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ARISTÓTELES

ÉTICA A NICÔMACO
LIVRO VI*

Tradução de Lucas Angioni


Universidade Estadual de Campinas/CNPq

Capítulo 1
[1138b18] Dado que antes dissemos que é preciso escolher a
mediedade, não o excesso, nem a falta, e que a mediedade é como a razão
correta diz, elucidemos o ponto. De fato, em todas as habilitações que foram
mencionadas (bem como em outras), há certo alvo, e é olhando para esse alvo
que quem possui razão estica ou relaxa o arco, e há certa delimitação das
mediedades, as quais dizemos ser intermediárias entre o excesso e a falta, de
acordo com a razão correta. No entanto, falar desse modo é certamente
verdadeiro, mas não é nada claro. De fato, também nas demais tarefas, sobre
as quais há conhecimento, é verdadeiro dizer isso, ou seja: “não se deve
trabalhar em maior ou menor quantidade, mas sim em quantidade média e
tal como a razão correta diz” (o mesmo vale para descansar). Mas, se alguém
souber apenas isso, não poderá saber nada mais, por exemplo, que tipo de
coisa deve administrar ao corpo, se disser que “se deve administrar aquelas
coisas que a medicina ordena e tal como o ordena quem conhece a
medicina”. Por isso, também no que concerne às habilitações da alma, é

*Esta tradução assume o texto de Bywater para a Oxf ord Classical Texts. A numeração dos capítulos,
no entanto, é a da edição Bekker, que julgamos mais acertada em relação ao andamento argumentativo
do texto.

© Dissertatio [34] 285 – 300 verão de 2011


Lucas Angioni

preciso que esse tipo de enunciado não apenas seja verdadeiro, mas também
especifique qual é a razão correta, isto é, qual é sua delimitação.

Capítulo 2
[1138b35] Ao distinguir as virtudes da alma, afirmamos que algumas
são virtudes do caráter, outras, virtudes do pensamento. Já discorremos sobre
as virtudes do caráter. Falemos então sobre as restantes, começando por dizer
algo sobre a alma, do seguinte modo: foi dito antes que há duas partes da
alma, a que possui razão e a irracional; agora, devemos dividir do mesmo
modo a parte que possui razão.
[1139a6] Considere-se que as partes que possuem razão são duas: uma
é aquela pela qual conhecemos os tipos de entes cujos princípios não podem
ser de outro modo; outra é aquela pela qual conhecemos as coisas que podem
ser de outro modo. De fato, as partes da alma que naturalmente se
relacionam com cada um desses tipos de entes, que são de gêneros distintos,
são também elas de gêneros distintos, dado que o conhecimento lhes ocorre
de acordo com certa semelhança e familiaridade. Denominemos uma dessas
partes “científica”, a outra, “calculativa”, pois deliberar e calcular são o
mesmo, e ninguém delibera sobre aquilo que não pode ser de outro modo.
Assim, o calculativo é uma parte da alma racional.
[1139a15] Devemos, então, apreender qual é a melhor habilitação de
cada uma dessas duas partes, pois tal habilitação é a virtude de cada uma, e a
virtude se relaciona à função apropriada.
[1139a17] São três os itens na alma que controlam a ação e a verdade:
sensação, inteligência e desejo. Entre eles, a sensação não é princípio de ação
alguma, como é evidente pelo fato de que os animais têm sensação, mas não
têm parte na ação.
[1139a21] Aquilo que, no pensamento, é afirmação ou negação, no
desejo, é procurar ou evitar. Conseqüentemente, dado que a virtude do
caráter é uma habilitação relativa ao propósito, e dado que o propósito é um
desejo deliberado, é preciso, por isso, que o raciocínio seja verdadeiro e que o
desejo seja correto – se o propósito for virtuoso –, e que o raciocínio afirme
as mesmas coisas que o desejo procura. É nisso, pois, que consiste o
pensamento realizador de ação e a verdade realizadora de ação. Do
pensamento teórico, isto é, que não leva nem à ação nem à produção, a boa e
a má condição consistem no verdadeiro e no falso (pois é essa a função de

