth of a lost natural past,
it also expresses the hic et nunc needs of beings that feel harassed, tormented and oppressed in an
artificial and abstract world. The defence of nature is one of the most personal and most profound
defences, which is born and developed in the increasingly more technified, bureaucratised, timed
and industrialised urban environments. Ecological science and awareness have been essential to
discover its rationality.29

O que acontece é que, como anunciado em Estocolmo, no decorrer de sua


evolução no direito e na política internacionais, a fisionomia da sustentabilidade adquire
a forma da integração com outros objetivos, referenciando um conflito ou embate que
obterá respostas diferentes nas décadas seguintes. A partir da ideia de que a proteção da
natureza tinha de ser compatibilizada com as políticas de desenvolvimento, tratados
regionais como a Convenção de Paris para Prevenção de Poluição Marinha provenientes

28
O Relatório Brundtland sumariza os episódios-chave para o alerta ambiental global: The negative
environmental impacts of industrial activity were initially perceived as localized problems of air, water,
and land pollution. Industrial expansion following the Second World War took place without much
awareness of the environment and brought with it a rapid rise in pollution, symbolized by the Lob Angeles
smog; the proclaimed 'death' of Lake Erie; the progressive pollution of major rivers like the Meuse, Kibe,
and Rhine; and chemical poisoning by mercury in Minamata. These problems have also been found in
many parts of the Third World as industrial growth, urbanization, and the use of automobiles spread (p.
175).
29
Moris, https://www.iemed.org/observatori/arees-danalisi/arxius-adjunts/qm-16-
originals/roquema_towards%20ecologised%20thought%20interview%20with%20edgar%20morin_qm16.
pdf. Cf., também, do mesmo autor: Complex thinking (New York: Hampton Press, 2008); Homeland Earth:
a manifesto for the new millennium (New York: Hampton Press, 1998) e, sobretudo, O método, volume 1
(Porto Alegre: Editora Sulina, 2005).

12
de Fontes Terrestres, de 1974; a Convenção Regional do Kuwait para Cooperação na
Proteção do Meio Ambiente Marinho da Poluição, de 1978 e o Tratado de Cooperação
Amazônica (TCA), de 1978, passaram a veicular compreensões como a de “planejamento
integrado consistente com a proteção ao meio ambiente”,30 reconhecendo a busca por um
“equilíbrio entre o crescimento econômico e a conservação do meio ambiente”31 e a
“necessidade de um gerenciamento integrado (...) para alcançar objetivos ambientais e
desenvolvimentistas de maneira harmônica”.32 Essa abordagem foi responsável pelo
aparecimento de alcunhas como “ecodesenvolvimento” e “economia verde”, expressões
que davam o tom da forma que a discussão sobre o meio ambiente e sua relação com a
atividade econômica tomou a partir dos anos 1980.
Essa noção, que poderíamos chamar de “integrativa”, nasce em meio à onda de
descolonização e a proliferação de países independentes e pobres, para os quais o
desenvolvimento soa como apelo. À época, a identificação de desenvolvimento com
progresso material era dominante e, mais do que isso, sinalizava a pretensão – e, em certa
medida, o direito –33 de povos e nações em se individuar do ponto de vista da produção
econômica, razão pela qual as pressões externas sobre temas que freassem o ímpeto do
enriquecimento eram frequentemente interpretadas como uma espécie de colonialismo
disfarçado, que pretendia perpetuar a gramática de poder global e, portanto, manter as
condições de subdesenvolvimento dos países periféricos. Havia, no entanto, um
constrangimento inerente à situação enfrentada pelas sociedades (e transmitida ao vivo
para o mundo todo): o modo de vida predatório em que se inseriam os paradigmas
modernos de desenvolvimento é absoluta e concretamente insustentável, capaz que é de
comprometer a sobrevida no planeta.
Assim, a união entre sustentabilidade e desenvolvimento passou ela mesma por
revoluções semânticas, sobretudo nos anos 1980 e 1990, que abalaram o papel do sentido
tradicional de desenvolvimento, obrigando o reconhecimento de limitações à
compreensão acerca do crescimento econômico. Desenvolvimento, então, passou a
significar mais do que prosperidade material, agregando conceitos que realizaram
verdadeira modificação estrutural em seu significado. A partir daí o modelo de
pensamento subjacente à ideia de desenvolvimento teve de assimilar limitações já

30
Art. 6, 2(d), da Convenção de Paris de 1974.
31
Preâmbulo do Tratado de Cooperação Amazônica.
32
Preâmbulo da Convenção Regional do Kuwait de 1978.
33
Cf. Cançado Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos – Volume II, 1999.

