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13/03/2020 Os desafios da psicologia frente à questão ecológica: rumo à complexa articulação entre natureza e subjetividade

Psicologia: Ciência e Profissão Serviços Personalizados


versão impressa ISSN 1414-9893
Journal
Psicol. cienc. prof. vol.22 no.1 Brasília mar. 2002
Artigo
https://doi.org/10.1590/S1414-98932002000100013
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RESUMO
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A partir da noção de paradigmas em ciência, nota-se como homem e
natureza são abordados enquanto categorias distintas. Identifica-se tal
tendência com processos históricos que tendem a separar sociedade e Permalink
natureza. A partir desse caminho, procura-se relacionar estas tendências aos
fenômenos psicossociais encontrados na modernidade. Enquanto direção,
procura-se refletir acerca dos novos paradigmas em ciência e o modo como estes implicam um novo
posicionamento frente à relação homem-natureza.

Palavras-chave: Ecologia, Natureza, Subjetividade, Modernidade.

ABSTRACT

Starting from the notion of paradigms in science, it is noticed as man and nature are approached as different
categories. It is identified a tendency with historical processes that tend to separate society and nature. Starting
from this road, the work tries to link these tendencies to the psychic and social phenomenons found in the
modernity. While direction, it tries to reflect about the new paradigms in science and the way these imply a new
positioning to the relationship man-nature.

Keywords: Ecology, Nature, Subjectivity, Modernity.

Sociedade versus Natureza

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Vivemos um momento de transição com relação aos paradigmas da ciência. Tal passagem, entretanto, não se dá
de forma abrupta, mas através de um longo processo que mina as nossas certezas e nos coloca diante de novas
questões.

Segundo Santos (1996: 10), a ciência moderna foi construída a partir de um modelo de racionalidade que se
estabeleceu após a revolução científica do século XVI, tendo sido desenvolvido nos séculos seguintes,
principalmente no domínio das ciências naturais. Apenas por volta dos séculos XVIII e XIX, esse modelo de
racionalidade também é estendido às ciências sociais emergentes. Esse modelo se firmaria enquanto um modelo
global, totalitário, na medida em que negaria o caráter racional de todas as formas de conhecimento que não se
pautem pelos seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas.

Em síntese, esse modelo estaria fundado em uma concepção do mundo enquanto uma ordem e constituído por leis
mecânicas, assim como na separação entre matéria e espírito. Essa visão de mundo e da vida conduz, ainda, a
duas distinções básicas: entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, e entre a Natureza e a
pessoa humana.

A Natureza seria tão somente extensão e movimento. Seria passiva, assim como eterna e reversível. Seria um
mecanismo cujos elementos poderiam ser desmontados e relacionados sob a forma de leis. Tal processo de
desvendamento visaria a conhecer a natureza no intuito de dominá-la e controlá-la. Citando Bacon, Santos diz que
a ciência transformaria a pessoa humana em “‘senhor e possuidor da natureza’” (1996: 13).

O conhecimento que se baseia na formulação de leis tem como pressuposto a idéia de ordem e estabilidade do
mundo. O determinismo mecanicista tem lugar enquanto forma de conhecimento que se pretende ao mesmo
tempo utilitário e funcional, menos preocupado com a compreensão profunda do real do que com a sua capacidade
para dominá-lo e transformá-lo.

Falando acerca da concepção de ciência social, Santos relata que, mesmo que aparentemente fundadas em uma
atitude antipositivista, numa reflexão mais aprofundada, as ciências sociais seriam mais subsidiárias do modelo de
racionalidade das ciências naturais do que parece. Tal vínculo se daria – e consideramos muito significativa esta
passagem – porque:

“Partilha com este modelo a distinção natureza/ser humano e tal como ele tem da natureza uma visão mecanicista
à qual contrapõe, com evidência esperada, a especificidade do ser humano. A esta distinção, primordial na
revolução científica do século XVI, vão-se sobrepor nos séculos seguintes outras, tal como a distinção
natureza/cultura e a distinção ser humano/animal, para no século XVIII se poder celebrar o carácter único do ser
humano. A fronteira que então se estabelece entre o estudo do ser humano e o estudo da natureza não deixa de
ser prisioneira do reconhecimento da prioridade cognitiva das ciências naturais, pois, se, por um lado, se recusam
os condicionantes biológicos do comportamento humano, pelo outro usam-se argumentos biológicos para fixar a
”
especificidade do ser humano (Santos, 1996: 22-23).

Uma tendência marcante nas sociedades ocidentais, quando adentramos nas construções que visam a
compreender a relação homem-natureza, é, portanto, aquela que diz respeito a uma dicotomia entre essas duas
instâncias. De modo mais claro, podemos falar de uma tendência que compreenderia a sociedade, e portanto o
humano, em oposição à Natureza.

A sociedade seria vista, de um ponto de vista evolutivo, como uma superação da condição natural. Tais instâncias
seriam vistas de forma hierárquica, onde a produção de cultura e de sociedade implicaria uma superação de uma
condição inferior, animal, natural.

No campo da Psicologia Social, Moscovici (1975), em Sociedade contra natureza, desenvolve tais argumentos,
apontando um processo histórico de oposição entre Natureza e cultura.

Esse autor narra toda a passagem daquilo que convencionamos chamar da Natureza para a cultura. Partindo dos
primeiros primatas, e sob uma lógica evolucionista, pode-se compreender como exigências “naturais”, voltadas
para a própria sobrevivência, vão dando lugar a estratégias “sociais” de organização. Em tal caminho, o
refinamento vai exigindo novas formas de relação com o meio, ao mesmo tempo em que novos modos de
organização e diferenciação de papéis sociais são implantados. A própria questão dos papéis de homens e
mulheres é colocada em pauta. A questão do parentesco e da luta dos sexos também está presente, assim como o
incesto.