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toda a parte pensante). Mas, da parte pensante que produz ação, a boa
condição consiste na verdade em acordo com o desejo correto.
[1139a31] Ora, o propósito é princípio de ação – como “aquilo de
onde procede o movimento”, não como “em vista de que” –, e, do propósito,
os princípios são o desejo e o raciocínio em vista de algo. Por isso, o
propósito não se dá sem inteligência ou pensamento, nem sem habilitação do
caráter. De fato, o bom sucesso na ação (bem como seu contrário) não se dá
sem o pensamento nem sem o caráter.
[1139a35] Mas o pensamento em si mesmo nada move: o que move é
o pensamento em vista de algo e realizador de ação. Este tipo de pensamento
controla até mesmo o pensamento produtivo (de fato, todo produtor produz
algo em vista de algo, e o que é um fim consumado, sem mais, não é aquilo
que se produz – pois isso é fim para outra coisa, em relação a algo –, mas
aquilo que se faz, pois o bom sucesso na ação é o fim consumado, e o desejo
o tem por objeto).
[1139b4] Por isso, o propósito é um pensamento que deseja, ou um
desejo com pensamento, e o ser humano é um princípio desse tipo.
[1139a5] Nada que já tenha acontecido pode ser objeto de propósito;
por exemplo, ninguém tem como propósito ter saqueado Tróia. Pois
tampouco se delibera sobre o que já aconteceu, mas sobre o que está por vir e
é possível. Não é possível, porém, que não aconteça o que já aconteceu. Pelo
que, com acerto disse Agatão:

pois apenas disso até mesmo deus está privado,


tornar não-acontecido tudo que já tiver sido feito.

[1139a12] A função de ambas as partes inteligentes é a verdade. Assim,


as habilitações pelas quais cada uma delas mais acertar a verdade serão suas
respectivas virtudes.

Capítulo 3
[1139b14] Falemos de novo sobre elas, tomando um princípio mais
amplo. Considere-se que são cinco os itens pelos quais a alma acerta a
verdade ao afirmar ou negar; são eles: técnica, ciência, sensatez, sabedoria e
inteligência (já a concepção e a opinião podem ser falsas).
[1139b18] O que é a ciência, ficará claro do seguinte modo – se é
preciso propor especificações corretas e não se deixar levar pelas semelhanças.

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Lucas Angioni

Todos nós julgamos que aquilo de que temos ciência não pode ser de outro
modo. Por outro lado, passa-nos despercebido se as coisas que podem ser de
outro modo são o caso ou não, quando não as estamos considerando. Assim,
o objeto de ciência é por necessidade e, portanto, é eterno, pois todas as
coisas que são por necessidade, sem mais, são eternas, e as coisas eternas não
são suscetíveis de geração e corrupção.
[1139b25] Além disso, parece que toda ciência é suscetível de ensino e
que o objeto de ciência é suscetível de ser aprendido. Como dizemos nos
Analíticos, todo ensinamento provém de itens previamente conhecidos, quer
por indução, quer por silogismo. Ora, a indução é princípio também dos
universais, ao passo que o silogismo procede dos universais. Há, portanto,
princípios dos quais procede o silogismo e dos quais não há silogismo. Há
indução deles, portanto.
[1139b31] Assim, a ciência é uma habilitação para demonstrar, e todas
as outras coisas que acrescentamos nos Analíticos. De fato, alguém tem
ciência quando tem uma crença de um dado tipo e quando os princípios lhe
são conhecidos. Pois, se os princípios não lhe forem mais conhecidos que a
conclusão, terá ciência apenas por algum concomitante.
[1139b35] Esteja a ciência delimitada desse modo.

Capítulo 4
[1140a1] Entre as coisas que podem ser de outro modo, há aquilo que
se pode produzir e aquilo que podemos fazer. São coisas distintas a produção
e a ação (a respeito desse assunto, fiamo-nos também nas obras divulgadas).
Conseqüentemente, também são coisas distintas a habilitação racional para
agir e a habilitação racional para produzir. Por isso, essas coisas não estão
contidas uma na outra: nem a ação é produção, nem a produção é ação.
[1140a6] Dado que a arte de edificar é certa técnica e, precisamente,
certa habilitação racional para produzir, e dado que não há técnica alguma
que não seja habilitação racional para produzir, e não há nenhuma
habilitação desse tipo que não seja técnica, equivalem ao mesmo “técnica” e
“habilitação para produzir por raciocínio verdadeiro”.
[1140a10] Toda técnica diz respeito ao vir a ser, isto é, a empreender e
examinar como se engendra algo que pode ser e não ser e cujo princípio
reside no produtor, não na coisa produzida. De fato, a técnica não tem por
objeto as coisas que são ou vêm a ser necessariamente, tampouco as coisas
que são ou vêm a ser por natureza – pois estas têm em si mesmas o princípio.