13
conhecidas, mas, o que é mais importante, também absorveu compreensões sobre “como
fazer um bom uso dos formidáveis benefícios do intercurso econômico e do progresso
tecnológico de maneira a atender de forma adequada aos interesses dos destituídos e
desfavorecidos”.34 Embora não se possa atribuir totalmente à influência da
sustentabilidade as novas feições do desenvolvimento – como projeto –, é notório que a
conscientização simbolizada pela sustentabilidade transtorna a fórmula habitual do
desenvolvimento em um nível poucas vezes explorado – no nível do projeto social
subjacente, do que se pretende construir e que importância comum tem o crescimento
econômico. Como ensina Celso Furtado, essa é a qualificação inerente à ideia de
desenvolvimento:

O crescimento econômico, tal como conhecemos, vem se fundando na preservação dos privilégios
das elites que satisfazem seu afã de modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo seu
projeto social subjacente. Dispor de recursos para investir está longe de ser condição suficiente
para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando o projeto social prioriza
a efetiva melhora das condições de vida dessa população, o crescimento se metamorfoseia em
desenvolvimento.35

As novas compreensões de desenvolvimento, que, na prática e no discurso,


substituíram a própria ideia de progresso pelo desenvolvimento sustentável, são
tributárias de um apoio axiológico cultivado pela cultura jurídica moderna, advindo da
justiça e da dignidade. A consciência de que as ações humanas voltadas ao crescimento
material têm de obedecer novos padrões sob pena de extinção das condições de vida vem
junto com a evidência de que o modelo econômico ultraliberal apregoado pelos países
centrais é ineficiente para reverter quadros de pobreza e desigualdade.36 Em outras
palavras, o sistema pautado em crescimento econômico puro e simples é iníquo e
estagnante do ponto de vista das ambições sociais do seres humanos, sendo, portanto,
insustentável social e ambientalmente. Como se verá, desenvolvimento sustentável, mais
do que tornar obsoletas as funções meramente econômicas do progresso, requalifica os
projetos públicos sob os auspícios da justiça social e exterioriza a dignidade enquanto
parâmetro universal de julgamento para as ações humanas.

34
Sen, As pessoas em primeiro lugar, 2010, p. 23.
35
Furtado, Os desafios da nova geração, 2004, p. 484.
36
Para um panorama profundo disso, inclusive com pesquisas empíricas importantes, cf. Kliksberg, As
pessoas em primeiro lugar, 2010, pp. 139 a 211.

14
Desenvolvimento sustentável e dignidade humana

Como dito, esse fenômeno de ressignificação do meio ambiente e do progresso


econômico é fruto da condição que a humanidade passou a ter sobre a natureza a partir
da contínua evolução dos conhecimentos sobre o potencial destrutivo e o nível de
prejudicialidade das ações humanas ao meio ambiente. Com a noção de que o ser humano
é capaz de comprometer as condições ambientais que asseguram a vida, a atuação humana
deve se dar de modo responsável, sob pena de completo comprometimento de sua
consciência. Com isso, a sustentabilidade transmite uma convicção, própria das
formulações de Carlowitz, sobre o que é ou não correto nas ações humanas que, de
alguma forma, impactem a natureza. Ou seja, ela coloca no centro das discussões globais
um paradigma que reitera constantemente um dever e um direito resultados de uma
função de curadoria – e, portanto, de um princípio responsabilidade – que a espécie
humana exerce sobre o meio ambiente. Essa função está, pois, na raiz do conceito de
desenvolvimento sustentável, como registra José Eli da Veiga:

Foi somente quando a comunidade internacional começou a se responsabilizar pelas possíveis


consequências de seus comportamentos atuais para as condições de vida de gerações futuras que
a ambição pelo desenvolvimento (ou prosperidade, ou progresso) passou a exigir a qualificação
de “sustentável”.37

Essa noção, bem expressada em documentos importantes,38 está particularmente


presente na Carta de Terra, adotada pela Assembleia Geral da ONU (Resolução 37/7), em
1982. Como enunciado seu preâmbulo,39 as Nações Unidas reconhecem a intersecção das

37
Veiga, Para entender o desenvolvimento sustentável, 2015, p. 45.
38
Como aparece, dentre outros, no princípio 4 da Declaração de Estocolmo (O homem tem a
responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio da flora e da fauna
silvestres e seu habitat, que se encontram atualmente, em grave perigo, devido a uma combinação de fatores
adversos. Consequentemente, ao planificar o desenvolvimento econômico deve-se atribuir importância à
conservação da natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres) e o preâmbulo do TCA (Conscious that both
socio-economic development as well as conservation of the environment are responsibilities inherent in the
sovereignty of each State, and that co-operation among the Contracting Parties shall facilitate fulfillment
of these responsibilities, by continuing and expanding the joint efforts being made for the ecological
conservation of the Amazon region).
39
Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve
escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro
enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer
que, no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma
comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável
global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa
cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa
responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações.