O fim de toda essa narrativa é marcada pela constatação da fragilidade da visão que costumamos adotar, onde a
história natural e a social seriam eminentemente distintas. Moscovici, inclusive, faz uma alusão a Marx (citado por
Moscovici, 1975: 171), quando este diz:

“A própria história constitui uma parte real da história natural, da transformação da natureza em homem. Mas as
ciências naturais hão de posteriormente englobar a ciência do homem, assim como a ciência do homem há de
englobar as ciências naturais: haverá então apenas uma ciência.”

Para Moscovici, a oposição entre sociedade e Natureza estaria sendo constituinte das atividades humanas, nas suas
esferas social, política e científica inclusive. Haveria, pois, uma dicotomia entre essas duas categorias, como se as

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mesmas fossem estanques e a sobrevivência de uma implicasse a superação da outra. Em suas palavras, a lógica
dominante seria a de que “A sociedade é uma modalidade de esquecimento da natureza” (Moscovici, 1975: 327).

Moscovici, entretanto, defende uma posição contrária: “A dimensão social do real, em vez de apartar-se ou de
substituir gradativamente sua dimensão natural, parece pelo contrário aproximar-se dela, desempenhando aí um
papel sempre mais ativo” (Moscovici, 1975: 173). Ainda segundo suas palavras (p. 338), “... parece difícil
solucionar o problema das relações do homem e da sociedade em face da natureza quando se colocam o homem e
a sociedade fora da natureza, contra ela”.

Segundo nosso entendimento, Moscovici assume um posicionamento em que a dicotomia natureza-sociedade deve
ser superada, ao mesmo tempo em que aponta a forte presença da mesma em nossas construções2. Em suas
palavras (Moscovici, 1975: 365) – “urge certamente a volta, mas não a volta à natureza e, sim, a volta dentro da
natureza”.

Dicotomias Ecológicas
Uma grande tendência que se firma nas tentativas – dentro do campo da ciência ocidental – de se proceder a uma
leitura dos fenômenos implicados na relação homem-natureza tem sua manifestação na Ecologia. Em nossa visão,
teria como um grande objetivo justamente superar ou minimizar tal tendência dicotômica anteriormente descrita.

Esta diria de um foco voltado para as relações concretas e sistêmicas que caracterizariam a relação homem-
natureza. A Ecologia se colocaria enquanto possibilidade de se proceder a uma compreensão dos processos que
conduziriam a uma interdependência entre o ser humano e o ambiente no seu sentido mais amplo.

Historicamente, presencia-se, desde a década de 70 (Lima, 1984: 20), um aumento significativo dos
questionamentos acerca do futuro do planeta, no que tange ao esgotamento de recursos naturais, à preservação
de fauna e flora, às alterações atmosféricas e climáticas, enfim, à tomada de consciência ecológica de uma maneira
geral. Segundo Kruse (1995: 20), “o homem tornou-se ambientalmente consciente”. Diante de tal contexto, a
Ecologia revela-se como importante campo do saber.

Compreendemos aqui Ecologia tal qual nos propõe Lima (1984: 19), de modo que o seu estudo vise às “inter-
relações dos seres vivos e suas funções dentro de ambientes diversos”. Lima (p. 21) lembra ainda que o homem
“faz parte da biosfera” e que, ao interagir com a Natureza, ele tanto assume sua posição ecológica como também
gera sua condição social. Ainda nessa linha de pensamento, Kruse (1995: 24) se refere a um meio ambiente que,
“... com seus recursos naturais serve como fundamento vital, como base da cultura e técnica. Mas ele também é
fonte de estímulo sensorial, atua na qualidade simbólica e estética”.

Ao lidarmos com o conceito de biosfera (segundo Vernadsky, citado por Ramade, 1977: 07), compreendida como a
extensão do planeta que engloba todos os seres vivos e onde é possível sua existência, podemos situar mais
amplamente o objeto de estudo da Ecologia. Depreendemos de tal concepção que a Ecologia trataria, pois, do
estudo das inter-relações complexas de um ecossistema maior, que abarcaria o homem e a Natureza enquanto
uma totalidade.

Edgar Morin (1996: 278) também nos oferece um conceito muito interessante acerca do que seria a Ecologia:

“A ciência ecológica é também uma ciência nova, já que seu conceito-central é o de ecossistema. Um ecossistema
é o conjunto organizador que se efetua a partir das interações entre os seres vivos, unicelulares, vegetais, animais
e as condições geofísicas de um dado lugar, de um biotipo, de um nicho ecológico. Os ecossistemas, por sua vez,
reúnem-se no vasto sistema que chama-mos biosfera e que tem sua vida e suas regulações próprias.”

Para além da sua concepção de Ecologia, Morin (1975), em O enigma do homem, coloca-nos aquela que seria a
sua concepção de ser humano. Nessa obra, propõe-se, com base em uma epistemologia de base sistêmica, que ao
homem e à Natureza seja conferido o estatuto de unidade indissociável. Propõe-se que uma verdadeira ciência do
homem apenas seja alcançada quando a este for devolvido o estatuto de ser natural, quando a dicotomia entre
sociedade e Natureza não mais se fizer presente.

Acredita Morin em uma totalidade “biopsicos-sociológica” do homem. Identificamos, em seu pensamento, um


posicionamento que coincidiria com aquele proposto por Moscovici (1975). Esse posicionamento seria também, por
sua vez, aquele que buscamos na Ecologia. Compreendemos que, em termos conceituais, a Ecologia, por definição,
não procederia a uma cisão entre homem e Natureza.