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[1140a16] Dado que produção e ação são coisas distintas,


necessariamente a técnica se inclui na produção, não na ação. E de certo
modo a técnica e o acaso dizem respeito às mesmas coisas, como também
Agatão o disse: “a técnica ama o acaso, e o acaso, a técnica”. Portanto,
conforme foi dito, a técnica é certa habilitação para produzir com raciocínio
verdadeiro, tendo como objeto aquilo que pode ser de outro modo (ao passo
que a incompetência técnica é o contrário, uma habilitação para produzir
com raciocínio falso).

Capítulo 5
[1140a24] Poderemos compreender a sensatez se considerarmos quem
são os que chamamos “sensatos”. De fato, parece que compete ao sensato ser
capaz de deliberar acertadamente sobre aquilo que lhe é bom e proveitoso,
não de modo particular (por exemplo, quais coisas lhe são boas em relação à
saúde, ou em relação ao vigor físico), mas quais coisas lhe são boas em
relação ao bem viver em geral.
[1140a28] Sinal disso é que até mesmo os que chamamos de “sensatos
em algo” assim os chamamos quando raciocinam bem em relação a algum
fim bom, entre as coisas para as quais não há competência técnica. Por
conseguinte, seria sensato, em geral, quem delibera. Mas ninguém delibera
sobre as coisas que não podem ser de outro modo, tampouco sobre as coisas
que não lhe é possível fazer. Conseqüentemente, dado que a ciência se dá por
demonstração, mas não há demonstração das coisas cujos princípios podem
ser de outro modo (pois todas essas coisas também podem ser de outro
modo), e dado que não é possível deliberar sobre aquilo que é por
necessidade, a sensatez não é nem ciência nem técnica – não é ciência porque
a ação pode ser de outro modo, e não é técnica porque são distintos o gênero
da ação e o da produção.
[1140b4] Resta-lhe, assim, ser uma habilitação verdadeira realizadora
de ações, pela razão, a respeito daquilo que é um bem ou um mal para o
homem. De fato, o fim da produção é uma coisa distinta, mas o fim da ação
não é distinto, pois o próprio bom sucesso na ação é o fim.
[1140b7] Por isso, julgamos que Péricles e os de mesmo tipo são
sensatos, porque são capazes de arregimentar as coisas que são boas para eles
mesmos e para os homens. E julgamos que são desse tipo os administradores
e os líderes civis. É também por isso que chamamos a temperança
[sophrosune] por esse nome, como se ela preservasse a sensatez [sozousan ten

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ARISTÓTELES

M E TA F Í S I C A

Livro I (Alfa)

Capítulo 1
[980a 21] Todos os homens por natureza propendem ao saber. Sinal disso é a
estima pelas sensações: até mesmo à parte de sua utilidade, elas são estimadas em si
mesmas e, mais que as outras, a sensação através dos olhos. De fato, não apenas para
agir, mas também quando nada pretendemos fazer, preferimos o ver a todas as outras
(por assim dizer). A causa disso é que, entre as sensações, esta é a que mais nos faz
conhecer e mostra muitas diferenças.
[980a 27] Por natureza os animais nascem dotados de sensação e, a partir dela,
em alguns deles não se instila memória, mas em outros se instila. Por isso, estes
animais são mais perspicazes e mais capazes de aprender do que os que não conseguem
recordar-se, e são perspicazes sem aprender todos os que não são capazes de ouvir os
sons (por exemplo, a abelha, e se há outro gênero de animais desse tipo), mas aprendem
todos os que possuem, além da memória, também esta sensação.
[980b 25] Assim, os outros animais vivem com as aparências e com as recordações,
mas compartilham pouco da experiência; o gênero dos homens, por sua vez, vive
também com técnica e raciocínios. É da memória que a experiência surge aos homens:
diversas recordações de um mesmo fato perfazem a capacidade de uma experiência.
E (por assim dizer) mesmo a experiência parece semelhante à técnica e à ciência, e a
ciência e a técnica chegam aos homens através da experiência. De fato, a experiência
produziu a técnica – como disse Polo –, ao passo que a inexperiência produziu o
acaso.
[981a 5] A técnica nasce quando, de diversas considerações de experiência, surge
uma única noção universal a respeito de semelhantes. De fato, ter a noção de que tal
Aristóteles

