Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ENSAIO
mais importantes expressões – tendo como referência funda dificuldade desses profissionais apanharem as
os eventos citados), não significa, em absoluto, que particularidades da violência a partir de suas mani-
elas sejam as únicas realmente materializadas. O não festações imediatas e singulares no espaço em que
registro de outras dimensões não significa, necessari- se materializa a atuação profissional. Cria-se, então,
amente, a inexistência delas no cotidiano profissional. um cenário perverso: o mesmo ingrediente necessá-
Isso pode ocorrer por falta de apropriação de deman- rio para uma densa apropriação do movimento do
das existentes ou, simplesmente, por impossibilidade real (a vivência de experiências concretas), quando
ou dificuldade de chegarem aos principais eventos, e tomado isoladamente, consome a força, o potencial
serem aprovadas e publicadas nos seus anais. Pode- criativo do assistente social na divisão do trabalho,
se, por exemplo, considerar a violência não apenas atribuindo-lhe a responsabilidade de ‘gerenciar prati-
como um complexo social, que se objetiva na atuação camente’ mazelas sociais, oriundas da violência es-
do assistente social, motivada por um ‘elemento ex- trutural, implícita no próprio metabolismo do capita-
terno’ a ela (uma demanda apresentada à profissão: a lismo contemporâneo, que é objetivada, com certa
mulher violentada, a criança espancada ou a violência independência, por meio de ações violentas, também
urbana em suas diversas manifestações, entre outras), potencializadas por individualidades e suas respecti-
mas, também, como um processo que se reconstrói a vas subjetividades.
partir da própria intervenção profissional. Nesta Consolida-se, então, um terreno fértil para certo
acepção a violência adquire, inclusive, outros desdo- tipo de fragmentação teórica e prática que se esten-
bramentos que a colocam como parte constituinte de de à categoria violência, (eliminando uma em favor
um circuito violento (isso foi indicado no item ‘violên- da outra, ou simplesmente ressaltando uma delas
cia e exercício profissional do assistente social’ – como a esfera que interessa à profissão), e, ao mes-
3,61%). Essa é uma dimensão particularmente inte- mo tempo, reforça-se um procedimento formativo,
ressante que não pode ser subestimada em qualquer comprometido com a criação de especialistas (teóri-
discussão sobre a violência, cos ou práticos) que atuem
as suas múltiplas expressões nas expressões das ‘violên-
e o Serviço Social. O problema está, sobretudo, na cias singulares’ (como se
Os dados relatados, ape- essa dimensão – componen-
sar dos limites, são suficien- profunda dificuldade desses te insuprimível da categoria
tes para evidenciar que os as- da totalidade – não fosse
sistentes sociais possuem uma profissionais apanharem as saturada por características
inserção profissional altamen-
te relevante no campo da vio- particularidades da violência a universais e particulares).
Essa ruptura entre o fazer e
lência (embora isso nem sem- partir de suas manifestações o pensar (já explicitamente
pre pareça claro para eles pró- relatada por Marx na segun-
prios), espaço esse que pode imediatas e singulares no da metade do século 19 –
e deve servir como um ver- MARX, 1983), essa dificulda-
dadeiro celeiro empírico ne- espaço em que se materializa a de de apanhar – ainda que
cessário e insuprimível, apon- relativamente – a realidade
tando para o ponto de partida atuação profissional. como totalidade (em movi-
e o de chegada da práxis pro- mento), é determinada e re-
fissional. Em outras palavras, forçada pela estrutura da or-
trata-se de um profissional empiricamente privilegiado dem burguesa e encontra ecos profundos na profis-
por ocupar os confins da sociedade burguesa são. Nesse contexto, a formação teórica fragmenta-
abrasileirada e atuar concretamente frente a esse im- da, deficitária ou simplesmente ‘aplicada” às neces-
pacto (sobretudo no campo das políticas sociais – seja sidades imediatas dos assistentes sociais, é mais uma
na reprodução da força de trabalho, ou na simples questão imposta à profissão.