Em nossa compreensão inicial, a Ecologia seria, portanto, uma abordagem científica que conceberia uma unidade
viva, ecossistêmica e maior, da qual o homem seria parte integrante juntamente com uma série de outros entes.
Também a partir dessa concepção, julgamos razoável que a Ecologia se preocupasse justamente com as questões
envolvidas nas relações e articulações entre todos esses entes que comporiam essa suposta unidade. De um ponto
de vista que não consideramos ingênuo, pensamos, pois, que seria legítimo o seu interesse pelas formas com as
quais o homem, em suas diversas construções e formas de organização, se relaciona com os outros seres e

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ambientes com os quais comporia um todo ecológico. Em nosso pensamento, a Ecologia teria que superar a
tendência dicotômica e histórica apontada por Moscovici e Morin.

O tema da Ecologia nos remeteu, ainda em um primeiro momento, a uma possibilidade de integração, a um
terreno interdisciplinar, onde ciências humanas, biológicas e ambientais não poderiam se furtar à mútua
contribuição. Tal aspecto da interdisciplinaridade é apontado por Günther e Rozestraten (1993: 108) ao tratarem
da Psicologia Ambiental.

Em nossos estudos preliminares, pudemos observar as preocupações e objetos que seriam foco da Ecologia3 . Uma
primeira aproximação se deu por efeito da Ecologia que provinha do terreno das ciências biológicas. Em nossa
expectativa, esperávamos que o elemento humano fosse considerado de modo relevante em tais estudos, ou seja,
que eles visassem à compreensão de um ecossistema que é, ao mesmo tempo, ambiental e humano, e que se
ocupassem da complexidade das interações que ali teriam lugar.

Não foi exatamente isso o que encontramos, pelo menos à primeira vista. Percebemos uma ênfase excessiva em
certos elementos tipicamente “biológicos” e localizados, por exemplo: estudos que contemplavam o cultivo de
rizomas, ou a criação de abelhas, ou mesmo até a manutenção de recursos hídricos. Sem desconsiderar a
importância e pertinência de cada um destes estudos que tomamos a liberdade de citar como exemplos, ficamos
alarmados. A Ecologia não estaria preocupada com o todo? E o homem em relação a tais elementos que eram
estudados? Não haveria um foco de estudos voltado para a complexidade inerente à relação entre os processos
tipicamente “sociais” e os tipicamente “ambientais”?

Uma alternativa que encontramos foi procurar, dentro do terreno das ciências humanas, aquilo que também era
chamado de Ecologia – mas de Ecologia Humana. Esperávamos que, desta vez, os elementos humano e social
pudessem ser considerados em conjunto com as questões ecológicas de modo amplo.

Entretanto, pudemos perceber um viés oposto, onde, diante da presença de elementos tipicamente humanos e
sociais, as questões ambientais e mais propriamente ligadas à biologia não eram devidamente consideradas. Ainda
que com raízes biológicas, derivadas, por exemplo, da Teoria Geral dos Sistemas, essas raízes eram usadas como
modelos epistemológicos, e não consideradas enquanto objeto de estudo legítimo. Do nosso ponto de vista, isto
também ainda não era a Ecologia que supúnhamos existir.

Pareceu-nos, portanto, ocorrer uma tendência à cisão, no que se refere tanto ao objeto de estudo quanto aos
discursos relativos à Ecologia. Assim, haveria uma ecologia voltada para os sistemas naturais (UFMG, 1997/1998)
e uma outra ecologia voltada para os sistemas humanos, o que nos deixaria supor que ciências ambientais,
biológicas e humanas teriam entre si interseções pouco prováveis.

Ainda que aparentemente ecológica, tal postura poderia estar reproduzindo a oposição histórica em que Natureza e
homem seriam tidos como categorias estanques, apontada tanto por Morin quanto por Moscovici. Segundo este
último (1975: 334),

“
[...] a doutrina da proteção da natureza que se pretende isolar e embelezar nos parques, tal como a recriou o
barroco em seus castelos, repousa num paradoxo sutil. Decide-se que tudo o que não é vegetal ou animal é
artificial, que não existem outros equilíbrios na biosfera senão os da planta e os do organismo. ”
Chegaríamos a um grande paradoxo, onde a “Ecologia” acabaria por reforçar as barreiras que separariam o que
seria próprio do humano e o que seria próprio da Natureza. Quando, por exemplo, consideramos que o ecológico se
traduz na demarcação de parques onde a presença humana é restrita, talvez estejamos reproduzindo em nossa
prática a crença de que tais categorias seriam inimigas e/ou excludentes. Poderíamos questionar, neste sentido,
até que ponto a Ecologia de nossos dias estaria realmente sendo “ecológica”.

A esse respeito, é interessante notar como Guattari (1991), em As três ecologias, propõe uma articulação ético-
política – a que chama “ecosofia” – de modo a articular a “ecologia social”, a “ecologia mental” e a “ecologia
ambiental”.

Tal construção, ao mesmo tempo em que demonstra uma preocupação com questões que dizem respeito tanto ao
social, quanto ao subjetivo e ao ambiental, também pode propiciar uma outra reflexão. Note-se que ainda são três
as ecologias. Ele aponta justamente a impossibilidade que temos tido – pelo menos até então – para unificar todas
essas instâncias.

Ainda que sua proposta “ecosófica” se mostre integradora, subjaz a ela a noção de várias ecologias enquanto
campos distintos e não a de uma Ecologia global. Cremos que esse exemplo seria um reflexo contundente de
como, mesmo imbuídos das melhores intenções ecológicas, uma certa dicotomia ainda perpassa nossos discursos,
crenças e atos.

Acreditamos, ainda, que esse modo de abordar a relação homem-natureza deva sofrer um certo burilamento
conceitual e prático, para que não padeça de certos vícios próprios de antigas formas de se conceber o mundo e,
também, de se fazer ciência. Apesar de tudo isso, acreditamos, igualmente, no potencial construtivo da Ecologia,
na medida em que a mesma for sendo refinada a partir das novas questões que se impõem àqueles que pretendem
fazer ciência ou, simplesmente, aventurar-se na compreensão da vida.