15
preocupações ambientais com elementos outros, inserindo-as dentro de um compromisso
maior, do qual fazem parte a “comunidade da vida”, os direitos humanos e as gerações
futuras, afirmações cuja contundente entonação ética reflete a confluência das
preocupações humanitárias com as ambientais, encartada em diversos documentos de
direitos humanos e refletida no direito ao meio ambiente equilibrado e no direito ao
desenvolvimento. De qualquer forma, ainda que existam manifestações desse quilate já
na década de 1980, a exigência de inclusão de direitos – ou objetivos – aparentemente
conflitantes em um mesmo silogismo engendra um embate discursivo para estabelecer a
relação entre os itens em jogo que pretende decidir como realizar a compatibilização
sustentabilidade-desenvolvimento, ou, em palavras simples, o que deve ser feito a partir
das constatações sobre os efeitos comprometedores do equilíbrio ecológico das ações
humanas.
Esse embate é representativo dos rumos que a sustentabilidade tomou nas décadas
de 1980 e 1990, e está no centro dos tão propalados “três pilares” do desenvolvimento
sustentável, na qual se aglutinam as variantes ambientais, sociais e econômicas.
Politicamente, à mímica da controvérsia entre economistas,40 como bem assinala Klaus

40
O debate, travado sobretudo pela ciência econômica, opõe as chamadas sustentabilidade “fraca” e “forte”,
que se diferenciam pelo grau de importância atribuída ao capital natural na equação, o que gera
consequências a respeito das possibilidades de superação dos impasses gerados pelo mandamento da
compatibilização. Ainda presentes e muito representativas do modelo de interação economia/ecologia
dominante, as duas “sustentabilidades” ajudam a compreender os destinos da sustentabilidade e do
desenvolvimento sustentável. O mais proeminente representante da versão fraca da sustentabilidade é
Robert Solow, ganhador do prêmio Nobel de economia em 1987. Para Solow (Cf. Solow, 2000) não existe
incompatibilidade entre crescimento econômico e preocupação com o meio ambiente, mas a
sustentabilidade está longe de limitar os esforços da produção de bens de consumo, indicando, tão-somente,
o necessário comprometimento das gerações presentes para com o bem estar de seus descendentes. Em sua
compreensão, o que impede que a natureza jamais seja um fator limitante da expansão econômica é a
infinita capacidade de reorganização dos três elementos fundamentais do processo produtivo – trabalho,
capital produzido e recursos naturais –, de modo que a escassez eventual de recursos naturais poderá ser
compensada (ou até mesmo sobrecompensada) com o aprimoramento dos outros dois fatores, mediante
invenções tecnológicas. Assim, a sustentabilidade fraca acaba por reduzir o esforço de compatibilização
entre os primados do desenvolvimento e da preservação ambiental à ideia de crescimento econômico pura
e simples (Cf. Amazonas, 2002, p. 136), transformando a capacidade de as futuras gerações produzirem na
única função específica a ser assegurada. Já os adeptos da sustentabilidade “forte” “são menos otimistas
pelas possibilidades de ‘troca-troca’ entre os fatores de produção”.40 Reunidos na Escola de Londres sob a
liderança do economista David William Pierce, eles acreditam que o capital natural deve ser preservado em
termos totais, ou seja, se alguma atividade exaure determinado bem ambiental, essa exaustão deve ser
compensada em algum outro lugar. Essa noção, segundo a qual recursos não renováveis são
“compensáveis” por outros de quilate similar, reverbera a ideia de que “a sustentabilidade corresponde à
administração mais ou menos eficiente de uma dimensão específica da escassez” (Veiga, Para entender o
desenvolvimento sustentável, 2015, p. 45), sendo, portanto, passíveis de controle por intermédio da
ferramenta tradicional da economia: a precificação dos bens relativamente escassos. A ideia foi e é decisiva
para a formação de mercados globais e locais que incentivam a diminuição de emissões e a utilização de
produtos nocivos ao meio ambiente (Cf. Kuttner, Tudo à venda. As virtudes e os limites do mercado. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 403 e ss), mas ela é problemática justamente naquilo que seria sua
virtude – a valoração de itens que, em verdade, não possuem um “preço” (como ar puro, biodiversidade ou