manutenção dos miseráveis). Ao mesmo tempo, pare- Embora não seja possível, nesse curto espaço, ana-
ce que – e esse é um segundo aspecto relevante – lisar o conteúdo dos estudos apresentados pelas co-
vem crescendo a sintonia entre as múltiplas inserções municações selecionadas a partir dos anais dos even-
desse profissional e alguns setores da academia, com- tos considerados (e esse não é o objetivo desse arti-
prometidos com a produção de conhecimentos relaci- go), essa abordagem preliminar sobre elas confirma
onados à violência. sua diversidade teórica e temática. Transitam da sis-
Por outro lado, o grande desafio continua sendo o tematização de práticas interessantes que remetem a
de qualificar a forma como essa riqueza empírica é situações desafiadoras, apresentadas aos profissionais
apropriada teoricamente pelos assistentes sociais e de Serviço Social, propiciando múltiplas análises sus-
como isso é socializado com os diferentes segmen- tentadas em diversas orientações teóricas ou fragmen-
tos da profissão. O problema está, sobretudo, na pro- tos delas. Reivindicam, pelo menos intencionalmente,
a defesa de direitos e a denúncia de todas as formas co. Tal procedimento é absolutamente necessário para
de violência sob a orientação do Código de Ética e do que seja construída uma abordagem séria, densa e com-
projeto ético-político da profissão. prometida capaz de combater qualquer forma particu-
Ora, reivindicar isso não é pouco, embora seja, lar de violência que se apresente como demanda ao
certamente, insuficiente para sintonizar a profissão – assistente social ou que se reproduza com o aval –
sem idealismos – com as inúmeras discussões que consciente ou não – do profissional e de sua atuação.
emergem do campo da violência. Cabe salientar, aqui,
a necessidade de não apenas sistematizar experiên-
cias (por melhor e mais elaboradas que sejam) e, ao 2 A violência como complexo social e sua
mesmo tempo, não afirmar qualquer tradição teórica reconstrução como categoria de análise
(muito menos aquelas comprometidas com sínteses
ecléticas). Para além desse nível que ‘adoça a boca’ Argumentou-se, até o presente momento, que o
dos amantes da pós-modernidade, é necessário res- prévio mapeamento empírico das múltiplas expres-
saltar uma tradição teórica que permita forcejar o sões contemporâneas da violência na relação direta
projeto ético-político da profissão e questionar as com o Serviço Social deve servir de referência à práxis
possibilidades e os limites da emancipação política profissional. É preciso não apenas qualificar a apro-
(MARX, 2005a, p. 41-42). É preciso afirmar que a priação da dinâmica desse real, mas, ao mesmo tem-
produção de conhecimentos, comprometida com a po, fomentar condições para que a produção elabo-
perspectiva da totalidade (no sentido em que foi tra- rada tenha impactos efetivos no cotidiano (HELLER,
tada por Marx e explicitada por Lukács), fornece as 1989) profissional. Desconsiderar essa dimensão –
melhores condições para isso, embora não garanta – insuprimível como tal – na produção de conhecimen-
em absoluto e por si só – um sucesso do pesquisador tos ou, ao contrário, se limitar a sua face singular e
que assuma esse ponto de vista (LÖWY, 1988). imediata, inviabiliza qualquer iniciativa comprometi-
Portanto, embora a focalização, a fragmentação da com a reconstrução da violência como categoria
e a departamentalização sejam características implí- sócio-histórica que se objetiva como complexo social.
citas no próprio metabolismo Esse é um procedimento im-
da ordem burguesa em curso prescindível atualmente para
(com suas derivações mais ... o prévio mapeamento o Serviço Social.