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Tomando a questão de quão arraigadas estariam em nós antigas formas de ver e pensar, Morin nos fala da noção
de paradigma:

“ Se temos gravadas em nós essas formas de pensamento que nos levam a reduzir, a separar, a simplificar, a
ocultar os grandes problemas, isto se deve ao fato de que reina em nós um paradigma profundo, oculto, que
governa novas idéias sem que nos demos conta. Cremos ver a realidade; em realidade vemos o que o paradigma
nos pede para ver e ocultamos o que o paradigma nos impõe a não ver. Hoje, em nosso século, se estabelece o
seguinte problema: podemos perguntar-nos se começou uma revolução paradigmática. Uma revolução orientada,
”
em direção da complexidade (Morin, 1996: 276).

No nosso entender, a crescente demanda ecológica no tempo e na cultura em que estamos viria não apenas em
resposta a uma necessidade crescente de preservação do planeta, mas a uma necessidade de respeito à nossa
própria humanidade e de seu resgate. Quando aqui dizemos humanidade, não nos referimos apenas ao coletivo
dos homens, mas também à subjetividade inerente aos mesmos.

O homem Desnaturado e a Modernidade Tardia


Em termos contemporâneos, nesse sentido, somos remetidos a uma ampla gama de fenômenos que, na ausência
de uma denominação comum, são muitas vezes situados dentro daquilo que alguns chamam de pós-modernidade,
mas que aqui convencionamos chamar de Modernidade Tardia4 . Seria interessante, portanto, diante desse
contexto, refletir acerca de suas possíveis conexões com a questão da Natureza. Haveria conexões entre os
fenômenos psicossociais com os quais lidamos atualmente e a questão ecológica?

Uma vez que nos situamos na chamada modernidade tardia, cremos que seria importante discutir, ainda que
brevemente, as condições que propiciaram o surgimento dos fenômenos que a caracterizam, assim como a
maneira como estes últimos se organizam. Na tentativa de encontrar um eixo a partir do qual pudéssemos
organizar tal proposta, optamos por seguir tomando como referência um fenômeno apontado por Taylor (1994) em
La etica de la autenticidad, quando este se refere a um processo de “desencantamento do mundo”:

“ A liberdade moderna se inicia quando conseguimos escapar de horizontes morais do passado. Em alguns casos,
tratava-se de uma ordem cósmica, uma ‘ grande cadeia do ser’ , na qual os seres humanos ocupavam o lugar que
lhes correspondia junto aos anjos, aos corpos celestes e às criaturas que são nossos congêneres na Terra. Esta
ordem hierárquica se refletia nas hierarquias da sociedade humana. As pessoas se encontravam confinadas em um
lugar, um papel e uma posição determinados que eram estritamente os seus e dos quais era impossível
desvincular-se. A liberdade moderna sobreveio graças ao descrédito destas ordens.

Mas ao mesmo tempo em que nos limitavam, essas ordens davam sentido ao mundo e às atividades da vida social.
As coisas que nos rodeiam não eram apenas matérias-primas ou instrumentos potenciais para nossos projetos,
mas possuíam um significado que lhes conferia seu lugar na cadeia do Ser. A água não era somente uma ave como
outra qualquer, mas era o rei de um domínio da vida animal. Do mesmo modo, os rituais e normas da sociedade
tinham um significado que não era meramente instrumental. Ao descrédito dessas ordens é o que se tem
‘ ’
denominado enquanto desencantamento do mundo. Com ele, as coisas perderam parte de sua magia (Taylor, “
1994: 38 - grifo nosso)5 .

Por muitas vezes tem se expressado que o indivíduo haveria perdido algo muito importante desses horizontes mais
amplos, tanto sociais quanto cósmicos. Haveria uma perda de finalidade ligada a uma angústia. As pessoas
perdiam uma visão mais ampla porque passavam a se centrar em sua vida individual.

Tal “desencantamento do mundo” teria dado origem aos fenômenos com os quais lidamos hoje e que, do ponto de
vista de Taylor, estariam organizados em três pontos principais, por ele chamados de “três formas de mal-estar”.
Estes seriam (1) o individualismo, (2) a primazia da razão instrumental e (3) as conseqüências políticas do
individualismo e da primazia da razão instrumental.

O fenômeno do individualismo é apontado com ênfase pela Psicologia Social contemporânea. A partir deste,
poderíamos identificar o forte conteúdo narcísico das sociedades ocidentais. Ao mesmo tempo em que o indivíduo
se volta para si mesmo, ele também não sabe quem é, o que quer, a que veio. O indivíduo torna-se fragmentado
em meio a uma grande crise de sentido. O individualismo fortalece-se na mesma proporção em que a subjetividade
torna-se cada vez mais fragilizada.

Retornando ao fato que teria desencadeado todos esses processos – o chamado “desencantamento do mundo” –
Taylor também se refere a um sentimento que cada vez mais se faz presente, de modos distintos, na cultura de
hoje. Este seria o sentimento onde o pertencimento à Natureza seria algo desejado. Tal sentimento seria assim
descrito por Taylor:

“Temos perdido o contato com a terra e seus ritmos, como nossos antepassados possuíam. Temos perdido o
contato com nós mesmos e nosso próprio ser natural e nos vemos impulsionados por um imperativo de dominação
que nos condena a uma incessante batalha contra a natureza tanto dentro de nós mesmos como à nossa volta.
‘ ’
Esta queixa contra o desencantamento do mundo tem sido articulada uma e outra vez desde o período romântico,

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com sua nítida sensação de que os seres humanos haviam sido triplamente divididos pela razão moderna: dentro
“
de si mesmos, entre si mesmos e frente à natureza (Taylor, 1994: 121 - grifo Nosso)6.