16
Bosselmann, descrevem-se duas abordagens, cada uma atribuindo valor distinto à
natureza e sua preservação. A primeira, chamada “ecológica” ou “forte”, argumenta que
o meio ambiente é um bem a ser conservado, não podendo sofrer comprometimentos que
abalem seu equilíbrio a despeito das vantagens econômicas em jogo. A outra, de nome
“ambiental” ou “fraca”, “coloca em paridade de importância a sustentabilidade ambiental,
a justiça social e a prosperidade econômica”,41 de modo que, se realizada a análise global,
no qual os três elementos desempenham papéis valorativos próprios, é possível chamar
de “sustentável” a ação econômica e socialmente benéfica, mas destrutiva ao meio
ambiente.
Como é claro até hoje, as lutas narrativas em torno da concepção de
sustentabilidade resultaram na proeminência da razão econômica no debate sobre a
desenvolvimento sustentável. Na verdade, como aduzem Marcos Nobre e Maurício
Amazonas, “é o mainstream da teoria econômica, a economia neoclássica em sua vertente
ambiental, a teoria hegemônica na determinação do que seja o [desenvolvimento
sustentável] e, por consequência, do que seja a própria posição do meio ambiente na
prática política, social e econômica”.42 Nesse ínterim, cria-se uma espécie de trade-off
entre objetivos econômicos e ambientais, e a sustentabilidade passa a representar apenas
um prato na balança, com seu respectivo peso (ou, o que é mais consentâneo com sua
função de medida, um “preço”), enquanto, em se lembrando o sentido primário, ela
deveria ser o mastro da estrutura discursiva que referencia as ações humanas. Isso ajuda
a explicar o uso indiscriminado e desatento a seu significado em formulações como
sustentabilidade ambiental, agrícola, humana, industrial, financeira, administrativa,
enfim: uma pletora de lugares em que se vulgariza a sustentabilidade a ponto de esvaziá-
la e confundir as preocupações que nela estão representadas com um mero lembrete da
necessidade de levar o futuro dos negócios humanos em consideração.
Essa forma de predicação da sustentabilidade está subjacente no Relatório
Brundtland, documento-referência na história da assimilação do termo pela cultura
política internacional. Reunindo membros de 21 um países, majoritariamente
provenientes do sul global, a Comissão articulou as variadas propostas em uma “fórmula
para o desenvolvimento reflexivo nas perspectivas de sustentabilidade ecológica e de

camada de ozônio), deixa ainda mais etéreas as relações entre as pessoas comuns e a problemática
ambiental, desestimulando o engajamento que seria essencial para dar alguma racionalidade ao sistema e
confiabilidade ao valor atribuído ao bem natural.
41
Bosselmann, O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança, 2015, p. 47.
42
Nobre e Amazonas, Desenvolvimento sustentável, 2002, p. 9.

17
justiça socioeconômica”.43 As questões ambientais precisaram ser tratadas dentro da
perspectiva de uma justiça distributiva que alcançasse os países em desenvolvimento e
que exigiria, portanto, um empenho pela cooperação e um entendimento especial dos
países industrializados. As propostas do Relatório, então, fazem menção, a um conteúdo
ético social do conceito que então se desenvolvia, buscando mostrar “como a
sobrevivência e o bem-estar humanos dependem do sucesso do esforço de elevar o
desenvolvimento sustentável ao patamar de ética global”.44
A definição de desenvolvimento sustentável trazida pelo Nosso Futuro Comum –
aquele que “assegura a satisfação das necessidades das presentes gerações, sem
comprometer a habilidade das futuras gerações de satisfazerem suas próprias
necessidades” –45 ajudou a sedimentar o espaço do meio ambiente na agenda
internacional e, mais do que isso, a consagrar o desenvolvimento sustentável como, ao
menos, objetivo e aspiração global.46 Mas o Relatório como um todo provocou reações
adversas, que discutem o enfoque dado pela WCED à temática ambiental. Argumenta-se,
por um lado, que a Comissão não foi até o ponto que deveria e acabou diluindo a atenção
que deveria ter sido colocada sobre a proteção ambiental, compreensão que, em geral,
reverbera a ideia de que os problemas ambientais estão na raiz das injustiças sociais e
econômicas.47 Sob uma perspectiva próxima, porém diferente, critica-se a ênfase do
Relatório no crescimento econômico e na riqueza material, vistos como “aspirações
dominantes da sociedade humana.”48 Por outro lado, os países em desenvolvimento
questionavam a própria ideia de limitação das formas de crescimento por razões
ambientais, ainda mais quando nações ricas advogavam uma maneira de lidar com a
natureza incompatível com as práticas que permitiram seu enriquecimento.
É possível problematizar essas críticas. Ainda que a Comissão tenha tratado o
meio ambiente como um dos aspectos a serem cotados nos programas de
desenvolvimento, com os corolários disso para a equação política e jurídica da
sustentabilidade, é importante perceber que o modelo adotado pelo Nosso Futuro Comum

