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ISSN 1980-3540

Volume 17 • No 1 • 2022

Conceitos em Genética
Genética e Sociedade
Na Sala de Aula
Materiais Didáticos
Resenhas
Um Gene
Índice
Conceitos em Genética
Correlação entre diversidade genética e diversidade de espécies (SGDC):
uma abordagem da genética de comunidades.........................................................................1
Camila Maria Ribeiro da Silva Filha, Aliane D’Oliveira Ricardo, Ramilla dos Santos Braga-Ferreira,
Mariana Pires de Campos Telles, José Alexandre Felizola Diniz Filho
O DNA como um novo dispositivo de armazenamento de dados...........................................10
Danyel Fernandes Contiliani, Tiago Campos Pereira

Genética e Sociedade
A genética por trás da oitava praga do Egito.........................................................................17
Victor Campos Khuriyeh, Letícia Grillo G. Pereira, Lucas Costa Silva, Yanca Tonhasca Lau,
Matheus Salustio C. Petrucci, Lúcia Elvira Alvares
Modelos animais no estudo de doenças genéticas humanas.................................................26
Felipe Tadeu Galante Rocha de Vasconcelos, Laura Machado Lara Carvalho, Lucas Santos e Souza, Igor Neves Barbosa,
Carolini Kaid Dávila, Mayana Zatz, Mariz Vainzof
Ancestralidade: genética, herança e identidade.....................................................................41
Lilian Kimura, Renan Barbosa Lemes, Kelly Nunes

Na Sala de Aula
Ensino de genética humana: novas abordagens para sensibilização
de estudantes no contexto das síndromes genéticas.............................................................53
Gabriela Garcia de Carvalho Laguna, Cintia Rodrigues Marques
Mendel para todas as idades - uma prática na educação de jovens e adultos........................61
Luiz Filipe de Macedo Bartoleti
Isoenzimas de amilase: acessando a diversidade genética.....................................................73
Kátia Luiza Kraemmer, Marcos Trindade da Rosa, Lenira M. N. Sepel, Elgion L. S. Loreto

Materiais Didáticos
Jogo CSI, simulando a análise de um crime para ensinar genética.........................................80
Tiago M. Degrandi, Franciele F. Kerniske, Karine F. Colesel, Mara C. de Almeida, Roberto F. Artoni
Modelo didático para compreender variações genéticas humanas.......................................103
Iasmin Souza Lima, Gabriella Almeida Santos de Santana, Felipe dos Santos Barbieri, Larissa Fernandes,
Diego Coimbra, Cintia Rodrigues Marques

Resenhas
EvoDesign: um servidor para design de sequências proteicas
baseadas em perfis estruturais e evolutivos.........................................................................114
Ivania Samara dos Santos Silva, Adeilma Fernandes de Sousa, Francisco Carlos de Medeiros Filho,
Rafael Trindade Maia, Magnólia de Araújo Campos
Integrated view of population genetics................................................................................116
Rafael Trindade Maia, Magnólia de Araújo Campos

Um Gene
O gene MUTYH e o seu papel na etiologia dos tumores em humanos................................118
Lázaro Batista de Azevedo Medeiros, Ana Helena Sales Oliveira
Mth: o gene "Matusalém" e a longevidade em moscas.......................................................124
Yasmin de Araújo Ribeiro, Tiago Campos Pereira
Gene Lep e a obesidade......................................................................................................131
Karynne de Nazaré Lins de Brito, Marina Saldanha da Silva Athayde, Rafael Lima Kons,
Yara Costa Netto Muniz, Juliana Dal-Ri Lindenau
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Correlação entre diversidade


genética e diversidade de
espécies (SGDC): uma abordagem
da genética de comunidades*

Camila Maria Ribeiro da Silva Filha1, Aliane D’Oliveira Ricardo1, Ramilla dos Santos Braga-Ferreira2,
Mariana Pires de Campos Telles3, José Alexandre Felizola Diniz Filho4
1
Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular, ICB, Laboratório de Genética & Biodiversidade, Universidade Federal de Goiás. Goiânia, GO
2
INCT EECBio, Laboratório de Genética & Biodiversidade, ICB, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO
3
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Escola de Ciências Médicas e da Vida, Laboratório de Genética & Biodiversidade, Universidade Federal de Goiás,
Goiânia, GO
4
Laboratório de Ecologia Teórica & Síntese, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Goiás. Estrada do Campus, Goiânia, GO
Autor para correspondência - tellesmpc@gmail.com

Palavras-chave: conservação da biodiversidade, medidas de biodiversidade, níveis de biodiversidade, planejamento de conservação

* Artigo desenvolvido dentro do contexto da disciplina “Ensino de genética” do programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade
Federal de Goiás, vinculado ao projeto INCT EECBio.

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A Correlação entre Diversidade Genética e Diversidade de Espécies (SGDC, sigla do inglês


Species-Genetic Diversity Correlation) é uma abordagem de Genética de Comunidades que tem
por finalidade investigar e quantificar a correlação entre a diversidade genética e a diversidade
de espécies que, sob a influência de fatores ambientais, moldam os padrões de biodiversidade
dentro das comunidades. A biodiversidade é didaticamente dividida em três níveis hierár-
quicos, diversidade de comunidades (ou ecossistemas), diversidade de espécies e diversidade
genética (ou de genes). Tradicionalmente, a diversidade genética é estudada pela Genética de
Populações, enquanto a diversidade de espécies, também conhecida como riqueza de espécies,
fica a cargo da Ecologia de Comunidades. Dessa forma, as pesquisas de SGDCs consistem em
abordagens interdisciplinares, que aplicam, simultaneamente, conceitos de Genética e Eco-
logia estabelecendo uma ponte com a Evolução para a interpretação dos fenômenos naturais
estudados.

O que é SGDC? biodiversidade, o que influencia na quanti-


dade de diversidade de um nível no outro.
Como surgiu? Segundo, a diversidade genética e a diversi-
dade de espécies respondem de forma seme-
Você já reparou o quanto é diversa a natu- lhante a processos relacionados ao local onde
reza? Tantas formas, tantas cores! Já parou as populações estão inseridas. Essas hipóte-
para pensar o motivo de tanta coisa dife- ses permitiriam entender a correlação que
rente? Atualmente pensamos que toda essa pode aparecer entre a diversidade genética e
variação é consequência de vários processos a diversidade de espécies ao longo do espaço
microevolutivos, como mutação, deriva ge- geográfico ou ao longo do tempo.
nética, seleção natural e fluxo gênico, que Assim, para estudar os padrões de biodi-
atuam em populações com diferentes níveis versidade no tempo-espaço, são necessários
de estrutura espacial e sistemas de acasala- conhecimentos tanto da Genética de Popu-
mento, gerando e organizando padrões na lações quanto da Ecologia de Comunidades.
diversidade genética (diversidade dentro de É nesse contexto de interdisciplinariedade
uma espécie) e que estudamos em “Genéti- que surge a “Genética de Comunidades”, uma
ca de Populações”. Por outro lado, também área de estudo que visa entender como a di-
podemos pensar na variação sob uma pers- versidade genética dentro de uma espécie e
pectiva mais ampla, como na diversidade de entre as espécies respondem a fatores am-
espécies, nos porquês de uma comunidade bientais e a processos históricos para moldar
ser mais rica em termos de quantas espécies a composição biológica da comunidade.
abriga, e nos processos macroevolutivos que
influenciam essa diversidade, questões estu- Considerando a Genética de Comunidades,
dadas pela “Ecologia de Comunidades”. é possível que a diversidade genética esteja
diretamente relacionada com a diversidade
Muitas pessoas refletiram sobre questões e de espécies e vice-versa, uma influenciando a
identificaram a existência de padrões espa- outra, criando-se padrões de correlação dado
ciais e temporais de diversidade biológica um ou múltiplos fatores ambientais atuando
simultaneamente no nível das espécies e no em diferentes níveis hierárquicos da diversi-
nível das comunidades e, mais importan- dade biológica. Esses e outros pressupostos
te, na tentativa de entender esses padrões, podem ser testados por meio do que se deno-
lançaram hipóteses. Primeiro, pode ocorrer minou de SGDC (do inglês Species-Genetic
sobreposição entre os diferentes níveis da Diversity Correlation).

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É importante ressaltar que nosso objeti- nos diferentes níveis é governada por forças
vo aqui não é detalhar as análises SGDCs, semelhantes, ou seja, acreditando-se que lo-
mas sim apresentar os conceitos básicos re- cais com alta diversidade de espécies também
lacionados à SGDC para, então, mostrar a comportaria alta diversidade genética das
importância desses estudos no planejamen- mesmas. Entretanto, muitos estudos, como
to das ações de conservação simultânea da algumas análises SGDCs, têm mostrado que
diversidade genética e de espécies, algo que isso nem sempre acontece e que existe a ne-
tem se mostrado mais problemático do que cessidade de se repensar as ações práticas de
parecia ser até pouco tempo. conservação para desenvolver métodos que
consigam abranger os diferentes níveis de

Base conceitual biodiversidade.


A diversidade genética intrapopulacional é
das estimativas de grande importância para manter o po-

de biodiversidade tencial evolutivo e adaptativo das espécies


ao longo do tempo, já que a perda de diver-
sidade genética reduz a capacidade adaptati-
O conceito de Biodiversidade surgiu na déca-
va das populações em resposta às mudanças
da de 1980 em meio a debates sobre a preo-
ambientais e, consequentemente, aumenta o
cupação de alguns pesquisadores e ativistas
risco de extinção das espécies. Chamamos de
com a destruição de habitats e o acelerado
diversidade genética a medida de biodiversi-
processo de extinção de espécies que ameaça,
dade verificada a partir de dois componentes
até hoje, a diversidade biológica. Biodiversi-
básicos da variação em nível genético, que
dade é uma forma sintética e integrada de se
ocorrem entre e dentre populações e indiví-
referir à diversidade biológica, que sempre
duos de uma determinada espécie. Essa di-
foi formalmente mais bem definida em um
versidade pode ser mensurada considerando
contexto ecológico. Essa conceituação pode
o número (riqueza) de alelos existentes e a
ser entendida como sendo a diversidade
frequência com que esses alelos ocorrem em
de genes dentro das espécies, a diversidade
uma população, ou subpopulações.
de espécies nas comunidades e a diversida-
de de ecossistemas, uma definição ampla e Para compreender melhor esse conceito de
funcional estabelecida na Convenção sobre diversidade genética, observar as situações
Diversidade Biológica (CDB), lançada pelo ilustradas na Figura 1. Em P.1 observa-se
programa das Nações Unidas para o Meio uma população que não possui diversida-
Ambiente (PNUMA), durante a Conferên- de genética, apresentando apenas um alelo.
cia das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Quanto mais alelos diferentes existirem em
e Desenvolvimento (ECO92). uma população, maior será a diversidade ge-
nética dessa população, sendo esse um com-
Historicamente, a diversidade de espécies
ponente da diversidade genética. Entretanto,
ou de ecossistemas tem sido priorizada no
outro componente importante na quantifi-
planejamento da conservação, sendo que a
cação da diversidade genética é a frequência
diversidade genética é negligenciada nesse
com que esses diferentes alelos ocorrem na
contexto considerado, ocasionalmente, em
população. Na prática, um alelo precisa ter
planos de conservação específicos de espé-
uma frequência mínima para ser considerado
cies. Provavelmente, isso acontece porque a
um alelo alternativo e ser um indicativo de
amostragem da diversidade genética exige
polimorfismo. As populações P.2 e P.3 têm
maiores esforços de coleta e laboratorial, sem
a mesma quantidade de diversidade genéti-
contar que apenas recentemente o acesso à
ca, considerando o componente de riqueza
variabilidade genética por meio de marcado-
alélica, ou seja, ambas possuem dois alelos,
res moleculares tornou-se mais acessível. As-
diferindo apenas em termos de frequência
sim, os padrões de diversidade genética eram
relativa destes alelos nos indivíduos e na po-
considerados apenas de forma subliminar
pulação como um todo. Na população P.2,
nos programas de conservação em escalas
a diversidade genética acontece tanto entre
mais amplas, assumindo-se que a diversidade
quanto dentro dos indivíduos, sendo distri-

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buída ao acaso. Por outro lado, a população análises em Genética de Populações, que
P.3 está estruturada de maneira que não há pode ser entendida como sendo a frequên-
diversidade genética dentro dos indivíduos, cia esperada de heterozigotos nas condições
toda a diversidade acontece entre os indiví- de Equilíbrio de Hardy-Weinberg, ou seja,
duos. As populações P.4 e P.5 também pos- se não há um efeito importante de algum
suem a mesma quantidade de diversidade ge- fator evolutivo na população. A partir dessa
nética considerando o componente riqueza, medida, a população P.2 possui maior di-
a diferença entre elas está na frequência em versidade genética do que a população P.5
que os alelos ocorrem. Na população P.5, a (Figura 1); assim, os alelos raros pouco con-
grande maioria dos indivíduos possui ape- tribuem para He e a proporção em que as
nas o alelo azul; os alelos verde, vermelho formas alélicas ocorrem têm peso maior do
e amarelo, são alelos raros nessa população que o componente riqueza para a quantifi-
e não contribuem de maneira efetiva para cação da diversidade genética, porque capta
a diversidade genética. Considerando-se o o efeito do balanço das frequências alélicas.
conjunto de populações (P.1 a P.5), podemos Todo esse raciocínio pode ser estendido para
inferir que, em termos de riqueza de formas, a comparação entre as diferentes populações,
as populações P.4 e P.5 têm maior diversida- em diferentes níveis hierárquicos, portanto,
de genética do que as outras populações; em de modo que a heterozigose nesse nível passa
contrapartida, considerando-se a proporção a ser uma medida de diferenciação entre as
em que as formas ocorrem, as populações populações, sendo a base das famosas esta-
P.2 e P.4 são mais diversas. E, considerando- tísticas-F de Sewall Wright. Entretanto, no
-se ao mesmo tempo os dois componentes, contexto das relações SGDC, o foco, por
riqueza e frequência dos alelos, qual é mais enquanto, está mais na diversidade genética
diversa a população, P.2 ou a P.5? A grande dentro de cada população ou subpopulação,
questão é: até que ponto a riqueza de alelos como discutido anteriormente.
é o componente mais importante da diversi-
dade genética? Se a riqueza for mais impor- A diversidade ecológica também pode ser
tante, a população P.5 é mais diversa, porque avaliada a partir da composição de espécies
possui mais alelos. E ainda, até que ponto das comunidades, de habitat ou mesmo de
a proporção em que as formas ocorrem é o biomas em uma região, também com base nos
componente mais importante da diversidade mesmos dois componentes de riqueza e fre-
genética? Se a frequência dos alelos é mais quência relativa das abundâncias das unida-
importante, a população P.2 é mais diversa des básicas. As medidas mais comuns usam
do que a população P.5. espécies como unidades básicas, mesmo con-
siderando uma série de dificuldades na sua
Existem diversas formas de medir a diversi- definição ou conceituação. A diversidade de
dade genética, cada índice capta um ou outro espécie, portanto, pode ser expressa também
dos dois componentes (riqueza ou frequên- por diferentes métricas combinando a rique-
cia de alelos) ou, ainda, ponderam os compo- za de espécies e a abundância (número de
nentes. A escolha da medida de diversidade indivíduos) dessas espécies em um ou mais
a ser utilizada depende dos objetivos da aná- locais. Essas medidas de diversidade genética
lise. Outra medida de diversidade genética e de espécies têm sido extensivamente apli-
que pode ser utilizada é o número médio de cadas para estudar os padrões espaciais de
alelos por lócus polimórfico (Ap), calculada biodiversidade e para definir estratégias de
pela diferença entre o número de alelos do conservação de forma independente. Recen-
lócus polimórfico pelo número total de ló- temente pensou-se que a diversidade genéti-
cus. Tal medida possui um problema relacio- ca e a diversidade de espécies podem ser cor-
nado ao efeito de amostragem, mas é possível relacionadas ao longo do espaço geográfico,
corrigir utilizando amostras de tamanhos gerando assim as relações SGDC, avaliando
semelhantes. se esses níveis hierárquicos da biodiversidade
são controlados por processos não-indepen-
A heterozigosidade esperada sob Equilíbrio dentes. As análises SGDCs fornecem um ar-
de Hardy-Weinberg (He) é uma medida de cabouço teórico e empírico que possibilitam
diversidade genética bastante utilizada nas

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investigar como a variação genética dentro cem informações úteis para compreender as
das espécies, a diversidade de espécies e os forças que atuam sobre a biodiversidade na
fatores ambientais interagem. Assim, forne- formação dos padrões espaciais e temporais.

Figura 1.
Populações com diferentes
quantidades de diversidade
genética. Os pares de
círculos representam
indivíduos diploides e cada
cor corresponde a um alelo
diferente. Considere: P.1:
População 1; P.2: População
2; P.3: População 3; P.4:
População 4 e P.5: População 5.

Análises SGDC Em princípio, a ideia é realizar uma correla-


ção entre diversidade genética e diversidade
de espécies, buscando-se detectar padrões
As correlações são métodos estatísticos uti-
espaciais ou temporais e, ao mesmo tempo,
lizados para quantificar relações entre variá-
testar a influência de fatores ambientais nes-
veis, com a finalidade de observar o compor-
sa correlação para compreender os processos
tamento de uma variável mediante a variação
que dão origem ou mantém esses padrões. À
de outra. Assim, as variáveis podem estar
primeira vista, parece uma tarefa fácil, mas
positivamente correlacionadas, quando os
isso depende do sistema que será analisado,
valores de uma variável aumentam, os valo-
das hipóteses que serão testadas, dos índices
res da outra, também, aumentam; negativa-
de diversidade utilizados e da quantidade de
mente correlacionadas, quando os valores de
variáveis ambientais testadas.
uma variável aumentam, os valores da outra
diminuem ou serem independentes, ou seja, A pergunta para tais métodos é: como esse
não estarem correlacionadas. As relações en- tipo de pesquisa é realizado? As análises de
tre variáveis podem ser expressas estatistica- SGDCs seguem uma lógica metodológica,
mente por diferentes tipos de coeficientes de que inclui uma série de modelos matemáti-
correlação, tais como a correlação de Pearson cos e testes estatísticos que variam conforme
e de Spearman. Esses coeficientes de corre- a proposta do estudo. De maneira bastante
lação são bastante utilizados para avaliar as simplificada, as análises consistem em:
relações entre variáveis e ambos variam em
valor de -1 a 1. Dessa forma, podem ser em- 1. Definir a(s) espécie(s) focal(is). A espécie
pregados para estimar a SGDC entre essas focal é aquela que será utilizada para obter
medidas de diversidade e outras variáveis dados de diversidade genética;
ambientais ou geográficas.
2. Definir o grupo de espécies que será cor-
SGDC é um arcabouço teórico e empírico relacionado com a diversidade genética da
que reúne uma série de métodos estatísticos espécie focal;
para avaliar teorias que têm por objetivo ex-
3. Obter os dados de diversidade genética
plicar a variação simultânea dos padrões es-
(DG) da(s) população(ões) da espécie fo-
paciais e/ou temporais nos níveis de diversi-
cal;
dade genética e de espécies da biodiversidade.

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4. Obter os dados de diversidade de espécies lacionados à variação nos tamanhos médios


(DE) de outras espécies que coexistem da população, que por sua vez são mediados
com a espécie focal, que podem ser dados pelas características ambientais e geográficas
de comunidade (no qual existem proces- do local, tais como conectividade, isolamen-
sos de interação biótica entre as espécies, to, clima, disponibilidade de recursos, tama-
como competição ou predação), ou mais nho da área e heterogeneidade espaço-tem-
frequentemente, de “assembleias” de espé- poral. Os fatores da comunidade, também,
cies (que são na verdade grupos taxonô- são relacionados à variação nos tamanhos
mica ou filogeneticamente definidos); médios da população, mas diferentemente
dos fatores locais, são mediados pelas inte-
5. Definir as variáveis do local que serão rações ecológicas entre as espécies que com-
testadas, como por exemplo, tamanho põem a comunidade, e incluem competição,
da área, conectividade e heterogeneidade predação e mutualismo.
espacial-temporal, bem como outras va-
riáveis ambientais ou climáticas que po- Tanto os fatores locais quanto da comuni-
deriam explicar os padrões de biodiversi- dade podem induzir efeitos paralelos sobre
dade nos dois níveis; os genes e as espécies, por meio de processos
microevolutivos tais como mutação, deriva
6. Realizar a correlação entre os dois níveis genética, endogamia, seleção natural e fluxo
de diversidade (DG x DE). gênico. Dessa forma, os processos microevo-
lutivos interferem diretamente na diversida-
Fatores que de genética e indiretamente na diversidade
de espécies sob a influência de fatores do lo-
influenciam cal e/ou da comunidade. Essas relações entre
diversidade genética e de espécies mediadas
na SGDC por fatores locais e da comunidade podem
ser analisadas por meio da SGDC e quando
Os fatores que influenciam na SGDC po- detectada correlação, a SGDC apresenta um
dem ser quaisquer variáveis do local ou da sinal positivo ou negativo, como demostrado
comunidade. Os fatores locais são aqueles re- na Figura 2.

Figura 2.
Influência de processos
microevolutivos na diversidade
genética e suas consequências
na diversidade de espécies.
Considere DG x DE: Correlação
entre diversidade genética
e diversidade de espécies;
DER: deriva genética; END:
endogamia; FLG: fluxo gênico;
MUT: mutação SEL: seleção
natural.

Diferença entre um fator e o efeito que ele causa na SGDC,


focando em diversidade genética e de es-
a e b-SGDC pécies local. Já a b-SGDC é utilizada para
analisar correlações de diversidade genética e
Podemos pensar em pelo menos dois tipos diversidade de espécies entre pares de comu-
de SGDC: a-SGDC e b-SGDC. A a-SG- nidades e populações, considerando a locali-
DC consiste na correlação entre a diversida- zação geográfica e a composição genética e de
de genética e diversidade de espécies, dado espécies que detêm (Figura 3).

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Figura 3.
Diferença entre α-SGDC e
β-SGDC. Considere α: α-SGDC;
β: β-SGDC; P.1/C.1: População
1/Comunidade 1; P.2/C.2:
População 2/ Comunidade
2; P.3/C.3: População 3/
Comunidade 3; P.4/C.4:
População 4/ Comunidade
4; P.5/C.5: População 5/
Comunidade 5. Populações
(de P.1 a P.5) referem-se às
populações da espécie focal
representadas pelos pontos
em azul-claro, e Comunidades
(de C.1 a C.5) corresponde às
comunidades com diferentes
composições de espécies, sendo
que cada cor representa uma
espécie diferente.

A a-SGDC pode ser calculada utilizando-se correlações de Pearson ou Spearman entre


coeficientes de correlação bem conhecidos em matrizes e não entre variáveis.
estatística, como a correlação de Pearson ou
de Spearman, variando no intervalo de -1 a 1. Para visualizar melhor essas relações, lançare-
Resultados iguais a 0, indicam a inexistência mos mão de hipóteses relacionadas à origem e
de correlação entre as variáveis testadas (sen- manutenção da diversidade genética e de espé-
do esta a hipótese nula). Por outro lado, cor- cies já bem estabelecidas: (1) em um contexto
relações positivas ou negativas indicam que a de α-SGDC, ao analisar simultaneamente a
α-SGDC é significativa e que processos ecoló- diversidade genética e a diversidade de espé-
gicos e evolutivos, como os descritos anterior- cies sob a influência da variável tamanho da
mente, devem estar envolvidos em sua origem. área, espera-se que a variação no tamanho da
área gere um efeito positivo na diversidade ge-
A α-SGDC é calculada, por exemplo, a par- nética dentro das populações e na riqueza de
tir da relação entre o número de alelos ou espécies nas comunidades, considerando os
heterozigosidade nas populações de uma princípios da teoria do equilíbrio da biogeo-
espécie-focal e o número de espécies que en- grafia de ilhas (MACARTHUR; WILSON,
contramos nas comunidades nas quais essas 1967) e o modelo de ilha da genética popu-
populações estão inseridas, levando em con- lacional (WRIGHT, 1940). Isto é, quanto
sideração fatores locais e/ou de comunidade. maior a área, maior será a diversidade genética
Por outro lado, a β-SGDC é estimada cor- e de espécies (Figura 4A); (2) em β-SGDC
relacionando-se a dissimilaridade genética o esperado é que locais espacialmente próxi-
entre populações de uma espécie focal por mos sejam mais semelhantes do que os mais
exemplo, FST: estimador de variabilidade afastados em composição de espécies se con-
genética entre populações, com a dissimila- siderado o padrão de decaimento por distân-
ridade de espécies entre comunidades. No cia (SOININEN et al, 2007) que se refere à
caso da β-SGDC, como se trata de uma cor- estrutura genética, aparece na forma que cha-
relação de matrizes, a relação pode ser verifi- mamos de “isolamento por distância” (ROU-
cada por meio de Testes de Mantel, que são SSET, 1997) (Figura 4B).

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Figura 4.
(A) Variação simultânea
Aplicações e diversidade genética e de espécies covariavam
nas comunidades. Esses autores utilizaram
da diversidade genética
dentro de populações e da
importância dos conceitos já bem estabelecidos para a inter-
pretação dos processos determinantes da
diversidade de espécies nas
comunidades em função da

estudos de SGDC SGDC, a similaridade ecológica, sobrepo-


sição de nicho e interações interespecíficas.
variável tamanho da área.
(B) Dissimilaridade genética
e de espécies em função da
Vellend (2003) foi o primeiro trabalho com Dessa forma, eles chegaram à conclusão de distância espacial entre as
o objetivo explícito de investigar as SGDCs. que a relação negativa observada, provavel- populações e as comunidades
Nesse estudo foram compilados 14 conjuntos mente, ocorrerá porque a espécie focal e as sob a influência de diferentes
condições ambientais. Os
de dados na literatura sobre diferentes grupos outras espécies não são ecologicamente si-
diferentes formatos dos
de organismos (plantas, aves, mamíferos, rép- milares. Essa interpretação faz sentido visto pontos (triângulo, círculo,
teis etc.) para testar a hipótese de correlação que a espécie focal possui preferências eco- quadrado e estrela) referem-se
positiva de diversidade de espécies e diversida- lógicas, principalmente, relacionadas à tem- às diferentes espécies que
peratura, diferentes das outras espécies que compõem as comunidades; as
de genética em uma variedade de arquipélagos
cores representam diferentes
(Ilhas Galápagos, Ilhas Britânicas, Ilhas do compõem a comunidade. Assim, reforçaram alelos das populações, ou seja,
Caribe etc.) e, ao mesmo tempo, verificar a in- a ideia de que nem sempre é possível prever a diversidade genética das
fluência das variáveis área e isolamento da ilha os padrões de diversidade genética a partir da espécies.
nessa correlação. Nessa pesquisa, descobriu- amostragem da diversidade de espécies como
-se uma correlação significativamente positiva estratégia para conservação.
entre a diversidade genética e a diversidade de
Reisch e Schmid (2019) correlacionaram a
espécies para as duas variáveis testadas, assim
diversidade de espécies de 18 prados secos
locais mais ricos geneticamente em termos
remanescentes nos vales dos rios Naab e La-
populacionais abrigavam também um maior
ber, na Alemanha, com a diversidade gené-
número de espécies.
tica de várias espécies de plantas de prados
Entretanto, SGDCs significativamente ne- secos para verificar a influência das variáveis,
gativas, bem como, a inexistência de correla- fragmentação da paisagem e condições do
ção entre diversidade genética e de espécies habitat, sob esses níveis de biodiversidade.
já foram também relatadas. Uma SGDC Na verdade, eles trataram de várias espécies
negativa foi identifica por Marchesini et al. focais. Por conseguinte, observaram ausência
(2018) em uma metacomunidade de an- de correlação entre diversidade genética e de
fíbios da região alpina, Trentino, na Itália. espécies. Esse estudo concluiu que a proteção
Eles correlacionaram a diversidade genética da diversidade de espécies não garante, obri-
neutra de uma espécie de rã comum (Rana gatoriamente, a conservação da diversidade
temporaria) com a riqueza de espécies das genética, o que torna necessário repensar as
comunidades de anfíbios para verificar se a estratégias de conservação.

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Estas observações sugerem uma relação de aplicada, podem ser importantes para auxi-
independência entre os dois níveis de di- liar na elaboração de ações para conservação
versidade biológica em resposta aos proces- da diversidade biológica levando em conside-
sos ecológicos e evolutivos decorrentes de ração diferentes níveis hierárquicos.
mudanças nas condições ambientais, que
pode estar relacionada, por exemplo, com a
historia evolutiva das espécies e a dinâmica Referências/
espacial de habitats adequados. Outra ques-
tão bastante discutida, nesse sentido, é que Para saber mais
a abundância de uma espécie correlaciona-se KAHILAINEN, A.; PUURTINEN, M.; KOTIA-
positivamente com sua diversidade genética, HO, J. S. Conservation implications of species–
ao mesmo tempo que correlaciona-se nega- genetic diversity correlations. Global Ecology and
Conservation, v. 2, p. 315 – 323, 2014.
tivamente com a abundância de outras espé-
cies em uma localidade (LAMY et al., 2013). LAMY, T.; JARNE, P.; LAROCHE, F.; POINTIER,
J.-P.; HUTH, G.; SEGARD, A.; DAVID, P.
É necessário, portanto, maior cuidado na Variation in habitat connectivity generates positive
elaboração de planos para conservação da correlations between species and genetic diversity
biodiversidade e, nesse sentido as SGDCs in a metacommunity. Molecular Ecology, v. 22, n. 17,
p. 4445-4456, 2013.
fornecem informações valiosas. O sinal da
α-SGDC informa diretamente se a con- LAMY, T.; LAROCHE, F.; DAVID, P.; MASSOL,
servação de um nível de biodiversidade in- F.; JARNE, P. The contribution of species–genetic
diversity correlations to the understanding of com-
terfere negativamente ou positivamente no
munity assembly rules. Nordic Society Oikos, v. 126,
outro. Uma α-SGDC positiva indica que, p. 759 – 771, 2017.
ao conservar a diversidade de espécies em
um local, conserva-se também a diversidade MACARTHUR, R. H.; WILSON, E. O. The theory
of island biogeography. Princeton Univ. Press, Princ-
genética intrapopulacional (ou vice-versa), eton, 1967.
sendo possível aplicar uma estratégia única
ou geral de conservação. Em contrapartida, MARCHESINI, A.; VERNESI, C.; BATTISTI, A.;
FICETOLA, G. F. Deciphering the drivers of neg-
uma α-SGDC negativa sugere que a preser-
ative species–genetic diversity correlation in Alpine
vação da diversidade de espécies local pode amphibians. Molecular ecology, v. 27, n. 23, p. 4916-
comprometer a diversidade genética dentro 4930, 2018.
da população (ou vice-versa), sendo neces-
REISCH, C.; SCHMID, C. Species and genetic diversi-
sário, nessa situação, mesclar estratégias ty are not congruent in fragmented dry grasslands.
de conservação para abarcar os diferentes Ecology and evolution, v. 9, p. 664 – 671, 2019.
níveis de diversidade. A β-SGDC fornece
informações sobre a composição genética ROUSSET, F. Genetic differentiation and estimation
of gene flow from F-statistics under isolation by
e de espécies entre localidades e isso é ex- distance. Genetics, v. 145, n. 4, p. 1219-1228, 1997.
tremamente útil se pensarmos em um nível
mais abrangente de conservação como, por SCBD (2010). COP-10 Decisão X/2: Plano Estratégico
para Biodiversidade 2011–2020. Secretariado da
exemplo, a possibilidade de criar redes de Convenção sobre Diversidade Biológica. Nagoya,
conservação com localidades biologicamen- Japan, 2010.
te complementares.
SOININEN, J.; MCDONALD, R.; HILLEBRAND,
Os estudos de SGDCs são cada vez mais H. The distance decay of similarity in ecological
importantes como uma primeira aproxima- communities. Ecography, v. 30, n. 1, p. 3-12, 2007.
ção combinando os trabalhos de Genética de VELLEND, M. Island biogeography of genes and spe-
Populações e Ecologia de Comunidades que cies. The American Naturalist, v. 162, p. 358 – 365,
se propõem a investigar a influência dos pro- 2003.
cessos microevolutivos na diversidade gené- VELLEND, M.; GEBER, M. A. Connections between
tica e de espécies, ajudando na compreensão species diversity and genetic diversity. Ecology Let-
simultânea de processos ecológicos e evoluti- ters, v. 8, p. 767 – 781, 2005.
vos. Além disso, esses estudos são essenciais WRIGHT, S. Breeding structure of populations in re-
na determinação da estrutura e dinâmica das lation to speciation. The American Naturalist, v. 74,
comunidades e, em uma perspectiva mais n. 752, p. 232-248, 1940.