e tal coisa foi conveniente a Cálias, que padecia de tal doença, e a Sócrates, e a muitos
outros, caso a caso, é próprio da experiência; no entanto, é próprio da técnica ter
noção de que tal e tal coisa foi conveniente a todos os de tal e tal qualidade, delimitados
por um tipo único, isto é, que padeciam de tal e tal doença (por exemplo, aos
fleumáticos, ou biliosos, ou febris).
[981a 12] Em relação ao agir, a experiência parece não ser diferente da técnica,
pois, pelo contrário, os experientes têm mais sucesso do que aqueles que, sem a
experiência, dominam a explicação (a causa disso é que a experiência é conhecimento
de coisas particulares, ao passo que a técnica é conhecimento de universais, e todas
as ações e processos são concernentes a algo particular: de fato, quem medica não
cura o homem, a não ser por concomitância, mas cura Cálias, Sócrates ou algum
outro que se denomina deste modo, ao qual sucede como concomitante ser homem;
assim, se alguém, sem experiência, tiver uma explicação, e se conhecer o universal,
mas ignorar o particular nele incluído, muitas vezes poderá cometer erros em seus
curativos, pois é o particular que é curável). Entretanto, achamos que o conhecer e o
saber pertencem mais à técnica do que à experiência, e julgamos os técnicos mais
sábios do que os experientes, como se a sabedoria acompanhasse todos eles sobretudo
pelo conhecer. Isso, porque uns conhecem a causa, mas outros não: os experientes
conhecem o “que”, mas não o “por que”, mas aqueles outros conhecem o “por
que” e a causa. Por isso, em cada domínio, também consideramos que os “mestres-
de-obra” sabem mais e são mais valiosos e sábios que os “trabalhadores braçais”,
porque sabem as causas daquilo que está sendo produzido (ao passo que estes últimos,
tal como certas coisas inanimadas, fazem algo, mas fazem sem saber aquilo que
fazem - como, por exemplo, o fogo queima –, mas os inanimados fazem cada coisa
devido a certa natureza, ao passo que os “trabalhadores braçais” fazem por hábito),
como se os considerássemos mais sábios não por serem capazes de agir, mas porque
dominam a explicação e conhecem as causas.
[981b 7] Em geral, é sinal de quem sabe (e de quem não sabe) ser capaz de
ensinar, e, por isso, julgamos que a técnica é mais conhecimento que a experiência,
pois uns são capazes, mas os outros não são capazes de ensinar.
[981b 10] Além disso, julgamos que nenhuma sensação é sabedoria, embora
sejam elas os conhecimentos mais decisivos a respeito das coisas particulares; não
obstante, elas não dizem o porquê a respeito de nada – por exemplo, por que o fogo
é quente –, mas apenas dizem que é quente.

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Metafísica – Livro I (Alfa)

[981b 13] Quem pela primeira vez inventou uma técnica para além das percepções
comuns provavelmente deve ter sido admirado pelos homens não apenas porque
algum dos achados era útil, mas por ser alguém sábio e diferente dos outros; e,
quando outros inventaram mais técnicas, umas para as necessidades, outras para o
divertimento, estes, provavelmente, foram considerados mais sábios que aqueles,
porque seus conhecimentos não eram voltados à utilidade. Por isso, quando todas as
técnicas deste tipo estavam já constituídas, foram inventadas as ciências que não são
voltadas nem ao prazer, nem às necessidades, e primeiramente nas regiões em que
primeiramente se teve lazer. Por isso, as técnicas matemáticas constituíram-se
primeiramente no Egito, pois lá o grupo dos sacerdotes teve lazer.
[981a 25] Foi dito nas discussões éticas qual é a diferença entre técnica, ciência e
demais itens homogêneos. Mas aquilo em vista de que empreendemos este argumento,
eis o que é: todos consideram que a denominada “sabedoria” é a respeito das primeiras
causas e princípios. Conseqüentemente, conforme foi dito antes, reputa-se que o
experiente é mais sábio que aqueles que detêm uma sensação qualquer; o técnico,
mais sábio que os experientes; os mestres de obra, mais sábios que os “trabalhadores
braçais”, e as ciências teóricas, mais ciência que as produtivas.
[982a 1] É evidente, portanto, que a sabedoria é uma ciência a respeito de certos
princípios e causas.