43
Bosselmann, O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança, 2015, p. 50.
44
WCED, p. 255. The issues we have raised in this report are inevitably of far reaching importance to the
quality of life on earth - indeed to life itself. We have tried to show how human survival and well-being
could depend on success in elevating sustainable development to a global ethic.
https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/5987our-common-future.pdf
45
Idem, p. 16.
46
Cf. Segger, Cordonier e Khalfan, Sustainabe development law, 2004 e J. Verschuuren, Principles of
Environmental Law: The Ideal of Sustainable Development and the Role of Principles in International,
European and National Law, 2003, p. 21.
47
Segger, Cordonier e Khalfan, Sustainabe development law, 2004, 19.
48
Voigt, Sustainable development as a principle of international law, 2018, p. 16.

18
cumpre a missão fundamental de mostrar as preocupações ambientais como parte do
desenvolvimento e do esforço para diminuição da pobreza. Com isso, promove-se uma
compreensão menos “economicista” do que a aparência denota, pois, o respeito à natureza
valida as propostas desenvolvimentistas, o que significa dizer que, diferentemente da
visão que enxerga o meio ambiente como fator limitante das atividades econômicas, para
Brundtland é a expansão descontrolada das atividades industriais e das aglomerações
urbanas que limita as capacidades de conservação de um meio ambiente saudável. Em
outras palavras, a exegese do Relatório mostra que o texto defende que o respeito às
condições ambientais não é o fator limitante do desenvolvimento, mas o crescimento
incontrolado limita o exercício de um direito ligado ao meio ambiente.
Mas ao focar nas “necessidades” – futuras e presentes – como parâmetro máximo
para referenciar as ações humanas em direção a um mundo sustentável, a Comissão
veicula uma solução pouco prática e que, acima de tudo, dialoga pouco – se é que dialoga
– com a noção subjacente à ideia de meio ambiente equilibrado: a de que, para além das
necessidades, a natureza e sua proteção dizem respeito a valores humanos, que se
planificam em instrumentos como os mecanismos de participação e construção de
consensos públicos e se estampam de forma distintamente ética na disposição dos bens
naturais para uso humano.
Há, com efeito, uma diferença clara entre dizer, como fora feito em Brundtland,
que a proteção ambiental visa garantir a satisfação das gerações futuras, e proclamar o
meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum e essencial à sadia
qualidade de vida, cuja defesa e proteção serve às presentes e futuras gerações, como o
faz a Constituição Federal de 1988: a definição atada às necessidades não consegue
alcançar a ideia de “qualidade de vida”, tampouco a noção de que liberdades individuais
e coletivas estão em jogo quando da definição dos negócios humanos. Sem embargo,
embora proclamar que uma política de desenvolvimento deve assegurar o abastecimento
das necessidades do futuro seja, de fato, uma proposição ética absolutamente fundamental
para o mundo em que a técnica assombra bens naturais essenciais,49 essa definição se

49
O que atrai uma série de consequências para o estudo da eticidade em nosso tempo. Ver, por exemplo:
Richard Routley, Is there a need for a new, an Environmental Ethics? (Proceedings of the World Congress
of Philosophy. Varna: World Congress of Philosophy, 1973, p. 205-210); John Passmore, Man’s
responsibility for nature (Londres: Duckworth, 1974 e 1980); Christopher Stone, Should trees have
standing? (Los Altos, CA: William Kaufman, 1974); Thomas H. Thompson, Are we obligated to future of
others? (in Ernest Partridge (ed.), Responsabilities to future generations: environmental ethics. Buffalo,
NY: Prometheus, 1981, p. 195-202); Paul W. Taylor, Respect for nature: a theory on environmental ethics
(Princeton: Princeton University Press, 1986).