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CONCEITOS EM GENÉTICA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O DNA como um
novo dispositivo de
armazenamento de dados

Danyel Fernandes Contiliani1, Tiago Campos Pereira2


1
Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em Genética, Ribeirão Preto, SP
2
Universidade de São Paulo, Depto. de Biologia. Avenida Bandeirantes, 3900.
CEP 14040-901, Ribeirão Preto, SP
Autor para correspondência - tiagocampospereira@ffclrp.usp.br

Palavras-chave: armazenamento de dados, CRISPR, DNA recording,


tecnologia da informação

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CONCEITOS EM GENÉTICA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A elevada produção global de informação digital torna urgente o aprimoramento das tecnolo-
gias atuais de armazenamento de dados, como dispositivos magnéticos, ópticos e eletrônicos,
empurrando-as cada vez mais próximas ao abismo da obsolescência. Diante das inúmeras
características que inviabilizam a capacidade de armazenamento de dados a longo prazo por
estes dispositivos tradicionais, o DNA surge como um material durável, replicável, resisten-
te, recuperável e com alta capacidade de armazenamento. Dados computacionais podem ser
traduzidos em um sistema análogo ao código genético e armazenados, no formato de oli-
gonucleotídeos, em células por meio do uso da maquinaria do sistema imune procariótico,
CRISPR. A partir do sequenciamento genômico, tais informações podem ser decodificadas
novamente à linguagem computacional e, portanto, reproduzidas. Assim, o DNA recording
é uma solução promissora para problemas atuais da tecnologia da informação e uma aposta
para a próxima geração de dispositivos de armazenamento de dados.

Marcadores genéticos:
Informações que caracterizam
e/ou diferenciam indivíduos
O ácido desoxirribonucleico (DNA) con- números) em 64 possíveis combinações de ou organismos. Em especial,
siste em uma macromolécula complexa ca- códons (trincas de bases nucleotídicas no aqui a expressão “marcadores
paz de armazenar as inúmeras informações RNAm), sintetizaram moléculas de DNA genéticos” refere-se a
essenciais para o desenvolvimento e manu- contendo uma mensagem entre um par de sequências nucleotídicas que
caracterizam uma determinada
tenção de todas as formas de vida. Em geral, marcadores genéticos e as armazenaram em informação.
sua estrutura possui duas cadeias compos- uma carta, a qual foi enviada para os próprios
tas por nucleotídeos (com as seguintes ba- autores via correio. Quando eles a recebe-
ses nitrogenadas - adenina, timina, citosina ram, utilizaram a técnica de PCR (do inglês,
PCR: Acrônimo para
e guanina), os quais realizam pareamentos Polymerase chain reaction) para amplificar o Polymerase Chain Reaction
específicos entre si por meio de ligações de número das moléculas de DNA escondidas (em português, Reação em
hidrogênio (modelo conhecido como parea- no ponto final do texto redigido. Assim, após Cadeia da Polimerase). Consiste
mento de bases Watson-Crick). Em poucas o sequenciamento deste DNA, os pesquisa- em uma técnica de biologia
molecular, capaz de amplificar
palavras, após uma sequência de DNA ser dores identificaram a sequência nucleotídica o número de fragmentos
transcrita em RNA mensageiro (RNAm), específica e, traduzindo-a novamente para o específicos de um genoma,
agrupamentos de três nucleotídeos – cha- alfabeto romano, foram capazes de decodifi- gerando milhões de cópias.
mados de códons – são traduzidos em ami- car a mensagem com sucesso (Figura 1).
noácidos correspondentes a diferentes com-
binações destes conjuntos de bases. Dessa E, se nós pudéssemos não apenas armazenar
forma, o código genético garante instruções informações de texto no DNA, mas também
às nossas células para construir cada uma das informações digitais (em código binário),
Código binário: Linguagem
proteínas do nosso organismo. como fotos, músicas e filmes? Seríamos ca- básica de instrução
pazes de reescrever informações tão robus- computacional, na qual os
Curiosamente, um sistema análogo ao códi- tas e complexas em estruturas nanoscópicas valores são representados por
go genético (código de interpretação de ami- como os genomas? Se sim, poderemos tornar 0 e 1.
noácidos a partir dos códons) também pode o DNA em um novo substituto para os CDs,
ser utilizado como uma forma de criptogra- DVDs e pendrives em um futuro próximo.
Criptografia: Técnica
fia. Em 1999, pesquisadores da Escola de Neste texto, mostraremos como o casamento de proteção a uma dada
Medicina de Monte Sinai, em Nova Iorque, entre a tecnologia da informação e as ferra- informação secreta que apenas
escreveram uma mensagem secreta baseada mentas atuais de biologia molecular podem o remetente e o destinatário
em sequências de DNA. Após a conversão transformar o DNA em um dispositivo de podem acessar.
de caracteres do alfabeto romano (letras e armazenamento de dados.

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CONCEITOS EM GENÉTICA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 1.
Criptografia de DNA. De forma
esquematizada, a imagem
retrata a amplificação das
moléculas de DNA (escondidas
no ponto final da carta) por
meio da técnica de PCR (do
inglês, Polymerase chain
reaction). Em seguida, as
sequências nucleotídicas
amplificadas são decifradas por
sequenciamento de DNA e,
por fim, decodificadas para o
alfabeto romano, revelando a
mensagem secreta. Elementos
gráficos da Noun Project: DNA
– ProSymbols; Monitor – Andy
Mc (CC BY 2.0).

Tecnologias de vação e reprodução de informações multi-


mídia (e.g., filmes, música), pois a densidade
armazenamento de dados armazenados é muito maior, além
da qualidade superior das reproduções. Por
de informações fim, representado por pen drives, cartões de
memória e os SSDs (do inglês, Solid state
A informação sempre foi importante para a drives), o armazenamento eletrônico é a tec-
sobrevivência do ser humano e, portanto, a nologia mais recentemente difundida deste
memória escrita serviu como um fator deter- campo e possui a vantagem de acesso rápido
minante para o progresso cultural da socie- à informação.
dade. Atualmente, a informação não consiste
Embora estas tecnologias sejam atuais e con-
apenas em textos, mas também em imagens,
tinuem em constante aprimoramento, todas
vídeos, áudios e softwares complexos. Por-
já estão atingindo seus limites de densidade
tanto, considerando tais mudanças e a eleva-
de dados (bits para cada unidade de volume
da produção de dados, tornou-se necessária Bits: Um bit (do inglês, Binary
físico), uma vez que estamos produzindo
a criação dos diferentes meios de armazena- Digit) consiste em uma unidade
mais informações do que podemos arma- binária, correspondendo à
mento: os meios (i) magnético, (ii) óptico e
zenar. Além disso, o tempo de vida útil de menor parcela de informação
(iii) eletrônico. computacional, assumindo
discos rígidos pode chegar até a 30 anos se
armazenados em condições controladas, i.e., somente 2 valores (0 ou 1).
O formato mais comum e seguro de arma-
zenamento de informações é o magnético, inúmeros refrigeradores para a manutenção
sendo representado pela fita magnética, pe- da temperatura. Por fim, cada um destes dis-
los disquetes e pelo atual disco rígido (HD). positivos requer diferentes leitores, os quais
Já o armazenamento por meio óptico, como são rapidamente substituídos devido à alta
CDs e DVDs, foram muito úteis para a gra- obsolescência destas tecnologias. Por exem-

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plo, embora os disquetes tenham sido muito interferência - ocorre quando a bactéria é
utilizados nos anos 1990, nenhum dos com- infectada novamente pelo bacteriófago e a
putadores atuais possui leitores para este tipo enzima Cas9 forma um complexo ribonu- Complexos
de dispositivo – inclusive muitos notebooks já cleoproteico com o crRNA que reconhece ribonucleoproteicos:
não apresentam leitores de CD e DVD. e, por fim, destrói a sequência genética viral. Agregados formados por RNA e
proteínas.
Quando o código genético foi reportado pela O entendimento do sistema biológico CRIS-
primeira vez como uma possível forma de PR-Cas abriu portas para o uso de uma ma-
criptografia, a comunidade científica e em- quinaria no desenvolvimento de ferramentas
presas de tecnologia voltaram os olhos para biotecnológicas com aplicações na medici-
uma iminente solução aos problemas das tec- na, na agricultura, na indústria e na ciência
nologias atuais de armazenamento de dados. básica. Devido às profundas implicações da
Afinal, se era possível escrever mensagens de técnica de CRISPR-Cas na sociedade, as
texto em moléculas de DNA, por que não pesquisadoras Emmanuelle Charpentier e
seria possível a inserção de dados cada vez Jennifer A. Doudna foram laureadas ao Prê-
mais robustos? Para isso, assim como apren- mio Nobel de Química em 2020 pelo desen-
demos a traduzir textos de um idioma para volvimento desta tecnologia. Dentre tantas
outro em uma folha de papel, é necessário possibilidades para o uso do sistema CRIS-
aprendermos como traduzir os dados com- PR-Cas, uma nova aplicação tecnológica foi
plexos em código genético e escrevê-los em recentemente reportada: o DNA recording.
um DNA. De forma intrigante, as bactérias
serão as nossas professoras.
2. DNA recording
1.1 CRISPR por CRISPR
O DNA recording consiste no armazena-
Desde os primórdios, em meio às guerras mento de informações específicas (digitais
contra bacteriófagos, as bactérias reescreve- ou não) em ácidos nucleicos. Em linhas ge-
ram os seus próprios genomas como uma es- rais, de acordo com Shipman et al. (2017),
tratégia de defesa. Em alguns genomas pro- o processo se resume a três etapas centrais:
carióticos existem lócus (regiões) compostos (i) escrita, (ii) armazenamento e (iii) leitura
por sequências nucleotídicas repetidas que (Figura 2).
se intercalam com sequências espaçadoras. Bacteriófagos: Vírus que
Estes lócus são conhecidos como CRISPR infectam bactérias.
(Repetições Palindrômicas Curtas Agrupa- 2.1 Princípios
das e Regularmente Interespaçadas) e, junto moleculares
a um conjunto de genes Cas (genes associa-
dos às CRISPR), formam um sistema imune Inicialmente, a escrita é feita a partir da co-
Pixel: Aglutinação das palavras
adaptativo de procariotos, o qual se resume dificação da informação digital (em código em inglês, Picture e Element.
em três etapas: (i) adaptação, (ii) biogênese binário) em sequências de nucleotídeos (có- Consiste no menor elemento de
do crRNA e (iii) interferência. digo genético). Ao supor que estamos traba- uma imagem digital, composto
lhando com uma imagem a ser codificada, por 3 pontos (verde, vermelho
A etapa de adaptação ocorre quando uma precisamos traduzir a informação de cada e azul), os quais formam
combinações que definem
bactéria é infectada pela primeira vez por pixel em código genético. Para isto, Shipman 256 tonalidades diferentes
um bacteriófago e o complexo enzimático e seus colaboradores (2017) estabeleceram quando oito bits são usados
Cas1-Cas2 cliva o material genético viral em um dicionário atribuindo valores binários a para a informação de cada cor
pequenos fragmentos (~32 nt), subsequen- cada base nucleotídica (i.e., C = 00, T = 01, primária.
temente integrando-os no lócus de CRISPR A = 10 e G = 11) e, em seguida, sintetiza-
como sequências espaçadoras. Em seguida, ram uma cadeia de DNA com 28 nucleotí-
a transcrição deste lócus composto por se- deos (denominados de oligonucleotídeos)
quências virais leva à biogênese do crRNA Oligonucleotídeos: polímeros
que codificam 9 pixels, cada um codificado curtos de ácidos nucleicos,
(RNA derivado de CRISPR), que consiste por uma trinca de bases (Figura 2A). Desta geralmente contendo entre seis
em pequenas moléculas de RNA corres- forma, a informação binária de cada conjun- e trinta nucleotídeos.
pondentes aos espaçadores. A etapa final – to de 9 pixels da imagem foi traduzida em

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um oligonucleotídeo diferente, cada um es- ao genoma da bactéria, de maneira similar ao


pecificado com um código de barras – uma mecanismo de adaptação a infecções virais
pequena sequência inicial de quatro nucleo- (Figura 2B).
tídeos, chamada de “pixet”.
Por fim, após o crescimento das bactérias,
A próxima etapa – armazenamento – con- já se torna possível a leitura da informação
siste em guardar estas moléculas em tubos de armazenada. Utilizando a técnica de PCR,
ensaio (in vitro) ou em células (in vivo). Em os arranjos de CRISPR devem ser ampli-
especial, é na abordagem de armazenamento ficados e, posteriormente, submetidos ao
in vivo que o sistema imune procariótico – sequenciamento. Os resultados do sequen-
CRISPR – apresenta-se como um protago- ciamento são filtrados por uma série de
nista. Neste sentido, os oligonucleotídeos são algoritmos, incluindo o isolamento dos es-
administrados em uma população de bacté- paçadores recém adquiridos pelas bactérias
rias que apresentam o lócus CRISPR em (Figura 2C). Por fim, a decodificação dos
seus genomas e superexpressam o complexo oligonucleotídeos novamente à linguagem
enzimático Cas1-Cas2. Como espaçadores, computacional possibilita a reprodução da
estas sequências exógenas são incorporadas informação original.

Figura 2.
Esquema do processo de DNA
recording por CRISPR. Em
A, conjuntos de pixels de uma
imagem são geneticamente
codificados e sintetizados em
oligonucleotídeos. Em B, as
moléculas são introduzidas
na célula bacteriana, cujo
sistema CRISPR trabalha
na incorporação das
oligonucleotídeos no genoma.
Em C, o DNA bacteriano é
sequenciado e decodificado em
linguagem computacional para
a reconstrução da informação
armazenada. Elementos gráficos
da Noun Project: DNA – Olivia;
Vectors Market (CC BY 2.0).

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Aplicações mações (215 petabytes para cada 1 grama


de material genético), em que 1 grama de
Petabytes: Um byte consiste
em um conjunto de 8 bits. Um
DNA é capaz de armazenar cerca de 215 pe- petabyte consiste em 1015
CRISPR não se limita apenas ao armazena-
tabytes; a elevada durabilidade (de séculos bytes ou 1.000 terabytes.
mento de informações estáticas, como textos
a milênios), visto que é possível recuperar in-
e imagens, no DNA. De maneira similar ao
formações genéticas de fósseis e/ou micror-
exemplo anterior, Shipman et al. (2017) tam-
ganismos preservados em geleiras; a alta re-
bém executaram o armazenamento de um
sistência a condições ambientais extremas,
GIF adaptado de “O Cavalo em Movimento”
considerando o uso da bactéria Deinococcus
por Eadweard Muybridge (1878), que con-
radiodurans como uma proteção biológica,
siste em uma sequência de 5 fotografias. Por
devido à sua capacidade de tolerar desseca-
conta de ser uma informação dinâmica, cada
ção, altas temperaturas, luz ultravioleta e do-
quadro do GIF foi codificado em um con-
ses de radiação ionizante mil vezes maiores
junto de 104 oligonucleotídeos espaçadores.
do que a tolerada por seres humanos; a faci-
Assim, cada célula bacteriana foi capaz de
lidade de replicação, uma vez que a técnica
armazenar um conteúdo de 2.6 quilobytes
de PCR pode criar milhões de cópias de uma
(veja mais em: https://www.youtube.com/
determinada informação em poucas horas;
watch?v=yWqlwYjpc1A ).
por último, a baixa obsolescência, visto que,
Um fato curioso é que, conforme as molé- em cerca de 4 bilhões de anos de vida na Ter-
culas exógenas de DNA são introduzidas à ra, o DNA é a forma mais dispersa e antiga
célula bacteriana, estas são integradas como de armazenamento de informações.
Transcriptase reversa:
espaçadores no lócus CRISPR de maneira
Entretanto, a tecnologia de DNA recording Enzima que realiza o processo
sequencial, como um registro cronológico de síntese de um DNA
ainda é recente, pouco investigada e requer
de eventos biológicos. Desta forma, DNA complementar (cDNA) a partir
aperfeiçoamentos. Enquanto isso, alguns fa- de um molde de RNA. Este
recording por CRISPR também possibilita o
tores ainda inviabilizam seu uso comercial e processo é conhecido como
monitoramento de atividades biológicas. Em
em larga escala, como: o custo da síntese e do transcrição reversa pois é
um estudo recente, um plasmídeo responsivo feito em sentido contrário à
sequenciamento de DNA ainda é altamente
a estímulos foi introduzido na bactéria Fusi- transcrição de DNA para RNA.
elevado, de tal forma que o armazenamento
catenibacter saccharivorans, que naturalmen-
de 1 MB (megabyte) no DNA custaria em
te apresenta a expressão do complexo Cas-
torno de 3.500 dólares; o ruído gerado pelas
1-Cas2 fusionado à enzima transcriptase
imperfeições na síntese de DNA e pelos er-
reversa (TR). Conforme a bactéria sofre um
ros de sequenciamento; o acesso direciona-
determinado estímulo, a transcrição do plas-
do a uma determinada informação no DNA
mídeo exógeno é desencadeada. Subsequen-
ainda é prejudicado, devido à necessidade de
temente, as moléculas de RNA produzidas
uma nominalização para cada informação
são reversamente transcritas em DNA pela
dentro de um imenso conjunto de dados;
TR e, por fim, integradas ao genoma bacte-
por fim, o desempenho da tecnologia ainda
riano pelo complexo Cas1-Cas2. Assim, os
é muito baixo, uma vez que a velocidade de
pesquisadores reportaram a tecnologia ba-
síntese química/enzimática de DNA é mui-
seada em CRISPR, Record-seq, como uma
to inferior à velocidade de armazenamento
ferramenta promissora para o monitoramen-
de dados em dispositivos eletrônicos.
to transcricional in vivo.

3. Vantagens e 4. Perspectivas
desvantagens A quantidade de informação gerada nos últi-
mos anos tem crescido descontroladamente,
Como uma iminente solução para os pro- excedendo os limites físicos para o seu ar-
blemas atuais de armazenamento de dados mazenamento. O advento da tecnologia de
em dispositivos magnéticos, ópticos e eletrô- DNA recording, que utiliza ácidos nucleicos
nicos, o DNA apresenta propriedades alta- para o armazenamento de dados, abre portas
mente relevantes: a alta densidade de infor- para a resolução deste importante problema,

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CONCEITOS EM GENÉTICA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Zettabytes: Unidade de
possibilitando o armazenamento de toda
a informação estimada a ser produzida até Para saber mais medida equivalente a 1021 bytes
ou 109 terabytes.
2025 (175 zettabytes) em uma única sala. CAMPBELL, Mark. DNA data storage: automated
Entretanto, o importante gargalo da perfor- DNA synthesis and sequencing are key to un-
mance de síntese e sequenciamento de DNA locking virtually unlimited data storage. Comput-
ainda precisa ser resolvido. Para isso, a au- er, v. 53, n. 4, p. 63-67, 2020.
tomação do armazenamento de dados em DE CARLI, Gabriel J. et al. A revolucionária técnica
DNA é um dos focos principais do DNA de edição genética “CRISPR”. Genética na escola,
Data Storage Alliance, um grupo formado por v. 12, n. 2, 114-123.
mais de dez organizações importantes, como SHIPMAN, Seth L. et al. CRISPR–Cas encoding of
a Microsoft e a Universidade de Washing- a digital movie into the genomes of a population
ton. Assim, nos próximos anos, os avanços of living bacteria. Nature, v. 547, n. 7663, p. 345-
destes grupos poderão viabilizar o uso de 349, 2017.
DNA como uma solução para lacunas atuais CC BY 2.0: https://creativecommons.org/licenses/
das tecnologias de armazenamento de dados. by/2.0/br/

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GENÉTICA E SOCIEDADE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A genética
por trás da oitava
praga do Egito
Victor Campos Khuriyeh1, Letícia Grillo G. Pereira1, Lucas Costa Silva1,
Yanca Tonhasca Lau1, Matheus Salustio C. Petrucci1, Lúcia Elvira Alvares2
1
Graduandos do Instituto de Biologia (IB), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
2
Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, SP
Autor para correspondência - lealvare@unicamp.br

Palavras-chave: gafanhotos migratórios, gregarização, polifenismo, gene drive

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GENÉTICA E SOCIEDADE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Os gafanhotos são insetos de grande relevância ecológica, pois estão na base da cadeia alimen-
tar de vários ecossistemas. Contudo, em certas condições, podem desenvolver comportamen-
to gregário, formando enxames que geram prejuízos econômicos e sociais, visto que muitas
vezes atingem áreas de produção agrícola, principalmente em regiões acometidas por pobreza
extrema. A partir desse cenário, surge a necessidade de alternativas que controlem esses enxa-
mes, mas que não gerem danos ecológicos, dada a importância dos gafanhotos. Neste artigo,
o gene drive é apresentado como uma possível alternativa ao combate dos gafanhotos, mas que
ainda deve permanecer no âmbito das pesquisas científicas até que seja possível aplicá-lo com
segurança em populações naturais.

As nuvens de quadrados, abrangendo 60 países, da África


ao Caribe, isto é, cruzando o oceano Atlân-
gafanhotos são tico, o que causou um prejuízo de bilhões de
dólares. No México, em 2006, os enxames
uma novidade? causaram grande comoção pois chegaram a
uma região que havia sido afetada pelo fura-
Em 2020, notícias acerca de uma nuvem de cão Wilma, trazendo ainda mais danos eco-
gafanhotos na América do Sul, prestes a en- nômicos e sociais à população local. Nos anos
trar no Brasil, chocaram nossa população. O de 2019 e 2020, o leste africano foi afetado
fato que chamou a atenção de tantas pessoas, pelo que os especialistas chamam de “maior
na realidade, não é tão novidade assim. Os invasão de gafanhotos das últimas décadas”,
enxames de gafanhotos afetam a humani- na qual se estima a possibilidade de enxames
dade desde os primórdios da agricultura e com dezenas de bilhões de gafanhotos. Esse
sempre causaram prejuízos socioeconômi- fato é extremamente preocupante, pois uma
cos, relacionados aos recursos alimentares. população de insetos com cerca de 40 mi-
Há citações de que nuvens de gafanhotos lhões de indivíduos come, em um único dia, o
dizimaram colheitas no Egito (Figura 1), nos mesmo que 35 mil humanos. Na região atin-
tempos bíblicos, em 1400 a.C., conforme o gida, milhões de pessoas já passam fome e os
relato do livro de Êxodo, no verso 15 do ca- gafanhotos tornaram a situação muito mais
pítulo 10: difícil. Esse problema não acometeu somente
o continente africano nos últimos anos, mas
“Eles cobriram a face de toda a terra, de também a América do Sul. A Argentina e o
modo que a terra ficou escura e comeram Uruguai relataram problemas com nuvens de
todas as plantas da terra e todo o fruto das gafanhotos, que ameaçavam chegar ao Brasil.
árvores que o granizo havia deixado. Não
restou coisa verde, nem árvore nem planta Com a recorrência desse comportamento
do campo, por toda a terra do Egito”. gregário dos gafanhotos, muito se estuda
sobre maneiras de evitar que essas nuvens se
Desde então, vários episódios semelhantes formem e provoquem tantos prejuízos nos
ocorreram ao longo da história, em diferen- lugares pelos quais passam. Conhecer os me-
tes lugares ao redor do planeta. Por exemplo, canismos genéticos associados à indução do
nos EUA em 1874, uma nuvem de gafanho- comportamento gregário desses insetos é um
tos causou uma perda de 200 milhões de passo importante para o desenvolvimento
dólares nas colheitas. Em outro episódio, em de estratégias de controle dos enxames, para
1988, enxames de gafanhotos cobriram uma evitar que situações como as descritas neste
área de cerca de 29 milhões de quilômetros tópico voltem a ocorrer no futuro.

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GENÉTICA E SOCIEDADE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 1.
Ilustração representando a
oitava praga do Egito antigo,
causada por uma invasão de
Vida e vimento holometábolo, existem, entre o ovo
e o adulto, as fases de larva e pupa, que são
gafanhotos, conforme relatado
na Bíblia. Ilustração elaborada
comportamento bem diferentes da forma adulta. por: Isadora Maria Pace.

Embora existam cerca de 10.000 espécies


Os gafanhotos são insetos com desenvolvi- conhecidas de gafanhotos, apenas algumas
mento hemimetábolo, ou seja, o seu desen- delas têm afligido a humanidade ao longo
volvimento inclui três estágios diferentes: o dos milênios. A espécie que se aproximou do
ovo, a ninfa e o adulto ou imago (Figura 2). Brasil em 2020 é uma das 50 pertencentes
A ninfa, que é a forma jovem do gafanho- ao gênero Schistocerca. Além do gafanhoto da
to, tem um exoesqueleto fino e já se parece América do Sul (Schistocerca cancellata), esse
com o adulto, mas ainda não apresenta asas gênero inclui o gafanhoto da América Cen-
ou órgãos reprodutivos funcionais. Mesmo tral (S. piceifrons) e o gafanhoto do deserto
sendo semelhante ao adulto, a ninfa não é (S. gregaria), este último considerado a maior
sexualmente madura, precisando passar por ameaça migratória do planeta. Há uma quar-
sucessivas mudas até se tornar um adulto ta espécie, S. interrita, que no passado causou
propriamente dito. Por essa razão, diz-se problemas no Peru, mas não se sabe muito
que esses insetos apresentam metamorfose sobre sua biologia. As demais espécies do gê-
incompleta. Na metamorfose completa, que nero Schistocerca são gafanhotos sedentários
ocorre em espécies de insetos com desenvol- que não enxameiam.

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Há ainda outras espécies de gafanhotos mi- estudada como um organismo modelo para
gratórios, como Locusta migratoria, encontra- compreender como mudanças na morfolo-
da na Europa meridional e na África, que é gia, no comportamento e na fisiologia dos
uma das principais pragas agrícolas do con- gafanhotos ocorrem na transição da fase so-
tinente africano. A L. migratoria vem sendo litária para a gregária.

Figura 2.
Ciclo de vida dos
gafanhotos, que apresentam
desenvolvimento
hemimetábolo. Neste tipo de
desenvolvimento, não existem
larvas ou pupas, sendo que as
ninfas representam os estágios
imaturos. Imagem criada com
BioRender.com.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 20


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Polifenismo - estímulos ambientais são chamadas de poli-


fenismo de fase.
mudanças radicais Dentre as mudanças que caracterizam o po-

no corpo e no lifenismo de fase, as principais e mais eluci-


dadas são as de coloração e comportamento.
comportamento A maioria dos gafanhotos migratórios apre-
senta mudanças de coloração, por exemplo,
dos gafanhotos de um marrom-acinzentado para uma colo-
ração mais vistosa, como o amarelo (Figura
Quando adultos, os gafanhotos passam 3). Esse padrão de cores em gafanhotos gre-
grande parte da vida isolados, na chamada gários possivelmente está associado a uma
“fase solitária”. Porém, sob determinadas estratégia antipredatória, na qual o desta-
condições ecológicas e ambientais, com que do organismo tem a finalidade de sina-
alterações na temperatura, na pluviosida- lizar ao predador a presença de toxinas ou
de e na disponibilidade de alimentos, os sabor desagradável ao paladar. Há estudos
gafanhotos podem desenvolver o compor- que associam as cores escuras dos gafanho-
tamento gregário, típico dos gafanhotos tos gregários a um fator hormonal presente
migratórios. Os fenótipos dos gafanhotos no cérebro e em estruturas cardíacas, cha-
solitários e gregários são completamente di- mado de [His7]-corazonina, um peptídeo
ferentes, tanto nos aspectos físicos quanto que está associado ao escurecimento de ou-
comportamentais. As mudanças extremas tros insetos da ordem Orthoptera, à qual os
que ocorrem nesses insetos em resposta aos gafanhotos pertencem.

Figura 3.
Variação de coloração das
ninfas de gafanhotos da espécie
Schistocerca gregaria. Assim
como as ninfas, os gafanhotos
adultos apresentam colorações
distintas. Enquanto a forma
solitária possui coloração
discreta, que se confunde com
o meio ambiente, a gregária
apresenta coloração vistosa,
facilmente discernível no seu
entorno. Na parte superior, foi
ilustrada uma ninfa da forma
solitária desta espécie de
gafanhotos e, na parte inferior,
uma ninfa gregária. Ilustração
elaborada por: Vitória Reis.

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Já em relação às mudanças comportamen- disponibilidade de alimento - gafanhotos são


tais, existem dois estímulos para elas: o me- capazes de multiplicar em até vinte vezes sua
cânico, que ocorre quando as patas traseiras população em apenas três meses, fazendo
desses insetos são empurradas por outros que uma grande quantidade de insetos ocu-
gafanhotos na disputa por espaço, e o quí- pe o mesmo ambiente. Assim, eles se tornam
mico, quando gafanhotos sentem o odor de criaturas gregárias, formando os grandes en-
outros gafanhotos próximos por muito tem- xames devastadores de plantações e que po-
po. Em laboratório, utilizando pinceis por dem causar tantos problemas às populações
duas horas, pesquisadores reproduziram os humanas.
empurrões que ocorrem nos enxames, es-
timulando as patas traseiras de gafanhotos
solitários. Com isso, puderam observar o
A genética como
desenvolvimento de comportamento gregá-
rio, concomitante com a elevação dos níveis
uma solução
de serotonina no sistema nervoso dos gafa-
nhotos. A serotonina é um importante neu-
promissora
rotransmissor, que regula a interação e per- Dada a importância ecológica dos gafanho-
cepção dos animais com o meio ambiente. tos, os quais são, por exemplo, alimento para
No ser humano, por exemplo, baixos níveis anfíbios, répteis e aves, a erradicação comple-
de serotonina estão associados à depressão. ta desses insetos pode causar prejuízos aos
Nos gafanhotos, os pesquisadores observa- ecossistemas dos quais fazem parte. Por isso,
ram que não basta um aumento generalizado é importante a busca por métodos de con-
dos níveis de serotonina para induzir o com- trole que não afetem processos essenciais
portamento gregário, mas sim que a elevação para o seu ciclo de vida, mas que impeçam a
da expressão desse hormônio deve ocorrer gregarização dos indivíduos e a formação de
especificamente nos gânglios nervosos torá- enxames numerosos.
cicos desses insetos. Uma proposta e uma possível ferramenta
para o controle da gregarização dos gafa-
Como ocorre o nhotos é o gene drive. Esta tecnologia foi

drástico aumento criada pelos cientistas como uma estratégia


genética engenhosa para modificar caracte-

populacional rísticas não apenas de um indivíduo, mas


de uma população ou até mesmo de uma
dos gafanhotos espécie inteira. O princípio desta técnica é
impulsionar a distribuição de um gene de
migratórios? interesse, aumentando sua proporção nos
gametas de uma dada espécie (Figura 4).
Os gafanhotos buscam por solos úmidos e Assim, enquanto na reprodução sexuada
arenosos para realizar a deposição de seus normal um alelo que determina uma carac-
ovos. Outro pré-requisito para sua reprodu- terística de interesse tem 50% de chance de
ção é a proximidade com fontes de alimento - estar presente em um gameta, utilizando-se
como vegetações - para que as ninfas possam o gene drive esse alelo é “conduzido” para to-
se alimentar até desenvolver a habilidade de dos os gametas de um indivíduo, o que faz
voo, quando se tornam, então, aptas à procu- com que todos os seus descendentes tenham
ra de alimento em locais mais distantes. esse alelo. Por esse motivo, a aplicação do
gene drive só é possível em organismos de re-
Os gafanhotos geralmente dispersam após o produção sexuada e, quanto mais rápido for
nascimento, guardando uma certa distância o ciclo reprodutivo da espécie, mais rápida
uns dos outros. Contudo, sabe-se que em será a distribuição de um alelo de interesse
certas circunstâncias - muita chuva e grande na população e na espécie.

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O gene drive requer a conexão do gene de in- forma, o gene drive permite que uma caracte-
teresse (alelo mutante) a elementos genéticos rística artificial, projetada em laboratório, se
capazes de fazer uma cópia de si mesmos e do espalhe por toda a população de uma dada
alelo de interesse conectado, além de inserir espécie, até o ponto em que a característica
ambos no mesmo lócus do cromossomo ho- torne-se comum em toda a população e, com
mólogo (Figura 4). Os elementos genéticos o decorrer do tempo, até mesmo em toda a
usados para “carregar” os genes de interesse espécie. Tem-se então que esses elementos
podem ser endonucleases que ocorrem na- genéticos conseguem “burlar” as regras da
turalmente no genoma de diferentes espécies seleção natural e da herança mendeliana,
ou, então, sequências preparadas por enge- aumentando em frequência a cada geração,
nharia genética em laboratório, como aquelas mesmo sem conferir aos indivíduos uma
do sistema CRISPR/Cas9 (Figura 4). Dessa vantagem adaptativa.

Box explicativo
Por muitos anos, apesar dos pesquisadores visualizarem diversas aplicações para o gene dri-
ve, tiveram dificuldades de desenvolvê-las em laboratório. O sistema CRISPR/Cas9 é uma
técnica revolucionária, que ajudou a reduzir esses obstáculos. O sistema em questão consiste
no uso de uma endonuclease (Cas9), uma enzima natural que cliva (corta o DNA), em con-
junto com uma molécula de RNA cuja função é atuar como um guia (RNA guia, sintetizado
em laboratório). O guia “mostra” à endonuclease qual a sequência específica do DNA que
deve ser cortada, permitindo que regiões de interesse no DNA sejam modificadas, removidas
ou adicionadas no local onde houve a quebra do DNA. No caso do gene drive mediado pelo
sistema CRISPR/Cas9, as sequências do alelo mutante e da enzima Cas9 são fornecidas às
células do organismo a ser modificado geneticamente, para que elas as utilizem para fazer
uma cópia dos mesmos durante o reparo do DNA danificado, através do processo conhecido
como “reparo dirigido por homologia”. Nesse processo, tanto o alelo mutante como a própria
Cas9 são inseridos no local determinado pelo RNA guia. Portanto, através desse sistema, é
possível implementar, com mais sucesso, o gene drive para edição do genoma de diferentes
espécies. Uma vez no DNA, por si só, o gene drive é capaz de espalhar-se por toda uma po-
pulação de organismos.