elaboradas que valorizam, A violência, em suas di-
com maior ou menor intensi- empírico das múltiplas versas manifestações con-
dade, a ‘rede comunicativa’,
estabelecida entre as partes
expressões contemporâneas da temporâneas mais imediata-
mente visíveis (física, psico-
para a ‘estabilidade’ do todo violência na relação direta com lógica, simbólica, estrutural –
– CAPRA, 2004) é preciso ou a associação entre elas),
ressaltar os tipos de aborda- o Serviço Social deve servir de possui uma existência real
gem e de tratamento ofere- que impacta a vida de seres
cidos pelos estudos e a for- referência à práxis sociais sob dada historicida-
ma como esse conhecimento de. Sua objetivação não é
vem sendo apropriado pelos profissional. uma abstração e supõe, ne-
assistentes sociais, tendo cessariamente, para que seja
como ponto de partida as in- violência, uma realização prá-
serções concretas da profissão na contemporaneidade. tica – mais ou menos visível, reconhecida ou não so-
Valorizar esse aspecto dentro da perspectiva da totali- cialmente – capaz de violar, oprimir, constranger fe-
dade – construída na unidade-diversa entre a teoria e rir e impor interesses e vontades que se sustentam
a prática, entre o pensamento e a realidade, entre a em desejos de indivíduos sociais, situados em uma
ontologia e a gnosiologia e apanhada na trama dada existência que impõe os parâmetros por onde
estabelecida entre o singular, o universal e o particular tais subjetividades se formam e se desenvolvem.
(LUKÁCS, 1979, p. 27) – é condição básica para que Portanto, por mais pontual que possa parecer um ato
os assistentes sociais apreendam criticamente as de- violento, ele sempre será ideado, viabilizado e expli-
mandas imediatamente enfrentadas, potencializem po- cado sob determinadas condições sócio-históricas e,
sitivamente essa relação, qualifiquem as possibilida- evidentemente, não poderá ficar circunscrito à esfe-
des e os limites da emancipação política em questão e ra puramente individual-subjetiva (embora não pres-
sintonizem a profissão, sem qualquer idealismo, com a cinda dela), já que o ser social é, ao mesmo tempo,
emancipação humana (MARX, 2005a). Esse é, segun- subjetividade-objetividade, indivíduo-classe. A violên-
do nossa opinião, o caminho mais fecundo para force- cia, nas suas diversas expressões, é uma categoria
jar, nas suas fronteiras e contradições, o Código de que se realiza como complexo social, que pertence
Ética dos assistentes sociais e seu projeto ético-políti- às relações humano-sociais (longe de qualquer
paradigma biologista) e que carece, para seu Assim é que Hegel chegou à ilusão de conceber o
enfretamento, de reconstrução crítica apoiada na ra- real como resultado do pensamento que se con-
zão que se debruça sobre o mundo e, a partir dele, centra, que se aprofunda em si mesmo e se apreen-
formula conceitos e propõe alternativas práticas. de a partir de si mesmo como pensamento móvel;
Entretanto, como categoria que também é siste- enquanto que o método que consiste em elevar-se
matizada por meio de conceitos, a violência não está do abstrato ao concreto não é senão a maneira de
circunscrita a um ou outro conceito. Trata-se de um proceder do pensamento para se apropriar do con-
acontecimento excepcional – material – que revela creto, para reproduzi-lo espiritualmente como coi-
dimensões desconhecidas da vida social, produzindo sa concreta [...] (MARX, 1989, p. 410).