19
atém a uma impressão muito limitada do que é a própria humanidade, pois, “é certo que
as pessoas têm "necessidades", mas também têm valores e, especialmente, valorizam sua
capacidade de arrazoar, avaliar, agir e participar”.50 Com isso, restringe-se o espectro de
bens que deveriam ser protegidos àqueles mais diretamente responsáveis para
manutenção do padrão de vida, o que não encerra uma dimensão imaterial das
necessidades humanas e tampouco presta o reconhecimento devido a outros valores
menos afetos às condições materiais da existência, mas também elementares para que o
ser humano reconheça a vida – sua e de seus descendentes – como boa. Nesse sentido,
ilustra Amartya Sen:

No contexto ecológico, basta considerar um ambiente deteriorado, no qual as gerações futuras não
poderão respirar ar fresco (devido às emissões poluentes), mas no qual essas gerações futuras
sejam tão ricas e bem servidas de outros confortos que seu padrão de vida talvez se sustente.
Uma abordagem de desenvolvimento sustentável seguindo o modelo Brundtland-Solow talvez se
recuse a ver qualquer mérito nos protestos contra essas emissões, sob a justificativa de que a
geração futura terá ainda assim um padrão de vida pelo menos igual ao atual. Mas isso
desconsidera a necessidade de políticas de restrição de emissões que possam ajudar as gerações
futuras a ter a liberdade de desfrutar do ar fresco que soprava para as antigas gerações.51

Note-se que esse raciocínio de Amartya Sen recupera a ideia de sustentabilidade


como um valor inegociável no cômputo dos conceitos que compõem o desenvolvimento
sustentável. De certa maneira, portanto, a visão do Relatório Brundtland, com todos os
méritos que tem, em relação especificamente à sustentabilidade, como anota Bosselmann,
não acrescenta nem diminui em nada,52 emulando uma maneira de enxergar do
desenvolvimento sustentável em um lugar bastante próximo ao que propôs mais tarde
Richard Solow,53 e, com isso, entregando à comunidade internacional uma definição que
não alcança as qualidades éticas responsáveis pela justificação mais íntima da ideia de
sustentabilidade. Acaba-se fortalecendo uma abordagem que deteriora a força motriz da
sustentabilidade em prol da formação de um discurso mais palatável ao vocabulário do
“equilíbrio” econômico, social e ambiental supostamente veiculado pelo

50
Sen, Desenvolvimento como liberdade, 2004, p. 17.
51
Idem, p. 18.
52
Bosselmann, O princípio da sustentabilidade: transformando direito e governança, 2015, p. 50.
53
Ilustrativamente, esse trecho da Declaração deixa evidente a visão subjacente a respeito da transitoriedade
dos problemas ambientais e da fé na capacidade humana e técnica de sua superação, à maneira de Solow:
Humanity has the ability to make development sustainable to ensure that it meets the needs of the present
without compromising the ability of future generations to meet their own needs. The concept of sustainable
development does imply limits - not absolute limits but limitations imposed by the present state of
technology and social organization on environmental resources and by the ability of the biosphere to
absorb the effects of human activities. But technology and social organization can be both managed and
improved to make way for a new era of economic growth.

20
desenvolvimento sustentável. Como resultado, o termo “sustentável” consegue ser usado
não só em formulações vazias, mas em circunstâncias que diminuem sua qualidade
axiológica e invertem seus próprios significados.
A crítica dessa formulação da sustentabilidade, uma certa cosmética do
desenvolvimento sustentável, deverá esclarecer os efeitos práticos da inversão que se
empreende quando o termo (sustentável) não conduz à assimilação de qualquer função
ecológica. Oportunamente, por enquanto, são as modificações estruturais nos direitos
ambientais que fornecem o guia mais consistente para a apreensão da sustentabilidade
como valor e, mais adiante, como norma jurídica, o que só foi possível em razão dos
fundamentos éticos subjacentes a “um ordenamento internacional da humanidade para a
preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável no interesse das
gerações presentes e futuras”,54 cuja trajetória se confunde em medida próxima àquela
cumprida pelos próprios direitos humanos e que sugere a indissociabilidade das temáticas
concernentes a ramos do direito estudados separadamente: há, como disse Habermas a
respeito da relação entre dignidade da pessoa humana e direitos humanos, “um vínculo
conceitual entre ambos os conceitos”55 que não só elimina a arbitrariedade na significação
do desenvolvimento sustentável, como outorga a este último força normativa própria.
No ordenamento jurídico brasileiro, isso está presente já na Lei n. 6.938/1981 que,
ao instituir a Política Nacional do Meio Ambiente e descrever como seu objeto “a
preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando
assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da
segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana” (art. 2), destaca o vínculo
entre meio-ambiente e dignidade, sem descurar da “compatibilização do
desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e
do equilíbrio ecológico” (art. 4, I). Noutro ponto, o Supremo Tribunal Federal, em
acórdão proferido nos autos da arguição de descumprimento de preceito fundamental
(ADPF) nº 101,56 define o princípio do desenvolvimento sustentável como “crescimento
econômico com garantia paralela e superiormente respeitada da saúde da população, cujos
direitos devem ser observados em face das necessidades atuais e daquelas previsíveis e a
serem prevenidas para garantia e respeito às gerações futuras”. Nesse quadro, o acórdão
traz apontamentos importantes a respeito do princípio. O caso, em si, é interessante por

54
Trindade, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, 1999, p. 170.
55
Habermas, Sobre a Constituição da Europa, 2012, p. 11.
56
ADPF 101/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 24-6-2009.