Genes envolvidos de plantações e poderiam inclusive levar à


extinção de espécies inteiras de gafanhoto.
na gregarização Populações de gafanhotos poderiam ser eli-
minadas e, com elas, suas funções ecológicas
como potenciais benéficas aos ecossistemas nos quais elas es-
tão inseridas. Além disso, em termos éticos,
alvos para o até que ponto o ser humano pode interferir
na natureza? Quando se trata de reduzir
gene drive populações de espécies ou mudar caracte-
rísticas das mesmas, as consequências evo-
Quais seriam, então, possíveis genes-alvo a lutivas e ecológicas podem ser imprevisíveis
serem modificados com o gene drive nos ga- e, portanto, deve-se ter muita cautela antes
fanhotos migratórios? Como foi destacado, de colocar em prática uma ideia que se teve
afetar um gene essencial à fisiologia desses na bancada do laboratório e introduzi-la na
insetos teria impactos que iriam além de natureza de modo indevido e inconsequente.
evitar a formação de nuvens destruidoras

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Isso posto, os gene drives poderiam ser pro- solitários teriam a sobrevivência assegurada e,
duzidos com foco naqueles genes que são ne- mesmo sob influência das mudanças ambien-
cessários na mudança da fase solitária para a tais que são gatilhos para a troca de fenótipo,
fase gregária, ou na manutenção das caracte- não chegariam a assumir as características
rísticas gregárias. Dessa forma, os gafanhotos gregárias, ou não conseguiriam mantê-las.

Figura 4.
Comparação da distribuição
de um alelo mutante, criado
em laboratório, por meio da
Estudos realizados na espécie Locusta mi- sência desse fator hormonal também impede
herança Mendeliana normal (à
gratoria revelaram que a expressão de genes mudanças morfológicas no corpo dos gafa- esquerda) e utilizando o gene
envolvidos no controle do voo de longa dis- nhotos associadas à gregarização e, portanto, drive (à direita). Por meio da
tância e no comportamento alimentar desses o gene Crz também é um candidato possível reprodução sexuada normal, um
gafanhotos é modificada durante a transição ao gene drive. alelo mutante tem apenas 50%
de chance de ser herdado. Em
da fase solitária para a fase gregária. Por- contraste, com o gene drive, o
tanto, tais genes são potenciais alvos para O olfato também é um fator importante
alelo mutante é copiado para o
modificações, visando impedir ou diminuir na gregarização, pois permite que os gafa- mesmo lócus no cromossomo
o processo de gregarização. Um outro es- nhotos sintam os demais indivíduos de sua homólogo, de maneira que
tudo mostrou que o silenciamento do gene espécie nas proximidades e realizem uma todos os descendentes
comunicação química, através, por exemplo, sempre irão herdá-lo. Embora
Corazonina (Crz), que codifica o hormônio outras estratégias possam ser
peptídico [His7]-corazonina, afeta a colora- de feromônios de gregarização. Nesse con-
empregadas para impulsionar
ção característica da fase gregária em Schis- texto, as proteínas ligantes a odores (OBP o alelo mutante na população,
tocerca gregaria, causando um clareamento - odorant-binding proteins) são importantes, o sistema CRISPR/Cas9 é uma
que se aproxima do padrão da fase solitária. pois solubilizam e transportam sinais quí- das possibilidades mais viáveis.
micos, incluindo odores e feromônios, até os Nesse caso, o drive contém
O hormônio é expresso no cérebro, gânglios os componentes detalhados
nervosos e na região cardíaca dos gafanhotos, receptores olfativos dos gafanhotos. O gene no Box 1. Imagem criada com
e se mostrou muito importante no polifenis- LmigOBP4, que codifica uma dessas proteí- BioRender.com.
mo de fase, estando presente em quantidades nas, parece ser um possível alvo para o gene
muito maiores durante a fase gregária. A au- drive, pois, quando ele é silenciado durante

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a fase gregária, reduz-se a atração entre os propagação de um gene mutante deletério


gafanhotos e a duração e distância de sua para espécies próximas àquela para a qual o
movimentação. Já nos gafanhotos solitários, drive foi desenhado, impactando ecossiste-
o silenciamento desse gene não afeta essas mas inteiros de forma inesperada. Portanto,
variáveis. apesar de instigante, a aplicação do gene drive
deverá permanecer por muitos anos limitada
Pelas razões mencionadas anteriormente, ao ambiente laboratorial, onde há mecanis-
é necessário pesquisar a fundo a função de mos de controle e segurança para impedir a
cada gene, investigando todos os processos disseminação de mutações de forma irrefrea-
e estruturas que eles influenciam. Somente da na natureza.
dessa forma é possível aumentar as chances
de que apenas as características desejadas se-
jam influenciadas pela técnica do gene drive Para saber mais
e, assim, evitar a ocorrência de efeitos cola- CHAMPER J.; BUCHMAN A.; AKBARI O. S.
terais ecológicos e evolutivos. Além disso, Cheating evolution: engineering gene drives to
não necessariamente o mesmo alvo será útil manipulate the fate of wild populations. Nat Rev
para todas as espécies de gafanhotos forma- Genet. v. 17, p. 146–159, 2016.
dores de enxames: os genomas, apesar de GILLILAND, C. H. Gigantescos enxames de ga-
serem semelhantes, apresentam diferenças e, fanhotos invadem a África Oriental novamen-
portanto, os resultados do gene drive podem te. National geographic, 2020. Disponível em:
<https://www.nationalgeographicbrasil.com/
divergir. Dessa maneira, possivelmente será
cultura/2020/05/gigantescos-enxames-de-gafa-
necessário selecionar o gene-alvo para inati- nhotos-invadem-a-africa-oriental-novamente>.
vação pelo gene drive de acordo com a espécie Acesso em: 20 de Julho de 2020.
que aflige cada região.
WANG X.; FANG X.; YANG P.; JIANG X. et al.
Por fim, é importante enfatizar que o gene The locust genome provides insight into swarm
formation and long-distance flight. Nat Commun.
drive pode ter efeitos inesperados, como a 2014; 5:2957. doi: 10.1038/ncomms3957.

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Modelos animais no
estudo de doenças
genéticas humanas
Felipe Tadeu Galante Rocha de Vasconcelos1*, Laura Machado Lara Carvalho1*,
Lucas Santos e Souza1*, Igor Neves Barbosa2*, Carolini Kaid Dávila3,
Mayana Zatz3, Mariz Vainzof3
1
Doutorando(a) do Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas (Biologia-Genética), Departamento de Genética e
Biologia Evolutiva, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, SP
2
Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Biológicas (Biologia-Genética), Departamento de Genética e
Biologia Evolutiva, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, SP
3
Pesquisadora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco,
Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, SP
*
Felipe, Laura, Lucas e Igor contribuíram igualmente para o artigo.
Autor para correspondência - mvainzof@usp.br

Palavras-chave: modelos animais, genética humana, doenças genéticas, zebrafish, camundongo, cão, 3R’s

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Modelos animais são espécies não humanas que têm sido utilizadas em inúmeras pesqui-
sas científicas, permitindo a compreensão do funcionamento de organismos vivos complexos,
além do desenvolvimento de tecnologias aplicadas à saúde humana, como medicamentos, so-
ros e vacinas. Esses modelos são utilizados na mimetização de doenças, na expectativa de se
poder posteriormente utilizar o conhecimento gerado em humanos. Nesta leitura você pode-
rá conhecer alguns dos principais modelos utilizados em experimentação, implicações éticas e
legais do seu uso, além de exemplos de aplicações que contribuíram significativamente para a
sociedade, principalmente no campo da genética humana.

Farmacologia - ciência
que estuda como diferentes
substâncias, os fármacos,
interagem com o organismo e
que resposta desencadeiam.

Por que utilizar tender como estão relacionados às doenças e a


outras características fenotípicas. A partir da
Biologia molecular - ciência
que busca compreender a

animais para
estrutura e o funcionamento
década de 1980, com o aperfeiçoamento das
de moléculas biológicas, em
tecnologias de biologia molecular e edição especial as que constituem o
estudar doenças gênica, houve uma explosão nas possibilida-
des de manipulação genética de animais mo-
material genético.

humanas? delo. Assim, pode-se, por exemplo, silenciar


um gene específico e verificar o efeito resul-
Edição gênica - alteração
artificial de sequência de DNA
em organismo vivo.
Ao longo da história, os estudos com ani- tante em escala molecular e fisiológica, como Gene candidato - considera-
mais permitiram melhor compreensão de também observar as características visíveis se como candidato um gene
aspectos de fisiologia, patologia, farmacolo- a olho nu. Dessa forma, é possível avaliar se para o qual há evidências
gia e genética. Os modelos animais dão aos um gene candidato realmente é causador de preliminares de que possa estar
pesquisadores a possibilidade de experimen- relacionado mecanisticamente
uma doença. No extremo oposto, podemos
à manifestação de determinada
tar em situações controladas e mimetizar aumentar a expressão, ou mesmo adicionar doença ou característica. A
condições biológicas complexas de um ser cópias de um ou mais genes, inclusive genes relação do gene candidato com
vivo, contribuindo para encontrar soluções não pertencentes à espécie, e observar as uma doença é uma hipótese
para questões de saúde humana. A Figura 1 consequências. Outras possibilidades são os que precisa ser confirmada ou
refutada a partir de evidências
apresenta uma linha do tempo com alguns estudos funcionais que investigam os me- experimentais complementares.
exemplos de avanços importantes a partir de canismos fisiopatológicos das doenças, além
estudos com animais no campo das ciências dos testes de novos tratamentos. Estudos funcionais - no
âmbito da genética, são
biomédicas.
Com o advento recente de uma nova técni- estudos que buscam entender
mecanisticamente a relação
Os experimentos com modelos animais con- ca muito eficaz e específica de edição gênica entre genes e seus fenótipos.
tribuem para o conhecimento científico e (CRISPR), aumentou consideravelmente o
CRISPR - técnica de
melhorias na qualidade de vida, através do potencial de se obter resultados promissores edição gênica que mimetiza
desenvolvimento de novos medicamentos e para a sociedade a partir de estudos de doen- mecanismos bacterianos de
vacinas, bem como novas técnicas cirúrgicas ças genéticas humanas utilizando modelos clivagem de DNA. A clivagem é
e protocolos de administração de fármacos. animais. Sobre a técnica de CRISPR, esta seguida de reparo do DNA pela
célula utilizada no experimento,
Praticamente 90% das pesquisas laureadas revista publicou dois artigos esclarecedores o que frequentemente resulta
com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medi- em 2017 (Carli e colaboradores; Souza e Pe- em mutações. A sigla significa
cina utilizaram experimentos com animais. reira), de maneira que você pode consultá-los Repetições Palindrômicas Curtas
para entender melhor os mecanismos mole- Agrupadas e Regularmente
Em genética, costuma-se usar modelos ani- Interespaçadas (do inglês
culares envolvidos e as implicações sociais.
mais para identificar a função de genes e en- Clustered Regularly Interspaced
Short Palindromic Repeats), em
referência ao lócus bacteriano
que desencadeia tal mecanismo
de combate a DNAs exógenos.

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Princípio genético da
transformação - também
chamado de transformação
bacteriana. Por esse processo,
ocorre a captura de pedaços
de DNA do ambiente e
incorporação ao genoma da
bactéria.

Animais knockout - animais


em que ocorreu a inativação ou
deleção de um gene.

Figura 1.
Exemplos de experimentos com
modelos animais que foram
importantes para a humanidade.

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Figura 2.
Monumento ao camundongo de
laboratório, em um parque em
frente ao Instituto de Citologia
e Genética da Academia de
Ciências da Rússia, na cidade
de Novosibirsk. Observa-se
um camundongo tricotando
uma molécula de DNA, que
representa a gratidão da
humanidade pelo animal
que é utilizado em pesquisas
genéticas para entender
mecanismos biológicos e
desenvolver novas drogas e
tratamentos para doenças.
Autora: Irina Gelbukh (2013).
Licença Creative Commons
atribuída.

Apresentaremos a seguir três modelos ani- vimento. Em cerca de três meses, o zebrafish
mais muito utilizados nas pesquisas de atinge a maturidade sexual e cada casal pode
doenças genéticas humanas: o zebrafish, o produzir de 200 a 300 ovos semanalmente.
camundongo e o cão. Outra vantagem é que os embriões são trans-
parentes e se desenvolvem fora do corpo, o
Zebrafish ou que permite a visualização macroscópica
para estudo desse desenvolvimento.
peixe-zebra Não só o desenvolvimento, mas também a fe-
Ortólogo - genes que estão
em espécies diferentes, mas

(Danio rerio) cundação ocorre fora do corpo, fazendo com


que a edição gênica seja metodologicamente
possuem funções semelhantes e
origem evolutiva comum.

O zebrafish, também conhecido no Brasil facilitada. Em contraste, a fecundação e o de-


como paulistinha, é um peixe de água doce senvolvimento de mamíferos ocorrem dentro
que tem origem asiática. do corpo das fêmeas, dificultando sua mani-
pulação. A edição gênica é realizada a partir
À primeira vista, o zebrafish não se parece da injeção em ovos de substâncias necessá-
muito conosco, mas as aparências enganam. rias para modificar parte específica do gene
Cerca de 70% dos genes humanos têm pelo de interesse. Assim, é possível obter animais
menos um ortólogo em zebrafish e, vários com mutação em um gene de interesse, o que
órgãos desse modelo são bastante similares é importante, por exemplo, para desenvolver
aos dos humanos. Isso quer dizer que, se nos um modelo de zebrafish com determinada
perguntarmos para que servem determina- doença, no qual podem ser testados novos
dos genes humanos, muitas vezes estudá-los tratamentos que poderão em longo prazo ser
no modelo zebrafish poderá nos levar a res- aplicados em humanos acometidos pela mes-
postas. Além disso, trata-se de um modelo ma patologia.
relativamente barato e de rápido desenvol-

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Figura 3.
Alguns benefícios da utilização
do zebrafish como modelo
animal.

Outra utilidade é validar genes candidatos induzidas pela metodologia CRISPR cau-
a doenças. Por exemplo, se for observado saram microcefalia em zebrafish e o fenótipo Distrofias musculares - grupo
que alguns recém-nascidos com microcefalia em humanos é correspondente. de doenças caracterizadas por
têm mutação em certo gene, essa causalida- fraqueza progressiva e perda de
O zebrafish tem sido utilizado, por exemplo, massa muscular.
de pode ser verificada em zebrafish. Pode-se
editar o gene candidato no embrião de zebra- em estudos sobre distrofias musculares,
fish para verificar se o peixinho expressará tal obesidade, câncer, albinismo ocular, micro- Albinismo ocular - forma
fenótipo (cabeça pequena) (Figura 4). Por cefalia, fendas orofaciais, doenças hepáticas, de albinismo que leva à
exemplo, mutações nos genes map11 e cdc6 surdez etc. falta de pigmentação da íris,
prejudicando a visão.

Fendas orofaciais -
malformações no palato (céu da
boca) e/ou lábio.

Figura 4.
Microcefalia em zebrafish.

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Roedores custo. As linhagens selvagens de camun-


dongo, por exemplo, têm entre cinco e dez
Linhagens - grupos de
indivíduos de uma espécie
filhotes por ninhada e cada fêmea pode ter cujos organismos apresentam a
O uso de roedores como modelo em pesqui-
até cinco ninhadas ao longo da vida. mesma composição genotípica
sa experimental já data de mais de um século e que geram descendentes
e há muitas razões para isso: disponibilidade, Entre os roedores utilizados estão os camun- com essa mesma composição
facilidade de manuseio e cuidado, alta pro- dongos, ratos, hamsters, porquinhos-da-ín- quando entrecruzados.
lificidade (com gestações que resultam em dia e gerbis. Mas os mais utilizados são ratos Linhagens selvagens - formas
vários filhotes por ninhada), e relativo baixo e camundongos. típicas, como ocorrem na
natureza.

Figura 5.
Benefícios de se utilizar o
camundongo (Mus musculus)
como modelo animal.

As linhagens dos animais de laboratório podem ser divididas em dois grandes grupos:

1. heterogênicas - outbred, não consanguíneas

2. isogênicas - inbred ou consanguíneas

Animais não consanguíneos são os que apresentam na constituição genética uma alta taxa de
heterozigose (~99%), o que faz com que seja mantida uma grande diversidade genética e feno-
típica num grupo de animais.

Um animal isogênico é o produto de pelo menos 20 gerações consecutivas do acasalamento en-


tre irmãos, ou pais e filhos. Utilizando esse tipo de acasalamento, conseguimos obter um índice
de homozigose de 99%, o que torna tais animais os mais semelhantes entre si que se pode obter.

As linhagens isogênicas são de especial interesse para os grupos de pesquisa pois apresentam
um conjunto único de características. Mas, por que isso é interessante? Imagine que se pretende
comparar um grupo de animais em que foi utilizada determinada terapia com um grupo em que
não se utilizou. É importante, nesse caso, que ambos os grupos sejam geneticamente parecidos,
porque variações genéticas poderiam interferir nos resultados do experimento. Ao se comparar
um grupo de animais que teve um gene editado com um grupo não editado, deve-se seguir o
mesmo raciocínio: é importante que os animais que os originaram tenham uma constituição
genética muito próxima pois, do contrário, variantes em outros genes que não o editado podem
interferir fenotipicamente, atrapalhando a análise dos resultados do experimento.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 31


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Doenças neurodegenerativas Doença de Huntington -


- doenças nas quais ocorre doença genética que acomete
perda progressiva da estrutura progressivamente o sistema
e do funcionamento dos nervoso central, causando
neurônios. Existem mais de mil linhagens diferentes de camundongos. E movimentos involuntários,
muitas delas são modelos para doenças humanas como câncer, alterações comportamentais e
doenças neurodegenerativas (como doença de Huntington declínio cognitivo.
e o Alzheimer); neuromusculares (como as distrofias muscu-
Alzheimer - transtorno que Neuromusculares - doenças
causa a deterioração cognitiva e lares); do neurodesenvolvimento (como autismo); imunode- neuromusculares são
da memória, além de alterações ficiências, doenças autoimunes, obesidade, entres outras. aquelas que afetam, direta
comportamentais que ou indiretamente, a função
comprometem a vida diária. Uma outra razão pela qual camundongos são amplamente uti- muscular, isto é, incluem
lizados como modelos em pesquisa experimental é a alta simi- patologias intrínsecas do
laridade com o genoma do ser humano, havendo semelhança músculo e também aquelas do
sistema nervoso que afetam
de aproximadamente 85% nas regiões codificadoras de pro- o comando das contrações
Neurodesenvolvimento teínas. Alguns genes apresentam quase 100% de equivalência. musculares.
- desenvolvimento físico e Além disso, cerca de 80% dos genes desses dois genomas são
psíquico do sistema nervoso.
ortólogos.
Uma linhagem relevante nas pesquisas biomédicas é a nude
(Figura 6). Ela apresenta uma mutação espontânea em ho-
mozigose no gene Foxn1, o que acarreta defeitos na produ- Doenças autoimunes - são
caracterizadas por respostas
ção das células do timo - glândula localizada no tórax que é
imunológicas contra estruturas
responsável pela maturação de células do sistema imune. Em do próprio organismo.
decorrência da ausência do timo, trata-se de um animal imu-
Imunodeprimido - indivíduo
nodeprimido e isso faz com que esse modelo seja amplamente
que tem baixa resposta utilizado para estudar diversos mecanismos, sem interferência
imunológica devido a uma do sistema imune. Além disso, apresenta deficiência na produ-
condição patológica. ção dos pelos, por isso a ausência de pelagem.

Figura 6.
Camundongo nude.

Os pesquisadores aproveitam que os camundogos nude não


apresentam uma boa resposta imunológica para fazer experi-
mentos sobre câncer. É possível inserir um pedaço de tumor
humano no animal, pois o organismo do modelo nude não rea-
ge adequadamente para combatê-lo. Assim, pode-se observar
tanto o desenvolvimento de tumores derivados de pacientes
humanos quanto testar a resposta a diferentes tratamentos.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 32


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Mutações homozigóticas no gene FOXN1 em humanos tam-


bém são muito prejudiciais, causando desde problemas na pele
e alopecia congênita até deficiência do sistema imunológico, o
Alopecia - também chamada Congênita - condição que,
de calvície, é a perda ou
que torna essas pessoas muito suscetíveis a infecções. independentemente da sua
ausência de cabelo. causa, já se apresenta ao
Existem algumas linhagens de camundongos que são utiliza- nascimento.
das para estudar diferentes doenças neuromusculares. Uma
delas é a linhagem Dmdmdx para Distrofia Muscular de Du-
Distrofia Muscular de
chenne, que tem uma mutação espontânea do tipo mutação Duchenne - doença genética
Mutação sem sentido -
sem sentido no gene Dmd murino, o que faz com que não causada por variantes deletérias
variante genética na qual um haja a produção da proteína distrofina no músculo esqueléti- no gene da distrofina. Trata-se
códon que levaria à inclusão co desses animais. Entretanto, diferentemente dos humanos, do tipo mais comum de distrofia
muscular.
de um aminoácido à cadeia nos camundongos Dmdmdx o quadro clínico é muito leve e a
polipeptídica é alterado,
sobrevida é bastante próxima da normal. Nos humanos, a Dis-
passando a sinalizar o término
da tradução, isto é, torna-se trofia Muscular de Duchenne se manifesta em meninos desde
Murino - referente ao grupo
um códon de parada (no RNA: os primeiros anos de vida e se caracteriza pela degeneração Murinae, do qual fazem parte
UAG, UAA ou UGA). muscular progressiva, com perda da força muscular com uma os camundongos.
série de consequências que comprometem a expectativa e a
Distrofina - proteína muscular qualidade de vida.
que liga o citoesqueleto
da célula do músculo a um Além dos modelos espontâneos de camundongo, também os Degeneração - deterioração de
complexo de proteínas de modelos induzidos são muito úteis em pesquisas biomédicas. um tecido ou órgão.
membrana que, por sua vez, Uma das abordagens com esse tipo de modelo é o de valida-
interage com o colágeno
ção de genes candidatos a diversas doenças. Um exemplo é o
extracelular.
autismo, que é uma condição que pode ter origem monogêni-
ca ou multifatorial. Quando se tem um gene candidato para
Multifatorial - diz respeito
a características cujas determinada forma de autismo, pode-se editar esse gene em
manifestações resultam de camundongos e verificar se os animais apresentam caracterís-
interações entre múltiplos ticas semelhantes às dos pacientes humanos. Um dos testes
fatores genéticos e ambientais. que pode ser feito para avaliar o comportamento social dos
camundongos é o chamado teste de sociabilidade três câmaras
(Figura 7). Nele, o camundongo central é observado pelos pes-
quisadores e suas ações são quantificadas. Entre os parâmetros
avaliados, estão o tempo de exploração da gaiola, número de
vezes e tempo gasto na interação com os outros camundongos
etc.

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Teste de sociabilidade três câmaras


Normalmente, os roedores preferem passar mais tempo com
outro roedor e investigam um novo indivíduo mais do que um
familiar (novidade social). Com base nessa tendência, este teste
é útil para avaliar o comportamento social dos animais. Nele, a
gaiola é dividida em três câmaras com aberturas entre elas. Após
a habituação à câmara vazia (a do meio), o animal em análise
encontra outros indivíduos nas outras câmaras. O tempo gasto
cheirando cada animal, o tempo gasto em cada câmara e o número
de entradas são registrados e analisados.

É aplicável, por exemplo, a estudos envolvendo autismo, efeito


de medicamentos na sociabilidade, comportamento parental e
interesse em novidades sociais. Figura 7.
Teste de sociabilidade.

Cão maior que de outros modelos que são mais


utilizados como, por exemplo, camundongos
(Canis lupus e zebrafish.
Potencial translacional -

familiaris) A resposta imune dos cães tem maior simila- potencial de gerar informações
ridade com a do humano do que outros mo- ou ferramentas aplicáveis à
saúde humana.
delos. Além disso, o tamanho maior dos cães
Por que utilizar o melhor amigo do homem
torna-os fisiologicamente mais próximos dos
em pesquisas? Existem pelo menos 450
humanos. Isso contribui, por exemplo, para
doenças que surgem espontaneamente em
mimetizar melhor a biodistribuição de fár-
cães e 80% delas também afetam humanos. Biodistribuição - passagem
macos em um tratamento experimental. Afi- de um fármaco da corrente
Além disso, em muitos casos, a manifesta-
nal, a biodistribuição tende a ser facilitada sanguínea para os tecidos. É
ção dessas doenças nos cães é comparável ao
no corpo de animais menores. Muitos me- afetada por fatores fisiológicos
que ocorre em humanos - considerando sua e propriedades físico-químicas
dicamentos testados em pequenos animais
complexidade social, comportamental, e do do próprio fármaco.
podem não alcançar seus alvos moleculares
ambiente em que estão inseridos - e, assim
em humanos com a mesma eficácia, já que
sendo, o potencial translacional do modelo
somos muito maiores, o que é uma barreira
canino para o estudo de doenças humanas é
translacional.

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Figura 8.
Alguns benefícios de se utilizar
o cão como modelo animal.

A variação genética entre cães de raças dife- bientais. O mesmo não ocorre com animais
rentes é maior que entre os da mesma raça. mantidos em biotérios especializados com
Biotérios - ambientes em
Assim sendo, cada raça de cão possui uma ambiente rigidamente controlado (quanto à que são mantidos animais
alta homogeneidade de fenótipo, em grande temperatura, dieta, luminosidade, condições em condições adequadas à
parte por causa do processo de seleção arti- sanitárias etc.). Embora em muitos contex- utilização em experimentos
ficial conduzida por humanos para gerar ani- tos científicos o ambiente controlado seja científicos ou produção
biotecnológica (ex.: de vacinas
mais com características desejadas em apa- positivo para o sucesso do experimento, é e soros).
rência e comportamento. No entanto, esse importante avaliar também uma intervenção
processo de seleção imposto por criadores em um ambiente mais comparável ao do ser
acabou gerando também uma alta frequência humano e, nesse caso, o cão doméstico tende
de doenças genéticas em cães ditos “de raça/ a reproduzir melhor o que acontece conosco.
pedigree”. Isso acontece porque a consangui- Seleção artificial - processo
A sociabilidade e o comportamento emoti- pelo qual humanos selecionam
nidade propicia uma maior probabilidade de animais ou plantas com
ocorrer em homozigose alelos recessivos po- vo dos cães facilitam a avaliação clínica das
características desejáveis para
tencialmente patogênicos, ou seja, cães ditos condições de saúde e intervenções terapêuti- efetuar cruzamentos, com o
“de raça” são mais propensos a certas doenças cas, pois eles expressam mais claramente dor objetivo de obter organismos
(as autossômicas recessivas) que os sem raça e incômodo. Essas características também com fenótipos desejados.

definida (ditos “vira-latas”). Isso abre oportu- permitem que os próprios donos consigam
nidades na pesquisa científica para elucidar a relatar a melhora ou a piora dos cães, o que
relação entre genes e doenças. também pode facilitar a detecção de efeitos
colaterais e efetividade de tratamentos a lon-
Doenças são causadas por alterações genéti- go prazo.
cas, condições ambientais, ou por uma inte-
ração entre variantes genéticas e o ambiente. Apesar das vantagens apresentadas, os es-
Os cães domésticos compartilham, em gran- tudos com cães não são tão frequentes e as
de parte, do mesmo ambiente que os seres principais razões são a dificuldade de se ob-
humanos e, em consequência, disso podem ter o número necessário de indivíduos com a
desenvolver diversas patologias que nos afe- condição estudada (o que é importante para
tam, já que estão expostos a microrganismos, que os resultados sejam estatisticamente sig-
poluentes, toxinas e outras variáveis am- nificativos) e o alto custo de manutenção de

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um canil - desde a alimentação, contratação Dmdmdx, que tem um quadro leve, os cães
de pessoal especializado (como médicos ve- GRMD têm uma progressão clínica compa-
terinários e cuidadores), à alocação de espaço rável com a Distrofia Muscular de Duchenne
físico adequado e limpeza. em humanos. Em ambos os casos (cão e hu-
mano), os afetados têm perda progressiva de
Um bom exemplo de modelo canino para o massa muscular e a doença culmina na morte
estudo de uma doença humana é a Distrofia por insuficiência respiratória ou cardíaca em
Muscular em Golden Retrievers (GRMD), idade prematura. Por isso, esse modelo ca-
que ocorre por mutação espontânea no gene nino mimetiza melhor tal condição humana
da distrofina. Ao contrário do camundongo que o modelo Dmdmdx murino (Figura 9).

Figura 9.
Análise comparativa entre
modelos de Distrofia Muscular
Recentemente, percebeu-se que uma va- ram estudar o gene JAGGED1 para tentar de Duchenne.
riante genética rara no gene JAGGED1, encontrar soluções técnicas terapêuticas
quando presente no modelo GRMD, é pro- para a Distrofia Muscular de Duchenne em
tetiva para a progressão da doença, isto é, humanos. Esse tipo de descoberta pode aju-
animais com variante patogênica no gene da dar no desenvolvimento de novas terapias
distrofina tinham uma melhor qualidade de para esta e outras doenças, tendo como alvo
vida (mais semelhante à dos cães selvagens) genes que podem impedir que o indivíduo
se apresentassem também a variante em desenvolva a patologia, os chamados “genes
JAGGED1. Os pesquisadores agora procu- protetores”.

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Os cães também são um interessante modelo ou linhagens disponíveis. Um modelo ina-


para avaliar tratamentos de câncer. A partir dequado pode implicar em resultados pouco
de um estudo de necropsias de 2000 cães confiáveis ou um menor potencial translacio-
descobriu-se que 23% do total e 45% da- nal.
Necrópsias - exame de cadáver
queles acima de 10 anos morreram de cân-
Não há um melhor modelo animal para pes- para determinar a causa da
cer. Outro estudo, realizado pelos grupos de morte.
Mayana Zatz e Oswaldo Keith Okamoto, quisas envolvendo doenças genéticas huma-
da Universidade de São Paulo, avaliou o po- nas. Há modelos mais adequados a depen-
tencial do vírus Zika para combater células der do tipo de doença, objetivo do estudo e
tumorais do sistema nervoso central e os infraestrutura disponível (espaço físico, di-
cães foram um dos modelos utilizados. Sa- nheiro e equipamentos). E não se pode pre-
bia-se até então que esse tipo de vírus causa sumir que uma espécie é melhor por ser ge-
microcefalia em bebês durante a gestação por neticamente mais semelhante aos humanos,
atacar células progenitoras neuronais, mas ainda que esse possa ser um bom ponto de
que não há prejuízo neuronal em indivíduos partida caso as evidências na literatura cien-
adultos infectados. O resultado deste estudo tífica ainda sejam escassas para fundamentar
mostrou que o vírus Zika é capaz de reduzir uma escolha, por isso, é preciso verificar se
tumores cerebrais, o que pode ser uma possí- alguma pesquisa anterior indicou que deter-
vel terapia para cânceres no cérebro. minada espécie poderia ser inadequada para
o tipo de estudo pretendido.

Como escolher um
Células progenitoras
Sabemos que naturalmente existem diferen- neuronais - células que se
ças entre humanos e modelos animais e, a diferenciam nas células maduras
modelo animal? depender do modelo, uma mutação em um do sistema nervoso (neurônios,
astrócitos e oligodendrócitos).
gene pode ser patogênica em humanos, mas
Cada modelo animal tem suas particulari- ter consequências mínimas em animais no
dades (Figura 10). Uma escolha criteriosa contexto clínico, isto é, alterações fenotípi-
do modelo animal é um ponto fundamental cas imperceptíveis ou mesmo inexistentes. A
do planejamento da pesquisa. A decisão por escolha do melhor modelo depende de que
um modelo específico depende dos objetivos pergunta queremos responder e de que ma-
do projeto e deve ser tomada com base em neira podemos extrapolar e aplicar os resul-
argumentos científicos e verificação de carac- tados obtidos à espécie humana.
terísticas intrínsecas das opções de espécies

zebrafish camundongo cão

Prolificidade 200-300 ovos/semana 5-10 filhotes/ninhada muito variável


Tempo de gestação - 21 dias 58-68 dias
Maturidade sexual 3 meses pós-fertilização 6-8 semanas pós-parto 6-9 meses
Expetativa de vida média de 3,5 anos média de 2 anos 10-13 anos
Comprimento do adulto 1,8-3,8 cm 8,2-8,7 cm (sem cauda) 15-110 cm
Custo $ $$ $$$
Potencial translacional + ++ +++
Figura 10.
Comparações entre zebrafish,
camundongo e cão.