impactos econômicos, políticos e socioculturais. A
violência conta com seres reais que a operacionalizam É importante salientar que a existência de diferen-
com uso da força (não necessariamente física), com tes formas de apreensão do real (marcadas por bases
certa intensidade, com finalidades, intenções e inte- teóricas diferenciadas e por orientações de classe igual-
resses diversos. Revela, no geral, como lembra Ianni mente diferentes), não elimina, em absoluto, a existên-
(2004, p. 168), um desejo de destruição do outro, da- cia de uma verdade sobre esse real (a sua lógica con-
quele que é ‘diferente’ e ‘estranho’, que foge dos creta). Nós a perseguimos, se a capturamos, ainda
padrões socialmente estabelecidos. Procura, com isto, que nunca exatamente, é outro problema. O mesmo
exorcizar questões de difícil solução e sublimar situ- ocorre com as diferentes apreensões sobre a catego-
ações e cenários absurdos, embutidos na sociabilida- ria violência e o significado da desigualdade social na
de e no jogo de forças sociais3. Isso, por si só, indica ordem burguesa madura ‘abrasileirada’, contamina-
os imensos desafios que se apresentam ao Serviço das por formas ideológicas que tomam parte do pro-
Social e à formação de seus profissionais. cesso como sendo o processo por inteiro. Por isso,
Apanhar, neste contexto, a violência como cate- com não pouca freqüência, são endossadas apreen-
goria de análise exige um procedimento metodológico sões da ‘violência’ ou de ‘violências’ (na verdade for-
comprometido com a perspectiva da totalidade – que mas particulares de objetivação cotidiana da violên-
também, como categoria ontológica, possui uma exis- cia) como atos pontuais causados exclusivamente por
tência para além da razão pensante. Em outras pala- indivíduos que carecem de um tratamento focal.
vras, longe de qualquer tentativa de fragmentar ou Essa deturpação se estende para outras impor-
de generalizar mecanicamente a explicação da vio- tantes categorias abstratamente referenciadas: a de-
lência nas suas heterogêneas formas de objetivação, mocracia, a cidadania, a liberdade, a autonomia, a
é preciso partir das demandas imediatas impostas à justiça, a eqüidade, os direitos e a emancipação. To-
profissão e descortinar suas conexões universais re- das elas necessárias para uma abordagem de tota-
ais que jamais se realizam como atos unicamente iso- lidade, mas freqüentemente consideradas como
lados. No entanto, isso somente adquire maior ‘uma outra coisa’ quando se fala de violência. Ora,
concretude na medida em que as particularidades da é necessário explicar o que representam, do que
violência como complexo social e suas inúmeras tratam e em qual sentido são apropriadas e
mediações reconstruídas com o auxílio da razão, se- reproduzidas tais terminologias no âmbito da profis-
jam explicadas para além das manifestações imedia- são, também quando se discutem as expressões
tamente constatadas pelos assistentes sociais em seu particulares da violência! Por exemplo: de qual de-
trabalho. É preciso, mais do que isso, que todo esse mocracia falamos? Ela é a referência para o que se
processo volte ao seu ‘ponto de partida’ e oriente a chama de emancipação? Qual tipo de emancipa-
intervenção profissional sem idealismos, ou seja, sem ção? Qual a utilidade delas no combate às múltiplas
exigir dela e do Serviço Social o que ambos não po- manifestações da violência na contemporaneidade,
dem oferecer. Isso indica as grandes dificuldades para desde a leitura crítica desse complexo social (para
a concretização de uma leitura de totalidade em tem- além da culpabilização meramente individual) até a
pos de fragmentação generalizada. formulação de ações efetivas para sua negação-
superação? O mesmo vale para os outros termos
[...] O concreto é concreto, porque é a concentra- tomados, muitas vezes, sem qualquer rigor – o eixo
ção de muitas determinações, isto é, unidade do exclusão-inclusão social, por exemplo –, como re-
diverso. Por isso, o concreto aparece no pensa- ferências indiscutíveis à construção genérica de uma
mento como o processo de concentração, como ‘outra ordem societária’ (diga-se de passagem, uma
resultado, não como ponto de partida e, portanto, tarefa que não se limita, jamais, às profissões).