21
se tratar de um embate tipicamente resolvido pelo desenvolvimento sustentável: opõe
razões econômicas e ecológicas atinentes à importação e comercialização de pneus
usados. Mais do que isso, contudo, o julgado mostra como o desenvolvimento sustentável
não está encerrado na conciliação entre os mandamentos do crescimento econômico e da
preservação ambiental: ele é uma norma jurídica que informa e qualifica a própria noção
de desenvolvimento, o que determina que, nas palavras no voto condutor, “o
desenvolvimento constitucionalmente protegido é o que conduz à dignidade humana, não
à degradação inclusive física – humana”,57 pois o “direito contemporâneo impõe ao
comércio e à indústria responsabilidade pela melhoria do bem-estar geral”.58 Com isso, o
STF diz que desenvolvimento sustentável não é a simples absorção pela economia de
padrões ambientais, mas a consagração de um princípio que dá significado específico a
uma situação de fato que deve, para ser constitucional, assimilar ingredientes diferentes
visando a consagração da dignidade humana.
Nesse ínterim, como bem assinala Eros Grau, a defesa do meio ambiente como
princípio da ordem econômica assume feição de diretriz, que, na dicção de Dworkin,
como um princípio político, tem em mente um objetivo específico, geralmente de caráter
social, econômico ou político, que consubstancia a ordem por detrás da ação instrumental.
Já princípios jurídicos, são “um padrão que deve ser observado, não porque vá promover
ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável”,59 mas
porque direcionam a exegese dos fatos a compreensões de justiça e equidade, ou alguma
outra dimensão da moralidade. Essa diferenciação, embora não seja decisiva para o status
jurídico de determinado termo, ajuda a perceber os efeitos sistêmicos que, de uma forma
ou de outra, advém do entrelaçamento de assuntos diferentes sob a motivação da
dignidade juridicamente reconhecida. Nas palavras de Eros Roberto Grau:

O princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser).


informando substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego.
Além de objetivo, em si, é instrumento necessário – e indispensável – à realização do fim dessa
ordem. o de assegurar a todos existência digna. Nutre também, ademais. os ditames da justiça
social. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo - diz o art. 225, caput.
O desenvolvimento nacional que cumpre realizar, um dos objetivos da República Federativa do
Brasil e o pleno emprego que impende assegurar supõem economia auto-sustentada,
suficientemente equilibrada para permitir ao homem reencontrar-se consigo próprio, como ser
humano e não apenas como um dado ou índice econômico.60

57
P. 92.
58
P. 105.
59
Dworkin, Levando os direitos a sério, 2001, p. 36.
60
Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988, 2006, p. 51.

22
Esse propósito, com efeito, jamais poderia ser circunscrito a um ramo do direito
porque a dignificação da existência não é um projeto do direito ambiental ou do direito
econômico: é fundamento e objetivo da ordem jurídica. Nesse sentido, o desenvolvimento
sustentável é uma norma jurídica que abriga as formulações transversais advindas da
interlocução de matérias no plano constitucional e que noticia no plano fático as noções
de justiça e correção que respaldam em última análise as formulações jurídicas a partir da
CF/88.
Isso muda completamente a compreensão sobre o desenvolvimento sustentável
porque não fala sob os auspícios do “equilíbrio”, mas da subordinação das questões
econômicas aos ditames da equidade. E isso é assim porque desenvolvimento sustentável,
ao evocar, “em última instância, uma espécie de ‘ética de perpetuação da humanidade e
da vida´”, promulga uma noção de responsabilidade que atrai uma série de formulações
atinentes à própria qualificação da existência digna e que não permite a negociação de
parâmetros de convivência básicos – éticos e jurídicos. Ou seja, o princípio do
desenvolvimento sustentável não determina que os níveis econômicos e ambientais
estejam equilibrados: determina que as atividades produtivas devem se adequar aos
limites do meio ambiente e que isso só pode ser medido por sua função enquanto respeito
e promoção da dignidade humana. Sob isso está uma compreensão nova, erigida a partir
das inovações na capacidade humana de destruição e comprometimento da vida, além da
inegável complexidade da sociedade moderna. Como consequência, do ponto de vista
jurídico, a indivisibilidade dos direitos fundamentais obriga uma convergência
inegociável entre práticas humanas e que, portanto, não pode ser subsumida ao signo do
equilíbrio. As mudanças sociais e institucionais referenciadas pelo desenvolvimento
sustentável, com isso, alteram as lentes pelas quais o Estado e a sociedade enxergam o
direito como ferramenta de convívio.