Capítulo 2
[982a 3] Dado que procuramos essa ciência, devemos investigar o seguinte: a
respeito de quais causas e de quais princípios a sabedoria é uma ciência? Ora, se
assumirmos as concepções que temos a respeito dos sábios, disso poderá surgir,
talvez, algo mais claro.
[982a 8] Concebemos, primeiramente, que um sábio conhece tudo, na medida
do possível, sem ter conhecimento de cada coisa particular. Em seguida, consideramos
sábio aquele que é capaz de conhecer coisas difíceis, isto é, que não são fáceis de
conhecer para o homem comum (o sentir é comum a todos e, por isso, é fácil e não é
“sábio”). Além disso, no que respeita a qualquer conhecimento, consideramos ser
mais sábio aquele que é mais exato e que tem maior capacidade de ensinar as causas.
E, entre as ciências, consideramos ser sabedoria antes aquela que é escolhida em
vista de si mesma e graças ao saber, de preferência àquela que é escolhida em vista
dos resultados; e consideramos ser sabedoria antes a que comanda, mais do que a

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A TÉCHNE EM ARISTÓTELES

FERNANDO REY PU ENTES

Abstract: Our aim in this article is to analyse


the meaning of téchne in Aristotle's works. In
the first place we show the ambivalence of the
words téchne and epistéme in the 5th century BC
and that Aristotle was the first author who
showed differences between thern. Further on,
we examine the two main texts frorn Arsitotle's
writings, i.e., Mel, A, 1 and EN, IV, 3-4, where
he focuses on this subject. Finally we compare
these two texts with other passages from his
works with the purpose to discuss the problem
of the imita tive as well as casual nature of art
and we end it by listing the multiple meanings
that art can have on the different planes in which
it manifests itself.

Inicialmente, é sempre oportuno lembrar que o espectro semântico


recoberto pelo termo grego téchne é muito mais abrangente do que o que
a sua tradução mais usual, arte, significa para nós. Isto ocorre porque ele
não se refere apenas e tão somente à habilidade ou destreza de um
especialista qualificado capaz de produzir com maestria algum artefato,
mas também a uma dimensão teórica e especulativa. Em outras palavras, a
téchne, portanto, é para os gregos uma forma de conhecimento. Essa
relação estreita entre a téchne, por um lado, e o conhecimento teórico,
por outro, é o que explica e fundamenta a intercambialidade dos termos
téchne (arte) e epistéme (ciência) durante todo o século V a.c. Assim,

Fernando Rey Puentes é pesquisador na Faculdade de Filosofia da Universidade de Campi-


nas, SP.

HYPNOL
ANO' / NO 4
no
A TÉCI-INE EM ARisTÓrElES

quando Sófocles, por exemplo, fala da habilidade de um arqueiro no


manejo do seu instrumento, ele se refere à ela, às vezes como sendo uma
téchne (cf. Ajax, 1121), às vezes como sendo uma epistéme (cf. Philoc.,
1057). O mesmo uso sinonímico desses termos pode-se constatar em
Tucídides, quando ele alude à destreza em combater, definindo-a primei-
ro como epistéme e, logo a seguir, como téchne (cf. Hist., 11, 87, 4).
Platão, por sua vez, tampouco se preocupa em distinguir essas duas
palavras, empregando-as com freqüência de modo ambíguo, de acordo
com o costume de sua época. Por esta razão, no Górgias, por exemplo,
ele define o magistério de Sócrates, por analogia com a téchne iatriké (arte
médica), que cuida da saúde do corpo, como uma téchne politiké (arte
política), que cuidaria da saúde das almas (cf. Gorg., 464 A-C). É somente
com Aristóteles que encontraremos a tentativa de estabelecer uma clara
distinção entre os termos téchne e epistéme, como veremos a seguir.
Todavia, mesmo nele, a força da tradição era muito forte, pois ele
algumas vezes parece tratá-los como sinônimos (cf. Pol., 1282 b14 ' 1288
b10 e 1331 b37). Além disso, apesar de estabelecer uma clara distinção
entre eles, ele chega a usá-los, ao menos uma vez, em sentido contrário
ao por ele adotado, falando assim de "artes matemáticas" (Met. 981 b23-24:
mathematicaí técbnai) e de "ciências poéticas" (Met. 1041 b3: poietikaí
epistemai). Mas, vejamos como ele distinguia esses termos.
Os principais textos em que Aristóteles se ocupa em diferenciar a
téchne da epistéme são: o primeiro capítulo do livro Alfa da Metajísica e os
capítulos três e quatro do sexto livro da Ética Nicomaquéia. Logo, será a
partir desses dois textos, bem como das passagens de outras de suas
obras, elencadas no sempre útil e valioso Index Aristotelicus de H.Bonitz,
que empreenderemos a nossa análise.
O supracitado texto da Metajísica tem por objetivo explicar a senten-
ça com a qual o Estagirita inicia o livro Alfa, a saber, a afirmação de que
todo homem aspira naturalmente ao saber. Esse anelo pelo saber manifes-
ta-se por meio das diversas faculdades psíquicas que capacitam o homem
a conhecer. Essas são: a percepção, a memória e a experiência. Destas, a
primeira, isto é, a percepção é coextensiva com o próprio gênero animal
(cf. De ano 413 bl_4), enquanto que as outras duas, ou seja, a memória e a
experiência, entendidas como o produto de sucessivas memórias acerca
de uma mesma coisa, são mais características do homem, embora também
ocorram em alguns outros animais. Por outro lado, a arte (téchne) e a
ciência (epistéme) são atividades exclusivamente humanas. Mas, em que
elas diferem das faculdades que as produzem? Basicamente elas diferem