o ponto de partida também da intuição e da repre- Analisar com cuidado esse pantanoso e contra-
sentação. No primeiro caminho a representação ple- ditório terreno por onde se move a profissão, é con-
na volatiliza-se na determinação abstrata4; no se- dição básica para uma abordagem séria da violên-
gundo, as determinações abstratas conduzem à re- cia no âmbito da formação e do trabalho do assis-
produção do concreto por meio do pensamento. tente social, seja em relação às formas de violência
que fazem parte da vida cotidiana dos usuários ou, Crescem, simultaneamente, as possibilidades de
o que é especialmente interessante, àquelas que se uma análise mais densa sobre o papel da profissão
propagam com a colaboração dos profissionais (e e dos profissionais como atores que potencializam,
elas freqüentemente ‘dialogam’ entre si). ou não, processos violentos.
As desigualdades sociais particularizadas e fun- Reivindica-se, então, sem romantismos, um tra-
damentadas, sob as condições objetivas ofereci- balho profissional, entendido como uma determina-
das pelo capitalismo (a apropriação privada da pro- da forma de trabalho assalariado (necessariamente
dução social), possibilitam a materialização de di- abstrato – que subsume, mas não elimina sua di-
ferentes formas de violência. Esse aspecto relaci- mensão concreta), predominantemente improduti-
onado à questão social – intrínseca à natureza da vo e claramente material (situado no campo das re-
propriedade privada (MARX, 1984, p. 187) –, pre- lações sociais e da reprodução da força de traba-
cisa ser considerado na formação profissional do lho, especificamente relacionado com o ge-
assistente social ao se discutir as expressões da renciamento de múltiplos programas e projetos so-
violência no Serviço Social. Não se trata, então, ciais que fazem parte das políticas sociais – e esse
de fomentar abordagens segmentadas da violên- é um dado insuprimível), dotado de uma formação
cia no processo de formação profissional, mas de profissional com densidade teórica e forte carisma
reconstruí-la como elemento que se repete e se interventivo (contexto em que deve se inserir a pes-
particulariza – não mecanicamente – sob condi- quisa e a produção de conhecimentos). Sob essas
ções históricas, marcadas pela crise do capital e condições, sem qualquer concessão messiânica e
de suas contraditórias iniciativas de reprodução em com clareza de suas bases históricas nitidamente
escala ampliada. conservadoras (IAMAMOTO 1985, 1994; PAULO
Nesse sentido é que, por exemplo, a violência NETTO, 1991), é necessário valorizar o potencial cri-
particularizada em ‘múltiplas faces’ (diferentes, mas ativo do sujeito histórico possível – que também o
unidas entre si), não carece, necessariamente, de assistente social pode exercer – sobretudo nesses
um espaço específico nas grades curriculares dos momentos em que a voracidade do capital estimula a
cursos de Serviço Social, mas, sobretudo, deve ser criação e a recriação de múltiplas formas de violên-
abordada e destacada na interface entre a profis- cia com a participação, mais ou menos consciente,
são e os assuntos que servem como eixo central dos profissionais e das profissões. Não acreditar nessa
para importantes conteúdos programáticos, materi- possibilidade não apenas engessa a ambos, mas, so-
alizados em ementas de disciplinas: Fundamentos bretudo, os coloca no campo exclusivo da reprodu-
Teóricos-Históricos-Filosóficos, Trabalho Profissi- ção do capital (sem qualquer possibilidade de resis-
onal, Ética, Sociologia, Teoria Política, Filosofia, tência) e a favor da violência em suas múltiplas ex-
Psicologia, entre outras5. O estágio supervisionado, pressões (mesmo que os assistentes sociais não se
a supervisão acadêmica e de campo, no caso da dêem conta disso). É preciso, portanto, qualificar a
graduação, devem ser interlocutores privilegiados forma como o profissional ocupa espaços, apropria-
para oferecer e discutir cenários reais vividos pelos se criticamente deles e desenvolve ações.