Taylor nos fala do sentimento dos homens triplamente divididos: dentro de si mesmos, entre si mesmos e frente à
Natureza. A partir de suas colocações, podemos ver como o fenômeno moderno do individualismo parece ter as
suas conexões com a temática homem-natureza.

Os Homens Cindidos em Si Mesmos, entre Si e Frente à Natureza


No nosso ponto de vista, uma possível cisão, decorrente de um posicionamento “fora” da Natureza, seria a cisão do
homem com relação à sua própria corporalidade. O corpo – sua porção “natural” – passaria a ser tratado enquanto
objeto, receptáculo de uma “humanidade” que dele diferiria em essência, herança cartesiana da modernidade.

Teríamos um modelo de sujeito humano – com profundo assento em nossa imaginação – onde haveria uma
imagem ideal de um pensamento humano que seria desligado de “[...] sua confusa incrustração em nossa
constituição corpórea, de nossa situação dialógica, de nossas emoções e nossas tradicionais formas de vida a fim
de converter-se em uma racionalidade pura e auto-verificadora” (Taylor, 1994: 128)7 . Taylor refere-se a esse
fenômeno enquanto uma herança cartesiana.

Desse modo, teríamos um homem compartimentado dentro de si mesmo. Nesse emaranhado de elementos
desconexos, conviveriam um corpo físico, uma mente racional, uma parte emocional. Diante de tamanha
diversidade dentro de si, cabe ao homem, ainda, eleger uma dessas partes para identificar enquanto o seu “Eu” –
quando, normalmente, tal identificação recai sobre a chamada “razão desprendida”.

Tudo então parece submeter-se aos preceitos dessa forma de racionalidade, que – não esqueçamos – é
profundamente instrumental. O corpo e o sentimento seriam, pois, administrados, visando aos melhores fins com
os menores custos.

Adentrando em uma dimensão que também estaria situada hierarquicamente abaixo da razão, teríamos a
sexualidade. A própria sexualidade, nesse contexto, seria vivida de maneira desintegrada. Uma vez composto de
categorias estanques dentro de si, o homem não teria a capacidade de integrá-la com seu afeto e sua razão.
Enquanto dimensão corporal, a sexualidade passa a ser vivida de modo cindido, quase instrumental. Pode, ainda,
converter-se em instrumento de poder nas relações.

Torna-se pouco provável a integração entre o sexo, a consciência e a afetividade. Se o corpo está cindido do
espírito, também o coração está cindido desse corpo. O homem passa a ser fragmentado. Ficamos aqui a nos
perguntar se essa não poderia ser a raiz de muitos dos fenômenos “psicopatológicos” com os quais temos
convivido.

Tal questão é abordada, de certa maneira, por Lipovetsky (s/d). Este, situando-se a partir de um ponto de vista
sociológico, aborda a questão do narcisismo como a característica fundamental do individualismo presente nos dias
de hoje: “Instaura-se um novo estádio do individualismo: o narcisismo designa a emergência de um perfil inédito
do indivíduo nas suas relações consigo próprio e com seu corpo, com outrem, com o mundo e com o tempo [...]”
(p. 48).

Ao lado dos homens cindidos dentro de si mesmos, os teríamos, portanto, também cindidos entre si. Segundo
Lipovetsky (s/d: 56), “A erosão dos pontos de referência do Eu é a réplica exata da dissolução que hoje conhecem
as identidades e os papéis sociais, outrora estritamente definidos [...]”. Vemos, dessa forma, como as questões
relacionadas ao homem em si estão refletidas – assim como são reflexo – em situações sociais, ou seja, de
relação.

Quando falávamos dos homens cindidos em si mesmos, referimo-nos, ainda que brevemente, à questão dos
sentimentos. Ainda numa referência a Lipovetsky, este cita a questão do medo das paixões, ou seja, “a fuga diante
do sentimento”8 – numa referência a Christopher Lasch. Esta se configuraria enquanto “[...] processo que se
manifesta tanto na protecção íntima como na separação, que todas as ideologias ‘progressistas’ pretendem realizar,
entre o sexo e o sentimento” (Lipovetsky, s/d: 72).

O homem renunciaria ao amor apoiando-se em ideais de autonomia e independência – to love myself enough so
that I do not need another to make me happy9 . Citando Lasch (1983), teríamos uma situação onde:

“ Mesmo quando os terapeutas falam da necessidade de ‘sentido’ e de ‘amor’, definem eles amor e sentido
simplesmente como o preenchimento das necessidades emocionais do paciente. Dificilmente ocorre-lhes [...]
encorajar o sujeito a subordinar suas necessidades e interesses aos de outras pessoas, a alguém ou a alguma
”
causa ou tradição fora dele mesmo (Lasch, 1983: 34).

Poderíamos nos perguntar: tão longe de si mesmo, como o homem poderia, de modo verdadeiro, aproximar-se do
outro? E, em um ciclo vicioso, se o modo de aproximação nem sempre é o mais legítimo – pelo menos em termos
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do sentimento e do modo pelo qual opera – o homem não ficaria cada vez mais “desconfiado” ou incrédulo nos
relacionamentos?

Para se defender daquilo que o contato com o outro pode evocar – o contato consigo mesmo e com toda a
confusão que traz em si – o homem tem se armado de mecanismos de relação. A sedução parece ser um meio
através do qual os homens têm buscado construir vínculos uns com os outros. A dimensão do real é transformada
em representação falsa, como estratégia de contato e conquista. Segundo Lipovetsky, o próprio mundo em que
vivemos – mundo do consumo – é um mundo de sedução. As próprias relações passam a ser objetos de consumo,
as pessoas são objetos.