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Em casos de divergência funcional entre quantidade de trabalhos científicos em todo


animais e humanos, pode-se procurar aper- o mundo em que foram usados modelos ani-
feiçoar o uso do modelo a fim de responder mais em seu desenvolvimento para uma infi-
às questões centrais da pesquisa. Um exem- nidade de aplicações e todos os avanços que
plo é o caso do camundongo duplo mutante propiciaram à sociedade, como medicamen-
Dmdmdx/Largemyd desenvolvido em 2013 tos, vacinas, técnicas etc, não deixam dúvidas
pelo grupo de pesquisa coordenado por Ma- de que são importantes ferramentas quando
riz Vainzof da Universidade de São Paulo. usados corretamente.
Enquanto o camundongo Dmdmdx apresenta Reprodutibilidade
as mesmas características genéticas e bioquí-
micas que pacientes humanos com Distrofia
Aspectos legais da - característica de um
experimento científico passível
de ser reproduzido novamente
Muscular de Duchenne, a fraqueza muscular
é um componente que não está presente de
experimentação apresentando resultados
equiparáveis aos de execuções
forma muito evidenciada, ou seja, tal modelo
não manifesta todos os aspectos funcionais
animal no Brasil anteriores. Trata-se de uma
condição importante para que
os experimentos científicos
da doença. Então os animais Dmdmdx foram No Brasil, todos os projetos de ensino ou tenham credibilidade, pois
cruzados com animais com mutação (tam- pesquisa que envolvam animais vertebrados é preciso evitar conclusões
bém espontânea) no gene Large1 (relaciona- devem passar por uma apreciação ética pré- errôneas a partir de efeitos
via da CEUA (Comissão de Ética no Uso de aleatórios, erros de análise
do a uma outra forma de distrofia muscular).
Animais) da instituição na qual os animais ou mesmo manipulações
A linhagem obtida, Dmdmdx/Largemyd, apre- inadequadas.
senta grave e progressiva fraqueza muscular, serão utilizados. Trata-se de um procedimen-
semelhante ao que acontece em humanos, to obrigatório. As CEUAs são credenciadas
associada a deficiência de distrofina no mús- e reguladas por um órgão hierarquicamente
culo, de forma que é um modelo para estudo superior, o CONCEA (Conselho Nacional
das distrofias musculares em geral. de Controle de Experimentação Animal),
que está vinculado ao Ministério de Ciência,
Há um debate a respeito da usabilidade e Tecnologia e Inovações do governo federal.
confiabilidade dos animais para modelagem Somente após a aprovação do projeto pela
de algumas características humanas. Parte CEUA podem ser iniciados experimentos
dos críticos argumenta que, mesmo em ca- envolvendo animais. A apreciação ética da Lei Arouca - é assim conhecida
sos em que há grande similaridade genética, por ser de autoria do Deputado
CEUA envolve a verificação de que o plano Sergio Arouca. Link de acesso
algumas características podem não ser tão de trabalho proposto pelos pesquisadores a essa legislação: http://www.
similares. Sobre isso, cabe dizer que a repro- está de acordo com legislação vigente, sobre- planalto.gov.br/ccivil_03/_
dutibilidade de estudos nos quais são usa- tudo a Lei nº. 11.794/2008, conhecida como ato2007-2010/2008/lei/
dos modelos animais, que são organismos Lei Arouca. l11794.htm
complexos, depende de um rigoroso controle
de variáveis que podem influenciar nos re- De maneira geral, a apreciação ética envolve
sultados. Essas variáveis podem ser o back- as seguintes verificações:
Background genético -
ground genético de uma linhagem, tipo de 1. A real necessidade da realização do expe- “fundo genético”; composição
alimentação oferecida, controle do ciclo de rimento, tendo em vista os benefícios que genética de uma linhagem ou
dia/noite, exposição a fatores estressantes, espécie (todos os alelos do
poderia trazer à sociedade: genoma), excluindo-se o(s)
como barulho etc. Os animais de experimen-
gene(s) de interesse do estudo.
tação, sempre que possível, devem ainda ser - Vale a pena investigar/solucionar o
mantidos em biotérios cuja estrutura e res- problema de pesquisa em questão?
Problema de pesquisa -
ponsáveis pelo seu cuidado sejam adequada- questão para a qual se buscam
mente preparados para seu uso em pesquisa. - Foi verificado se alguém já solucionou
respostas em uma pesquisa
Dessa forma, reduz-se a chance de observa- ou estudou esse problema anterior- científica.
ções experimentais contraditórias. mente?
Pesquisa clínica - testes
Vale a pena lembrar que toda pesquisa clí- - Quais benefícios a pesquisa trará? realizados em humanos, após
etapas prévias em modelos
nica realizada em humanos para validação - Que parcela da população e que seg- animais, para averiguar a
de qualquer medicamento é precedida pela mentos da economia serão beneficia- segurança e a eficácia de
experimentação em modelos animais. A dos? uma intervenção (vacinas e
medicamentos).

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2. Se o projeto de pesquisa segue o princí- possam ter odores durante os procedimentos


pio dos 3R’s, que será apresentado mais com animais, porque isso causa desconforto.
adiante;
Uma opção bastante factível de substituição
3. Se há pessoas na equipe capacitadas tec- de animais, especificamente para fins de en-
nicamente para os procedimentos propos- sino, são vídeos e técnicas modernas de apre-
tos. sentação 3D em computador, pois permitem
a demonstração de fenômenos fisiológicos.
Além disso, a Lei Arouca proíbe a utilização Além disso, o uso de bonecos realísticos para
de animais em atividades educacionais de treinamento de estudantes da área de saúde
primeiro e segundo graus, ficando restrita (por exemplo, na realização de suturas) são
somente a estabelecimentos de ensino supe- aliados muito interessantes na redução do
rior ou de educação profissional técnica da uso desnecessário de animais nas aulas prá-
área biomédica. Culturas celulares - são
ticas. conjuntos de células
A Lei Arouca também prevê sanções legais desenvolvidas sob condições
Do ponto de vista da pesquisa científica, além controladas em ambientes
às pessoas físicas (pesquisadores) e jurídicas das melhorias que têm ocorrido no desenvol- artificiais.
(instituições) que transgredirem essa legis- vimento de melhores modelos animais, um
lação. As sanções variam entre advertência, grande esforço está sendo dedicado à busca
multa, interdição, impedimento temporário de abordagens alternativas ou mesmo pré-
ou definitivo do exercício da atividade com vias ao uso de animais: culturas celulares,
animais e suspensão de financiamentos pro- abordagens in vitro e o uso de células-tron-
venientes de fontes oficiais de crédito e fo- In vitro - expressão latina que
co para diferenciação no tecido de interesse. designa experimentos da área
mento científico. Quando nos referimos a “abordagens pré- biológica que têm lugar fora
vias”, quer dizer que resultados pouco pro- de sistemas vivos como, por
Os princípios missores nesses ensaios preliminares podem
levar à desistência de se seguir avaliando tal
exemplo, em tubos de ensaio.

dos 3R’s hipótese, excluindo a necessidade de se tes-


tar em animais. No entanto, cabe dizer que
Os Princípios dos 3Rs compõem uma nor-
nenhum processo vivo ocorre isoladamente.
ma técnica proposta em 1959 por William Células-tronco - células que
Portanto, em algumas situações, os estudos conseguem se diferenciar e se
Russell e Rex Burch e amplamente difun-
envolvendo animais tendem a mimetizar me- transformar em diversos tipos
dida entre os países para uso de animais em
lhor a complexidade dos processos biológi- celulares.
pesquisas. Baseia-se em três pilares: “reduzir,
cos de organismos vivos.
substituir e aprimorar/refinar” (do inglês:
reduction, replacement and refinement) (Fi-
gura 11). É imperativa, de acordo com esses Para saber mais
princípios, a reflexão de sempre tentar redu- ANDERSEN M. L., WINTER L. M. F. Animal
zir o número de animais por procedimento models in biological and biomedical research
experimental, substituir sempre que possível - experimental and ethical concerns. AnAca-
o uso de animais e aprimorar métodos para dBras Cienc. v. 91, 2019. doi:10.1590/0001-
3765201720170238.
minimizar o desconforto animal.
CARLI, G. J., SOUZA, T. A. J., PEREIRA, T. C. A
Para minimizar o desconforto animal, uti- revolucionária técnica de edição genética “CRIS-
lizam-se, por exemplo, instalações limpas PR”. Genética na Escola. v. 12, n. 2, p. 114-123,
e adequadas (em espaço, temperatura, com 2017.
disponibilidade de água, alimento, etc), além SOUZA, T. A. J., Pereira, T. C. O impacto na socie-
de sedativos, analgésicos ou anestésicos du- dade da tecnologia de edição gênica com base no
rante eventuais procedimentos que poderiam sistema CRISPR-Cas9. Genética na escola. v. 12,
causar dor. Também é preciso que os pesqui- n. 2, p. 124-131, 2017.
sadores que os manipulam tenham passado Modelos animais na pesquisa em DMD #Fala, Mariz!
por treinamento prévio de capacitação e re- - Com Mariz Vainzof: https://youtu.be/y5u-
comendável que não utilizem cosméticos que k33rYlrs

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Figura 11.
A norma técnica dos 3R’s.

Ilustrações Financiamento
As figuras 1 e 3 a 11 foram produzidas pelos Os autores são gratos pelo apoio das agências
autores utilizando recursos Mind the Graph de fomento FAPESP, CAPES e CNPq, que
(https://www.mindthegraph.com/), respei- financiam seus projetos (CEPID e INCT) e
tando as condições de seus termos de uso. bolsas de pós-graduação.

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Ancestralidade: genética,
herança e identidade

Lilian Kimura1, Renan Barbosa Lemes2, Kelly Nunes3


1
Pesquisadora do Laboratório de Genômica Populacional Humana, Departamento de Genética e
Biologia Evolutiva, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP
2
Pós-doutorando do Laboratório de Genômica Populacional Humana, Departamento de Genética e
Biologia Evolutiva, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP
3
Pós-doutoranda do Laboratório de Genética Evolutiva, Departamento de Genética e Biologia
Evolutiva, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP
Autor para correspondência - lkimura@alumni.usp.br

Palavras-chave: ancestralidade genética, testes de ancestralidade, diversidade genética

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De onde vieram nossos antepassados? Essa pergunta tem guiado milhares de pessoas em
uma busca por suas origens, alimentada pela divulgação de testes genéticos nas redes sociais,
comercializados por empresas privadas que oferecem respostas para questionamentos como
esse. Assim, os testes de ancestralidade vêm ganhando popularidade, levantando questões
importantes sobre seu impacto na ciência e no cotidiano da sociedade. No presente artigo são
abordados conceitos de genética de populações que constituem a base para os testes, além de
reflexões sobre as possibilidades de aplicação das informações obtidas a partir dos dados ge-
néticos - da expansão do conhecimento sobre a história evolutiva humana aos usos indevidos
que podem levar à segregação social.

Ancestralidade se tem sobre os antepassados e o quanto se


tem acesso a elas. São raras as populações
e a conexão cujos membros possuam informações genea-
lógicas completas por mais do que três ou
com a identidade quatro gerações, o que dificulta muito ras-
trear a origem dos antepassados, principal-
É muito comum que boa parte de nós, em mente em populações miscigenadas, tal qual
algum momento, tenha curiosidade sobre a brasileira.
nossas origens. Saber de onde são nossos
Os avanços tecnológicos das últimas déca-
antepassados é revelar a nós mesmos parte
das têm permitido investigações aprofunda-
de nossa identidade. Mas, quando conside-
das acerca do nosso material genético, que
ramos a história de miscigenação da popula-
se tornou uma importante ferramenta para
ção brasileira, a busca por essas origens pode
melhorar a compreensão da nossa história
se tornar uma jornada bastante complexa, já
evolutiva e ajudar a suprir as limitações dos
que essas referências podem ser tão diversas
estudos genealógicos. Por meio de análises
quanto as relativas ao Japão ou à Itália.
de sequências genômicas, que variam entre
O termo ancestralidade é amplo e pode ter indivíduos e populações, tornou-se possível
múltiplos significados - cultural, religioso e fazer inferências mais precisas em relação
até mesmo político. Embora percebida em aos movimentos migratórios da espécie hu-
diferentes contextos, a ancestralidade está mana pelos continentes, bem como sobre a
relacionada com o sentido de herança, e ex- ancestralidade genética, isto é, a origem de
pressa a nossa conexão com os nossos ante- um indivíduo e de seus antepassados, inferi-
passados. Do ponto de vista genético, tem da com base no DNA.
um significado mais específico: os ancestrais
são os indivíduos dos quais cada um descen-
de biologicamente. A ancestralidade é a in-
Variantes genéticas
formação sobre tais indivíduos numa relação
genética.
e inferência de
O desenho de uma árvore genealógica, na
ancestralidade
qual são retratadas as pessoas e a conexão en- Resgatar nossas origens com base no DNA
tre os indivíduos, talvez seja a representação só é possível devido à variação genética exis- Genealogia - Diagrama
que representa as conexões
mais intuitiva para sintetizar o conceito de tente. O principal mecanismo que gera essa familiares de um indivíduo, por
ancestralidade. Porém, partes dessa história variação é a mutação, processo que leva a meio de símbolos interligados
podem se perder, uma vez que a reconstru- alterações na sequência de nucleotídeos do por linhas.
ção de uma genealogia depende de fatores DNA e que pode ocorrer espontaneamen-
como a disponibilidade de informações que te ou por meio da ação de agentes externos

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 42


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(substâncias mutagênicas, raios ultravio- ção que ocorre a cada geração, e uma peque-
leta, entre outros), indicando que o DNA na parcela (5-7%) corresponde a variações
de qualquer um de nós está sujeito a sofrer resultantes de histórias evolutivas distintas
mutações e apresentar variantes genéticas. entre indivíduos de regiões/continentes di-
Estima-se que a cada geração, em média, ferentes; isso quer dizer que apenas uma
175 novas variantes genéticas podem surgir fração mínima do genoma pode ser, de fato,
em um indivíduo. A maioria dessas variantes informativa sobre a origem geográfica de um
ocorre em células somáticas, não reproduti- indivíduo e/ou de seus ancestrais.
vas, diploides, que possuem dois conjuntos
cromossômicos completos e não são trans- Para inferir a ancestralidade genética de uma
mitidas para seus descendentes. Apenas mu- pessoa, é preciso olhar exatamente essa pe-
tações que ocorrem em células germinativas quena fração do genoma (0,1%), com foco
que produzem gametas, dotados do conjun- especial nos 5-7% desses que diferem entre
to haploide do material genético, podem ser populações. Parte-se da premissa de que
transmitidas aos descendentes, podendo au- indivíduos com ancestrais comuns (um ou
mentar de frequência ao longo de gerações e vários) tendem a compartilhar um número
se tornar parte do conjunto de variantes de maior de variantes genéticas. Da mesma for-
uma população. ma, grupos populacionais de uma mesma re-
gião geográfica ou continente tendem a apre-
Mutações podem ocorrer em qualquer par- sentar mais variantes genéticas em comum
te do genoma, tanto nas regiões codificado- entre si do que com grupos de regiões/conti-
ras, as que envolvem os genes, como nas não nentes distintos e mais distantes geografica-
codificadoras. Mas, as variantes genéticas mente, evidenciando que as populações mais
resultantes só se tornam frequentes quando próximas passaram pelos mesmos processos
resistem aos processos evolutivos pelos quais de deriva genética e pressões seletivas e, por-
poderiam ser eliminadas pela seleção natural tanto, compartilharam uma mesma histó-
ou por deriva genética. Indivíduos e seus ge- ria durante o processo de evolução. Porém,
nomas estão sujeitos a pressões seletivas do embora possa ser detectada, a diferenciação
ambiente, a seleção natural, e possuem chan- genética entre indivíduos e/ou grupos popu-
ces diferentes de gerar descendentes devido lacionais é extremamente sutil e pode ser um
às probabilidades distintas de sobrevivência gradiente, ou seja, observa-se um gradiente
ou por questões de fertilidade; por conse- de variação genética entre os grupos popu-
quência, variantes genéticas não vantajosas lacionais, sem diferenças abruptas, fazendo
podem desaparecer em uma ou poucas ge- com que, do ponto de vista genético, as de-
rações. Já pelo processo de deriva genética, limitações geográficas entre continentes ou
variantes podem se tornar raras ou muito países não sejam nítidas, refletindo, em par-
frequentes em uma população, devido a mu- te, a história dos movimentos de migração e
danças aleatórias nas frequências alélicas de interação entre os grupos. Portanto, é preci-
uma geração para outra decorrente do acaso so prudência na interpretação e na utilização
na distribuição dos gametas, e que não estão de informações genéticas, como detalhado
relacionadas a pressões seletivas. adiante.
Podemos, então, nos perguntar o quanto o
acúmulo dessas variantes genéticas pode re- Marcadores
fletir em diferenças entre indivíduos e gru-
pos populacionais. Desde a década de 1990, moleculares de
vários estudos têm buscado responder a essa
questão, e todos apontam para os mesmos
ancestralidade
resultados: (i) genomas de quaisquer indiví- A ancestralidade genética de um indivíduo
duos tomados ao acaso são 99,9% semelhan- pode ser inferida a partir do estudo de di-
tes; (ii) do 0,1% de diferenças observadas, a ferentes tipos de marcadores moleculares,
maior parte (93-95%) é decorrente da varia- como chamamos as variantes genéticas com
ção casual proveniente do processo de muta- papel informativo para diversos estudos. Os

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mais utilizados são os polimorfismos de base tido ao longo das gerações apenas pelos in-
única, ou SNPs (do inglês single nucleotide divíduos do sexo masculino; o cromossomo
polymorphisms), as inserções ou deleções de X dos indivíduos do sexo masculino sempre
uma ou mais bases nucleotídicas (INDELs) é herdado das mães, enquanto os indivíduos
e os microssatélites, sequências curtas de 3-7 do sexo feminino herdam um cromossomo
nucleotídeos que se repetem sucessivamente X de cada genitor; e o DNA mitocondrial
e que variam em número de repetições entre também tem padrão de herança uniparental,
os indivíduos. sendo transmitido apenas pelo lado materno,
aos indivíduos de ambos os sexos (Figura 1).
Esses marcadores podem estar localizados Esses diferentes padrões de herança permi-
nos 22 pares de cromossomos humanos au- tem que a ancestralidade seja revelada sob
tossômicos, nos cromossomos sexuais que, diferentes pontos de vista: o cromossomo Y
na espécie humana são denominados X e Y, conta a origem dos ancestrais masculinos; o
e no DNA mitocondrial. Os marcadores au- DNA mitocondrial, dos ancestrais femini-
tossômicos apresentam herança biparental, nos; e os autossomos e o cromossomo X, a
na qual um indivíduo herda um do lado pa- história conjunta com todas as nuances de
terno e outro do materno; o cromossomo Y miscigenação.
apresenta herança uniparental, e é transmi-

Figura 1.
Na figura estão representados
os padrões clássicos de herança
do DNA. (A) herança biparental
dos cromossomos autossômicos;
os cromossomos dos pais são
transmitidos para os filhos
aleatoriamente. (B) herança do
cromossomo X; um indivíduo do
sexo masculino transmite seu
cromossomo X apenas para as
filhas e os indivíduos do sexo
feminino, que possuem dois,
aleatoriamente os transmitem
para filhos e filhas. (C) herança
uniparental do cromossomo Y,
que é transmitido ao longo das
gerações apenas pelos homens.
(D) herança uniparental do
DNA mitocondrial; neste caso,
a transmissão é materna, e as
mulheres transmitem o DNA
mitocondrial para filhos e filhas.
Figura autoral utilizando ícones
do PowerPoint e do BioRender.
com (https://biorender.com/).

Conforme dito anteriormente, as diferen- A primeira abordagem busca selecionar um


ças genéticas entre os indivíduos e grupos pequeno conjunto de marcadores ao longo
populacionais são muito pequenas, por isso do genoma com frequências alélicas muito
os marcadores e as análises a serem aplica- distintas entre os grupos populacionais, o
das aos estudos de ancestralidade genética que permite, por cálculo de probabilidade
são escolhidos para maximizar diferenças simples, inferir a origem de um indivíduo.
e tornar a análise mais precisa. Atualmen- Esse conjunto de marcadores é conhecido
te há duas abordagens principais para esses como painel de ancestralidade, e os marca-
estudos. dores em si, como marcadores informati-

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vos de ancestralidade, ou AIMs (do inglês, que atualmente custa em média 100 dólares,
ancestry informative markers). O número de ainda é proibitivo para a maior parte da po-
marcadores dos painéis varia entre dezenas pulação, restringindo o acesso do produto
e centenas, a depender do quão diferentes às pessoas com maior renda. Mesmo assim,
forem os grupos populacionais que irão re- de acordo com dados das quatro principais
ferenciar as ancestralidades testadas. Esses empresas internacionais que comercializam
painéis são amplamente utilizados e, devido testes de ancestralidade, mais de 26 milhões
ao seu baixo custo, ganharam notoriedade de consumidores fizeram testes em 2018, e
como ferramenta auxiliar nos estudos de ge- estima-se que, em 2021, esse número chegue
nética forense, quando, por exemplo, tem-se a 100 milhões.
a amostra de DNA, mas falta qualquer outra
informação sobre o indivíduo em questão. A motivação para a procura pelos testes varia
desde o desconhecimento sobre os ascenden-
A segunda abordagem utiliza dados genômi- tes recentes. A maioria das empresas oferece
cos em larga escala: microarranjos com cen- o serviço direcionado à busca por parentes,
tenas de milhares de marcadores genéticos, algo atrativo para pessoas que foram adota-
sequenciamento de exomas ou de genomas das e que desejam saber sobre seus pais bio- Exoma - fração do genoma
completos. Nesse caso, é importante desta- lógicos, ou por falta de informação histórica que corresponde ao conjunto
car que apenas uma parcela muito pequena mais detalhada sobre um lado da família, ou de éxons, as sequências
dos marcadores são AIMs; assim, para in- até mesmo simples curiosidade. Não pode- codificadoras do material
genético (DNA). O exoma
ferir a ancestralidade, são necessárias meto- mos descartar que a divulgação da ances-
representa de 1,5-2,0% do
dologias de análise mais robustas, que levem tralidade de pessoas famosas, revelada pelo nosso genoma.
em consideração os padrões de variação ao DNA, também se tornou um chamariz pu-
longo do genoma. Os dados em escala genô- blicitário para que pessoas comuns de uma
mica têm como vantagem possibilitar, além população busquem suas origens.
da inferência da ancestralidade, investigações
de padrões demográficos associados. Exem- Apesar da facilidade para a obtenção dos
plos: redução dos tamanhos populacionais, dados genéticos, frequentemente surgem dú-
padrões de migrações, número de eventos vidas a respeito dos resultados, que muitas
migratórios. vezes são disponibilizados com explicações
vagas, dificultando a real compreensão do ce-

A popularização nário revelado pelo teste pois, em geral, basta


fornecer uma amostra de saliva e enviar para
dos testes de a empresa contratada, de acordo com as ins-
truções fornecidas. Então, fica a pergunta:
ancestralidade o que os testes de ancestralidade realmente
conseguem nos contar e com qual precisão?
Os estudos de ancestralidade genética têm
Primeiro, é preciso entender que a ances-
suas bases em pesquisas tradicionalmente
tralidade genética pode ser informativa em
realizadas em renomadas universidades ou
diferentes escalas temporais e que isso pode
instituições acadêmicas e por muito tempo
interferir no grau de precisão das inferên-
ficaram restritas a perguntas científicas es-
cias. Em outras palavras, dependendo do
pecíficas - por exemplo, como se deu o po-
número de gerações passadas consideradas,
voamento do continente americano ou qual
diferentes capítulos da nossa história podem
o grau de miscigenação de uma determinada
ser revelados, e quanto mais antigos forem
população.
esses capítulos, eles aumentam a chance de
Desse modo, os testes de ancestralidade co- imprecisões a respeito. Hoje, os testes de
mercializados por empresas privadas aten- ancestralidade prometem revelar não so-
dem a uma importante demanda de merca- mente de que continente, sub-região de um
do, possibilitando que qualquer pessoa possa continente, ou mesmo de um país, nossos
saber sobre suas origens ancestrais mais pro- antepassados vieram, mas também têm o po-
váveis, com base em sua informação genéti- tencial de mostrar as relações de parentesco
ca. No entanto, o valor monetário do teste, entre indivíduos. Ao inferir ancestralidade, o

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isolamento restrito a um período de tempo/ 50% do nosso DNA com cada um deles; e
gerações é condição para uma inferência ser esse compartilhamento fica em torno de 25%
mais ou menos precisa, uma vez que, quanto com cada um dos avós maternos e paternos
mais gerações se volta no tempo, menor será (Figura 2). Dessa forma, conforme gerações
a contribuição de um antepassado à geração cada vez mais antigas são consideradas, per-
atual. cebemos que nosso genoma é formado pela
contribuição de vários antepassados e o grau
Sob a perspectiva da genética, as relações de de compartilhamento de DNA com cada as-
parentesco podem ser compreendidas à luz cendente (ou com indivíduos que comparti-
dos seguintes fatos: nosso DNA é 50% idên- lham os mesmos ascendentes - tal como nos-
tico ao do nosso pai e 50% ao da nossa mãe sos primos) deve ser proporcional ao nível de
e, portanto, dizemos que compartilhamos parentesco.

Figura 2.
A figura mostra
esquematicamente o
compartilhamento do material
genético ao longo das gerações
em uma genealogia. O DNA
está contido nos cromossomos
representados por barras
coloridas, nas quais cada cor se
refere à origem da sequência.
Se tomarmos como referência
o indivíduo na parte inferior da
figura, podemos notar que seu
material genético é cerca de
50% idêntico ao de seus pais
e 25% ao de seus avós. Figura
autoral utilizando ícones do
PowerPoint.

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Diferentes medidas podem ser usadas para


estimar relações de parentesco, como o nú- E se o teste contar
mero e o tamanho de fragmentos genômicos
compartilhados entre indivíduos, ou as pro- uma história
porções observadas e esperadas de lócus em
homozigose. Quanto mais remota é a rela-
diferente do
ção de parentesco, menor é o grau de com-
partilhamento de DNA entre as pessoas.
esperado?
Consequentemente, os testes para detectar Os testes de relação de parentesco e de an-
a relação de parentesco conseguem iden- cestralidade também podem revelar algumas
tificar com alto grau de precisão conexões surpresas. É cada vez mais frequente a ade-
como pais, avós, tios, sobrinhos e primos em são aos testes não apenas por um indivíduo,
primeiro grau, e com muito menor precisão mas também por seus familiares; ou ainda,
vínculos mais distantes como primos em ter- as empresas oferecem a opção de encontrar
ceiro, quarto e quinto graus. parentes entre os outros clientes, ou dispo-
nibilizam as informações ao indivíduo para
E a origem geográfica de nossos antepassa- que ele possa acessar outros bancos de dados
dos? Para inferir de onde nossos antepas- em busca desses possíveis familiares. As-
sados vieram é preciso comparar o nosso sim, não são raros os relatos de pessoas que
DNA com o de pessoas que vivem em ou- descobrem, por meio do teste de relação de
tros continentes. A comparação não é feita parentesco, falsa paternidade ou que encon-
diretamente com um grupo ancestral, mas tram meios-irmãos ou pais desconhecidos.
sim com pessoas contemporâneas a nós. Há Lócus em homozigose -
uma premissa importante a ser considerada: O filme de longa-metragem "De repente pai" Regiões do DNA em que as
(Delivery Man, do diretor Ken Scott, 2013) sequências herdadas dos
tanto nossos ancestrais, como as pessoas com
genitores masculino e feminino
as quais seremos comparados, devem ter retrata os possíveis efeitos dessas descober- são idênticas, ou seja, o
uma história em comum e devem ter vivido tas. No filme é contado que um único doador indivíduo possui duas cópias
na mesma região geográfica em algum perío- de esperma é o pai biológico de 533 filhos. iguais desse trecho de DNA.
do no passado; sendo assim, nossos DNAs Desconsiderando os exageros de Hollywood,
compartilharão variantes genéticas que per- cada vez mais relatos reais aproximam-se da
mitirão atribuir uma origem comum. história desenvolvida para o cinema. Um
exemplo ganhou destaque na mídia em
Essa informação tem impacto nos resultados 2019: cerca de 30 indivíduos fizeram testes
dos testes comerciais, uma vez que a precisão de relação de parentesco na empresa 23and-
deles está diretamente relacionada com duas Me e descobriram que são meios-irmãos,
informações presentes nos bancos de dados filhos biológicos de um mesmo doador; foi
usados para as comparações: o número e a promovido um encontro na região da Baía
representatividade geográfica das amostras de San Francisco na Califórnia (EUA) para
dos indivíduos que são usadas para fazer se conhecerem, e muitos sabiam que foram
as inferências. Em geral, utilizam-se bancos gerados por fertilização artificial com doa-
públicos como o do Projeto 1000 Genomas dor anônimo, porém, alguns não. Esse caso
(https://www.internationalgenome.org) e o serve de lembrete: o nosso DNA é mesmo
do CEPH-HGDP (http://www.cephb.fr/ revelador, e ele não tem como esconder in-
en/hgdp_panel.php), mas algumas empresas formações, ou seja, os testes podem ser uma
e grupos de pesquisa investem na construção caixinha de surpresas e é preciso estar cien-
do próprio banco de dados. Certamente, esse te de que às vezes a história contada sobre
é um dos principais fatores que fazem com uma família e sua origem pode ser um pouco
que os resultados e o grau de precisão sobre diferente da que se conhece ou acredita-se
a origem geográfica variem de empresa para conhecer.
empresa, ou de estudo para estudo.

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Outra situação recorrente é a pessoa esperar des mais remotas podem ser perdidas, uma
uma dada ancestralidade em seu genoma e vez que o tamanho do segmento de DNA
não a encontrar, ou descobrir uma ancestra- herdado de um ancestral será cada vez mais
lidade incompatível com a história que ela reduzido quanto mais distante for o paren-
conhece. Aqui, abrimos um leque de possi- tesco do ascendente, aumentando, por sua
bilidades: (i) como discutido, dependendo vez, a probabilidade do segmento não ser
do banco de populações parentais utilizado, transmitido à próxima geração.
haverá maior ou menor capacidade de de-
tectar um dado grupo/origem geográfica; É de se supor que os resultados inesperados
(ii) determinados grupos populacionais coloquem em dúvida a confiabilidade dos
ainda estão pouco representados nos ban- testes comerciais. Vale dizer que as empre-
cos de dados disponíveis para comparação, sas e laboratórios privados, em sua maioria,
especialmente as populações indígenas, o são altamente capacitados tecnicamente
que exige cautela na interpretação dos re- para gerar dados de qualidade. No entanto,
sultados; (iii) alguns grupos populacionais, a análise desses dados e a interpretação dos
como os europeus, apresentam intensa his- resultados são fatores críticos para a com-
tória de migração dentro do continente, e o preensão das informações pelo público e,
alto grau de fluxo gênico entre esses povos justamente por não ser trivial, as simplifi-
dificulta distingui-los; (iv) por fim, devido cações e/ou falta de esclarecimentos podem
ao embaralhamento e distribuição ao acaso levar a entendimentos equivocados e con-
dos cromossomos na meiose, ancestralida- troversos.