23
Conclusão

Desenvolvimento sustentável toca aspectos nucleares da sociabilidade e da


juridicidade modernas e isso só pode engrandecer suas funções quando revelados os
planos em que se interligam obrigações jurídicas atinentes à formação e fortalecimento
da unidade política promulgada pelo ordenamento. O que fazemos de nossas riquezas
naturais e dos espaços de convivência e de invenção cultural diz o que pensamos e
queremos de nós como indivíduos e sociedade. Elementos como esses denunciam
intensões obnubiladas pelo cotidiano e escancaram o estado da arte da humanidade como
projeto, revelando antagonismos e, com isso, viabilizando soluções.
Como visto, a ordem constitucional brasileira faz mais do que incluir ou
centralizar a temática ambiental na ordem jurídica. A proteção, a defesa e a valorização
do patrimônio natural são inseridos em contextos múltiplos, o que torna a avaliação de
seu papel normativo muito mais complexa. Tendo isso em mente, convém (sempre)
observar o contexto. É certo que, antes de 1981, regulava-se o uso do recurso natural, não
a proteção ao meio ambiente. Isso quer dizer que, com a nova ordem constitucional, como
visto, o meio ambiente passou a ser ele mesmo um bem jurídico e sua proteção ganha
status deontológico, ou seja, de dever-ser da comunidade política enunciada pela
Constituição Federal. Isso se mostra em outros temas de quilate constitucional, que
passam a veicular a defesa do meio ambiente como qualificadora de seu próprio conceito.
Nesse momento, a proteção ambiental combina-se com outros mandamentos,
compondo, com eles, um vetor estrutural do sistema jurídico, sem o qual não há como se
interpretar ou garantir eficácia ao texto constitucional. Sem embargo, como parte de um
sistema, ela não pode funcionar como um nódulo solitário, uma “tira” autônoma da
Constituição.61 Como a própria organização do Carta diz, ao colocar o capítulo dedicado
ao meio ambiente no título “da ordem social”, cujos objetivos são o bem-estar e a justiça
sociais, a proteção ao meio ambiente e o crescimento econômico são parte de uma
solução constitucionalmente consagrada para alguns dos problemas e projetos mais caros
da sociedade brasileira. Por suas naturezas e funções, e como mandamentos

61
Não é despiciendo lembrar da lição de Eros Grau: “a interpretação do direito é interpretação do direito,
no seu todo, não de textos isolados, desprendidos do direito. Não se interpreta o direito em tiras, aos
pedaços. A interpretação de qualquer texto de direito impõe ao intérprete, sempre, em qualquer
circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dele – do texto – até a Constituição. Um
texto de direito isolado, destacado, desprendido do sistema jurídico, não expressa significado normativo
algum” (Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação / aplicação do direito, 2006, p. 44).

24
constitucionais que são, eles são atraídos e exercem força de atração sobre outras normas,
dando parte do vocabulário para a formação de um discurso: pois o sistema não pode
funcionar como palavras (determinações) soltas, deve exibir uma mensagem completa,
que dê conta de uma realidade complexa.
Para compreender esse cenário e apreender a normatividade do desenvolvimento
sustentável é preciso se desapegar de sua história mais superficial. Vendo do ponto de
vista de sua natureza jurídica, a formação histórica do conceito adquire um sentido mais
coerente com as funções do desenvolvimento sustentável como norma de direito,
incrementando, ou, na verdade, originando sua qualidade mais elementarmente social,
ambiental e econômica. É dizer, as soluções aventadas pelo desenvolvimento sustentável
só adquirem o status de fonte de direitos e obrigações quando seu sentido permite
enxergar a matriz da juridicidade. Por isso, desenvolvimento sustentável diz respeito a
um projeto de dignificação da vida, de consagração dos direitos humanos e é,
consequentemente, parafraseando Bobbio, uma “zona de luz” na trajetória do mundo,
“um sinal premonitório do progresso moral da humanidade”.62

62
Bobbio, A era dos direitos, 2004, p. 8.

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