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EDITORIAL

Serviço Social e pobreza

Social Work and Poverty

Este número da Revista Katálysis traz como eixo Sabemos que novos fios estão tecendo novas so-
temático o Serviço Social e a pobreza. Trata-se de ciabilidades que precisam ser desvendadas, mas,
uma relação histórica, que, com diferentes conotações, permanecem atuais os profundos e vastos sofrimen-
acompanha o exercício profissional desde os anos de tos gerados por uma ordem societária assentada na
1940 quando a profissão se institucionaliza na socie- exploração de poucos sobre muitos, como observa-
dade brasileira como um dos mecanismos acionados mos cotidianamente no exercício de nossa profissão.
pelo Estado e pelo patronato, em sua intervenção re- Não podemos esquecer que as condições materi-
guladora frente à emergente questão social1 no país. ais da existência e as formas concretas que elas as-
Efetivamente, a pobreza é parte da experiência sumem nas vivências da sociabilidade, levam muitas
diária do trabalho dos assistentes sociais. Convive- vezes ao caminho da desesperança, do ilícito e de
mos muito de perto com a experiência trágica de per- experiências conjugadas em outro jogo de referênci-
tencer às classes subalternizadas em nossa socieda- as tecido entre a dureza do desemprego e do traba-
de; conhecemos esse universo caracterizado por tra- lho incerto, a atração encantatória do moderno mer-
jetórias de exploração, pobreza, opressão e resistên- cado de consumo, mas também os novos circuitos de
cia, observamos o crescimento da violência, da dro- sociabilidade e trabalho tramados na interface das
ga, e de outros códigos que sinalizam a condição su- mudanças operantes no mundo do trabalho e na ci-
balterna: o desconforto da moradia precária e in- dade, e seus espaços (TELLES, 20072). Trata-se, se-
salubre, as estratégias de sobrevivência frente ao gundo a autora, de um jogo que se caracteriza pela
desemprego, a debilidade da saúde, a ignorância, a erosão dos mundos sociais construídos em torno do
fadiga, a resignação, a crença na felicidade das ge- trabalho regulado, que atinge duramente os que fo-
rações futuras, o sofrimento expresso nas falas, nos ram afetados pela reestruturação produtiva e os que,
silêncios, nas expressões corporais, nas linguagens na “virada dos tempos”, transitam nas suas dobras e
além dos discursos. constroem outros campos de possibilidades.
Cada vez mais, é preciso considerar a impossibi- Embora a renda se configure como elemento es-
lidade de alcançar a realidade das classes subalter- sencial para a identificação da pobreza, o acesso a
nas sendo estranhos à sua cultura, à sua linguagem, bens, recursos e serviços sociais ao lado de outros
a seu saber do mundo. meios complementares de sobrevivência precisa ser
Do ponto de vista conceitual, é fundamental não considerado para definir situações de pobreza. É im-
perder de vista que a pobreza é expressão direta das portante considerar que pobreza é uma categoria
relações vigentes na sociedade, relações extremamente multidimensional, e, portanto, não se expressa ape-
desiguais, em que convivem acumulação e miséria. A nas pela carência de bens materiais, mas é categoria
pobreza brasileira é produto dessas relações que, em política que se traduz pela carência de direitos, de
nossa sociedade, a produzem e reproduzem, quer no oportunidades, de informações, de possibilidades e de
plano socioeconômico, quer nos planos político e cul- esperanças, como anuncia José de Souza Martins3.
tural, constituindo múltiplos mecanismos que “fixam”, Submersos numa ordem social que os desqualifica,
os pobres em seu lugar na sociedade. marcados por clichês: “inadaptados”, “marginais”,
Abordar aqueles que socialmente são constituí- “problematizados”, portadores de altos riscos e
dos como pobres é penetrar num universo de dimen- vulnerabilidades, os pobres representam a herança
sões insuspeitadas, marcado pela subalternidade, pela histórica da estruturação econômica, política e social
revolta silenciosa, pela humilhação e alienação e so- da sociedade brasileira. Fazem parte dessa história,
bretudo, pela resiliência aliada às estratégias para a tradição oligárquica e autoritária de uma sociedade
melhor sobreviver, apesar de tudo. de extremas desigualdades e assimetrias, caracteri-