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Para onde vão de auxiliar na identificação de suspeitos de


crimes. No mesmo ano, outra companhia,
os dados pessoais pioneira em testes comerciais de ancestra-
lidade, anunciou que assinara um contrato
e o que acontece com uma gigante farmacêutica, o que des-
pertou ainda mais o desconforto da mídia
com eles? em relação ao destino e à segurança das in-
formações geradas por essas empresas.
Uma vez que os dados genotípicos são ge- Dados genotípicos - Refere-
rados pelos laboratórios e empresas, vem A possibilidade de apropriação dos dados ge- se ao subconjunto de genótipos
néticos por empresas ou planos de saúde cau- de um indivíduo detectados nos
atrelada uma preocupação: como serão ar- testes genéticos por meio do
mazenados esses dados e o que será feito sa sérias inquietações aos seus usuários, visto
uso de kits comerciais ou por
com eles? Afinal, as informações genéticas de que esses dados podem ser utilizados para outras plataformas utilizadas
uma pessoa são capazes de identificá-la com identificar indivíduos com risco genético aci- nos laboratórios de pesquisa.
uma especificidade até maior que uma série ma da média para manifestar determinadas
de identificadores pessoais, como o nome, os condições de saúde, tornando-se um pretex-
números do RG e do CPF ou uma fotografia. to para cobrar mais caro pela contratação de
um plano por essas pessoas. Na mesma linha
Quando uma empresa ou um laboratório re- de raciocínio, empresas poderiam usar como
cebe a amostra de uma pessoa, é gerado um critério de seleção de seus funcionários que
código identificador que garante a anonimi- atendam a determinados critérios genéticos,
zação durante o processo de genotipagem, a exemplo do que acontece no filme Gattaca
análise e armazenamento dos dados, que po- - A Experiência Genética; no longa estaduni-
dem ser, inclusive, criptografados. Os com- dense de 1997, o protagonista é impedido de
putadores e servidores onde são depositados realizar seu sonho de ser astronauta por ser
esses dados normalmente possuem sistemas considerado inválido, ou seja, geneticamente
de segurança robustos para evitar o acesso imperfeito por ter sido gerado naturalmente,
não autorizado às informações armazenadas. sem interferência de técnicas de manipulação
Além disso, é comum que as informações do DNA que o livrasse de qualquer intercor-
genéticas e os dados pessoais do indivíduo rência de saúde ligada aos genes.
sejam armazenados em locais distintos e re-
lacionados apenas pelo código identificador. O vazamento ou a exposição de informações
Assim, no caso de alguém ter acesso indevido como os dados genéticos sem consentimento
aos dados, não será possível relacionar dire- é um assunto bastante sensível e compro-
tamente as informações genéticas à pessoa a metedor, pois fere os direitos fundamen-
quem elas pertencem, reduzindo significati- tais de liberdade e privacidade previstos em
vamente a utilidade da informação extraída. nosso sistema legislativo. No Brasil, desde
agosto de 2018, vigora a Lei Geral de Pro-
Apesar de todo esse sistema de anonimiza- teção de Dados Pessoais - LGPD (LEI Nº
ção e segurança, existe uma crescente preo- 13.709), que visa o resguardo de informa-
cupação com o compartilhamento de dados, ções pessoais, incluindo os dados genéticos,
e embora os usuários tenham que consentir em quaisquer meios. A legislação, portanto,
formalmente para esse compartilhamento, é um importante instrumento de prevenção
a preocupação não é completamente infun- contra o uso indevido de informações sem o
dada. Alguns episódios tiveram destaque na devido consentimento.
mídia e acenderam um sinal de alerta. Em
2017, uma companhia israelense relatou o Todavia, não há motivos para que as pessoas
vazamento de dados de milhões de pessoas deixem de participar de pesquisas ou que não
que haviam submetido seu material genéti- devam fazer os testes genéticos oferecidos
co para estudos de ancestralidade. Em 2019, comercialmente. A contribuição dos volun-
uma empresa estadunidense admitiu que tários nas pesquisas é de vital importância
compartilhou, por ordem judicial, dados ge- para os avanços na ciência, podendo trazer
néticos de seus clientes com o FBI no intuito benefícios para a sociedade como um todo,

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e a realização do teste deve ser ancorada em


decisões pessoais. Mas, é preciso transparên- Ancestralidade
cia em todas as etapas dos processos, tanto
das empresas que oferecem os testes como e raça
dos grupos de pesquisa, que também têm Do ponto de vista das ciências sociais, a
obrigação de oferecer segurança no armaze- ancestralidade, em sua pluralidade de de-
namento dos dados. finições, tem conexão com a identificação
Todas as instituições de pesquisa, indepen- cultural de um indivíduo, e em diversos mo-
dentemente de serem públicas ou privadas, mentos flerta com a temática racial. Neste
devem apresentar um termo de consenti- artigo, porém, trataremos do assunto apenas
mento livre e esclarecido, submetido à avalia- do ponto de vista biológico, com o intuito de
ção de um comitê de ética, no qual deve cons- trazer reflexões sobre o tema e de que forma
tar o propósito da coleta do material; como os estudos da ancestralidade genética conec-
os dados gerados serão armazenados; em que tam-se nesse cenário.
circunstâncias eles podem ser utilizados; e se O conceito biológico de raça pode ser tra-
a pessoa está de acordo com o termo. duzido de forma objetiva quando se leva em
Empresas idôneas, que oferecem comercial- conta dois aspectos: (i) a quantidade de dife-
mente os testes de ancestralidade e busca por renciação genética entre dois ou mais grupos;
parentes, devem ter as necessárias políticas e (ii) a existência de mais de uma linhagem
de proteção à privacidade, que compreendem evolutiva, ou seja, uma população de organis-
uma série de diretrizes nas quais os clientes mos caracterizada por uma linha contínua de
são informados sobre o uso, tratamento, ar- descendência. Ambos podem ser aplicados a
mazenamento dos dados e autorização de espécies de quaisquer organismos de forma
contato. No caso específico de serviços como objetiva, evitando questões culturais e antro-
a busca por parentes, algumas empresas ofe- pocêntricas.
recem a opção daqueles que encontram al- O biólogo evolucionista Alan Templeton, da
gum grau de parentesco genético possam en- Universidade Washington, em Saint Louis,
trar em contato por e-mail; ao contratar esse Missouri (EUA), vêm estudando o tema há
serviço, os clientes concordam com os termos décadas e argumenta que o grau de diferen-
e ficam cientes de que as empresas respon- ciação genética entre grupos humanos, mes-
derão judicialmente, de acordo com a lei vi- mo em nível continental, é extremamente
gente em cada país, ao descumprirem essas baixo e que, mesmo em uma escala de tempo
políticas. Vale a pena comentar, também, que de dezenas de milhares de anos, não há evi-
o intuito inicial da coleta (ancestralidade e dência de divisão da espécie em linhagens;
busca de parentes) precisa ser esclarecido, consequentemente, não há evidências bio-
incluindo o propósito de eventuais tercei- lógicas de raças em humanos. Por exemplo,
ros que usem o dado de forma individual ou quando as mesmas análises são aplicadas
agregada. Afinal, a empresa pode ser idônea, a chimpanzés, os parentes evolutivos mais
mas os terceiros, com quem se compartilha, próximos aos humanos, é fácil notar as dife-
podem fazer mau uso dos dados. Um exem- renças genéticas entre grupos, além de poder
plo análogo ocorreu com os dados de indiví- separá-los em linhagens evolutivas distintas.
duos que utilizavam a rede social Facebook
compartilhados com a empresa Cambridge Templeton também questiona a forma tra-
Analytics, que, por sua vez, utilizou os da- dicional de classificar os hominídeos (Homo
dos com a finalidade de influenciar de for- erectus, Homo sapiens, Homo neanderthalen-
ma personalizada a opinião de eleitores nos sis, Homo denisova etc.) como espécies distin-
EUA (https://g1.globo.com/economia/ tas, já que as diferenças entre elas é mínima
tecnologia/noticia/entenda-o-escandalo- e pode ter havido interações que resultaram
-de-uso-politico-de-dados-que-derrubou- em descendentes viáveis. Exemplificando,
-valor-do-facebook-e-o-colocou-na-mira- em 2018, um estudo genômico conduzido
-de-autoridades.ghtml). pelos paleogeneticistas Viviane Slon e Svan-

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te Pääbo, do Instituto Max Planck para An- pode mudar com o tempo e mesmo entre lu-
tropologia Evolutiva de Leipzig (Alemanha), gares. Portanto, é um conceito definido pela
revelou que um fragmento ósseo encontrado sociedade, e não pelos nossos genes.
numa caverna no Monte Altai na Rússia
pertencia a uma menina, chamada carinho- Não é por acaso que a maioria dos cientistas
samente de Denny, que viveu há 90.000 anos tem buscado demolir o conceito de raça bio-
atrás, cujo pai era um Neanderthal e a mãe lógica para a espécie humana. Aparentemen-
Denisova. Além disso, testes de ancestrali- te, na contramão desse combate, os testes de
dade revelaram que descendentes atuais de ancestralidade, que classificam os indivíduos
povos não africanos apresentam proporções dentro de grupos continentais - africanos,
de 2-5% de ancestralidade Neandertal e/ou europeus, asiáticos - têm se tornado mais
Denisova em seus genomas. Essa é uma evi- populares e acessíveis, ganhando força e
dência praticamente irrefutável de que esses destaque na mídia. Essa aparente contradi-
grupos humanos arcaicos e modernos deixa- ção requer uma análise cuidadosa para que
ram descendentes férteis e, portanto, do pon- os dados genéticos não sejam utilizados de
to de vista biológico, são da mesma espécie. forma leviana, podendo levar ao afloramento
de comportamentos segregacionistas funda-
Sabemos, no entanto, que a ideia de sepa- mentados em pequenas variações no DNA
rar os humanos em grupos, usando o termo que jamais poderiam sustentar a divisão bio-
raça, na qual as pequenas diferenças entre as lógica de grupos populacionais humanos em
populações são exaltadas, leva a consequên- raças.
cias políticas, sociais e econômicas reais de
categorização e discriminação, que fazem A utilização dos dados de ancestralidade ge-
parte da vida cotidiana de indivíduos de nética como respaldo científico para validar
muitas nações, inclusive do Brasil. Por isso, a classificação de indivíduos a um determi-
o uso de interpretações equivocadas sobre o nado grupo racial é imprudente e precipita-
conhecimento científico atrelado ao racismo da. É preciso compreender que o conceito
é visto com muita preocupação e precisa ser de ancestralidade genética não é soberano,
esclarecido e combatido. pelo contrário, está sujeito a nuances que não
permitem que as classificações dos grupos
Para entender as bases do racismo científico, sejam estanques. De fato, existem diferenças
é preciso voltar para meados do século 18. sutis observáveis na diversidade genética en-
Em 1735, em seu livro Systema Naturae, Carl tre grupos ancestrais, que podem se refletir
Linnaeus propõe classificar a espécie huma- em consequências biológicas como varia-
na no reino animal, e seus indivíduos em “ti- ção de características normais (morfologia,
pos” ou “variantes”, de acordo com a origem
continental: Europaeus albus, Americanus
rubescens, Asiaticus fuscus e Africanus niger.
Apenas na 10ª edição do livro, em 1758, essa
classificação foi substituída e ele sugeriu ou-
tra, de acordo com características como cor da
pele, traços físicos, comportamento, modo de
vestir, sistema de governos etc. Ao adicionar
esses atributos comportamentais, culturais e
políticos, os fatores puramente geográficos
e ambientais foram afastados. Essa mistura
arbitrária de algumas características físicas,
culturais e políticas acabou criando as bases
para o racismo científico. Assim, ao longo
dos últimos três séculos, a falta de um pensa-
mento crítico e o uso de conceitos científicos
incorretos têm sido utilizados para apoiarem
o racismo. Nesse cenário, raça é uma cons-
trução social de categorização de pessoas que

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 51


GENÉTICA E SOCIEDADE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

cor de pele etc.) ou mesmo patológicas, por e compreender seu valor. Em uma repor-
exemplo, fibrose cística é mais prevalente tagem de um portal de notícias, tratando
em europeus e, anemia falciforme, em afri- justamente da temática dos testes, Ailton
canos. Essas diferenças são importantes em Krenak, líder indígena, ambientalista e es-
especial para o diagnóstico em medicina de critor, traz uma pertinente reflexão: qual
precisão que busca adequar a prática médica seria o impacto sobre a coletividade e na
(diagnóstico e tratamento) ao indivíduo ba- melhoria da qualidade de vida das pessoas
seando-se na utilização de testes genéticos. saber sobre sua ancestralidade revelada pelo
Porém, essa diversidade genética não assume DNA? Em uma sociedade já tão dividida e
diferenças morais, sociais ou qualquer outra polarizada por questões como a cor da pele,
característica que permita o ranqueamento não seria esse dado mais um ponto a favor
de grupos, algo utilizado e promovido pelos da segregação?
movimentos racistas.
Por esse ponto de vista, estaríamos atribuin-
Outro ponto que também precisa ficar claro do ao DNA o papel de único detentor de
é que indivíduos de populações miscigena- memórias, sendo que elas podem estar pre-
das, como a brasileira, geralmente apresen- sentes em outros campos da vida, como no
tam ancestralidade complexa. Essa mistura conhecimento sobre o preparo dos alimen-
de composição genética ancestral não invali- tos, aprendido com os antepassados; ou nas
da como o indivíduo se percebe cultural e so- danças e tradições, que são ensinadas pelos
cialmente. Deve-se ressaltar que, no contexto avós; ou ainda, nas histórias familiares que
sociocultural, a ancestralidade é um conceito são contadas ao longo das gerações.
amplo e complexo, e os dados biológicos não
estão diretamente relacionados a questões Sem obviamente desconsiderar a importân-
sociais de classificação de grupos, como iden- cia das pesquisas científicas sobre a compo-
tidade e pertencimento. sição genética brasileira e o valor recreativo
dos testes comerciais, talvez seja o momento
A grande importância dos estudos de an- de enxergarmos a ancestralidade como uma
cestralidade genética é o seu uso como fer- esfera mais ampla da nossa existência, e que
ramenta para recuperar parte importante da o conhecimento nos conecta com o que so-
nossa história perdida. Por exemplo, apesar mos em um fluxo contínuo que faz parte da
de haver um vasto registro histórico sobre história evolutiva humana. A ancestralidade,
o número de africanos que foram traficados sob um ponto de vista social, mais do que
oficialmente ao Brasil entre os anos de 1535 compartilhamento de variantes no DNA, es-
e 1888, existem grandes lacunas de informa- taria relacionada com o legado que os nossos
ções sobre regiões de origem e de destino dos antepassados nos deixaram.
indivíduos, que foram perdidas ou simples-
mente queimadas ao longo de séculos. Pode-
-se também resgatar parte das informações
Para saber mais
genéticas sobre os povos originários indíge- MATHIESON, I; SCALLY, A. What is ancestry?
nas que foram dizimados durante o processo PLoS Genetics, vol. 16 (3), p. 1-6, 2020.
de colonização do Brasil e continuam a ser MEYER, D. (2017). Existem raças humanas? Disponí-
dizimados até hoje. vel em: <https://darwinianas.com/2017/01/17/
existem-racas-humanas/> Acesso em

Lições que nossos 21/04/2021.

TEMPLETON, A. Biological races in humans. Stud-


pais e avós nos ies in History and Philosophy of Biological and Bio-
medical Science, vol. 44 (3), p. 262-271, 2013.
ensinaram WASHINGTON UNIVERSITY IN ST. LOUIS
(1998). Genetically Speaking, Race Doesn't Ex-
Não há como negar que a popularidade ist In Humans. Disponível em: <https://www.
dos testes de ancestralidade genética tende eurekalert.org/pub_releases/1998-10/WUiS-
a aumentar. A ressalva é ponderar seu uso GSRD-071098.php> Acesso em 21/04/2021.

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NA SALA DE AULA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Ensino de genética humana:


novas abordagens para
sensibilização de estudantes no
contexto das síndromes genéticas
Gabriela Garcia de Carvalho Laguna,
Cintia Rodrigues Marques
Instituto Multidisciplinar em Saúde, Universidade Federal da Bahia,
Vitória da Conquista, BA
Autor para correspondência - cintiabiomedica@yahoo.com.br

Palavras-chave: inclusão social, síndrome de Down, estigma social,


integralidade em saúde, educação, metodologias ativas

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NA SALA DE AULA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Este artigo apresenta uma proposta pedagógica para sensibilização de estudantes de gradua-
ção quanto às síndromes genéticas, visando a inclusão de pessoas com necessidades específicas
e uma assistência profissional integral. Para isso foram utilizadas metodologias ativas e formas
de expressão artística, como o cinema e o teatro. No artigo, compartilhamos estratégias que,
aplicadas em sala de aula para o curso de medicina, mostraram-se potentes para uma apren-
dizagem significativa, com a compreensão empática das dificuldades enfrentadas por pessoas
com necessidades específicas e suas famílias, alinhada a proposições de como reduzi-las.

Contexto adquiram significados com a experiência, em


uma aprendizagem a partir do sentir. Assim,
explorar elementos artísticos em metodolo-
As Diretrizes Curriculares Nacionais do
gias ativas favorece uma aprendizagem mais
Curso de Graduação em Medicina preveem
significativa.
que a formação médica seja generalista e ha-
bilite o egresso para atuar promovendo uma Nessa perspectiva, um conjunto de aulas de
assistência integral nos diferentes níveis de genética foi ministrado no Instituto Mul-
atenção à saúde, em defesa da cidadania e tidisciplinar de Saúde da Universidade Fe-
atento aos determinantes sociais. Isso envol- deral da Bahia (UFBA-IMS/CAT) para o
ve, dentre outras competências, a capacida- segundo período de graduação em medicina.
de de se comunicar de forma compreensível, Essas aulas iniciaram o processo de ensino-
sensível e de construir um cuidado compar- -aprendizagem de genética do curso e foram
tilhado que reconheça demandas, bem como desenvolvidas com o uso de diversas meto-
estimule o protagonismo e a autonomia do dologias ativas que objetivaram tanto cons-
usuário do serviço e sua família. truir conhecimentos acerca dos mecanismos
biológicos envolvidos em alterações cromos-
Nesse sentido, as síndromes genéticas são
sômicas, quanto sensibilizar futuros médicos
uma questão de saúde pública. O estigma
para a comunicação e assistência aos usuá-
que carregam prejudica o pleno exercício
rios dos serviços de saúde com síndromes ge-
da cidadania do sujeito com essa condição
néticas e suas famílias. Este artigo apresenta
e seu tratamento de forma equitativa. Desse
uma proposta de aulas a partir da experiên-
modo, consideramos fundamental a sensibi-
cia vivenciada com as aulas voltadas para a
lização de futuros profissionais de saúde para
sensibilização dos alunos, com discussões,
que compreendam especificidades e deman-
problematizações e uso da arte - exposição
das de pessoas com necessidades específicas
de filme e desenvolvimento de encenações.
e que suas famílias atuem de forma integral
e responsável assegurando melhor acesso a Destaca-se que, embora as metodologias te-
direitos, como a inclusão e a atenção integral nham sido aplicadas para alunos do curso de
à saúde. Medicina para sensibilizá-los, elas podem
ser aplicadas a contextos diferentes, como
Para o desenvolvimento de competências
para outros cursos da área da saúde e da edu-
necessárias para a formação do profissio-
cação, voltadas para necessidades específicas,
nal médico, metodologias que promovam
porque a sensibilização é importante para a
a participação ativa do estudante são fun-
desconstrução de estigmas e pode ser repli-
damentais para a integração dos conteúdos
cada por pessoas que potencialmente convi-
no processo ensino-aprendizagem. A arte
verão com a diversidade em uma posição de
também pode ser utilizada como ferramenta
cuidar e educar para a inclusão.
educativa, pois ela possibilita que conceitos

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NA SALA DE AULA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Metodologias As aulas com enfoque na sensibilização dos


alunos quanto às pessoas com necessidades
utilizadas na específicas e suas famílias envolveram a se-
guinte sequência didática: 1. Apresentação
disciplina de filme e Brainstorming (chuva de ideias);
2. Problematização e mapa mental; 3. De-
Diferentes metodologias de ensino/aprendi- senvolvimento do arco de Maguerez; 4. Pro-
zagem foram utilizadas na disciplina, aten- posta de soluções a partir de encenações; e 5.
tando-se para a intenção pedagógica de cada Discussão sobre terminologias.
assunto ou objetivo abordado. Esse conteú-
No quadro 1, listamos as estratégias de ensi- Quadro 1.
do foi explorado em 7 aulas de 50 minutos.
no/aprendizagem utilizadas. Estratégias de ensino/
aprendizagem para
sensibilização dos estudantes.

Metodologia Objetivo Tempo de realização


1. Aulas 1 e 2: Identificar dificuldades em diferentes âmbitos da vida Duas aulas de 50 minutos
Apresentação do filme relacionadas a necessidades específicas e estimular a aplicação
“O filho eterno” e da empatia
Brainstorming
2. Aula 3: Discutir e esquematizar dificuldades enfrentadas, em diferentes Uma aula de 50 minutos
Problematização e âmbitos da vida relacionadas a necessidades específicas
mapa mental

3. Aula 4: Examinar problemas enfrentados em diferentes âmbitos da vida Uma aula de 50 minutos
Desenvolvimento do relacionados a necessidades específicas e propor soluções
arco de Maguerez

4. Aulas 5 e 6: Definir e expressar possibilidades de enfrentamento dos Duas aulas de 50 minutos


Proposta de solução a partir problemas enfrentados em diferentes âmbitos da vida
de encenação relacionados a necessidades específicas

5. Aula 7: Nomear terminologias para reduzir o impacto estigmatizante Uma aula de 50 minutos
Discussão sobre e negativo relativo a pessoas com necessidades específicas
terminologias no diálogo cotidiano e, em especial, com a família em um
contexto de atendimento em saúde

1. Apresentação do filme No âmbito familiar, o filme mostra a expec-


tativa dos pais durante a gestação ser frustra-
“O filho eterno” da com o peso do diagnóstico médico de uma
condição não considerada normal que é mar-
“O filho eterno”, filme baseado no livro de
cada de forma expressiva na linguagem, com
mesmo nome de Cristóvão Tezza (2007),
o uso de termos como “mongoloide”. Desde
retrata de forma sensível o processo de des-
o nascimento da criança, em 1982, o pai es-
construir a idealização do filho a partir do
tuda sobre a Síndrome de Down, procura
contato com uma criança com diagnóstico
uma cura e, ao reconhecer que ela não existe,
de Síndrome de Down (interpretado por Pe-
espera pelo fim da vida do filho com vergo-
dro Vinícius de Matos Francisco). A história
nha e culpa. Enquanto isso, em negação, ele
apresenta uma série de situações conflitantes
se afasta da criança e da mãe, processo que
que envolvem diferentes esferas da vida do
leva à solidão e à sobrecarga materna. A mãe,
menino e dos pais (papéis interpretados por
figura responsável pelo cuidado do menino,
Marcos Veras e Débora Falabella) e serviu
sente-se desamparada, o que é reforçado pela
como um disparador para discussões e dinâ-
negligência da escola ao rejeitá-lo, mas sua
micas realizadas durante a disciplina.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 55


NA SALA DE AULA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

proximidade com o filho permite que iden- identificadas no filme, seguindo a técnica
tifique nele pontos fortes e passe a amá-lo. de braimstorming (chuva de ideias). Inicial-
mente os alunos comentaram livremente,
No decorrer da obra, a potência da rede de expondo seus pontos de vista, percepções e
apoio no enfrentamento dos desafios relacio- vivências. Depois, eles foram direcionados a
nados à síndrome é evidenciada, como o do discutir coletivamente os seguintes pontos:
suporte familiar e profissional demonstrados i. abandono paterno; ii. rejeição paterna; iii.
pelo afeto da mãe, do avô, e pelo apoio da te- exclusão social (amigos, escola e ambientes
rapeuta à família para o enfrentamento das públicos em geral); iv. estímulo adequado ao
dificuldades encontradas. A prática de na- desenvolvimento da criança; v. acolhimento
tação pelo garoto, enquanto atividade física, familiar e médico.
apresenta-se como uma forma de produzir
saúde, desenvolver habilidades e encontrar Espera-se que, a partir dessas aulas, os alu-
novas possibilidades de resistência. nos compreendam que existem dificuldades
relativas às síndromes genéticas, exemplifi-
Abordagem do filme cadas pela Síndrome de Down, que podem
ser reduzidas com mudanças de atitude pes-
A utilização de diferentes cenários de práti- soais, familiares e sociais. Essas mudanças
ca auxilia no processo de ensino-aprendiza- podem e devem começar pelo estudante e
gem nos cursos da área da saúde quanto ao ser promovidas no âmbito da assistência e da
atendimento especializado envolvendo sín- educação em saúde.
dromes genéticas. No entanto, essa prática é
pouco explorada devido a restrições quanto
à quantidade de alunos, por exemplo. Desse
Problematização
modo, é comum os alunos terminarem suas e mapa mental
graduações sem terem contato com pessoas Após a exposição do filme e discussão livre e
com necessidades específicas e, portanto, dei- guiada dos temas que se destacaram nele, os
xando de desenvolver habilidades relativas à 40 alunos elaboraram coletivamente um úni-
abordagem desses grupos. Nesse sentido, o co mapa mental sobre as dificuldades enfren-
filme pode ser mais acessível e possibilita o tadas por pessoas com síndromes genéticas
reconhecimento de situações plausíveis em e suas famílias. O objetivo dessa ferramenta
cenários reais. foi identificar e esquematizar problemas, de
A ideia principal dessa abordagem foi esti- modo a facilitar a definição de estratégias de
mular nos alunos a empatia com a situação enfrentamento para a redefinição desse con-
familiar. A Síndrome de Down, exemplifica- texto enquanto futuros profissionais da saú-
da no filme, recebeu enfoque devido à preva- de e cidadãos.
lência: as chances de os alunos terem contato Para essa atividade, os alunos foram separa-
com essas pessoas é maior do que com pes- dos em 5 grupos de 8 alunos e cada grupo fi-
soas com outras síndromes. Além disso, exis- cou responsável por problematizar e elencar
tem dificuldades comuns entre ela e as outras dificuldades sobre um tópico do mapa men-
síndromes abordadas nas aulas referentes ao tal, com palavras-chave predefinidas para
conteúdo teórico de genética. Assim, o racio- cada grupo, sendo elas: família, sociedade,
cínio exercitado nas aulas para problemati- escola, trabalho e saúde. Esses tópicos estão
zar e buscar estratégias de cuidado efetivas, relacionados, mas foram separados no mapa
em conjunto com a família e a equipe médica, mental para evitar que questões fossem es-
pode ser extrapolado para outros contextos quecidas. Essa etapa durou 15 minutos.
da saúde.
O mapa mental foi construído de forma co-
O filme foi assistido em aula. Realizou-se laborativa. Cada grupo escreveu sobre seu
uma discussão coletiva, envolvendo os 40 tópico nos principais ramos do mapa mental.
alunos da turma, durante 20 minutos, so- Foi solicitado que os alunos escrevessem pa-
bre as dificuldades em diferentes âmbitos da lavras ou frases curtas que representassem o
vida relacionadas a necessidades específicas que foi discutido nos grupos (15 minutos).

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Após o preenchimento do mapa, cada grupo riências, acrescentar à discussão outras difi-
apresentou uma síntese do que foi discutido culdades que identificaram e, a partir disso,
e esquematizado no mapa (5 minutos/gru- os grupos complementaram o mapa mental.
po). A Figura 1 mostra um modelo digital basea-
do no mapa mental construído pelos alunos
Depois de todos os grupos apresentarem, os em sala.
alunos ficaram livres para compartilhar expe-

Figura 1.
Modelo do mapa mental
produzido durante a aula pelos
Desenvolvimento ponsável por desenvolver um Arco de Ma-
guerez e apresentar no formato de uma en-
alunos (autoral).

do arco de Maguerez cenação na aula seguinte.


Discutidas as problemáticas e definido o A primeira etapa do método, de observação
mapa mental, os alunos foram apresenta- da realidade, no contexto das aulas relacio-
dos ao método de problematização do arco nadas a uma síndrome genética, foi introdu-
de Maguerez (Figura 2), escolhido por ins- zida com a discussão sobre as dificuldades
tigar questionamento, síntese e procura por enfrentadas por essas pessoas. Nesse sen-
respostas levando em conta os diferentes tido, o mapa mental, organizado em eixos:
determinantes sociais que constroem uma família, sociedade, escola, trabalho e saúde,
problemática. favoreceu o entendimento de questões envol-
vendo diferentes aspectos da vida. A partir
Esse método solicita que o estudante parta
dessa observação, cada grupo formulou um
de uma situação problema envolvendo uma
problema, em forma de pergunta, afirmação
realidade social e retorne a ela propondo
ou negação, considerando a urgência e as
maneiras de solucioná-la, a partir de 5 eta-
possibilidades de enfrentamento que reco-
pas: observação da realidade, identificação
nheceram.
de uma situação problema, levantamento de
pontos-chave sobre ela, teorização, levanta- Na determinação de pontos-chave, os alu-
mento de hipóteses de solução e aplicação à nos deveriam identificar fatores associados ao
realidade. problema, que o contextualizavam, causavam
e reforçavam. Esses pontos foram sintetizados
Posteriormente, a turma foi dividida em 8
em tópicos que foram considerados essenciais
grupos de 5 alunos. Cada grupo ficou res-

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NA SALA DE AULA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

para pensarem sobre como interferir nessa A aplicação à realidade, nessa proposta de
realidade e melhorá-la. Feito isso, buscaram aula, foi realizada através da encenação, que
embasamento teórico para formular hipóte- deveria apresentar as reflexões suscitadas
ses de soluções viáveis para a problemática, o pelo Arco de Maguerez e conter uma solução
que envolveu criatividade e praticidade. para a problemática levantada.

Figura 2.
Esquema da aplicação do Arco
de Maguerez (autoral).

Proposta de solução a para o desenvolvimento do sujeito, encon-


tro de vocação e oportunidade de emprego
partir de encenação e relação médico-paciente. Essa construção
oportunizou, portanto, uma série de refle-
Cada encenação durou 10 minutos, reali-
xões importantes para a adoção de melhores
zadas em 8 grupos de 5 alunos, que apre-
condutas cotidianas e profissionais.
sentaram diferentes abordagens e reflexões,
sintetizadas no Quadro 2. Elas contribuíram Os problemas levantados pelos alunos e as
para a sensibilização da turma e para a res- propostas de soluções sugeridas poderiam
significação das problemáticas trabalhadas a ter sido outras, assim, foi importante que a
partir da expressão de possibilidades de en- facilitadora reconhecesse as habilidades dos
frentamento. grupos em identificar problemáticas, gerar
hipóteses, sintetizar e expor ideias de forma
Em nossa experiência, as encenações aborda-
clara e organizada e utilizar adequadamente
ram temas como: construção de autonomia,
o tempo - por conta da quantidade significa-
papel da família e da escola no acolhimento
tiva de alunos.

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NA SALA DE AULA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O Quadro 2 apresenta uma síntese das pro- do Arco de Maguerez e para as proposições
blemáticas expostas no mapa mental, que ser- encenadas pelos alunos, como uma adaptação Quadro 2.
Quadro de possíveis situações
viram como base para a etapa de observação da aplicação à realidade do método. enfrentadas por pessoas com
necessidades específicas e
propostas de intervenção
elaboradas e apresentadas pelos
alunos durante as encenações.
Situações problema enfrentadas Propostas de intervenção
por pessoas com necessidades específicas apresentadas nas encenações
Família - Isolamento do sujeito com a síndrome genética da família e de Preparo para acolher a pessoa com síndrome genética,
outras pessoas por vergonha, medo do julgamento e/ou com a mediado pela equipe de saúde a partir do diagnóstico,
intenção de poupá-lo do preconceito, que em dois extremos pode para que a família reconheça que existem dificuldades
segregá-los ou incluí-los como menos válidos e capazes, de forma devido à condição, mas que elas por si só não impedem
vertical e injusta, o que causa sofrimento o desenvolvimento de habilidades para uma vida
satisfatória, com autonomia
- Papel de cuidador centralizado em uma única pessoa, que é
sobrecarregada e abdica de outros aspectos de sua vida, como o É importante que o profissional de saúde estimule
trabalho e a saúde a atribuição e divisão de tarefas, a partir das
possibilidades da família e no seu tempo, a fim de
- Senso comum de que o sujeito com síndrome genética não é capaz
ajudar na construção da autonomia da pessoa com
de realizar atividades e consequente limitação da autonomia, o que
necessidades específicas, bem como na redução da
também alimenta a sobrecarga da pessoa que cuida
sobrecarga do cuidador

Sociedade - Isolamento contribui para a “falsa impressão” de que existem A educação para a inclusão deve envolver diferentes
poucas pessoas com síndromes genéticas, o que reduz a agentes como a família e a escola, sendo um pilar
visibilidade de suas demandas importante para a construção da percepção de que
existem outras possibilidades válidas de existência.
- O estigma da incapacidade permeia o âmbito social, de modo
O profissional de saúde pode participar desse processo
que pessoas envolvidas em diversas áreas da vida da pessoa com
promovendo espaços de diálogo em escolas, com
necessidades específicas podem dificultar sua permanência e seu
respaldo científico
desenvolvimento na escola e no trabalho, por exemplo

Escola/ - A instituição pode, injustamente, declarar-se inapta para incluir o Instituições formais, como escolas e universidades, não
Trabalho sujeito e/ou alegar que ele não consegue acompanhar a turma em devem se limitar a aceitar pessoas com necessidades
que estuda específicas em seus espaços, mas sim garantir condições
para que essas pessoas se desenvolvam e sintam-se
- A dificuldade de acesso dificulta que reservas de vagas em
pertencentes ao grupo
universidades e empregos sejam preenchidas, o que gera
desemprego e conduz esses sujeitos a subempregos A instituição considerada inapta para incluir deve
investir em recursos, melhorar sua estrutura, informar e
promover capacitações continuadas, porque a inclusão é
um direito dos cidadãos. E cabe a cobrança por políticas
públicas que o garantam
É importante que o profissional de saúde informe a
família sobre esse direito, acione outros setores como a
assistência social quando for o caso e que assegure uma
estrutura inclusiva no ambiente de atendimento

Saúde - Um olhar biologista do profissional restringe a percepção das A equipe de saúde deve acolher e construir com
questões de saúde e doença vivenciadas pela família ao eixo a família estratégias para o enfrentamento de
da síndrome genética, de modo que outras demandas sejam dificuldades, de modo a otimizar sua qualidade de vida
ofuscadas de forma interdisciplinar e integral. Isso inclui práticas
para o desenvolvimento de competências e autonomia,
- Quanto ao diagnóstico da síndrome, a maneira como ele acontece
bem como suporte psicossocial, compreendendo que a
pode contribuir para uma visão estigmatizada da condição e
pessoa não se reduz ao diagnóstico da síndrome
reforçar as dificuldades mencionadas
A educação em saúde é fundamental, com informações
seguras, enfoque nas potências do sujeito e adequação
da linguagem para reduzir o impacto negativo e
estigmatizante na comunicação
Capacitações para a formação continuada são
necessárias, como nos outros setores de serviços

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NA SALA DE AULA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Discussão sobre que assumissem a postura crítica e reflexiva


necessária para superar preconceitos e com-
terminologias preender o sujeito com síndrome genética
para além de seu cariótipo ou constituição
Na aula seguinte às encenações, os 40 alunos
genética particular.
foram convidados a compartilhar coletiva-
mente as palavras associadas a pessoas com Enquanto futuros profissionais de saúde,
síndromes genéticas e necessidades específi- destaca-se a potência da sensibilização quan-
cas que conheciam, etapa que durou 15 mi- to a pessoas com necessidades específicas,
nutos. As palavras foram escritas no quadro visando promoção de inclusão no desenvol-
e a proposta era que pensassem em outras vimento de estratégias para o acolhimento e
palavras para substituí-las, que fossem mais a comunicação. No contexto da saúde cole-
adequadas, a fim de reduzir o impacto nega- tiva, esses elementos são importantes para a
tivo e estigmatizante no diálogo cotidiano e promoção de mudanças capazes de redefinir
profissional, especialmente na comunicação questões relativas às síndromes genéticas.
com a família em um contexto de atendi-
mento de saúde. O momento de reflexão,
discussão e anotação das possíveis palavras Para saber mais
substitutas durou 30 minutos. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacio-
nal de Educação. Câmara de Educação Superior.
A relevância dessa aula deve-se ao fato de a Resolução N°. 3, de 20 de junho de 2014. Insti-
linguagem possibilitar mais do que uma for- tui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de
ma de se expressar, e, por conseguinte de pen- Graduação em Medicina e dá outras providências.
Diário Oficial da União, Brasília, 23 jun. 2014.
sar, compreender e agir em sociedade. Dessa Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.
forma, terminologias que podem ser usadas php?option=com_docman&view=downloa-
para reduzir o impacto negativo no diálogo d&alias=15874-rces003-14&category_slug=ju-
contribuem para a redução de estigma. nho-2014-pdf&Itemid=30192> Disponível em
20/02/2021.
Alguns exemplos compartilhados foram: ao
JUNIOR, João Francisco Duarte. Por que arte-edu-
invés de se referir a pessoa como “anormal”, cação? 7ª Edição. Papírus. Coleção Ágere. Cam-
“retardado”, “diferente”, “com problema” ou pinas, 1994, p. 11-26. Disponível em: <https://
“portadora” de algo, dizer pessoa com neces- pt.slideshare.net/abelferreirajunior/duarte-jr-
sidades específicas, com determinada síndro- -joo-francisco-por-que-arte-educao-campinas-s-
p-papirus-1994> Disponível em 20/02/2021
me ou com deficiência, mas se as pessoas que
estiverem conversando souberem o nome da VILLARDI, M. L.; CYRINO, E. G.; BERBEL, N.
pessoa a quem se referem não há necessida- A. N. A metodologia da problematização no ensino
em saúde: suas etapas e possibilidades. A problema-
de de usar outro termo. O termo “condição”
tização em educação em saúde: percepções dos pro-
também pode ser usado no lugar de “doença” fessores tutores e alunos [online]. São Paulo: Editora
porque a síndrome genética não é um estado UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica,p. 45-
a ser tratado, embora determinados sinto- 52, 2015. ISBN 978-85-7983-662-6. Disponível
mas possam ser. em: <http://books.scielo.org/id/dgjm7/pdf/vil-
lardi-9788579836626-05.pdf > Disponível em
20/02/2021.
O que fica?
As dinâmicas, por fomentarem diálogos e
trabalhos em equipe, contribuíram para que
os alunos construíssem conhecimentos em
conjunto, ao ouvirem, argumentarem e pra-
ticarem com o outro. Além disso, possibili-
taram a aproximação de uma quantidade sig-
nificativa de alunos com a temática de forma
criativa e propositiva.
O processo de sensibilização foi significativo
para os estudantes, enquanto sujeitos, para

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NA SALA DE AULA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Mendel para todas


as idades - uma prática
na educação de jovens
e adultos

Luiz Filipe de Macedo Bartoleti


EMEJA Nísia Floresta Brasileira Augusta, Campinas, SP
Autor para correspondência - luiz.bartoleti@educa.campinas.sp.gov.br

Palavras-chave: primeira lei de Mendel, práticas complementares,


cruzamentos, dominância, educação de jovens e adultos, EJA

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NA SALA DE AULA Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Este artigo relata a aplicação de uma prática simples e de baixo custo utilizada para trazer a
complexidade dos temas da genética para as salas de aula da Educação de Jovens e Adultos
(EJA). A atividade coloca os alunos no papel de Gregor Mendel ao realizar cruzamentos en-
tre diferentes plantas de ervilha e busca demonstrar, de forma lúdica, os processos que guiam
a formação dos diferentes fenótipos. Espera-se que esta atividade sirva como um ponto de
partida para a apresentação e discussão de temas mais profundos da genética que despertam
a curiosidade dos alunos.