discentes e pelos futuros profissionais. A partir disso e dos limites intransponíveis de-
Essa postura evita a fragmentação e o isola- terminados pelas possibilidades de uma profissão,
mento na própria forma de reconstruir o tema no dentro de sua história e de sua historicidade, que é
âmbito da profissão (e no da formação), bem como possível reivindicar uma interlocução entre o Ser-
estimula uma apropriação das expressões da vio- viço Social, a contribuição marxiana e certa tradi-
lência tendo como base temas-eixo reais para o ção marxista comprometida com a perspectiva da
Serviço Social: questão social, Estado e políticas totalidade (inclusive no trato da categoria violên-
sociais, teoria/método/produção de conhecimentos, cia), sem crer, em absoluto, em um ‘Serviço Soci-
trabalho profissional, entre outros, considerando al marxista’ ou em um marxismo adaptado às con-
como terreno sócio-histórico a ordem burguesa dições de uma profissão (PAULO NETTO, 1989).
contemporânea no Brasil. Existem, nesse sentido, Essas são as melhores condições – embora não
melhores condições para apreender a violência sirvam de garantia absoluta – para dar combate
como um importante complexo social que interage radical à violência e às suas múltiplas expressões
com o Serviço Social de múltiplas maneiras, sob na contemporaneidade, valorizando uma inserção
dadas condições, desconstruindo interpretações crítica e propositiva que potencialize importantes
que tendem a explicá-la como uma ‘aberração‘ alternativas de resistência naqueles espaços
unicamente criada e praticada por indivíduos ou socioocupacionais onde se possa, deva e tenha que
segmentos sociais ‘predispostos’ a comportamen- pensar e fazer de forma diferente (como intelec-
tos violentos, tomando formas particulares de vio- tuais e não como ‘acadêmicos’ ou ‘práticos’).
lência como sendo ‘a violência‘ (hoje, por exem- Nesse sentido, é possível qualificar a emancipa-
plo, materializada na maldita ‘violência urbana’). ção política e forcejar na direção da emancipação
humana (MARX, 2005a, p. 42), sem atribuir à primei- e que podem continuar a se reproduzir – mais inten-
ra o caminho mágico para a realização da segunda samente – com base em seu exercício profissional
(LESSA, 2007). (como processo que atravessa a profissão e os pro-
fissionais inseridos nesse circuito). Apanhar esse
contexto, reconhecer sua complexa e pulverizada
3 Apontamentos para a continuidade do (mas não isolada) particularização e, a partir disso,
debate propor encaminhamentos práticos e efetivos que le-
vem em consideração os aspectos peculiares dos
O Serviço Social como profissão e os assistentes segmentos envolvidos, é condição para o
sociais como profissionais que exercem determinado enfrentamento das múltiplas formas de violência.
tipo de trabalho, podem reforçar – com maior ou Entretanto, esse procedimento, em momento algum,
menor intensidade – processos violentos ou resistir a não pode ser confundido com ações focais adminis-
eles a partir das condições objetivas disponíveis. A tradas por gerentes sociais especialistas em recortar
violência e suas expressões particulares não são de- o ‘irrecortável’.
mandas puramente ‘externas’ que se apresentam à Nesse sentido, apontamos nos itens a seguir algu-
profissão para um tratamento técnico, eficiente e mas iniciativas de resistência, necessárias para sub-
sistêmico. Mais do que isso, imbricam-se com o exer- sidiar ações individuais e coletivas.