HYPNOE
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FERNANdo REy PUENl ES

das faculdades cogrutrvas por se referirem ao universal (kathólou), en-


quanto que as faculdades referem-se apenas ao particular (hékastos). A
arte é produzida, mais precisamente, "quando, a partir de muitos pensa-
mentos gerados pela experiência, produz-se uma conjectura universal
acerca das coisas semelhantes" (Met. 981 aS_7: hótan ek pollôn tês empeirias
ennoemáton mía kathólou génetai perí tôn homoíon hypôlepsis). Dito de
outra forma, a arte se gera apenas quando se é capaz de enunciar um juízo
universal aplicável a diversos casos semelhantes. O Estagirita procura ilus-
trar esta diferença entre a experiência e a arte por meio de um exemplo
muito caro e freqüente em sua obra, a saber, o exemplo da arte médica.
Não nos esqueçamos de que o pai de Aristóteles foi o médico pesso-
al do rei Amintas da Macedônia, avô de Alexandre o Grande, cujo tutor,
como se sabe, foi o próprio Aristóteles, de modo que este provavelmente,
desde muito cedo, deveria estar habituado aos termos e conceitos médi-
cos. Segundo o seu exemplo, saber que Kalias ou Sócrates sofrem de uma
determinada doença e que para curá-Ios é preciso administrar-Ihes um
medicamento específico compete à experiência. A arte, entretanto, só se
manifesta quando somos capazes de agrupar por uma semelhança, diga-
mos, de base humoral, diferentes indivíduos, por exemplo, os indivíduos
coléricos e os fleumáticos e que, a seguir, possamos emitir um juízo
universal que afirme que para todo indivíduo colérico ou fleumático, tal
ou qual medicamento é o mais indicado para debelar uma determinada
enfermidade. Neste caso estamos diante de alguém que realmente domina
a arte médica e não de alguém que possui apenas uma vasta experiência
em tratar de casos particulares.
A grande diferença entre a experiência e a arte consiste em que a
primeira conhece somente a pura factualidade de algo, ou seja, como diz
o Estagirita, somente o seu "quê" (ho ti) e não o seu "porquê" (di' hóti) , ou
seja, a sua causa (aitíon), que é precisamente o visado pela arte. Por este
motivo o arquiteto, por exemplo, é considerado mais sábio do que o
pedreiro, pois ele conhece a razão (lógos) e a causa (aitíon) do que será
construído, enquanto que o pedreiro sabe apenas como executar a cons-
trução propriamente dita, mas isso ele o sabe apenas por costume (éthos).
Um outro elemento indicativo dessa diferença entre a arte e a experiência
é que a primeira pode ser ensinada, enquanto que a segunda não.
A distinção entre a arte e a ciência refere-se ao fato de que, enquan-
to a arte possui uma aplicação prática, a ciência desconhece esta dimen-
são pragmática. Aristóteles, entretanto, não se aprofunda em analisar esta
diferença neste texto da Metafísica, remetendo o leitor ao texto da Ética