Rev. Katál. Florianópolis v. 13 n. 2 p. 153-154 jul./dez. 2010


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zada por sempre insuficientes recursos e serviços É inserido neste contexto, desafiado pelas mudan-
voltados para atender às necessidades dos segmen- ças em andamento, convivendo cotidianamente com a
tos das classes subalternas. violência da radicalização da exploração e da expro-
Quanto mais os assistentes sociais forem capazes priação das classes subalternizadas em nossa socie-
de explicar e compreender as lógicas que produzem a dade e com as incontáveis faces da exclusão social,
pobreza e a desigualdade, constitutivas do capitalismo, que o assistente social brasileiro trava o embate a que
mais condições terão para intervir, para elaborar res- se propõe: o de avançar em seu projeto ético-político
postas profissionais qualificadas do ponto de vista teó- na direção de uma sociabilidade mais justa, mais igua-
rico, político, ético e técnico (o conhecimento teórico é litária e onde direitos sociais sejam observados.
a primeira ferramenta do trabalho do assistente soci- Um projeto de profissão, como sabemos, envolve
al). Mas, se fundamental é decifrar as lógicas do capi- um conjunto de componentes que necessitam se arti-
tal, sua expansão predatória e sem limites, desafiante cular: são valores, saberes e escolhas teóricas, práti-
é, também, saber construir mediações para enfrentar cas, ideológicas, políticas, éticas, normatizações acer-
as questões que se colocam no tempo miúdo do dia a ca de direitos e deveres, recursos político-
dia da profissão. É nesse tempo que podemos partejar organizativos, processos de debate, investigações, em
o novo, construir resistências, construir hegemonia, interlocução crítica com o movimento da sociedade
enfrentar as sombras que mergulham esta imensa par- na qual o Serviço Social é parte e expressão.
cela de humanidade explorada, enganada, iludida, mas- Não são poucos os desafios que interpelam a pro-
sacrada, gente que fica à espera em longas filas para fissão quando fazemos aposta em outra ordem
receber os “benefícios” que os assistentes sociais societária. Temos aí um papel de politizar e dar visibi-
operacionalizam. lidade aos interesses das classes subalternas e sabe-
Construir mediações é um desafio porque supõe mos que não basta a alta qualidade técnica de nosso
um movimento de passagem de nossas concepções trabalho. Tarefa difícil construir uma nova cultura po-
ontológicas, de nossos fundamentos teórico- lítica na política social, âmbito privilegiado de nosso
metodológicos para esse tempo miúdo, para situações trabalho profissional. Estamos no olho do furacão... E,
concretas. Essas mediações são teóricas, técnicas e embora saibamos que escapa às políticas sociais, às
políticas. Por exemplo: a estruturação de um serviço, suas capacidades, desenhos e objetivos reverter ní-
a construção de um programa, a organização de um veis tão elevados de desigualdade, como os encontra-
CRAS, de um trabalho socioeducativo, e outros. dos no Brasil, não podemos duvidar das virtualidades
Do que estou tratando? Estou tratando de situa- possíveis dessas políticas. Elas podem ser possibilida-
ções cotidianas onde as desfigurações resultantes da de de construção de direitos e iniciativas de “contra-
espoliação deixam seus impactos. Estou tratando de desmanche” de uma ordem injusta e desigual.
situações que são alvo – objeto de políticas que nós
operacionalizamos. Estou tratando da questão de Maria Carmelita Yazbek, setembro 2010.
construção de hegemonia, no exercício concreto de
uma profissão. Estou afirmando o processo de cons- Notas
trução de direitos não apenas como questão técnica,
mas como questão essencialmente política, lugar de 1 Por questão social entendemos a disputa, pelas classes
contradições e resistência. Âmbito a partir do qual sociais, da riqueza socialmente construída na sociedade
seja possível “modificar lugares de poder demarca- capitalista.
dos tradicionalmente e, portanto, de abertura para
construir outros” e não apenas realizar gestões bem 2 TELLES, V. da S. Transitando na linha de sombra, tecendo as
sucedidas de necessidades sociais. Estou colocando tramas da cidade (anotações inconclusas de uma pesquisa).
em questão a luta por direitos como uma questão a In: OLIVEIRA, F.; RIZEK, C. S. A era da indeterminação.
ser politizada, como estratégia capaz de romper, ou São Paulo: Boitempo, 2007.
iniciar a ruptura, do círculo fechado da dominação.
Estou colocando a reivindicação dos direitos sociais 3 MARTINS, J. de S. O massacre dos inocentes. Acriança sem
como parte da luta de classes. infância no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1991.
Sabemos que permanecem na Política Social bra-
sileira, âmbito privilegiado de nossa inserção profissio-
nal, concepções e práticas assistencialistas, clientelistas, Maria Carmelita Yazbek
primeiro damistas e patrimonialistas. Observamos na mcyaz@uol.com.br
rede solidária a expansão de serviços a partir do de- Pós-Doutoramento no Inst. de Estudos Avançados
ver moral, da benemerência e da filantropia (que em si da Universidade de São Paulo (USP)
mesmos, não realizam direitos). Ainda encontramos Doutorado em Serviço Social pela PUC-SP
em nosso trabalho uma cultura moralista e autoritária Professora da Pós-Graduação em Serviço Social
que culpa o pobre por sua pobreza. da PUC-SP

Rev. Katál. Florianópolis v. 13 n. 2 p. 153-154 jul./dez. 2010

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