A educação de decorados, merecem uma atenção ainda mais


especial. É de suma importância que os con-
jovens e adultos teúdos ministrados sejam capazes de dialogar
com as histórias de vida dos indivíduos que a
Apesar de seus alicerces enquanto políticas frequentam. Para isso, os docentes devem ser
públicas datarem da Constituição de 1988, a capazes de acessar os assuntos que desper-
Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Bra- tam curiosidade dos alunos e incluí-los em
sil ainda trilha caminhos tortuosos. Mesmo seus programas disciplinares. Práticas com-
sendo uma modalidade dentro da educação plementares, que envolvam experimentação,
básica e contando com um público potencial dinâmicas, pesquisas, também devem ser
de mais de 50 milhões de jovens e adultos utilizadas, de acordo com a disponibilidade
que não concluíram o ensino fundamental, a de cada instituição. O compartilhamento de
EJA frequentemente é relegada às sobras do práticas de baixo custo voltadas especifica-
ensino regular. mente a esse público, que em geral apresenta
dificuldades diferenciadas e trajetória escolar
Os alunos que ousam desbravar a modalida- descontínua, deve ser fortemente encorajado.
de costumam ter trajetórias de escolarização
truncadas pela necessidade de trabalhar, em
casa ou fora dela. Frequentemente descre-
A genética
vem seu tempo na escola como “fracassado”
e carregam consigo dificuldades e bloqueios
tem vez na EJA?
que demandam muito tempo e dedicação Geralmente, assuntos mais complexos cos-
para serem superados. tumam ser evitados pelos docentes em suas
turmas de EJA. Entre esses assuntos estão
A EJA e o currículo a discussão dos conceitos genéticos, consi-
derados como abstratos demais para o en-
de ciências naturais tendimento desses estudantes. Entretanto,
mesmo sem saber, a curiosidade dos alunos
A ausência de menção à EJA na nova Base por esse tema é frequentemente expressa
Nacional Comum Curricular (BNCC) é nas mais diversas situações dentro da sala de
emblemática sobre o tratamento à margem aula, seja indagando sobre doenças e síndro-
dispensado à modalidade. Essa característica mes congênitas; levantando questões sobre
confere ampla autonomia aos docentes para testes de paternidade; tentando entender
criar um plano pedagógico específico para como funciona a herdabilidade das caracte-
cada sala de aula. Nesse sentido, repensar o rísticas humanas; ou buscando orientação
currículo trabalhado na EJA deve ser prática sobre o que são os alimentos transgênicos –
frequente. As ciências naturais, que no en- uma vez que a genética permeia o imaginário
sino básico são tradicionalmente ensinadas desses alunos de muitas maneiras. O ensino
como uma sucessão de nomes e fatos a serem da genética na educação básica é costumei-

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 62


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ramente voltado aos conteúdos que são mais sam em homozigose) e dominantes (que
frequentes nos vestibulares do país, sem ne- se expressam em homozigose e heterozi-
cessariamente estabelecer relações com o co- gose);
tidiano dos alunos. É importante, então, que
os docentes encontrem maneiras de abordar - a característica observável na prole depen-
as bases da genética de forma a aproximar os de do estado dos alelos oriundos de am-
estudantes do assunto, sempre que possível bos os parentais;
estabelecendo um diálogo entre o conteúdo - num cruzamento entre heterozigóticos
e suas experiências de vida e corrigindo con- para uma característica com dominância
ceitos errôneos frequentemente assimilados completa, a proporção fenotípica da prole
em situações não escolares. respeitará a proporção 3:1.

Objetivos Contextualização
Esta proposta buscou elaborar uma dinâmi-
ca de baixo custo para trabalhar a primeira
das turmas
Lei de Mendel com alunos dos anos finais A atividade foi aplicada em duas turmas do
do Ensino Fundamental na modalidade de 3º termo (equivalente ao 8º ano do ensino
Educação de Jovens e Adultos. A dinâmica fundamental) do período noturno da EME-
é centrada na simulação de cruzamentos en- JA Nísia Floresta Brasileira Augusta, em
tre plantas de ervilha-de-cheiro (Pisum sa- Campinas/SP, sendo uma turma no primei-
tivum), similares aos realizados por Gregor ro semestre de 2019 e a outra turma no se-
Mendel (1822-1884) no século XIX, sendo mestre seguinte. A faixa etária dessas turmas
os alunos responsáveis por realizar todos os variava dos 26 aos 68 anos. Apesar da dife-
cruzamentos, anotar os genótipos e inferir os rença nas idades, eram turmas de convivên-
fenótipos de cada indivíduo. Assim, os alu- cia bastante harmoniosa e que, em comum,
nos assumiriam o protagonismo do experi- não conheciam e nem dominavam quaisquer
mento, não se limitando a decorar as propor- conceitos relacionados à genética.
ções passadas pelo professor.
Dentre os seus objetivos específicos, essa di-
1ª parte: abordagem
nâmica busca que o aluno compreenda que: prévia dos assuntos
- as características hereditárias são transmi- Para que fosse assegurada a total compreen-
tidas pelos parentais por meio de estrutu- são da prática, alguns assuntos foram trata-
ras denominadas cromossomos, presentes dos anteriormente na forma de aulas expo-
nos gametas masculino e feminino; sitivas. Os temas abordados foram: natureza
do material genético, o que é e onde se encon-
- nos cromossomos existem segmentos de tra o DNA; hereditariedade das característi-
DNA chamados genes que são as unida- cas genéticas e como o DNA dos parentais é
des genéticas das informações hereditá- transmitido à prole; os estados possíveis de
rias; dominância entre alelos (alelos dominantes
e recessivos); como é determinado o fenótipo
- os gametas dos parentais contêm apenas
em caracteres monogênicos com dominância
metade do número de cromossomos da
completa, isto é, de que forma os genes ex-
espécie;
pressam características que podemos obser-
- a união dos gametas masculino e feminino var externamente nos organismos; como se
recompõe o número original de cromos- dá a reprodução sexuada, com enfoque prin-
somos e dá origem a uma prole com mate- cipal em plantas angiospermas, em estrutu-
rial genético formado por metade de cada ras florais envolvidas na reprodução sexuada
parental; entre indivíduos diferentes. Todos os assun-
tos foram adaptados - tanto na forma quanto
- os alelos de um gene podem se apresentar no tempo dispensado a cada um deles - para
em dois estados: recessivos (que se expres- serem adequados à realidade de salas de EJA.

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Cerca de cinco aulas foram utilizadas para mar o nome de um cientista. Muitas vezes
abordar todos esses conteúdos, num modelo a resposta é o silêncio. Assim, mostrar que
prevalente de: explicação teórica mais debate Mendel fugia do estereótipo esperado de um
simultâneo, leitura de textos de apoio e reali- cientista, pode aproximá-lo dos estudantes.
zação de exercícios de fixação.
Além disso, a abordagem histórica da ciên-
2ª parte: Gregor Mendel, cia é fundamental para compreendê-la como
mutável e dinâmica. Frequentemente os alu-
muito prazer nos são informados que a ciência traz res-
No dia de aplicação da atividade prática, o postas definitivas, estáticas, de forma que
processo foi iniciado pela contextualização passam a desacreditá-la quando as descober-
histórica de Gregor Mendel. O objetivo não tas de hoje contradizem as de outra época.
foi fornecer descrição detalhada de sua vida e Entender que a mudança e a quebra de para-
obra, mas apenas chamar a atenção dos alu- digmas estão no cerne do processo científico
nos para quem era o cientista por trás da des- é fundamental para a sua devida compreen-
coberta. Chama bastante atenção o fato de são. Nesse sentido, é sempre necessário que
os alunos da EJA não estarem familiarizados o docente se aproprie do método científico
com cientistas quando se pergunta, em uma e busque trabalhar quaisquer conteúdos das
sala cheia de alunos, quantos saberiam infor- ciências naturais sob essa ótica.

Figura 1.
Estátua de Gregor Mendel,
localizada no mosteiro
onde viveu e realizou seus
experimentos em Brno, atual
República Tcheca (Créditos da
imagem: autoria própria).

3ª parte: cruzando les, verificar a consistência da hipótese de que


a prole de indivíduos heterozigóticos para
plantas de ervilhas uma dada característica respeita a proporção
fenotípica de 3:1. A característica escolhida
A proposta partiu do princípio de que os
para esta prática foi a cor da flor da ervilha-
alunos seriam colocados no papel de Mendel,
-de-cheiro, que pode ser púrpura (genótipos
em pleno século XIX, mas com boa quanti-
AA, Aa e aA) ou branca (genótipo aa). Na
dade de conhecimento científico acumulado.
aplicação desta prática, os dois fenótipos fo-
Eles seriam responsáveis por reproduzir os
ram nomeados “Vermelha” e “Branca” e serão,
cruzamentos feitos por Mendel e, a partir de-
deste ponto em diante, assim referidos.

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Figura 2.
Acima - Sementes de
ervilha destacando fenótipos
observados por Mendel (cores
verde ou amarela, textura lisa
ou rugosa). Abaixo - Canteiros
de ervilhas, similares aos
cultivados por Mendel. Notar
a proporção 3:1. Mendel
Museum, Brno, atual República
Tcheca (Créditos das imagens:
autoria própria).

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Todo o material utilizado nesta prática já es- sentavam os alelos dominantes e os alunos
tava disponível na escola, e a preparação foi deveriam identificá-los com a letra “A”, e os
feita individualmente por cada aluno. Mate- da outra cor eram os alelos recessivos, iden-
riais necessários: tificados com a letra “a”. Então, como ambos
os parentais eram heterozigóticos para a ca-
- Copos plásticos (2 por aluno); racterística estudada, os alunos colocaram o
- Papel colorido (duas cores contrastantes, mesmo número de círculos de cada cor em
de preferência do mesmo material); cada um dos copos, representando a propor-
ção idêntica da produção de gametas com o
- Tesoura; alelo dominante e o alelo recessivo.
- Caneta (para escrever no copo plástico e A partir disso, cada aluno iniciou os cruza-
no papel colorido); mentos, retirando um círculo colorido do
copo correspondente ao P1 e outro do copo
- Folha sulfite com a tabela do Anexo I im-
correspondente ao P2. Os alelos representa-
pressa.
dos por cada círculo foram transcritos para
Cada aluno recebeu dois copos plásticos, re- uma das linhas de uma tabela entregue pre-
presentando os dois parentais, e foram ins- viamente (Anexo I), já impressa com a sepa-
truídos a identificá-los com a caneta como ração por cruzamentos, e o fenótipo inferido
“P1” e “P2”. Em seguida, receberam pedaços para cada cruzamento também foi anotado.
dos papéis coloridos, que deveriam recortar Os alelos retirados em cada cruzamento fo-
em pequenos círculos de mesmo tamanho, ram devolvidos aos copos, para que a propor-
o que é muito importante para que não haja ção entre dominantes e recessivos não fosse
diferenças na probabilidade de sorteio de alterada. Esse processo foi repetido por 15
um dos alelos. Os círculos de uma cor repre- vezes.

Figura 3.
Representação esquemática
da dinâmica. Os dois copos
plásticos são os parentais, com
números iguais de círculos
de duas cores diferentes, que
correspondem aos gametas
com os alelos dominantes
e recessivos. À direita,
representação da ficha de
cruzamentos, indicando o alelo
proveniente de cada parental
e o fenótipo de cada indivíduo
da prole (V = vermelha, B =
branca).

Após a finalização desse processo por cada 15 cruzamentos feitos por cada aluno. Na
aluno, houve o compilamento das informa- lousa, foi efetuada a soma das flores verme-
ções de toda a sala e a construção de uma lhas e brancas obtidas. Para obter a propor-
tabela única. Nela, deveriam constar apenas ção entre os dois fenótipos, foi feita a divisão
a informação de quantas flores vermelhas e entre o número total de flores vermelhas pelo
brancas foram obtidas em cada conjunto de número de brancas.

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4ª parte: resultados A Figura 4 mostra os dados reais obtidos


por um dos grupos de alunos. Foi realiza-
obtidos do um total de 150 cruzamentos, dos quais
111 resultaram em indivíduos com flores
Houve um empenho bastante notável da
vermelhas e 39 com flores brancas. A pro-
parte dos alunos em todas as etapas práticas
porção entre flores vermelhas e brancas foi
do experimento, mesmo nas partes de prepa-
de 2,85, algo bem próximo das proporções
ração dos materiais que exigiam apenas dedi-
obtidas por Mendel em seus experimentos
cação manual (as tarefas de recortar e identi-
reais.
ficar os círculos coloridos, por exemplo).

Figura 4.
Tabela construída por uma das
turmas em que a atividade foi
aplicada (Créditos da imagem:
autoria própria).

5ª parte: consolidando escrita, mesmo quando dominam plenamen-


te o assunto abordado. Devido a isso, boa
os conhecimentos parte das atividades de consolidação dos co-
nhecimentos são feitas em formato de círcu-
É importante ressaltar que os educandos
los de cultura, por meio de sessões abertas
matriculados na Educação de Jovens e Adul-
de discussão entre todos os envolvidos em
tos costumam apresentar dificuldades em
determinada atividade.
articular suas ideias em forma de linguagem

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Após a ampla discussão dos mais variados fil de alunos que costuma concluir os estudos
temas levantados por meio da atividade prá- do Ensino Fundamental sem nunca ouvir fa-
tica, os alunos foram convidados a realizar al- lar do assunto.
guns exercícios de fixação de conteúdo (Ane-
xo II). Esses exercícios buscavam verificar se A ideia de colocar os alunos como realiza-
a dinâmica havia cumprido os seus objetivos dores dos cruzamentos foi primordial para o
específicos, de forma a propiciar a apropria- engajamento na aula. Embora feita de forma
ção dos conceitos pelos alunos. As questões individual, a dinâmica gerou uma extensa
em que os alunos apresentaram maiores di- troca de comentários por todos que estavam
ficuldades foram as dissertativas (4, 5 e 6). ávidos em saber se os resultados obtidos pe-
Na primeira, a principal dificuldade foi a ca- los colegas eram semelhantes aos seus. Nesse
pacidade de abstração, ou seja, de reconhecer sentido, a prática cumpriu o papel de estimu-
que o conhecimento aplicado para a colora- lar os alunos a participarem da construção do
ção das flores de ervilhas também se aplica aprendizado e a compreenderem o processo
às características monogênicas humanas. Na realizado por Mendel.
questão 5, a grande dificuldade foi transpor A partir dessa simples dinâmica, puderam
o conhecimento consolidado para a forma de ser abordados diversos temas, não apenas os
resposta escrita estruturada. É interessante relacionados às leis de Mendel. As discus-
notar que, mesmo após a incorporação dos sões após a prática centraram-se amplamen-
termos genéticos adequados em seu vocabu- te no método científico e no fazer ciência:
lário, os alunos continuaram utilizando em como extrapolar os resultados de seus expe-
suas respostas expressões que já conheciam e rimentos e criar modelos que sejam válidos
que cumprem bem o papel da ideia que eles para outras situações e/ou outros organis-
queriam passar (alelos “mais fortes” ou “mais mos? Em que ponto o modelo estruturado
fracos” em vez de “dominantes” e “recessivos”). passa a ser uma “lei”? Com isso, aspectos da
Por fim, as respostas dadas para a questão 6 filosofia e história da ciência tiveram que
mostram que houve consolidação do conhe- ser trazidos para a discussão, esclarecendo
cimento sobre a relação entre características a necessidade de que o experimento possa
observáveis (fenótipo) e as características ge- ser replicado e que obtenha resultado se-
néticas (genótipo) e a maneira como elas in- melhantes em outras condições e com ou-
fluenciam a determinação de características tros organismos antes de ser caracterizado
da prole. como Lei; e, também, a própria história dos
resultados de Mendel, que não foram pron-
Analisando a tamente aceitos e ficaram eclipsados até o
início do século XX, quando foram redesco-
experiência bertos, mostra que o percurso da ciência não
é sempre linear, mas sim caracterizado por
Dinâmicas e práticas como a apresentada mudanças constantes.
buscam aliviar o peso de aulas puramente
expositivas e promover a assimilação dos A discussão também contemplou a extra-
conteúdos por meio da participação ativa polação do observado nos cruzamentos com
dos alunos. Embora exista uma infinidade ervilhas para as características genéticas em
de atividades práticas criadas para trabalhar geral, principalmente as humanas. Traços
este conteúdo específico, optou-se por de- como a cor da pele, apesar de não serem es-
senvolver uma nova abordagem que levasse tritamente mendelianos, foram levantados
em consideração o perfil dos alunos, os co- pelos alunos e utilizados como exemplos
nhecimentos prévios da turma e a utilização para auxiliar na compreensão do papel dos
apenas de materiais comumente disponíveis genes na determinação das características
em escolas da Educação de Jovens e Adultos. observáveis. Outros traços como tipo san-
Assim, a prática que apresentamos, apesar de guíneo e daltonismo, que seguem herança
não esgotar ou aprofundar o tema das leis de mendeliana, foram trazidos também para
Mendel, foi eficaz em apresentá-lo a um per- complementar os exemplos.

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Outro aspecto que chamou bastante a aten- o cálculo foi realizado utilizando a soma de
ção dos estudantes foi o cálculo da proporção todos os cruzamentos, o valor encontrado
entre flores vermelhas e brancas. Boa parte chegou consideravelmente mais próximo da
deles argumentou que esperava que o resulta- proporção esperada. Assim, compreende-
do fosse exatamente 3, como predito pela hi- ram que a quantidade de cruzamentos afeta
pótese. Nesse ponto, foi necessário retomar o diretamente a proporção encontrada, e que
que são modelos científicos, além de aprofun- quanto mais cruzamentos forem realizados,
dar um pouco no que já havia sido falado de maiores as chances de alcançar um número
probabilidade. A compreensão por parte dos mais próximo ao esperado pelo modelo. As
alunos foi maior quando entenderam que a possíveis dificuldades e resistência esperadas
proporção de 75% para 25% é um modelo que em relação à matemática por parte dos alunos
considera um número infinito de cruzamen- foram facilmente contornadas, o que ressalta
tos, ou seja, essa é a probabilidade esperada, e as vantagens de se trabalhar esses conceitos
a chance de obtermos uma flor vermelha em de forma lúdica e prática. É importante que
um cruzamento é três vezes maior do que a essas dificuldades não desestimulem a apli-
de obtermos uma flor branca. Seguindo essa cação dessa atividade nem a abordagem de
discussão, também foi bastante interessante outros conteúdos que exijam certo grau de
falar sobre tamanho amostral. Observando compreensão matemática; é fundamental que
os cruzamentos realizados individualmen- o professor busque maneiras diferenciadas
te, eles perceberam que poucos encontra- de abordar esses temas, de modo a facilitar a
vam-se perto da proporção de 3:1. Quando compreensão pelos alunos.

Conclusões Além da efetividade, o custo foi virtualmente


nulo e o ganho de aprendizagem foi eviden-
te. O modelo de simulação de cruzamentos
Pelo empenho dos alunos na dinâmica, a
utilizando alelos construídos pelos alunos
qualidade da discussão que se seguiu e a ob-
é facilmente adaptável para explorar outros
servação dos exercícios de fixação realizados,
temas como formação de gametas, segunda
percebe-se que esta prática foi efetiva em
Lei de Mendel e até mesmo assuntos mais
apresentar a primeira Lei de Mendel para
avançados como endogamia e deriva genéti-
o público da Educação de Jovens e Adultos.
ca, entre outros.

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Anexo I:
Tabela para a realização dos cruzamentos.

Parental 1 Parental 2 Cor da flor

Cruzamento 1

Cruzamento 2

Cruzamento 3

Cruzamento 4

Cruzamento 5

Cruzamento 6

Cruzamento 7

Cruzamento 8

Cruzamento 9

Cruzamento 10

Cruzamento 11

Cruzamento 12

Cruzamento 13

Cruzamento 14

Cruzamento 15

Lembre-se:
AA, Aa ou aA = vermelha
aa = branca

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Anexo II:
Exercícios de fixação dos conteúdos apresentados aos alunos após a prática.

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Isoenzimas de amilase:
acessando a
diversidade genética

Kátia Luiza Kraemmer1, Marcos Trindade da Rosa2,


Lenira M. N. Sepel3, Elgion L. S. Loreto4
1
Licencianda do curso de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Santa Maria, RS
2
Doutorando do PPG em Biodiversidade Animal, Universidade Federal de Santa Maria, RS
3
Departamento de Ecologia e Evolução, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS
4
Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS
Autor para correspondência - elgion@base.ufsm.br

Palavras-chave: variabilidade genética, ensino de genética, isozimas, polimorfismo gênico

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Um desafio no ensino de Genética na graduação é mostrar ao aluno a dimensão da diversi-


dade genética existente nas populações, principalmente em relação ao fator molecular. Tra-
zemos neste artigo o relato de uma experiência didática que temos empregado com sucesso.
Utilizamos o sistema de eletroforese de gel de agarose, usado para separar ácidos nucléicos
que são muito comuns em laboratório de genética e biologia molecular para analisar amostras
de DNA e RNA. Com sistema de eletroforese e alguns reagentes de fácil acesso (insetos dos
cereais, amido de milho e solução de iodo) é possível que os alunos realizem uma atividade
prática que permite vislumbrar a diversidade genética de isoenzimas de amilase.

Em nossas atividades os alunos colocam a sadores que trabalhavam com milho tinham
mão na massa fazendo o experimento. São coleções de sementes para plantas que pro-
questionados a interpretar os resultados e, duziam espigas com grãos de cores e formas
posteriormente, são abordados aspectos his- variadas.
tóricos sobre as pesquisas com isoenzimas.
Não apresentamos aqui uma receita de uma Na natureza parecia ser diferente, não se
atividade prática, mas o relato de como foi observavam tantas variantes nas populações
feito. Sugerimos aos interessados em imple- selvagens, fossem de animais ou de plantas.
mentá-la em sala de aula que realizem tes- Fora dos laboratórios, é raro encontrar indi-
tes e façam as adaptações necessárias para o víduos de Drosophila melanogaster que não
contexto em que estão inseridos. Entretanto, tenham olhos vermelhos. Os organismos
antes de descrever a atividade prática, apre- de uma mesma espécie seriam, na natureza,
sentaremos uma contextualização histórica, todos geneticamente muito parecidos? As
para que, principalmente para os que não vi- comparações entre as populações naturais
veram o período de pesquisa em genética em e as mantidas em laboratório criaram mui-
que as isoenzimas eram uma ferramenta de tas dúvidas sobre a variabilidade genética
vital importância, possam compreender as presente nas populações. A primeira ideia
questões daquela época. foi atribuir ao processo de seleção natural a
exclusão de todas as variações genéticas que

Um pouco surgem na natureza, deixando nas popula-


ções somente os alelos selecionados. Por isso,
de história os organismos de uma espécie seriam todos
muito semelhantes entre si, tanto na morfo-
A metodologia de detecção de isoenzimas logia quanto nos genes.
por eletroforese em gel foi de grande im- As interpretações sobre a presença e impor-
portância na pesquisa genética a partir dos tância da variabilidade genética nas popula-
anos 1960. Ela permitiu desvendar uma di- ções começou a mudar a partir da década de
versidade genética antes desconhecida. Na 1960, com o desenvolvimento de novas téc-
primeira metade do século XX, a análise nicas para analisar conteúdo de proteínas em
genética estava restrita à observação de fe- amostras biológicas. No final dos anos 70,
nótipos morfológicos e a presença de diver- tornaram-se muito frequentes as pesquisas
sidade genética era percebida em lócus cujos utilizando separação de proteínas em campo
alelos provocavam variações visíveis. Nos elétrico, chamadas de estudo de isoenzimas
laboratórios, os primeiros geneticistas guar- por eletroforese em gel. Isoenzimas ou iso-
davam coleções de organismos com alelos zimas é o nome dado a enzimas que catali-
mutantes como, por exemplo, mosquinhas sam a mesma reação química, mas diferem
drosófila com diferentes cores para os olhos, na sequência de aminoácidos. As isoenzimas
incluindo olhos brancos, rosa, marrom, cor podem ser produto do mesmo lócus gênico,
de pêssego e outras tonalidades. Os pesqui- nesse caso representam a expressão de dife-

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rentes alelos, mas também podem ser pro- homogeneizadas e aplicadas em um gel, geral-
dutos de genes diferentes (Box 1). Quando mente feito de amido, agarose ou de poliacri-
as isoenzimas são devidas a alelos diferentes, lamida. O gel com as amostras é submetido
também podem ser chamadas de aloenzimas a um campo elétrico e as proteínas que estão
ou alozimas. nas amostras se deslocam no interior do gel. A
migração das proteínas ocorre de acordo com
Para o estudo de isoenzimas por eletrofore- a carga elétrica, a forma ou o tamanho delas.
se, amostras de um tecido ou organismo são

BOX 1.
Na parte A da figura, o gene K tem dois alelos, K-1 e K-2. O alelo K-2 tem duas mudanças de bases em relação a K-1, acarre-
tando substituições de aminoácidos de carga (-) por aminoácidos com carga (+); assim, os alelos K-1 e K-2 codificam proteínas
que têm cargas elétricas diferentes. O gene W não apresenta variações alélicas e codifica para uma enzima de maior tamanho.
Na parte B da figura, as isoenzimas em um gel, representado pelas linhas formando uma rede, estão sob ação de um campo
elétrico e vão migrar (setas). As proteínas com carga elétrica líquida positiva vão migrar para o polo negativo. Quanto mais
carregado positivamente, mais rápida será esta migração. Isoenzimas com diferentes pesos moleculares migrarão também com
velocidade diferente. As moléculas menores migram mais rapidamente que as maiores porque estas vão ter mais dificuldade de
percorrer a matriz formada pelos polímeros que compõem o gel. Neste caso, a isoenzima codificada pelo gene W migra mais
lentamente, pois tem maior tamanho.

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Depois que o processo de eletroforese termi- diferentes) elas se deslocam com velocidades
na, as enzimas podem ser detectadas no gel distintas durante a eletroforese. A velocida-
utilizando-se os substratos que elas reconhe- de de migração típica de cada isoenzima faz
cem. A reação que uma enzima catalisa deve com que elas apareçam em posições diferen-
ocorrer e o produto da reação enzimática tes no gel. Assim, através da separação por
será visualizado geralmente pela produção eletroforese, é possível acessar uma parcela
de alguma alteração de cor no local da reação. de variantes enzimáticas que existem nos or-
ganismos, ou seja, é possível observar a exis-
As isoenzimas podem ser estudas em con- tência de isozimas que tenham migrações em
junto porque utilizam o mesmo substrato e velocidades de deslocamento diferentes du- Figura 1.
realizam a mesma catálise, mas por terem di- rante a eletroforese. Essa é apenas uma parte
Um exemplo de padrão
ferenças em suas estruturas primárias (pre- eletroforético para isoenzimas.
da variabilidade genética possível para as en- Pode-se observar diferentes
sença de aminoácidos com cargas elétricas zimas (Figura 1). isoenzimas pelas posições
que elas ocupam no gel após
o processo de migração. As
amostras 3, 4, 9, 10 e 12 são
homozigotas e carregam o
mesmo alelo. Os indivíduos 5, 8
e 9 também são homozigotos,
evidenciado por terem uma
só banda, mas têm alelos
diferentes, pois migram
em posições diferentes no
gel. As amostras 1, 2, 6 e
7 representam genótipos
heterozigotos pois a coloração
no gel indica a presença de
duas bandas.

A técnica de eletroforese para separação de Com o desenvolvimento das técnicas de Bio-


isoenzimas revelou-se muito eficiente e vá- logia molecular, o estudo de isoenzimas foi
rios grupos de pesquisa, mundo afora, mon- perdendo relevância. Hoje, poucos labora-
taram laboratórios que permitiam processar tórios ainda mantêm a metodologia de ele-
um grande número de amostras e muitas en- troforese de isoenzimas como rotina; nesses
zimas diferentes foram estudadas em relação casos, o principal objetivo é caracterização
à presença de variantes isoenzímicas. Os re- funcional de enzimas. As pesquisas sobre
sultados dessas pesquisas rapidamente indi- variabilidade genética passaram a priorizar
caram que a variabilidade genética no mundo estudo de polimorfismos de DNA, primei-
das enzimas era muito maior do que se ima- ro com a análise de amplificações por PCR
ginava até então. As populações naturais po- e, mais recentemente, através da análise de
dem ter baixa variabilidade morfoanatômica, polimorfismo de nucleotídeos através de se-
mas se apresentam muito diversificadas em quenciamento do DNA.
relação à presença de formas variantes de en-
zimas. Neste artigo apresentamos uma atividade
de eletroforese de isoenzimas, destinada aos
No final do século XX, o avanço das me- cursos de graduação da área biológica e que
todologias de clonagem molecular, ampli- tem sido aplicada como atividade prática em
ficação e sequenciamento de DNA per- disciplinas de Genética e Biologia molecular.
mitiram estudar os genes diretamente. A A enzima escolhida é a amilase e uma das
variabilidade genética passou a ser anali- vantagens da atividade é o sistema de eletro-
sada através da sequência de nucleotídeos forese e géis utilizados serem os usualmen-
do DNA e as conclusões obtidas com a te empregados em laboratórios de Biologia
análise de isoenzimas foram confirmadas e molecular para visualização de DNA/RNA.
ampliadas – as populações apresentam-se Além disso, os reagentes necessários para a
muito mais variáveis molecularmente do revelação das isoenzimas são de fácil obten-
que se imaginava. ção e de baixo custo.