Lipovetsky nos pergunta: “Que se passa quando o sexo se torna político, quando as relações sexuais se traduzem
em relações de forças, em relações de poder?” (Lipovetsky, s/d: 29). Pois bem, voltando ao tema da sexualidade,
como será que acontecem as relações nesse nível, se o vínculo que une as pessoas se dá como tem acontecido? O
sexo passa então, como diz Lipovetsky, a ser instrumento de poder. As pessoas não fazem amor, elas competem na
cama. Homens e mulheres competem entre si e uns com os outros. Na verdade, parecem desconhecer inclusive o
que significa serem homens e mulheres – precisam que alguém lhes diga.

De um modo mais amplo, extrapolando a relação homem-mulher ou as relações pessoais mais íntimas, chegamos
a uma outra dimensão da vida relacional: a do homem com relação ao social, ao coletivo. Também nesse aspecto a
situação não parece ser fácil. Lipovetsky aborda a questão do homem que se separa do outro, ao considerar a
indiferença que se instaura em decorrência do individualismo narcísico. De modo interessante, ele nos propõe a
imagem de um deserto:

“Estamos assim no extremo do deserto; já atomizado e separado cada um de nós se torna agente activo no
deserto, estende-o e aprofunda-o, incapaz que é de ‘ viver’ o Outro. Não satisfeito em produzir o isolamento, o
sistema engendra o seu desejo, desejo impossível que, logo que realizado, se revela intolerável: o indivíduo pede
para ficar só, cada vez mais só e simultaneamente não suporta a si próprio, a sós consigo. Aqui o deserto já não
”
tem começo nem fim (Lipovetsky, s/d: 46).

Diante desse contexto subjetivo, somos testemunhas de novas formas relacionais que vêm dizer de modos inéditos
de sociabilidade. Esse novo contexto, que ruma em direção ao global, surge com a promessa de romper as
fronteiras e facilitar os contatos e relacionamentos. Em nosso ponto de vista, entretanto, essas novas formas
relacionais constituem-se enquanto reflexo do que temos discutido até então. Trazem em si, portanto, todas essas
dificuldades com as quais temos lidado, contribuindo, em certa medida, para a sua manutenção.

Um dos grandes fenômenos apontados e que caracteriza o nosso viver contemporâneo localiza-se na crescente
fragilidade das fronteiras nacionais. A nacionalidade, que sempre foi um instrumento poderoso de atribuição de
identidade, passa por grandes transformações no que tange às suas fronteiras e às identidades implicadas nesse
movimento. Já Thompson (1998) nos fala sobre as novas modalidades de relação surgidas com o advento da
interação mediada, instaurada pelas novas formas de apresentação da mídia. Segundo Baudrillard (1991: 18), “A
comunicação, ao banalizar a interface, leva a forma social à indiferença”. Atualmente também testemunhamos o
fenômeno Internet, que, em expansão acelerada, é tido como grande possibilidade integradora. Lévy (1999) nos
fala da presença virtual da humanidade na chamada cibercultura.

Cindido em si mesmo, na sua natureza, o homem se sente mais só do que talvez realmente seja. Em competição
com o mundo, incapaz de amar, o homem teria dificuldade em ver no outro alguém como ele próprio. Longe de si e
do outro, seria extremamente difícil sentir-se parte da vida, do planeta onde vive, em conexão com os processos
que estão ao seu redor. O ciclo se fecha. A busca por sentido torna-se cada vez mais difícil.

Lasch (1983; 1990) nos fala do sentimento de busca pela sobrevivência que invade o homem moderno. O mundo
seria, antes de tudo, um lugar extremamente ameaçador. Teríamos, por exemplo, o sentimento expresso por Paul
Zweig (citado por Lasch, 1983: 46): “A terra se move, não posso confiar nela”.

Lembramo-nos das palavras de Moscovici (1975: 365), quando este diz: “[...] não resta ao homem outro recurso,
caso pretenda sobreviver, senão reconciliar-se com sua natureza animal, respeitar as suas exigências genéticas
permanentes e modificar, neste sentido, as opções que faz na sociedade” (Moscovici, 1975: 328).

Encontramos este último posicionamento também em Mafesolli (1996):

“ ‘ ’
[...] pode-se sublinhar que a natureza é esse grande todo no qual nos perdemos, onde se esbate toda identidade
individual, e que, por isso mesmo, garante o perdurar da espécie. É nesse sentido que ela é o conservatório de
estar-junto que, de um modo quase consciente, vai nela buscar energias. De fato, periodicamente, essa
sensibilidade renasce: por exemplo, o franciscanismo, o romantismo, a ecologia. Sensibilidade que sublinha que o
acordo com os outros, o que se chama de relações sociais, e o acordo com a natureza são os dois pólos conjuntos
”
de uma mesma realidade (Mafesolli, 1996: 337).

Parece-nos pertinente, portanto, pelo menos considerar quais seriam as possíveis implicações, em termos de um
impacto nos fenômenos da modernidade tardia, que um retorno do homem à dimensão da Natureza poderia
causar. Mas, se falamos em um retorno à Natureza, que Natureza seria esta? E como a Psicologia poderia
relacionar-se com este objeto?

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Possibilidades de Superação e Novas Direções


Santos (1996) coloca que são muito fortes, hoje, os sinais de que o modelo de racionalidade científica,
anteriormente descrita, atravessa uma profunda crise. Essa crise seria o resultado interativo tanto de condições
sociais quanto de condições teóricas. Do seu ponto de vista, essa crise seria não apenas profunda, como também
irreversível. Tal revolução científica teria se iniciado com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe ainda
quando acabará. Supõe-se, entretanto, que colapsarão as distinções básicas em que se assenta o paradigma
dominante.