cício profissional do assistente social e exigem dele a) É fundamental, insistir em uma formação pro-
um posicionamento teórico, político e prático – mar- fissional que, negando, simultaneamente, o
cado pela necessária clareza teórico-analítica e pela ‘academicismo’ e o ‘teoricismo’, esteja voltada
solidez interventiva – que o coloca como um ator para a análise teórica de desafios práticos, en-
participante de um complexo circuito repleto de suti- riquecendo a experiência com a reflexão críti-
lezas e de armadilhas. ca. Evidentemente que as atuais condições não
É preciso reconhecer que a violência apresenta- são nada favoráveis para isso. A precarização
se heterogênea e multifacetada e se particulariza da formação profissional, estimulada pela proli-
atingindo diferentes segmentos sociais (jovens, mu- feração de cursos à distância – com amplo aval
lheres, idosos, famílias, grupos, movimentos sociais, e estímulo das instâncias oficiais –, a
entre outros), classes sociais diversas (dos miserá- ‘flexibilização’ e as inúmeras dificuldades dos
veis aos milionários – ainda que, evidentemente, cursos presenciais, a tendência em ‘enxugar’ a
objetive-se com intensidades variadas e conte com pós-graduação, entre outras iniciativas em cur-
instrumentos de defesa igualmente diferentes e de- so, consolidam uma orientação educacional su-
siguais) e imediatamente se manifesta por meio de perficial e meramente operativa (ou nem isso),
marcas físicas ou psicológicas, sentidas por indiví- portanto muito distante da necessária base in-
duos. Certamente que as expressões particulares telectual fundamental à práxis profissional.
da violência não estão circunscritas às camadas b) É preciso ter claro, que os campos da emanci-
pobres, ainda que se materializem nelas sob condi- pação política e da afirmação de direitos
ções peculiares (como vítimas ou agentes repro- ( MARX , 2005a) devem ser ocupados e
dutores). Mas é necessário reconhecer que as con- potencializados pelos profissionais de Serviço
dições materiais de existência e a sociabilidade nela Social. No entanto, somente vale a pena assu-
formada são componentes insuprimíveis para a ex- mi-los se for possível imprimir uma direção que
plicação desse fenômeno mesmo que seja para res- ocupe e movimente suas possibilidades por
saltar as faltas ou os excessos por onde as relações meio da práxis profissional. Isso significa ocu-
sociais – burguesas – constituem-se, cada vez mais, par espaços oficiais e institucionais (pelo me-
como ‘relações coisais’. nos aqueles que propiciam a contradição e o
Portanto, afirmar que processos violentos se par- debate), ainda que estas instâncias sejam in-
ticularizam sob determinadas condições e em deter- suficientes. Assim, é preciso, entre outras coi-
minados segmentos sociais, não é o mesmo que en- sas, preparar profissionais capazes de
dossar uma abordagem focal da violência. Enfrentar potencializar múltiplas instâncias que ponham
as múltiplas formas atuais de violência não significa, em movimento forças comprometidas com a
em absoluto, especializar o ‘olhar científico’ para for- emancipação humana.
mar profissionais comprometidos com tratamentos e c) É necessário, retomar o vínculo com os mo-
ações cirúrgicas, como verdadeiros ‘médicos soci- vimentos sociais e com os trabalhos popula-
ais’. Reafirmar a perspectiva da totalidade na recons- res. Longe de qualquer iniciativa preocupa-
trução da violência como categoria e como comple- da em ressuscitar ações sectárias e
xo social possui o exato sentido de reconhecer, a ab- dogmáticas, mas para sintonizar o trabalho
soluta necessidade de apanhar as particularidades da profissional com outras instâncias absoluta-
violência que se apresentam aos assistentes sociais mente necessárias à práxis social (MARX,
1987). Como está expresso em Silva (2008), ______.; CARVALHO, R. de. Relações sociais e Serviço
é fundamental abandonar o isolamento e a Social no Brasil. Esboço de uma interpretação histórico-
‘neutralidade’ técnico-instrumental – o metodológica. São Paulo: Cortez, 1985.
posto unicamente gerencial –, ‘colar’ no
movimento do real e, portanto, produzir co- IANNI, O. A cultura da violência. Capitalismo, violência e
nhecimentos, propor e viabilizar alternati- terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
vas a partir das necessidades dos segmen-
tos sociais desapropriados pelo capital. Isso, LESSA, S. A emancipação política e a defesa de direitos.