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A atividade tem como objetivo principal de amostra (glicerol 90%; completar com so-
apresentar aos alunos a variabilidade ge- lução de bromofenol 2%, em tampão TAE).
nética observável em relação às proteínas. A adição do tampão de amostra facilitará a
A execução da prática permite também re- aplicação no gel (Figura 2-C) e permitirá,
visar conteúdos de biofísica e bioquímica. pela presença do azul de bromofenol, acom-
A técnica de eletroforese e sua aplicação à panhar o processo de migração das amostras
investigação de isoenzimas também propi- no gel.
cia discussões sobre a história recente das
pesquisas em Genética, considerando que Preparação das amostras
esta metodologia permitiu redimensionar a
presença da variabilidade genética das po-
e eletroforese
pulações e fomentou a discussão das teorias A amilase é uma enzima presente em muitos
neutralistas e selecionistas. Os selecionistas organismos. No experimento aqui descrito,
defendiam que a principal força para moldar são analisadas amilases de cinco amostras:
a evolução é a seleção natural. Os neutralistas saliva humana; cotilédones de feijão; Sito-
apontavam que a deriva genética é uma força philus oryzae (animais adultos); larvas de Tri-
importante, capaz de explicar a grande varia- bolium castaneum; e larvas de Stegobium pani-
bilidade genética observada molecularmente. ceum. As larvas são de coleópteros também
As evidências mostraram que os neutralistas conhecidos como gorgulhos, são fáceis de
estavam certos e que, embora a seleção na- encontrar porque são pragas muito comuns
tural seja responsável pela evolução adaptati- em cereais armazenados. Os cotilédones de
va, ocorrem mudanças evolutivas, por deriva feijão foram coletados de plântulas com 3 a 4
genética, em caracteres que não estão sobre dias de germinação em algodão e água.
pressão adaptativa.

Com a mão
na massa
Além de estimular a curiosidade sobre as-
pectos históricos e discussões clássicas sobre
a importância da variabilidade genética nas
populações e sobre as teorias que explicam
a manutenção dessa variabilidade, também é
Sitophilus oryzae
possível discutir o uso das isoenzimas como
ferramenta para estudos filogenéticos.

O sistema de eletroforese
O gel é de ágar bacteriológico ou agarose
(1%) em tampão TAE usado para eletro-
forese de DNA: (“T” de tris hidroximetil
aminometano - 40 mM; “A” de ácido acético
- 20 mM e “E” de EDTA - 1 mM). O siste-
ma de eletroforese é o de mini-gel horizon- Tribolium castaneum
tal submarino (Figura 2-A) e os poços para
aplicação da amostra também são feitos com Todas as amostras foram maceradas em água,
o mesmo pente usado para eletroforese de mas com volumes adequados a cada tipo de
DNA (Figura 2-B). material. A padronização dos volumes para
cada amostra foi uma etapa importante para
Para a aplicação das amostras, também foi possibilitar a repetibilidade dos resultados e
usado o procedimento típico de aplicação as comparações entre as amostras. Os volu-
de DNA em gel; as amostras contendo as mes preestabelecidos de água são apresenta-
isoenzimas foram misturadas com tampão dos na Tabela 1.

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Amostra Quantidade de água Quantidade aplicada Tabela 1.


Preparação das amostras.
6 gorgulhos do arroz 50 μl 15 μl
1 cotilédone de feijão 300 μl 10 μl
2 larvas de gorgulho da farinha 100 μl 15 μl
1 larva de Tribolium 300 μl 20 μl
100 μl de saliva 100 μl 20 μl

As amostras foram processadas diretamente tampão de amostra foram misturados e apli-


em tubos de microcentrífuga, empregando cados nos poços dos géis com auxílio de mi-
um embolo de homogeneização. Os volumes cropipeta, como mostrado na Figura 2-C. A
de amostra aplicados no gel também foram migração ocorre com o gel imerso na solução
adequados para cada material e são informa- tampão TAE, com a aplicação de corrente
dos na Tabela 1. Volumes iguais de amostra e elétrica de 75V por cerca de 35 minutos.

Figura 2.
Separação de isoenzimas
por eletroforese. A) Sistema
para eletroforese em mini-
gel horizontal, comumente
empregado para separação de
DNA; B) Preparação do gel
de agarose com o pente para
a formação dos poços onde
as amostras são aplicadas; C)
Aplicação das amostras com
auxílio de uma micropipeta no
gel submerso em tampão na
cuba para eletroforese.

Revelando as isoenzimas 200 mg de amido de milho (maisena) dissol-


vido em 100 mL de água. É necessário ferver
Uma vez terminada a migração, o gel é re- a mistura de água e amido por 1 minuto para
tirado da cuba e imerso em uma solução de que ocorra a dissolução do amido.
amido. Esta solução deve estar à temperatura
O gel ficará mergulhado na solução de ami-
ambiente, sendo previamente preparada com
do por 15 minutos e depois deverá ser lavado

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em água corrente para remover a solução de das isoenzimas no gel), contrastando com
amido. Depois de lavado, o gel deve ser ex- o fundo escuro no qual não há presença de
posto a gotas de lugol ou tintura de iodo 2%. amilase (Figura 3). Esse padrão de coloração
A solução de iodo 2% pode ser comprada em é explicado pelo fato de a solução de amido
farmácia, pois é usada como desinfetante lo- ter se difundido no gel (por isso todo o gel
cal. O gel deve ficar na solução de iodo por cora com a solução de iodo) mas, nas regiões
cerca de 5 minutos e, depois desse período, do gel onde estão as moléculas de amilase, o
será novamente lavado em água corrente amido foi degradado (por isso a coloração
para remover o excesso de iodo e permitir a será mais clara). A solução de iodo interca-
visualização das bandas. la-se à do amido, dando uma cor escura e as
amilases consomem o amido que entra em
As regiões claras observadas no gel corres- contato com elas, reduzindo a coloração nas
pondem às bandas das isoenzimas (posição regiões onde estão presentes.

Figura 3.
O gel de ágar-ágar tratado
com amido hidrolisado após
revelação com solução de
iodo. Podem ser vistas as
bandas claras no fundo escuro:
1) Gorgulho do arroz; 2)
Cotilédone de feijão; 3) Larvas
de gorgulho da farinha; 4)
Tribolium; 5) saliva humana.
A amostra 5, ao contrário das
demais, migrou um pouco para
o polo positivo.

Contextualizações incentivados a buscar outras fontes de amila-


se e caracterizar as enzimas por eletroforese.
didáticas Muitas plantas possuem amilase. Pode-se
questionar os alunos: diferentes variedades
Alguns pontos são relevantes para o profes- de feijão ou de milho podem ter isoenzimas
sor conduzir questionamentos com os alu- de amilase variantes?
nos e assegurar um melhor aproveitamento Outro aspecto interessante a ser explora-
da atividade prática. Por exemplo, pode-se do é o aspecto histórico, colocando a aná-
questionar por que a amilase da saliva foi a lise de isoenzimas como fonte importante
única amostra a migrar para o polo positivo? de argumentos para a discussão entre as
Notar ainda que esta amostra pouco migrou. escolas neutralistas e selecionistas que
Indicar uma revisão bibliográfica sobre pon- debateram intensamente sobre o papel
to isoelétrico de uma proteína. da seleção natural e da deriva genética no
Esta técnica também permite projetos inves- processo evolutivo no final do século pas-
tigativos. Por exemplo, os alunos podem ser sado.

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Jogo CSI, simulando a


análise de um crime
para ensinar genética

Tiago M. Degrandi1, Franciele F. Kerniske1, Karine F. Colesel2,


Mara C. de Almeida1, Roberto F. Artoni1
1
Programa de Pós-Graduação em Biologia Evolutiva, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Campus Uvaranas, Ponta Grossa, PR
2
Graduação em Ciências Biológicas, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Campus Uvaranas, Ponta Grossa, PR
Autor para correspondência - t.degrandi@yahoo.com.br

Palavras-chave: genética forense, tipo sanguíneo, cariótipo humano, sequenciamento de DNA, marcador genético

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O jogo CSI inclui um conjunto de análises da genética e biologia molecular, aplicadas no con-
texto da investigação de um crime. Os alunos assumem a posição de investigadores e devem
analisar um conjunto de pistas para indicar um suspeito. O jogo favorece o desenvolvimento
de trabalhos em equipe, a troca de conhecimentos e a criatividade. Com aplicação deste jogo, o
professor pode abordar integradamente diferentes temas como tipo sanguíneo, cariótipo hu-
mano, composição e sequenciamento do DNA, tornando o processo de ensino mais dinâmico
e estimulante. A aplicação deste jogo pode ser realizada com estudantes de ensino médio e de
graduação.

Apresentação do item Procedimento para os estudantes e de


todas as figuras que serão analisadas pelos
do jogo estudantes, em número suficiente para todos
os grupos. Adicionalmente, será necessário
A genética forense compreende um conjunto materiais como régua, caneta, tesoura, cola
de técnicas da genética e da biologia molecu- branca e fita adesiva.
lar que auxiliam a justiça durante a investi- Uma compilação do conteúdo teórico e prin-
gação de crimes. Pensando nisso, elaboramos cípios das técnicas e análises que são utili-
um jogo que recebeu o título CSI, sigla do in- zados no jogo CSI é apresentado na sessão
glês Crime Scene Investigation. É importante Suporte Teórico deste artigo e poderá ser dis-
destacar, que o objetivo deste jogo não é dis- ponibilizado aos estudantes para consulta.
cutir a viabilidade e quais técnicas e/ou mar- As respostas para as questões levantadas e os
cadores moleculares são utilizados na gené- resultados dos testes encontram-se no item
tica forense. O objetivo é utilizar o contexto Respostas sendo este de uso exclusivo do pro-
da investigação de um crime para abordar de fessor.
forma integrada temas como cromossomos,
cariótipo, sistema do tipo sanguíneo ABO, Para introduzir o problema a ser solucio-
padrão de herança mendeliana, composição nado durante o jogo CSI, faça uma breve
e sequenciamento do DNA. Estes temas es- apresentação explicando que o delegado da
tão inseridos na forma de testes que foram cidade recebeu uma carta de uma mãe, na
realizados com as amostras biológicas coleta- qual são relatados os episódios envolvidos
das na cena do crime, e devem ser analisados no desaparecimento de sua filha. Ressal-
para encontrar o culpado. Com a aplicação te que o fato ocorreu há mais de 30 anos
do jogo é possível estimular a curiosidade, a e que a investigação foi encerrada sem
criatividade, o raciocínio e também o desen- que houvesse a indicação de um culpado.
volvimento de trabalhos em equipe. Deve ainda, explicar que conseguiu acesso
a todo material relacionado à investigação
Como aplicar na época e que novas análises como o se-
quenciamento do DNA foram realizadas
a atividade na atualidade, porém, ainda necessitam de
interpretação. Todo este material será for-
Procedimentos para o professor necido com exclusividade aos alunos para
que o analisem e apresentem os resultados,
A classe pode ser dividida em grupos de 4 podendo assim identificar evidências de um
a 6 estudantes. O professor deve providen- culpado e embasar um pedido de reabertura
ciar com antecedência a impressão ou cópia da investigação.

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Após a introdução do jogo, forneça a Carta professor pode utilizar este espaço para criar
(Figura 1), o Boletim de ocorrência (Figura 2), interações entre os grupos.
a Figura dos personagens (Figura 3) e o item
Procedimento aos alunos. Os Testes devem ser Ao final do jogo, cada grupo deve apresentar
fornecidos seguindo a sequência dos mesmos a história como um todo, explicando como
à medida que tenham sido concluídos corre- os testes realizados foram eliminando cada
tamente pelo grupo. Além disso, durante o um dos suspeitos até chegar na identifica-
jogo existem duas pausas para que os alunos ção do culpado. O professor deve solicitar
realizem apostas para culpados. A primeira que cada grupo escreva uma matéria para o
delas ocorre após os alunos identificarem jornal local, relatando as novas evidências
os suspeitos e analisarem os álibis apresen- do Caso Suzy que permitiram a solução do
tados no Boletim de ocorrência. A segunda é caso. Esta tarefa pode ser entregue na sema-
realizada após a finalização do teste n. º 7, o na seguinte.

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Procedimentos para os estudantes


Vocês irão atuar como peritos forenses no caso de desaparecimento da Suzy Anjos Demétrio. O objetivo é tentar identi-
ficar um culpado através das análises de todo material envolvido na investigação e de testes realizados com as amostras
coletadas na cena do crime. Para isto, siga os procedimentos descritos a seguir:
1. Analise a Carta da senhora Lavínia Anjos Demétrio (Figura 1) e o boletim de ocorrência (Figura 2). Identifique todos
os personagens envolvidos e liste quem foram as pessoas consideradas suspeitas pelo desaparecimento da Suzy.
2. Analise o perfil dos suspeitos (Figura 3) e seus respectivos álibis apresentados em seus depoimentos contido no
boletim de ocorrências (Figura 2). Discuta com os colegas do grupo para realizar uma primeira aposta do culpado.
Apresente os argumentos sobre o motivo da escolha e ao final, sinalize o nome do suspeito escolhido pelo grupo na
figura 3.
3. Analisar a cena do crime e as amostras coletadas no local (Figura 3). Conforme descrito no Boletim de ocorrência,
foram coletadas três amostras de sangue, uma no chão do banheiro e as outras na ponta e no cabo da faca. Listar que
análises podem ser realizadas utilizando as amostras de sangue para atribuir a um dos suspeitos a cena do crime.
4. O próximo passo da investigação é analisar e anotar os resultados dos testes realizados com as amostras coletadas na
cena do crime e também as amostras dos envolvidos.
a. Teste n.º 1 - Teste para tipo sanguíneo das amostras coletadas no local do crime (Figura 4). Utilize o material de
suporte teórico para interpretar o teste e responda: Todas as amostras pertencem a uma única pessoa?
b. Teste n.º 2 - Cariótipo das amostras n.º 1 e n.º 3 (Figuras 5 e 6, respectivamente). Iniciar pela contagem e deter-
minação do número diploide de cromossomos (2n). Em seguida recortar os cromossomos e montar o cariótipo, siga
as instruções apresentadas no suporte teórico no item cariótipo humano. Observe que a amostra n.º 2 não fará mais
parte dos testes seguintes, pois supostamente pertence à mesma pessoa. O cariótipo pode servir para distinguir o
sexo de uma amostra? Por quê? Para a amostra pertencer a um homem, quais cromossomos ela deve apresentar?
Para a amostra pertencer a uma mulher, quais cromossomos ela deve apresentar?
c. Teste n.º 3 - Teste para determinação do sexo das amostras n.º 1 e n.º 3 (Figura 7). Para complementar a identi-
ficação do sexo das amostras realizadas por meio do cariótipo, também foi realizada a técnica de reação em cadeia
da polimerase (PCR), para amplificar os genes SRY e AMEL, que são facilmente analisados por eletroforese em gel
de Agarose (Figura 7). O gene SRY está presente apenas no cromossomo Y, enquanto o gene da AMEL é localizado
tanto no cromossomo X, quanto no cromossomo Y. O resultado deste teste confirmou o resultado encontrado no
teste do cariótipo?
d. Teste n.º 4 - Análise do tipo sanguíneo na família Demétrio (Figura 8). O sangue da amostra n.º 1 pode pertencer
a Suzy? Para responder esta questão, analise o tipo sanguíneo dos familiares da Suzy (Mãe, Pai, Irmão) consideran-
do o sistema ABO e Rh (Figura 8). A análise deve começar pelos pais, Lavínia Anjos Demétrio e Olavo Demétrio, e
comparar com o irmão Xavier e a amostra n.º 1, que supostamente pode pertencer a Suzy. Quais tipos sanguíneos
poderiam ser esperados nos filhos biológicos do casal Lavínia e Olavo? A amostra n.º 1 pode pertencer a Suzy? O
tipo sanguíneo de Xavier é compatível com o esperado para filhos do casal?
e. Teste n.º 5 - Análise do padrão de herança esperado do tipo sanguíneo do casal Lavínia e Olavo (Figura 9):
Considerando os tipos sanguíneos da senhora Lavínia e do senhor Olavo encontrados no teste anterior, realize o
cruzamento e observe quais tipos sanguíneos são esperados nos filhos. Considere o genótipo ii para o sangue do
tipo O e os genótipos IAIA e IAi para o tipo A (Figura 9). Comparem os resultados esperados no cruzamento, com os
resultados encontrados no teste do tipo sanguíneo da família Demétrio. O irmão Xavier é filho biológico do casal?
Um teste de paternidade pode confirmar este resultado?

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f. Teste n.º 6 - Teste de paternidade da família Demétrio (Figura 10): Os testes de paternidade são realizados utili-
zando o padrão de amplificação do DNA de marcadores STR que consistem em sequências curtas de DNA repeti-
tivo que variam em tamanho devido ao número de repetições. Neste teste em particular, foram então utilizadas as
amostras de DNA da Lavínia (mãe), do Olavo (pai), do Xavier (irmão), e da amostra n.º 1 considerando o padrão
de seis marcadores STR. Para realizar a interpretação deste teste, utilizem a régua para comparar cada uma das
bandas amplificadas entre os pais, o Xavier e a amostra n.º 1 (Figura 10). Deve-se observar o número de bandas
compatíveis entre os pais e os filhos. Marque com um X as bandas compatíveis. A amostra n.º 1 pertence a Suzy?
O teste de paternidade confirma a suspeita de que Xavier não é filho biológico do casal?
g. Teste n.º 7 - Teste do tipo sanguíneo dos suspeitos (Figura 11): Partindo para a análises dos suspeitos identifi-
cados, também foi realizado o teste do tipo sanguíneo buscando identificar se um deles pode ser compatível com
a amostra n.º 3, que foi coletada no cabo da faca. Determine o tipo sanguíneo de cada um dos suspeitos e elimine
os suspeitos cujo tipo sanguíneo não seja compatível com a amostra n.º 3.
h. Pausa para uma nova rodada de aposta para culpado: Após alguns dos suspeitos terem sido eliminados pelo teste
do tipo sanguíneo e diante deste novo cenário onde restaram Xavier Demétrio, David Petrel e Lucian Ramires como
suspeitos, realize uma nova discussão e aposta para o culpado. Caso tenham apostado em Xavier, David e Lucian e
não queiram trocar, continue para o teste n.º 8.
i. Teste n.º 8 - Teste de comparação do perfil genético entre a amostra 3 e os suspeitos Xavier Demétrio, David Petrel
e Lucian Ramires, baseado em 6 marcadores STR (Figura 12). O resultado deste teste é primeiramente analisado
na técnica de eletroforese, semelhante ao teste de paternidade que foi realizado anteriormente. Realize a análise
comparativa entre as bandas do DNA da amostra de n.º 3 e os suspeitos. Marque as bandas compatíveis, no caso
de todas as bandas serem compatíveis o resultado será inconclusivo e deve-se proceder para o teste de sequencia-
mento do DNA. Algum dos suspeitos pode ser eliminado com este teste?
j. Teste n.º 9 - Sequenciamento do DNA de seis marcadores STR para a mostra n.º 3 (Figura 13), para David Petrel
(Figura 14) e Lucian Ramires (Figura 15). Considerando o resultado do teste anterior, os suspeitos David e Lucian
não puderam ser excluídos, pois todas as bandas (alelos) presentes nos respectivos perfis coincidem com as bandas
no perfil da amostra n.° 3. Portanto, neste caso é indicado o sequenciamento do DNA. Os seis marcadores STR
amplificados foram sequenciados, no entanto, para fins didáticos e para não tornar a atividade muito extensa, aqui
é apresentado uma análise parcial da sequência de cada marcador STR. Nas Figuras 13, 14 e 15, cada marcador
pode conter até 15 bases do DNA, e o polimorfismo do tamanho é representado na variação do número de bases
que cada marcador pode conter. Para obter a sequência completa do DNA, você deve analisar cada lócus, reali-
zando a leitura das colunas da esquerda para direita. O espaço indicado ao lado deve ser utilizado para escrever a
sequência no sentido 5’-3’. Após a montagem, realize a comparação das sequências do DNA dos suspeitos David
Petrel e Lucian Ramires com a amostra n.º 3 e elimine o suspeito que não possui as sequências compatíveis. Foi
possível encontrar o culpado?
k. Teste n.º 10 - Banco Nacional de Perfis Genéticos (BNPG) (Tabela 1): A última opção desta investigação é tentar
encontrar se a sequência do DNA da amostra n.º 3 possui compatibilidade com algum criminoso registrado no
BNPG. O BNPG, inclui o registro do sequenciamento do DNA de criminosos presos no Brasil, que foram conde-
nados por outros crimes. Sendo assim, para tentar encontrar o suspeito do desaparecimento da Suzy, utilize a se-
quência do DNA da amostra n.º 3 e faça uma busca por similaridade no Banco Nacional de perfis genéticos (BNPG)
(Tabela 1). Utilize a ferramenta localizar do leitor de PDF para encontrar cada uma das sequências da amostra n.º
3 no banco de dados, registre os nomes dos criminosos que forem compatíveis com a sequência. O culpado deve
apresentar todos os marcadores STR compatíveis com a amostra n.º 3. Foi possível encontrar o culpado?

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Figura 1.
Carta da senhora Lavínia Anjos Demétrio.

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Figura 2.
Boletim de ocorrência.

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Figura 3.
Imagens representativas dos personagens e das amostras de sangue coletadas no local.

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Figura 4.
Teste para tipo sanguíneo das amostras coletadas no local do crime.

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Figura 5.
Teste do cariótipo da amostra n.º 1.

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Figura 6.
Teste do cariótipo da amostra n.º 3.

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Figura 7.
Teste para determinação do sexo das amostras n.º 1 e n.º 3.

Figura 8.
Teste para tipo sanguíneo na família Demétrio.

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Figura 9.
Teste para padrão de herança esperado para o tipo sanguíneo.

Figura 10.
Teste de paternidade família Demétrio.

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Figura 11.
Teste do tipo sanguíneo dos suspeitos.

Figura 12.
Teste de comparação do perfil genético entre a amostra n.º 3 e os suspeitos
Xavier Demétrio, David Petrel e Lucian Ramires, baseado em 6 marcadores STR.
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Figura 13.
Sequenciamento do DNA de seis marcadores STR para a amostra n.º 3.

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Figura 14.
Sequenciamento do DNA de seis marcadores STR para David Petrel.

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Figura 15.
Sequenciamento do DNA de seis marcadores STR para Lucian Ramires.

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Teste nº 10:
Banco nacional de perfis genéticos do jogo CSI
Tabela 1.
Banco nacional de perfis genéticos do jogo CSI.
NOME STR 1 STR 2 STR 3 STR 4 STR 5 STR 6
Isabelle Silva CCATGTATCTGCA ATCTATCT GAAGAAAGAAAA ACTATCTATCTATC TGCATGCATGCATGC CGACGACGA

Simon Lewis GCATGTATCTCCA ATCTATCTAA AAAGAAAGAAAAGA TCTCTATCTATCTAT TGCATGCA ACGACGACGTCGA

Richard Ramires GCATGTATCT ATCTATCTATC AAAGAAAGAAAA TCTATCTATCTAT TGCATGCATGCATG CGACGACGACGTCGA

Clary Souza GCATGTATCTGC CTATCTATC AAAGAAAGAAAAGAA TCTTTCTATCTAT TGCATGCAT CGAGACGACGTCGA

Dorian Yates CCATGTATCTG ATCTATGTATC AAAGAAAGAAAG TCTATCTATCTATCA TGCTTGCATGCATG CGACGACGACGT

Marco Rossi GGATGTATCTGCA ATCTATCTATCTCT AAAGAAAGAAAAA TCTATCTATTCTAT TGCATGCATGCA CGACGACGACGTCAA

Adiones Asher GCATGTATCTT ATCTATCATC AAAGAAAGAAAAG CTATCTATCTAT CGCATGCATGCATG GGACGACGACGTCGA

Jace Wayland GCATGTATCTG CTATCTATCT GAAAGAAAGAAAA ACTATCTATCTAT TGCATGCATGCT CGACGACGACGTCGA

Rowan Willians GCATGTATCTA ATCTTTCTATC AAAGAGAGAAAA TCTATATCTATCTAT TGCATGCTTGCATG CGACGACGAAGTCGA

Jonatan Bianchi GCATGTATCTGA ATCTATCTAC GAAAGAAAGAAAA TCTATCTCTATCTAT TGCATGCATGCATG CGACCACGACGTCGA

Alec Miller GCATGTATCTTAT TATCTATC AGAGAAAGAAAA TCTATCTATTCTAT TGCATCCATGCATG CGACGACGA

Adolfo Lima CCATCACGTATCT ATCTATCTATCAT AGAGAAAGAAAA TCTATCTATCTATCTA TGCATGCA AGACGACGACGTCGA

Carla Barboza CCAATGTATCT ATTATCTATCATCA AAAGGAAAGAAAA TCTATCTATCTAT TGCA CGACGACGACCGA

Francisco Costa TCATGTATCT ATCTATCTATCTAT AAAGAAAGAAAA TATCTATCTATTT TGCATGCATGCATGA CGACGACGACGTCG

Thiago Blythe GCATGTATCTG ATCTATCTATC AAAGAAGAAAA TCTATCTAATCTAT CATGCATGCATG CGACGACGACGT

Vayola Gomes GCATGTATCT AACTATCTATC AAAGAAGAAAA TCTATTTATCTAT TGCATGCATCCATG GGACGACGACGTCG

Sofia Barros GCATGGGTATCT ATCTATATCTATC AAACAAAGAAAA TGTATCTATCTAT TGCATGCATGCATGT CGACGATCGA

Anne Shirley GCATGTAGCATCT ATCTATCTATCATCT AAAGAAA TCTATCTATC TTCATGCATGCATG CCGACGACGTCGA

Luke Fernandes GCATGTATCT ATCTATCTATC AAAGAAAGAAAAGAA TCTCTCTATCT CATGCATGCATG CGACGACGACG

Julian Rocha GCAGCTTGTATCT ATCTATCATCTATC AAAGATAGAAAA TCTATATATCTA TGCATGCATGCATGC ACGACGACGTCGA

Lilian Sam GGCACATGTATCT ATCTATCTATCTA AAAGAGAAAA TATCTATCTA TGCAGCATGCATG CGACGACGACGT

Kevyn Sampaio GCATGTAGCAT AACTATCTATC AAAGAAA TCTATC TGCATGCATGCATGT GACGACGTCGA

Roberta Hall GCAAATGTATCT ATCTATCTAATCT AAAGATAGAAAA TCTATGTATCTAT TGCATGCTGCATG AAACGACGACGTCGA

Minerva Silva TCATGCAGTATCT TATCTATCATC AAAGAAAGAAAAC TCTATCTATCTATCTA TGCATGCAATGCATG CGACGA

Daymon Petit GCAGCATGTATCT ATCTATCTATATCT AAAGAAAGAAAA ATCTATCTATCTAT TCATGCATGCATG CGACGACGTCGA

Bárbara Weber GCATGTATCTGCA ATCTAT GAAAGAAAGAAAAGA TCTATCTATCTATA TGCATGCATTGCATG CCACGACGACGTCGA

Evan Watanabe GCATGTATCTGCA ATCTATTTATC AAAGAAAGAAAAAAA TCTATCTATCTATCTA TGCATGCATGCATGG CGACGACGGCGTCGA

Giulian Smirnov GCATGGCATATCT ATGTATCTATC GAAAGAAAA CTATCTATCTAT TGCATGCATGCATT CGACGACGAC

Helena Petrova GCATGTATCTGCA ATCTATCTTC AGAAAGAAAA TCTATCTATCTATAT TGCATGCATGCATGC GACGACGTCGA

Lorenzo Turner GCATGTATCTGCA ATCTATCTATCATCT AAAGAAAGAAAAGGG TCTATCTATCTATT TGCATGCA CGACGACG

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 98


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Suporte teórico Cariótipo humano


O cariótipo é o conjunto completo de cro-
Tipagem sanguínea mossomos encontrados no núcleo de uma
célula. Através da análise do cariótipo é pos-
A tipagem sanguínea é o processo de coleta
sível conhecer o número e a morfologia dos
e análise do sangue de um indivíduo objeti-
cromossomos. Didaticamente, a organização
vando determinar a qual grupo sanguíneo ele
dos cromossomos para montagem do carió-
pertence.
tipo, segue critérios, como organizá-los em
Sistema ABO ordem decrescente do tamanho e em grupos,
de acordo com a morfologia cromossômica,
No sistema ABO existem quatro tipos san- definida de acordo com a posição do centrô-
guíneos, A, B, AB e O, os quais são definidos mero.
e caracterizados pela presença ou ausência
de antígenos e anticorpos nas hemácias. Um Para realizar o estudo do cariótipo, é reali-
indivíduo com tipo sanguíneo A, apresenta zado o cultivo de linfócitos a partir de uma
antígeno A na superfície de suas hemácias amostra de sangue para obtenção dos cro-
e anticorpo anti-B no plasma sanguíneo. O mossomos mitóticos. Nesta etapa, as células
tipo sanguíneo B apresenta antígeno B na são estimuladas a dividir-se (mitose) e, ao
superfície das hemácias e anticorpo anti-A final do processo, são bloqueadas na fase de
no plasma. Como o sistema ABO apresenta metáfase, com a aplicação de drogas especí-
codominância entre A e B, o indivíduo com o ficas. Após a obtenção destes cromossomos,
tipo sanguíneo AB apresenta tanto o antíge- estas células são coradas e observadas em
no A quanto o B e não possui anticorpos em microscópio óptico e uma fotomicrografia é
seu plasma, diferentemente das pessoas que capturada para realizar a montagem do ca-
possuem sangue tipo O, que se caracteriza riótipo.
pela presença de anticorpos anti-A e anti-B,
Um cariótipo humano típico apresenta 46
e não apresentam antígenos. Para realizar a
cromossomos (23 pares), no qual 22 pares
tipagem sanguínea são utilizados kits com
são cromossomos autossomos e um par de
anticorpos anti-A e anti-B e uma pequena
cromossomos sexuais. No cariótipo femini-
amostra de sangue do indivíduo. Ao misturar
no é encontrado um par de cromossomos X
o sangue aos anticorpos é possível detectar o
(46, XX), enquanto no masculino é encon-
resultado visualmente quanto a formação ou
trado um cromossomo X e um Y (46, XY).
não de coágulos na amostra. Se não houver
coágulos na amostra, não há antígenos pre- Para montar o cariótipo humano segue-se
sentes e o sangue em exame é do grupo O. um padrão de organização dos cromossomos
Caso ocorra coágulos no soro anti-A e anti-B em grupos, conforme a figura 16.
então os antígenos A e B estão presentes e o
sangue é do tipo AB. Se houver coágulos na Reação em Cadeia da Polimerase
amostra com soro anti-A, o antígeno A está (PCR)
presente e o sangue é pertencente ao grupo
A. Se houver coagulação somente com o soro A reação em cadeia da Polimerase (PCR)
anti-B, o antígeno B está presente e o sangue visa reproduzir em laboratório a replicação
é do tipo B. do DNA, processo que ocorre naturalmen-
te no núcleo das células. Através da PCR,
Fator RH é possível produzir inúmeras cópias de se-
quências específicas do DNA, utilizando
O fator Rh mantém a mesma lógica do siste- iniciadores, ou “primers” (DNA fita simples)
ma ABO. O antígeno Rh, também chamado que determinam o começo e o fim da região
de anti-D, pode ou não estar presente nas do DNA que será copiado.
membranas das hemácias. Quando presente,
é classificado como Rh positivo e Rh negati- A PCR é composta por alguns reagentes
vo quando não possuem anticorpos contra o que compõem um mix da reação: a enzima
antígeno Rh. DNA polimerase (Taq-polimerase), as qua-

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 99


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Figura 16.
Cariótipo masculino, com
2n = 46 cromossomos.

tro bases nitrogenadas (Adenina, Guanina, de menor massa migrarão mais rapidamente.
Citosina e Timina), os iniciadores, tampões As bandas de diferentes tamanhos podem
e o DNA molde que será copiado. O mix de ser classificadas usando um DNA marcador,
reagentes é colocado no Termociclador, que com tamanho conhecido que é comparado
irá repetir vários ciclos alternados de tem- com cada uma das bandas da amostra.
peratura que são divididos em três fases:
desnaturação, quando as pontes de hidro- Teste de Paternidade
gênio que ligam a dupla fita do DNA são Para realizar um teste de paternidade é pre-
rompidas; hibridização, quando os inicia- ciso coletar o material genético dos envolvi-
dores fazem ligação no local complementar dos (normalmente sangue ou saliva) e reali-
do DNA; Extensão, que consiste na etapa zar a extração do DNA. O DNA extraído é
de cópia do DNA que é realizado pela Taq submetido à técnica de PCR para análise de
polimerase adicionando os nucleotídeos 13-16 marcadores STR que serão analisados
por homologia à fita-molde. Após estes vá- por eletroforese que produzirá um perfil de
rios ciclos, milhares de cópias do DNA são DNA de cada envolvido.
produzidas e o DNA pode ser então ana-
lisado por diferentes técnicas, incluindo a A análise consiste em comparar o perfil do
eletroforese em gel. DNA da mãe, do (a) filho (a) e do suposto
pai, nos casos mais comuns. Na comparação
Eletroforese dos perfis, espera-se que o filho apresente
A eletroforese é uma técnica de separação metade dos alelos herdados da mãe e metade
de moléculas que leva em conta o peso mo- do pai biológico. Caso não haja compatibili-
lecular da amostra, durante a aplicação de dade entre os alelos do filho e do suposto pai,
uma diferença de potencial. Sabe-se que o esse último é excluído de ser o pai
DNA possui carga negativa e, portanto, na Sequenciamento do DNA
eletroforese ele migrará em direção ao polo
positivo do sistema. Ao migrar através do O sequenciamento de DNA é o processo
gel, as moléculas de DNA serão separadas realizado para determinar a sequência exata
de acordo com o seu tamanho, sendo que as de nucleotídeos em uma molécula de DNA.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 100


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Respostas pertence a uma mulher, confirmando re-


sultado encontrado no cariótipo. A amos-
tra n.º 3 foi positivo para AMEL e posi-
1. Suzy (garota desaparecida); Lavínia
tivo para SRY, portanto, pertence a um
(mãe), Olavo (Pai). Suspeitos: Xavier (ir-
homem, confirmando resultado encontra-
mão), Lorayne (amiga), Jhonatan (ex-na-
do no cariótipo.
morado), David (caseiro), Michael (amigo
do irmão) e Lucian. Teste n.º 4
2. Cada grupo deve apostar em um dos sus- Lavínia A. Demétrio: A+
peitos Xavier (irmão), Lorayne (amiga), Olavo Demétrio: O+
Jhonatan (ex namorado), David (caseiro), Xavier A. Demétrio: AB+
Michael (amigo do irmão) e Lucian. Observação: É levantada a suspeita de que
3. Espera-se que o grupo aponte ao menos Xavier não é filho biológico de Olavo.
alguns destes testes: Tipo sanguíneo, Tes- Quais tipos sanguíneos poderiam ser es-
te de Cariótipo, Teste de sexagem, Teste perados nos filhos biológicos do casal La-
de Paternidade, Teste de DNA. vínia e Olavo? Tipos A e O.
A amostra n. º 1 pode pertencer a Suzy?
4.
Pode, pois no teste n.º 1 foi identificado
Teste n.º 1 que a amostra n. º1 pertence ao tipo A. No
Amostra n.º 1: A+ entanto, é necessário realizar um teste de
paternidade para confirmar o resultado.
Amostra n.º 2: A+
O tipo sanguíneo de Xavier é compatível
Amostra n.º 3: AB+
com o esperado para filhos do casal? Não.
Todas as amostras pertencem a uma única Os resultados deste teste levantam a sus-
pessoa? Não. As amostras n. º1 e 2 apre- peita de que Xavier não é filho biológico
sentaram mesmo tipo sanguíneo, sendo a do casal.
de n. º 3 diferente.
Observação: Visto que as amostras n.º 1 Teste n.º 5
e n.º 2 possuem o mesmo tipo sanguíneo, Cruzamento 1: IAIA x ii= 100% dos genó-
desconsidere a amostra n.º 2 nos testes se- tipos serão IAi, portanto o tipo sanguíneo
guintes. será do tipo A.
Cruzamento 2: IAi x ii= 50% dos genóti-
Teste n.º 2
pos serão IAi e 50% tipo ii, portanto são
Amostra n.º 1: Mulher, 46,XX. esperados tipo sanguíneo A e O, respec-
Amostra n.º 3: Homem, 46,XY. tivamente.
O cariótipo pode servir para distinguir o O irmão Xavier é filho biológico do casal?
sexo de uma amostra? Por quê? Sim, pois Não. Pois de acordo com o cruzamento,
no cariótipo é possível identificar os cro- espera-se que os filhos tenham sangue do
mossomos sexuais XX e XY. Para amos- tipo A ou O.
tra pertencer a um homem, quais cromos- Um teste de paternidade pode confirmar
somos ela deve apresentar? Cromossomos este resultado? Sim. O Teste de paternida-
XY de é o mais indicado para confirmar este
Para amostra pertencer a uma mulher, resultado.
quais cromossomos ela deve apresentar?
Cromossomos XX Teste n.º 6
A amostra n.º 1 pertence a Suzy? A amos-
Teste n.º 3 tra n.º 1 possui 50% das bandas compa-
O resultado deste teste confirmou o re- tíveis com a Lavínia e 50% compatível
sultado encontrado no teste do cariótipo? com Olavo. Portanto, é confirmado que a
Sim. A amostra n.º 1 foi positivo para amostra n.º 1 pertence a Suzy, e a mesma
AMEL e negativo para SRY, portanto, é filha biológica do casal Olavo e Lavínia.