Diante de uma grande fase de transição nas ciências, somos remetidos ao nosso papel frente às mesmas.
Considerando uma nova ordem científica emergente, Santos traça algumas linhas a partir das quais a reflexão
deverá se balizar. Donde:

”
[...] primeiro: começa a deixar de fazer sentido a distinção entre ciências naturais e ciências sociais; segundo: a
síntese que há que operar entre elas tem como pólo catalisador as ciências sociais; terceiro: para isso, as ciências
sociais terão de recusar todas as formas de positivismo lógico ou empírico ou de mecanicismo materialista ou
idealista com a conseqüente revalorização do que se convencionou chamar humanidades ou estudos humanísticos;
quarto, esta síntese não visa a uma ciência unificada nem sequer a uma teoria geral, mas tão-só a um conjunto de
galerias temáticas onde convergem linhas de água que até agora concebemos como objetos teóricos estanques;
quinto, à medida que se der esta síntese, a distinção hierárquica entre conhecimento científico e conhecimento
”
vulgar tenderá a desaparecer e a prática será o fazer e o dizer da filosofia da prática (Santos, 1996: 09-10).

Diante da complexidade dos fenômenos que são objeto da ciência, Santos parece nos propor não apenas a quebra
da dicotomia na forma de concebê-los como também, e de forma contundente, a quebra da dicotomia na forma de
abordá-los, ou seja, um novo modo de se fazer ciência.

Já Morin (1996) nos mostra que “complexidade” talvez seja a palavra-chave para que possamos começar a
compreender a nova visão de mundo implicada nos paradigmas emergentes. Tomando os avanços da Física,
Química e Biologia10, a idéia de que o mundo se dá a partir de um emaranha-do de ações, relações e interações,
entrecortadas por fenômenos aleatórios geradores de incerteza e imprevisibilidade, tem servido para questionar
antigas formas de conceber e pensar a realidade do mundo. A complexidade se imporia através de dificuldades ao
mesmo tempo empíricas e lógicas.

A primeira complexidade do universo seria a de que nada estaria realmente isolado no mesmo, tudo estaria em
relação. Essa complexidade pode ser encontrada tanto no mundo da física quanto na política – o que acontece em
um ponto do planeta repercute em outros pontos. Morin nos coloca um belo exemplo vindo da meteorologia, que é
conhecido como “efeito borboleta”: “... uma borboleta que bate as suas asas na Austrália pode, por uma série de
causas e efeitos postos em movimento, provocar um furacão em Buenos Aires” (Morin, 1996: 274).

Tal tipo de dificuldade empírica, por sua vez, dá lugar também a um problema lógico, quando a lógica dedutiva “se
mostra insuficiente para dar uma prova num sistema de pensamento e surgem contradições que se tornam
insuperáveis” (Morin, 1996: 275).

A noção de que “tudo está em tudo e reciprocamente” começa a ser construída.

“ Como é isso? Vejamos alguns exemplos: cada célula do nosso corpo é uma parte que está no todo de nosso
organismo, mas cada célula contém a totalidade do patrimônio genético do conjunto do corpo, o que significa que o
todo está presente também na parte. Cada indivíduo numa sociedade é uma parte de um todo, que é a sociedade,
mas esta intervém, desde o nascimento do indivíduo, com sua linguagem, suas normas, suas proibições, sua
‘
cultura, seu saber; outra vez, o todo está na parte. Com efeito, tudo está em tudo e reciprocamente . Nós ’
mesmos, do ponto de vista cósmico, somos uma parte no todo cósmico: as partículas que nasceram nos primeiros
instantes do Universo se encontram em nossos átomos. O átomo de carbono necessário para a nossa vida formou-
se num sol anterior ao nosso. Ou seja, a totalidade da história do cosmos está em nós, que somos, não obstante,
uma parte pequena, ínfima, perdida no cosmos. E sem dúvida somos singulares, posto que o princípio O todo está ‘
’
na parte não significa que a parte seja um reflexo puro e simples do todo. Cada parte conserva sua singularidade e
”
sua individualidade, mas, de algum modo, contém o todo (Morin, 1996: 275).

O problema diante do qual somos colocados é que, até então, aprendemos a pensar separando. Este seria um
fenômeno histórico e cultural fortemente arraigado em nós.

Separamos um objeto de seu ambiente, isolamos um objeto em relação ao observador que o observa. Nosso
pensamento é disjuntivo e, além disso, redutor: buscamos a explicação de um todo através da constituição de suas
partes. Queremos eliminar o problema da complexidade (Morin, 1996: 275).

Morin situa esse problema em três planos distintos, que seriam o das ciências físicas, o das ciências humanas e o
da política. Refere-se, ainda, ao problema humano:

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“Quando falamos do homem, sentimos que nos referimos a algo genérico e abstrato. O homem é um objeto
estranho, algo simultaneamente biológico e não biológico. Com a maior comodidade, estudamos o homem
biológico no departamento de biologia e o homem cultural e psicológico nos departamentos de ciências humanas e
de psicologia. O homem tem um cérebro, que é um órgão biológico, e um espírito, que é um órgão psíquico. Acaso
alguma vez ambos se encontram? O espírito e o cérebro não se encontram jamais. As pessoas que estudam o
cérebro não se dão conta de que estudam o cérebro com seu espírito. Vivemos nesta disjunção que nos impõe
”
sempre uma visão mutilada (Morin, 1996: 281).

Para além de tal disjunção, esse autor aponta também aquela que tão freqüentemente cometemos quando
separamos esse homem biológico-cultural ao qual nos referíamos de suas porções espécie-indivíduo, sociedade-
indivíduo. O ser humano seria de natureza multidimensional.

Talvez um dos nossos caminhos, a partir de então, seja o de buscar as articulações possíveis para que todas essas
relações possam ser (re)pensadas e que a complexidade do nosso objeto de estudos, enquanto psicólogos, possa
ser (re)considerada.