simultaneamente, enriquece os espaços ofi- Revista Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez,
ciais e gerenciais – importantes quando ocu- n. 90, p. 35-57, jun. 2007.
pados propositivamente – ‘temperando-os’
com potência contestatória e oxigenan- LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o barão de
do possíveis comportamentos dóceis de Münchausen. Marxismo e positivismo na sociologia do
lideranças cooptadas pelo instituído. Ao conhecimento. São Paulo: Busca Vida, 1988.
mesmo tempo, oferece informações
institucionais valiosas aos movimentos soci- LUKÁCS, G. Introdução a uma estética marxista. Tradução
ais e contribui para criticá-los em suas fra- de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização
gilidades (particularmente na sua fragmen- Brasileira, 1978.
tação), fortalecendo e concretizando suas
ações. Esse procedimento qualifica o traba- ______. Ontologia do ser social. Os princípios onto-
lho profissional e exige, dele, posturas abso- lógicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora
lutamente diferenciadas no campo teórico- Ciências Humanas, 1979.
prático e ético-político.
Um grande desafio está claramente posto ao Ser- MARX, K. O método da economia política. Contribuição à
viço Social: ou se caminha em direção a reafirmar crítica da economia política. In: FERNANDES, F. (Org.).
o Código de Ética e o projeto ético-político da pro- Marx/Engels – História. São Paulo: Ática, 1989. (Coleção
fissão no exato sentido de esclarecer e de radicalizar Grandes Cientistas Sociais, n. 36, p. 409-417).
a apreensão teórico-prática de categorias sociais que
dizem respeito à existência do ser na ordem bur- ______. A questão judaica. São Paulo: Centauro Editora,
guesa (trabalho, questão social, democracia, eman- 2005a.
cipação, solidariedade, justiça, equidade, liberdade
e, nessa trama, as manifestações particulares da ______. As teses sobre Feuerbach. A ideologia alemã. São
violência), ou serão eliminadas quaisquer possibili- Paulo: Hucitec, 1987.
dades de resistência e de reorganização das forças
progressistas nesses duros tempos de supremacia ______. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (v. 1, t. 2).
do capital sobre o trabalho. Este é o caminho para
sucumbir à desumanização do homem e reafirmar PAULO NETTO, J. Ditadura e Serviço Social – uma
um Serviço Social limitado ao ‘cidadão’ consumidor análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São Paulo:
responsável e comprometido com a ‘solidariedade’ Cortez, 1991.
de classes. Essas não seriam as condições ideais
para a reprodução da violência e de suas expres- ______. O Serviço Social e a tradição marxista. Serviço
sões contemporâneas particulares no mundo do ca- Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 30, p. 89-102,
pital, considerando as bases criadas pela ideologia abr. 1989.
do ‘humanismo solidário’?
SILVA, J. F. S. da. ‘Justiceiros’ e violência urbana. São
Paulo: Cortez, 2004a.
Referências
______. Violência, Serviço Social e formação profissional.
CAPRA, F. O ponto de mutação – a ciência, a sociedade e Serviço Social & Sociedade. São Paulo: Cortez, n. 79, p.
a cultura emergente. São Paulo: Editora Cultrix, 2004. 133-147, set. 2004b.
HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e ______. O recrudescimento da violência nos espaços urba-
Terra, 1989. nos: desafios para o Serviço Social. Serviço Social &
Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 89, p. 130-154, mar. 2007a.
IAMAMOTO, M. V. Renovação e conservadorismo no
Serviço Social – ensaios críticos. São Paulo: Cortez/Celats, ______. Pesquisa e produção do conhecimento em Serviço
1994. Social. Textos & Contextos, PUCRS, v. 6, n. 2, dez. 2007b.
Notas
UNESP-Franca
Rua Major Claudiano, 1488, sala 157
Centro
Franca – São Paulo
Caixa Postal 211
CEP: 14400-690