HYPNOE
ANO} / N° 4
1}2
A TfcliNE EM ARisTÓTElES

Nicomaquéia que analisaremos logo mais. Ele se aventura, porém, a es-


boçar uma possível evolução histórica entre a arte e a ciência. A arte teria
surgido em primeiro lugar como uma tentativa de solucionar as necessida-
des concretas dos homens ou, ao menos, como uma tentativa de tornar a
vida mais aprazível. Só então puderam ser criadas as ciências, pois que
estas não se referem nem às necessidades nem aos prazeres da vida, mas
apenas e tão somente à contemplação. Por esta razão, segundo ele, a
matemática nasceu no Egito, pois somente lá os sacerdotes estavam livres
e desincumbidos de executar determinadas tarefas sociais, o que lhes
permitia criar um conhecimento que não se ocupava nem de solucionar as
necessidades vitais nem de torná-Ias menos penosas.
O terceiro e quarto capítulos da Ética Nicomaquéia apresentam uma
exposição muito mais detalhada da téchne e da sua diferença com a
epistéme. O capítulo três inicia-se postulando a existência de cinco dispo-
sições (héxeis) da alma com as quais ela pode expressar a verdade, quer
afirmando-a quer negando-a, a saber: a arte (téchne), a ciência (epistéme),
o discernimento Cphrónesis), a sabedoria (sophía) e o intelecto Cnoús). A
primeira grande diferença entre essas disposições anímicas, diz respeito
aos entes a que cada uma delas se refere. Logo, a primeira diferença entre
elas é que a ciência, a sabedoria e o intelecto referem-se ao que não pode
ser diferente do que é, ou seja, aos entes necessários e, portanto, eternos,
isto é, aos entes que nunca foram gerados e que nunca se corromperão,
dado que existiram e existirão por toda a eternidade (cf. An.post. 100 as).
Estes são, para Aristóteles, o Movente Imóvel e os corpos celestes,
que são formados por um elemento incorruptível, o éter, ao contrário dos
corpos físicos do mundo sublunar, que são constituídos pelos quatro ele-
mentos corruptíveis: terra, água, ar e fogo. O ente que pode ser demons-
trado, o apodeiktón em termos aristotélicos (cf. EN. 1140 b35), é o de que
se ocupa a ciência, de modo que o silogismo (syllogismós) que parte do
universal em direção ao particular e a indução (epagogé) que parte do
particular em direção ao universal são os procedimentos mais adequados
para exercê-Ia (cf. EN. 1139 b27.3j).
A arte e o discernimento, por outro lado, ocupam-se daquilo que
pode ser diferente do que é, ou seja, do contingente, mas elas se referem
a âmbitos distintos desses entes, já que uma se ocupa do que pode ser
produzido, o poietôn, e a outra do que pode ser objeto de ação, o praktón.
Logo, a primeira é definida como a disposição (héxis) acompanhada de
razão (lógos) que dirige o produzir e a outra como a disposição acompa-
nhada de razão que dirige o agir (cf. EN. 1140 a 5). A principal diferença
j
.