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Universidade Federal de Minas Gerais. (1997/1998). Programa de pós-graduação em ecologia, conservação e


manejo da vida silvestre – mestrado e doutorado – orientadores e linhas de pesquisa. Belo Horizonte: UFMG, 11 p.
(Informativo)

Endereço para correspondência


Bernardo Andrade Marçolla
Rua Deputado Bernardino Sena Figueiredo, 1114 apt. 201
31170-210
E-mail: bernardo@pucminas.br

Recebido em 28/09/00
Aprovado em 20/10/01

* Psicólogo. Mestre em Psicologia Social pela UFMG. Professor da PUC Minas


1 Artigo elaborado a partir de capítulos de Dissertação de Mestrado em Psicologia Social (Marçolla, 2000).
2 A questão levantada por Moscovici (1975) nos serve de guia quando constatamos um processo histórico de
oposição entre natureza e sociedade nas raízes da própria Psicologia Social. Ainda que a relação não seja direta,
também nos parece pertinente a articulação entre tal oposição inicial e outras tantas que foram se estabelecendo
até os nossos dias. Chegando, pois, à Psicologia Social contemporânea, talvez não nos deparemos tão diretamente
com a questão da natureza, mas, sim, com outros desdobramentos. Ao tomarmos as raízes da Psicologia Social, a
partir dos trabalhos de Wundt (Farr, 1998:37), vemos que esta emerge em contraposição a uma outra Psicologia,
chamada natural. Assim, Wundt desenvolveria separadamente sua Psicologia Experimental com bases fisiológicas e
aquela a qual chamou de Völkerpsychologie - também conhecida como “Psicologia dos Povos” - centrada nos
estudos etnográficos. Dentro desse ponto de vista, a consciência pertenceria ao estatuto do natural, enquanto a
cultura pertenceria ao estatuto do social. O primeiro seria identificado com a esfera individual, enquanto o
segundo, com o coletivo. Os estudos daí advindos refletiriam a dificuldade em relacionar tais instâncias, produzindo
estudos com focos distintos.
3 Em uma pesquisa preliminar, visando a conhecer as teses e dissertações produzidas no Brasil acerca de Ecologia,
consultamos os arquivos do IBICT (INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA, s/d).
Das 504 entradas referentes à Ecologia, 20 eram destinadas à chamada Ecologia Humana. Dentre estas últimas,
apenas uma, do nosso ponto de vista, trazia, de modo explícito, a discussão a que nos propomos, até então,
acerca da Ecologia e dos seu objeto de estudos. Tratava-se de uma Tese de Doutorado da USP - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas - cuja autora é Marília Coutinho, com o título de “Reflexões acerca da
estrutura do conhecimento ecológico: representações de natureza e representações de sociedade”, de 1994, nas
áreas de Ecologia Humana, Ecossistemas (Ecologia) e Sociolingüística.
4 Termo utilizado por Giddens (1997). Apesar de aqui não nos aprofundarmos neste ponto, a simples nomeação do
momento pelo qual passamos parece ter implicações importantes. Para uma discussão a este respeito, vide
Marçolla (2000).
5 “La liberdad moderna se logró cuando conseguimos escapar de horizontes morales del pasado. En algunas casos,

se trataba de un orden cósmico, una gran cadena del Ser, en la que los seres humanos ocupaban el lugar que les
correspondía junto a los ángeles, los cuerpos celestes y las criaturas que son nuestros congéneres en la Tierra.
Este orden jerárquico se reflejaba en las jerarquías de la sociedad humana. La gente se encontraba a menudo
confinada en un lugar, un papel y un puesto determinados que eran estrictamente los suyos y los que era casi
impensable apartarse. La liberdad moderna sobrevino gracias al descrédito de dichos órdenes. Pero al mismo
tiempo que nos limitaban, esos órdenes daban sentido al mundo y a las actividades de la vida social. Las cosas que
nos rodean no eran tan sólo materias primas o instrumentos potenciales para nuestros proyectos, sino que tenían
el significado que les otorgaba su lugar en la cadena del ser. El águila no era solamente un ave como otra
cualquiera, sino el rey de un dominio de la vida animal. Del mismo modo, los rituales y normas de la sociedad
tenían una significación que no era meramente instrumental. Al descrédito de esos órdenes se le hadenominado
‘desencan-tamiento’ del mundo. Con ello, las cosas perdieron parte de su magia”.
6 “Hemos perdido el contacto con la tierra y sus ritmos que nuestros antepassados sí tenían. Hemos perdido el

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contato con nosotros mismos y nuestro proprio ser natural, y nos vemos impulsados por un imperativo de
dominación que nos condena a una incesante batalla contra la naturaleza tanto dentro de nosotros como a nuestro
alrededor. Esta queja contra el ‘desencantamiento’ del mundo ha sido articulada una y otra vez desde el período
romántico, com su nítida sensación de que los seres humanos habían sido triplemente divididos por la razón
moderna: dentro de sí mismos, entre sí mismos, y frente a la naturaleza”.
7“... su confusa incrustración en nuestra corpórea constituición, de nuestra situación dialógica, de nuestras
emociones y nuestras tradicionales formas de vida a fin de convertirse en pura y autoverificadora racionalidad”.
8 The flight from feeling – segundo Lasch (citado por Lipovetsky, s/d: 72).
9 Palavras atribuídas a J. Rubin, citado por Lasch (Lipovetsky, s/d: 52). Numa tradução aproximada: “Para me amar
o suficiente é necessário que eu não precise de outro para me fazer feliz”. Também citado em Lash (1983: 35).
10 A título ilustrativo, um exemplo pode ser tomado a partir do conceito de autopoiesis de Maturana e Varela
(1980), quando estes desenvolvem construções no sentido de compreender a natureza e a organização dos
sistemas vivos. Suas construções se dão em duas direções complementares: a compreensão do que seria a
organização do viver e, ainda, como se dá a percepção dos fenômenos.

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