HYPNOE
AI\O ~ / NO 4
1}}

FERNANdo REy PUENI ES

entre elas consiste em que o fim (télos) da arte é diverso do ato da sua
execução, enquanto que o fim da ação reside na própria ação (cf. E.N.
1140 b6). Por exemplo: a coragem é intrínseca a um ato corajoso, pois a
única forma de manifestar coragem é sendo corajoso, mas a saúde não é
intrínseca a uma determinada terapia, antes ela é o fim extrínseco a que
esta se dirige, pois o tratamento ainda não é a própria saúde, mas apenas
um meio para obtê-Ia.
Dado que a arte se ocupa do que pode ser criado, percebe-se, em
primeiro lugar, que ela não pode se ocupar do que é necessário e eterno,
pois isto, como vimos, escapa ao âmbito da geração. Todavia, ela tampouco
pode se ocupar do que se gera por si mesmo e esta auto-geração, segun-
do Aristóteles, é o que caracteriza a natureza (pbysis) e os entes naturais.
O princípio do movimento ou mudança de algo produzido artisticamente
não pode residir no próprio ente produzido, como no caso dos entes
naturais, mas sim naquele que o produziu, ou seja, no artista (cf. Met. 1070
a/ Assim, uma cadeira não pode ser produzida por outra cadeira; ela
precisa, portanto, de uma causa eficiente exterior a ela capaz de a produ-
zir. Uma planta, entretanto, pode produzir uma outra que lhe seja congênere,
bem como um animal produz a sua prole.
A relação da arte com a natureza é uma relação de imitação (mímesis),
segundo uma célebre passagem da Física (cf. Phys. 194 a21.2). Mas, o que
quer dizer exatamente isto? Certamente não o que se é levado ingênua e
anacronicamente a pensar, ou seja, que a arte copia a natureza, o que
seria sem sentido, pois a pbysis para os gregos não é algo estático e
meramente externo a nós, mas ela é a própria força criativa e produtiva
presente tanto em nós quanto no mundo. O que Aristóteles quer dizer é
que a téchne imita a pbysis ao produzir uma união entre uma forma (êidos)
e a matéria (hyle) na qual ela se manifesta análoga àquela existente nos
entes físicos que, na verdade, são compostos (synola) de forma e matéria.
Se a arte não se refere nem ao necessário nem ao natural, resta-lhe
associar-se à fortuna (tyche) e isso é o que o Estagirita faz aqui ao afirmar
que ambas aludem aos mesmos entes. Todavia, no livro Alfa da Metajísica,
ele afirma, ao contrário, que a experiência (empeiría) produz a arte e a
inexperiência (apeiría) a fortuna (cf. Met. 981 a3.5). Um importante passo
do livro Lambda parece reconfirmar isto ao dizer que há quatro possibili-
dades de que algo se produza, a saber, por meio da arte, da natureza, da
fortuna ou do acaso (autómaton). Além disso, a relação entre esses ter-
mos é claramente delineada: tanto a fortuna quanto o acaso são privações
(steréseis), a primeira da arte, a segunda da natureza (cf. Met. 1070 a6_9 e

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A TÉCHNE EM ARisTÓTElES

também Met. 1032 a12-13 que, entretanto, refere-se apenas à arte, à natureza
e ao acaso). Ora, então é claro que elas aludem aos mesmos entes, isto é,
aos entes contingentes, mas uma como forma e a outra como privação.
Uma leitura mais atenta do passo em questão da Ética Nicomaquéia
mostra também que Aristóteles estabelecia a relação entre a arte e a
fortuna de modo muito cauteloso ao afirmar que as duas tratavam das
mesmas coisas apenas trópon tiná, ou seja, "de certo modo" (cf. E.N. 1140
a18). A solução mais completa para esse problema se encontra no capítulo
nove do livro Zeta da Metafísica, onde Aristóteles explica quando a arte e
o acaso podem produzir o mesmo resultado e quando não o podem. O
que permite ou impossibilita isso é a propriedade da matéria em questão.
Assim, as pedras movem-se naturalmente para baixo, mas não podem
mover-se sozinhas de modo a construir uma casa; já no caso da saúde é
diferente, pois um corpo, mesmo enfermo, ao mover-se gera calor natu-
ralmente e a saúde ou é totalmente idêntica ao calor ou a uma parte dele
ou é uma conseqüência parcial ou total do mesmo. Desta forma, tanto o
calor gerado por acaso quanto o calor provocado artificialmente pelo
médico poderá levar um organismo doente à saúde (cf. Met. 1034 a26-30).
Para concluir, gostaríamos de recapitular os vários planos em que
Aristóteles define a técbne . no plano cognitivo ela é uma forma (êidos)
que preexiste no intelecto do artista (cf. De parto ano 640 a3233); no plano
ontológico ela é uma obra Cérgon), ou seja, algo diverso de um ente
natural Csynolon); no plano prático ela é uma produção (poíesis), isto é, ela
é o trazer à existência por parte do artista algo que não existia na nature-
za; no plano psicológico ela é uma disposição (héxis) gerada na alma do
artista por este repetido exercício de trazer à existência aquelas formas
que preexistiam em sua mente e, por fim, no plano modal ela está intrin-
secamente relacionada à fortuna (tyche), na medida em que esta "disposi-
ção prática acompanhada de razão" (E.N. 1140 a3_4: he metá lógou héxis
praktiké) tem de exercitar-se em alguma matéria (hyle) e esta é sempre,
no pensamento do Estagirita, a causa da indeterminação e do acidental.

HYPNOE
ANO J / NO 4
lH
FERNANdo REy PUENTES

BIBLIOGRAFIA

DE ARISTÓTELES SOBRE ARlSTÓTELES

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