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O teste de paternidade confirma a suspei- Lucian Ramires:


ta de que Xavier não é filho biológico do STR 1 (GCATGTATCT),
casal? Sim, Xavier possui 50% das bandas STR 2 (ATCTATCTATC),
compatíveis com Lavínia e nenhuma das STR 3 (AAAGAAAGAAAA),
bandas foi compatível com o Olavo. Por- STR 4 (TCTATCTATCTAT),
tanto, é confirmado que Xavier não é filho STR 5 (TGGATGCATCCAGG),
biológico de Olavo. STR 6 (TGACGACGACGACGA).
Foi possível encontrar o culpado? Não,
Teste n.º 7
David apresentou compatibilidade com
Determine o tipo sanguíneo de cada um a amostra n.º 3 apenas nos marcadores
dos suspeitos e elimine os suspeitos cujo STR 1 e STR 2. Lucian apresentou com-
tipo sanguíneo não seja compatível com patibilidade nos STR 1, STR 2 e STR3,
a amostra n.º 3. Jhonatan Bizel: B+; Lo- o restante não foi compatível. Portanto,
rayne River: O+; David Petrel: AB+; ambos foram eliminados como suspeitos.
Michael Robertsen: O-; Lucian Ramires:
AB+. Os suspeitos Jhonatan Bizel, Lo- Teste n.º 10
rayne River e Michael Robertsen, foram STR 1: Compatível com:
descartados pois não possuem sangue Richard Ramires, Vayola Gomes e
compatível com a amostra n.º 3 que pode Luke Fernandes;
pertencer ao culpado.
STR 2: Compatível com:
O grupo deve apostar entre os três sus- Richard Ramires, Thiago Blythe e
peitos restantes Xavier Demétrio, David Luke Fernandes;
Petrel e Lucian Ranires
STR 3: Compatível com:
Teste n.º 8 Richard Ramires, Francisco Costa e
Daymon Petit;
Algum dos suspeitos pode ser eliminado
com este teste? Sim, Xavier Demétrio STR 4: Compatível com:
apresentou apenas duas bandas de DNA Richard Ramires e Carla Barboza;
compatíveis com a amostra n.º 3, as outras STR 5: Compatível com:
nove bandas foram incompatíveis, portan- Richard Ramires e Jonatan Bianchi;
to, foi eliminado como suspeito. Enquan- STR 6: Compatível com:
to, David Petrel e Lucian Ramires, apre- Richard Ramires e Jace Wayland;
sentam todas as bandas compatíveis com
Foi possível encontrar o culpado? Sim, o
a amostra n.º 3 e não podem ser excluídos.
culpado foi Richard Ramires pois pos-
Portanto, é necessário realizar o sequen-
sui 100% de compatibilidade de todos os
ciamento do DNA.
marcadores
Teste n.º 9 STR 1 (GCATGTATCT),
STR 2 (ATCTATCTATC),
Amostra n.º 3:
SRT 3 (AAAGAAAGAAAA),
STR 1 (GCATGTATCT),
STR 4(TCTATCTATCTAT),
STR 2 (ATCTATCTATC),
STR 5 (TGCATGCATGCATG),
STR 3 (AAAGAAAGAAAA),
STR 6 (CGACGACGACGTCGA),
STR 4 (TCTATCTATCTAT),
com a amostra n.º 3. Embora não tenha
STR 5 (TGCATGCATGCATG),
sido considerado como suspeito durante
STR 6 (CGACGACGACGTCGA).
a investigação, a análise do DNA foi con-
David Petrel: clusiva colocando-o na cena do crime. A
STR 1 (GCATGTATCT), análise também sugere algum parentesco
STR 2 (ATCTATCTATC), de Richard Ramires com o Lucian Rami-
STR 3 (GAAAGAATGAAA), res, pois, além de compartilharem o so-
STR 4 (CTTCTATCAATCT), brenome, existe compatibilidade do DNA
STR 5 (TGCAAGCAAGCAGG), em quatro dos seis marcadores STR ava-
STR 6 (CGACGAGGACGACGA). liados.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 102


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Modelo didático para


compreender variações
genéticas humanas
Iasmin Souza Lima1, Gabriella Almeida Santos de Santana2, Felipe dos Santos Barbieri2,
Larissa Fernandes2, Diego Coimbra3, Cintia Rodrigues Marques4
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Biociências, Universidade Federal da Bahia, Instituto Multidisciplinar em Saúde/Campus
Anísio Teixeira, (IMS/CAT-UFBA), Vitória da Conquista, BA
2
Graduando(a) em Medicina, Universidade Federal da Bahia, Instituto Multidisciplinar em Saúde/Campus Anísio Teixeira, (IMS/CAT-UFBA),
Vitória da Conquista, BA
3
Discente do Programa de Pós-Graduação em Biociências, Universidade Federal da Bahia, Instituto Multidisciplinar em Saúde/Campus
Anísio Teixeira, (IMS/CAT-UFBA), Vitória da Conquista, BA
4
Laboratório de Imunogenética e Farmacogenômica, Universidade Federal da Bahia (UFBA/SSA), Salvador, BA; Programa de Pós
Graduação em Biociências, Universidade Federal da Bahia, Instituto Multidisciplinar em Saúde/Campus Anísio Teixeira, (IMS/CAT-UFBA),
Vitória da Conquista, BA
Autor para correspondência - cintiabiomedica@yahoo.com.br

Palavras-chave: transcrição, tradução, gene, polimorfismo, mutação, anemia falciforme

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O modelo didático exposto neste trabalho possibilita que graduandos de ciências biológicas
e ciências da saúde possam entender melhor conceitos teóricos referentes aos mecanismos
de transcrição e tradução. O modelo apresentado foi desenvolvido a partir de uma simulação
envolvendo o gene da β globina e as mutações e polimorfismos relacionados à anemia falcifor-
me. A atividade proposta tem a finalidade de demonstrar como a informação gênica contida
na molécula de DNA é transcrita e traduzida, e de que forma uma mutação ou polimorfismo
pode interferir na formação do produto final, a proteína.

Contextualizando
O sequenciamento do genoma humano revolucionou a pes-
quisa científica e o entendimento de como funciona a maqui-
naria molecular, atualizando e revelando informações impor-
tantes, tais como pequenas variações genéticas - mutações e
polimorfismos - encontradas na sequência de DNA nas po- Fenótipo - características de
pulações humanas. As mutações são mudanças no DNA que um indivíduo formadas pela
podem abranger tanto cromossomos inteiros (variações no interação do genótipo com o
ambiente em que a pessoa está
número de cromossomos) quanto sequências nucleotídicas
inserida.
Recessivo - caráter que se individuais. Uma mutação pode se fixar e ter uma frequência
manifesta apenas quando o na população superior a 1% e, quando isso acontece, recebe o
alelo que o determina está nome de polimorfismo. As variações genéticas podem ou não
presente em dose dupla.
gerar algum efeito no fenótipo, como podem também estar
diretamente relacionadas a algum tipo de doença, como é o
caso da anemia falciforme.
A anemia falciforme é uma condição hemolítica autossômica Hemolítica - relativo à lise das
recessiva caracterizada pela deformação das hemácias em hi- hemácias.
póxia. A causa dessa doença é uma mutação no braço curto
Hipóxia - baixa disponibilidade Autossômica - padrão de
de oxigênio. do cromossomo 11 (Figura 1A), mapeada na região 11p15.4, herança de genes localizados
resultado da substituição de uma Adenina por uma Timina no nos cromossomos autossomos
gene da β globina (gene HBB - subunidade beta da hemoglo- (1 a 22).
bina), resultando em uma troca de aminoácido de ácido glutâ-
mico pela valina (GAG→GTG: Glu6Val) no 6º aminoácido
Gene - sequência de DNA que
da sequência proteica. A sequência nucleotídica do gene β glo-
é transcrita em um RNA.
bina, apresentada na Figura 1B, é composta por 1608 pares de
bases e codifica um polipeptídeo com 147 aminoácidos. Para
se tornar funcionalmente ativa, após a tradução, essa proteína
sofre algumas alterações que incluem a remoção do primeiro
aminoácido traduzido, a metionina.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 104


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Como a anemia falciforme é uma doença com padrão de he-


rança recessivo, os indivíduos com anemia falciforme precisam
Alelo - versões alternativas de
receber duas cópias do alelo mutado para formar o genótipo
Genótipo - alelos de uma ou
um gene. HbS/HbS. O principal efeito fenotípico em pacientes com essa mais regiões que estão sendo
condição, e o que deu origem ao nome da doença, é a forma de analisadas/consideradas.
foice encontrada nas hemácias, que se forma devido à polime-
rização da hemoglobina em condições de pouco oxigênio. Já os
heterozigotos (HbA/HbS) possuem traço falcêmico, ou seja,
são clinicamente normais, mas as hemácias adquirem forma
de foice em situações de baixa tensão de oxigênio, embora, na
prática, haja poucas chances disso ocorrer. Em estudos de pa-
drão de herança, os alelos HbA e HbS são substituídos pelas
letras A e a, respectivamente, para análises de heredograma e
cálculos de probabilidade. Neste caso, indivíduos homozigo-
tos dominantes são denominados AA, os heterozigotos, Aa, e
os homozigotos recessivos, aa.

Figura 1.
A) Imagem representativa
do cariótipo humano, com
destaque para o braço curto do
cromossomo 11, região onde
está localizado o gene da β
globina. B) Sequência do gene
da β globina. Estão destacados,
em amarelo, os éxons e, em
rosa, os códons de início
(atg) e de finalização (taa) da
tradução. O equivalente, no
DNA, ao 6º códon do RNAm,
posição em que ocorre a
mutação que causa a anemia
falciforme, está realçado
em cinza (NCBI, 2021). A
sequência selecionada para ser
trabalhada na atividade prática
está destacada em negrito e
sublinhada.

Códon - uma trinca de bases


em uma molécula de RNA
mensageiro que codifica um
único aminoácido ou sinaliza a
parada na síntese proteica.

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Informações • Distribuir as Figuras 2 a 6 e a sequên-


cia de DNA de um dos membros da
para o professor família Almeida;
• Definir o tempo. Sugestão: 30 minu-
1. Antes da aula tos;
• Abordar os assuntos de transcrição e • A atividade pode ser realizada na forma
tradução com os alunos; de jogo, para isso, estabeleça tempo e/
• Disponibilizar previamente o texto in- ou acertos como critério de pontuação.
trodutório do artigo (Contextualizan- Ao final, pode ser dada alguma premia-
do); ção para o grupo vencedor;

• Imprimir em papel tamanho A4 (colo- • Recolher o resultado da investigação


rido ou escala de cinza) as figuras 2 a 6 genética para conferência das respostas
para cada grupo (idealmente grupos de (Figura 6);
até 5 alunos); • Apresentar os resultados da investiga-
• Imprimir em papel tamanho A4 as fo- ção genética de cada membro da famí-
lhas com as sequências de DNA dos lia. Caso o(s) grupo(s) tenha(m) erra-
membros da família; do, verificar por quê e corrigir.

• A família contém 5 membros (pai, mãe, Etapa 1. Leitura da simulação


filho 1, filho 2 e filho 3), caso queira Vocês estão fazendo estágio no Laboratório
trabalhar com mais de 5 grupos, im- de Hemoglobinopatias do Hospital Uni-
primir maior quantidade de folhas de versitário e cada grupo receberá amostra de
sequências de DNA. Uma dica é distri- DNA de um membro da família Almeida
buir duas sequências de DNA de cada para investigação de anemia falciforme. O
membro da família para grupos dife- casal Eduardo Almeida e Clara Almeida pos-
rentes e comparar as respostas. suem 3 filhos: Henrique (5 anos) e dois filhos
• Imprimir, em número suficiente para gêmeos, Maria e Miguel, de 3 meses. Miguel,
cada grupo, o item Instruções, que cor- recentemente, começou a apresentar edema
responde ao procedimento dos alunos doloroso em seus dedos, palidez e baço pal-
durante a aula; pável. Após exames hematológicos, foi diag-
nosticado com anemia falciforme. Por conta
• Pedir para os alunos os seguintes ob- disso, o médico responsável encaminhou a
jetos para a atividade: uma tesoura e/ família para o laboratório de Hemoglobino-
ou estilete e régua no dia da aula prá- patias do Departamento de Genética para
tica. realizar investigação genética, bem como para
avaliar os riscos de ocorrência em futuras ges-
Observação: Deve-se destacar que o modelo tações. Sua equipe ficará responsável por rea-
aqui proposto é mais adequado a ser reali- lizar a investigação genética de um dos mem-
zado com alunos que tiveram contato prévio bros da família e emitir o diagnóstico.
com os assuntos de transcrição e tradução,
além de terem feito a leitura da seção “Con- Etapa 2. Preparo dos materiais
textualizando” do artigo.
1. Cada grupo receberá:
2. Durante a prática
• Figuras 2 a 6;
• Formar grupos de 3 a 5 alunos;
• Instruções para os estudantes;
• Distribuir para cada grupo o item Ins-
• Sequência de DNA de um membro da
truções;
família.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 106


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Instruções para 7. Iniciando a análise dos resultados, iden-


tificar e circular o 6º aminoácido que
os estudantes contém o ponto de variação genética na
anemia falciforme.
1. Recortar os tracejados pretos nas se- Lembrar-se de que não se contará o
quências de DNA (ver modelo na Figura primeiro aminoácido (metionina), que
2A). A fita de DNA entrará no molde da será removido da sequência final da
RNA polimerase pelo corte da direita e proteína.
sairá pelo corte da esquerda.
8. Circular o códon do RNAm e a trinca
2. Recortar os tracejados verticais bran- no DNA correspondente ao 6º aminoá-
cos indicados na RNA polimerase (Fi- cido.
gura 3). Notar que na RNA polimerase
serão feitos apenas dois cortes verticais. 9. Com base na sequência de DNA, res-
ponder, na tabela de resultados (Figura
3. Recortar os tracejados verticais bran- 6), o nome do indivíduo investigado e
cos indicados no ribossomo. Serão feitos qual seu genótipo. Considerar as trincas
5 cortes verticais (Figura 4). GAG e GTG como alelos A e a, respec-
Para facilitar o corte, utilizar um estilete tivamente.
e régua ou dobrar o papel horizontal- 10. De acordo com as sequências de ami-
mente para cortar com a tesoura. noácidos formadas, responder na tabela
4. Com os materiais em mãos, cada equipe de resultados (Figura 6) qual fenótipo
deverá encaixar a fita molde do DNA na do indivíduo (lembrar-se de que o ami-
RNA polimerase. Puxar a fita na direção noácido GLU corresponde à ausência da
do sentido de transcrição (5’-3’) e com- mutação e o aminoácido VAL, corres-
pletar os espaços em branco da fita de ponde à presença da mutação).
RNAm (RNA mensageiro) com os nu- Após a realização dos itens 7 a 10 das Ins-
cleotídeos correspondentes (ver modelo truções para os alunos e resolução dos re-
na Figura 2B). sultados para os outros membros da famí-
5. Com a maquinaria de tradução (ribos- lia, o professor(a) deve conduzir os alunos
somo) em mãos, encaixar, no espaço re- a discutirem e responderem as seguintes
cortado do ribossomo, a fita de RNAm questões:
e a sequência em branco da proteína. A a) Como é a organização de um gene?
fita do RNA entrará pelo corte da direita
e seguirá para esquerda. Puxar a fita na b) Quantas cópias do gene da b globina
direção do sentido de tradução. Os es- existem no genoma humano?
paços em branco serão completados com
os aminoácidos correspondentes (ver c) O que é genótipo e fenótipo?
modelo na Figura 2C). Para esta etapa, d) Considerando os genótipos do casal Al-
utilizar a tabela de aminoácidos como meida, quais as probabilidades de ocor-
suporte (Figura 5). rência para cada genótipo dos 3 filhos
6. Repetir os passos de 4 e 5 com a outra (AA, Aa e aa)?
fita de DNA (lembrar-se de que o geno- e) Por que Maria e Miguel, que são gêmeos,
ma humano possui duas cópias para o apresentam fenótipos diferentes para a
gene que está sendo investigado). anemia falciforme?

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 107


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Anexo 1
Figuras 2-6

Figura 2.
Representação dos processos
de transcrição e tradução.
A - indica os locais de
corte; B - posicionamento
da RNA polimerase e C -
posicionamento do ribossomo.

Figura 3.
RNA polimerase. A linha
branca representa o RNAm
em processo de síntese, com a
extremidade 5’ destacada. Os
tracejados verticais deverão
ser recortados para entrada (à
direita) e saída (à esquerda) da
fita molde de DNA.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 108


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Figura 4.
Ribossomo. Estão representados
3 locais de ligação ao tRNA:
E (saída), P (ligação dos
aminoácidos) e A (entrada
dos tRNA). Para cada local,
é demonstrado o tRNA. Em
amarelo, encontra-se o RNAm
(obtido na etapa anterior) com
indicação para extremidades
5’ e 3’. As linhas verticais
tracejadas indicam o local onde
deve ser cortado.

2a Base
U C A G
UUU Fenilalanina UCU UAU Tirosina UGU Cisteína U
(Fen / F) (Tir / Y) (Cis / C)
UUC UCC Serina UAC UGC C
U (Ser / S)
UUA Leucina UCA UAA Fim UGA Fim A
(Leu / L) Triptofano
UUG UCG UAG Fim UGG (Trp / W) G
CUU CCU CAU Histidina CGU U
(His / H)
CUC Leucina CCC Prolina CAC CGC Arginina C
1a Base

C
CUA
(Leu / L)
CCA (Pro / P)
CAA CGA
(Arg / R)
A
3a Base
Glutamina
(Gln / Q)
CUG CCG CAG CGG G
AUU ACU AAU Asparagina AGU Serina U
Isoleucina (Asn / N) (Ser / S)
AUC (Ile / I) ACC Treonina AAC AGC C
A (Tre / T)
AUA ACA AAA Lisina AGA Arginina A
AUG Metionina
(Met / M) ACG AAG
(Lis / K)
AGG
(Arg / R)
G
(início)
GUU GCU GAU Aspartato GGU U
(Asp / D)
GUC Valina GCC Alanina GAC GGC Glicina C
G (Val / V) (Ala / A) (Gli / G)
GUA GCA GAA Ácido GGA A
Glutâmico
GUG GCG GAG (Glu / E) GGG G
Figura 5.
O código genético. Organização
da informação genética em
formato de trincas de bases
nucleotídicas, os códons.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 109


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Resultado da investigação genética - Aluno


Nome do paciente / Genótipo Fenótipo
grau de parentesco Glu/Glu = AA (não afetado, traço falcêmico, anemia falciforme)
Glu/Val = Aa
Val/Val = aa
Pai (Eduardo)
Mãe (Clara)
Filho 1 (Henrique)
Filho 2 (Maria)
Filho 3 (Miguel)

Resultado da investigação genética – entregar para o professor
Nomes dos integrantes do grupo:

Nome do paciente / Genótipo Fenótipo


grau de parentesco Glu/Glu = AA (não afetado, traço falcêmico, anemia falciforme)
Glu/Val = Aa
Val/Val = aa

Figura 6.
Tabela de resultados da
investigação genética. Os
alunos devem adicionar a
resposta da investigação
genética analisada pelo grupo
e entregar uma cópia da
resposta para o professor(a).
Após a discussão da atividade
pelo(a) professor(a), preencher
o restante da tabela com os
demais genótipos e fenótipos.
Prosseguir com as respostas do
item 11.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 110


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Respostas para a investigação genética


Resultado da investigação genética
Nome do paciente Genótipo Fenótipo
(AA, Aa, aa) (não afetado, traço falcêmico, anemia falciforme)
Pai (Eduardo) Aa traço falcêmico
Mãe (Clara) Aa traço falcêmico
Filho 1 (Henrique) Aa traço falcêmico
Filho 2 (Maria) AA não afetado
Filho 3 (Miguel) aa anemia falciforme

Respostas para as perguntas do item


Instruções para os estudantes (Item 11)
a) Um gene é constituído por regiões codificantes, os éxons, alternadas por regiões não-co-
dificantes, os íntrons. Após o processo de transcrição, o RNA mensageiro formado passa
por um processo de retirada dos íntrons, restando apenas a sequência codificadora. Nos
éxons estão presentes os códons de início e finalização da tradução, os quais sinalizam onde
começa e termina a sequência de aminoácidos da proteína.
b) Nos seres humanos há 2 cópias do gene da b globina.
c) Genótipo refere-se à combinação de alelos que um indivíduo possui. Já o fenótipo, trata das
características observáveis, sejam elas morfológicas, bioquímicas ou fisiológicas.
d)
♂ Aa x ♀ Aa

A a

A AA Aa

a Aa aa

Genótipo Aa (Henrique): probabilidade = 2/4 → 50%.


Genótipo AA (Maria): probabilidade = 1/4 → 25%.
Genótipo aa (Miguel): probabilidade = 1/4 → 25%.
e) Maria e Miguel são gêmeos dizigóticos, ou seja, ocorreu a fertilização simultânea de 2
óvulos por 2 espermatozoides. Portanto, qualquer um dos irmãos pode herdar dos pais
quaisquer um dos 3 genótipos (Aa, AA e aa) possíveis nesta situação problema. Isto explica
Miguel (aa) possuir anemia falciforme, enquanto Maria (AA) não é afetada.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 111


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ANEXO 2 - Sequência do DNA do pai, mãe e filho menor

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ANEXO 3 - Sequência de DNA do filho maior e filha

Para saber mais


Library of Medicine (US), National Center for Bio-
technology Information. <Disponível em: https://
www.ncbi.nlm.nih.gov/gene/3043>. Disponível
INUSA, B. P. D.; HSU, L. L.; KOHLI, N, et al. Sickle em 12/03/2021.
Cell Disease-Genetics, Pathophysiology, Clini-
cal Presentation and Treatment. Int. J. Neonatal NELSON, D. L.; COX, M. M. Princípios de Bioquími-
Screen, v. 5, n. 20. p. 1-15, 2019. ca de Lehninger. 6ª. Edição. Porto Alegre: Artmed,
2014.
NCBI. (2021) National Center for Biotechnology
Information (NCBI). Bethesda (MD). National

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 113


RESENHAS Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

EvoDesign: um servidor
para design de sequências
proteicas baseadas em perfis
estruturais e evolutivos
Ivania Samara dos Santos Silva1, Adeilma Fernandes de Sousa1, Francisco Carlos de Medeiros Filho2,
Rafael Trindade Maia3, Magnólia de Araújo Campos1
1
Universidade Federal de Campina Grande, Programa de pós-graduação em Ciências Naturais e Biotecnologia, Cuité, PB
2
Universidade Federal Rural do Pernambuco, Programa de Pós-graduação em Química, Recife, PE
3
Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido, Sumé, PB
Autor para correspondência - ivania.samara@hotmail.com

Palavras-chave: desenho racional, ferramentas computacionais, simulação molecular, predição de estruturas, modelagem, proteínas

Ultimamente vem se observando um aumento na procura por softwares e servidores para a


solução, o aperfeiçoamento e a demonstração de sistemas e/ ou de moléculas biológicas, pos-
sibilitando uma visão transversal dos fatores relacionados com as sequências de nucleotídeos,
sequências de aminoácidos, estrutura, dinâmica e interações proteicas.

Dentre as aprimoradas ferramentas utilizadas que analisa a acoplagem entre uma proteína
para desenho de novas proteínas com função e seu receptor, mostrando ao estudante que
biológica está o EvoDesign, livremente dispo- uma proteína de alta complexidade pode ser
nível em http://zhanglab.ccmb.med.umich. redesenhada, apresentando menor tamanho e
edu/EvoDesign. Esse servidor cruza algorit- a mesma funcionalidade da proteína base ou
mos computacionais e experimentais de bio- até mesmo melhor atuação, o que otimizaria a
química, envolvendo campos de força basea- síntese química e aplicação industrial.
dos em física pela teoria termodinâmica de
Anfinsen e busca de Monte Carlo, que é feita Existem vários servidores que podem redese-
em banco de dados de proteína, como o Pro- nhar uma estrutura proteica, como, por exem-
tein Data Bank (PDB). A estrutura proteica plo, um fármaco, para um tamanho menor e
que se deseja estudar é cruzada e comparada que seja mais barato para ser sintetizado. O
com sequências proteicas semelhantes, par- EvoDesign destaca-se por acoplar diversas
tindo do princípio da evolução que cada pro- informações físicas, químicas e evolutivas, de-
teína homóloga pode ter sofrido. monstrando ser mais satisfatório do que pro-
tocolos que se baseiam em apenas um tipo de
No ensino de genética, tal ferramenta pode ser informação ou procedimento.
usada para mostrar quais proteínas derivam
da mesma família e que as regiões conservadas A utilização desse servidor web é abrangente
podem ser um indicativo de aminoácidos cha- já que inclui uma gama de recursos, pois pode
ve para a atuação esperada, pois a nova proteí- projetar diversas sequências proteicas basea-
na, construída através do servidor, poderá ser das em uma única estrutura, chamada de scaf-
aplicada e testada em outros diversos servido- fold ou andaime. A estrutura sequencial base
res, como, por exemplo, de docking molecular, é analisada e reprojetada, podendo originar

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 114


RESENHAS Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

até 10 sequências proteicas que apresentam a de acordo com a complexidade da estrutura,


mesma funcionalidade da proteína base. Além se for formato monomérico, deverá ser utili-
disso, esse servidor também pode ser usado zada a opção do Monomer Design e se forem
para reestruturar uma proteína e melhorar a estruturas mais complexas, como no formato
sua afinidade com o seu ligante ou receptor dimérico ou que precise ser analisada a in-
como, por exemplo, o de poder produzir no- teração com um receptor, deverá ser usada a
vos medicamentos relacionados a receptores opção do Interface Design, pois as estruturas
do genoma humano. podem ser carregadas no formato PDB ou no
formato atômico. Ambas as opções são traba-
O EvoDesign dispõe duas opções de desenho: lhadas em três estágios: o pré-processamento,
o Monomer Design, que utiliza proteínas mo- a simulação e a análise dos dados produzidos
noméricas, e o Interface Design, um recurso durante a simulação, resultando na projeção
possibilita o estudo de estruturas mais com- de novas sequências. A esquematização do
plexas de interação proteína-proteína ou pro- método pode ser observada na figura 1.
teína-ligante. A escolha pelo desenho é feita

Figura 1.
Esquematização dos resultados
do EvoDesing. Fonte: dados do
autor.

O método de redesenhar proteínas do EvoDe- construção de sequências peptídicas capazes de


sign mostra-se promissor pois já foi testado em se ligar competitivamente ao domínio de liga-
diversas proteínas e foram obtidos resultados ção do receptor (RBD) da enzima de conversão
de melhoria no enovelamento e na estabilidade da angiotensina 2 (ACE2), enzima com a qual
estrutural das sequências. Além disso, para que o SARS-CoV-2 interage, podendo infectar di-
o usuário perceba a qualidade das sequências versas células humanas. Assim, construção des-
projetadas, o protocolo disponibiliza informa- ses motivos peptídicos pode inibir as interações
ções de acessibilidade de solventes, ângulo de críticas do vírus com o receptor humano.
torção e de possíveis erros relativos à estrutura
gerada. Pode-se dizer então que, diante das limita-
ções das técnicas experimentais, as ferramen-
Dentre as inúmeras possibilidades de uso des- tas computacionais vêm sendo cada vez mais
se servidor, de acordo com a opção Monomer desenvolvidas, com constante aperfeiçoamen-
Design, pode ser destacada a modelagem da to das técnicas e algoritmos. Servidores com
estrutura de receptores acoplados à proteína protocolos mais completos são cruciais para
G, uma vez que grande parte dos modelos ge- atender às necessidades do campo científico e o
rados apresentaram alto índice de confiança e uso desse software, particularmente, pode pos-
dobras corretas. Em relação ao recurso Interface sibilitar um maior desenvolvimento de estudos
Design, pode ser demostrada a construção de para o aperfeiçoamento ou o desenho racional
medicamentos antivirais como, por exemplo, a de novas moléculas.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 115


RESENHAS Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Integrated view of
population genetics
Rafael Trindade Maia1, Magnólia de Araújo Campos2
1
Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido, Sumé, PB
2
Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Educação e Saúde, Sítio Olho D’água, Rio de Janeiro, RJ
Autor para correspondência - rafael.rafatrin@gmail.com

Palavras-chave: variação gênica, genética da conservação, evolução, e-book, ensino de genética

A genética de populações é um ramo da biologia que visa compreender a mudança e distri-


buição da frequência de alelos decorrente de quatro fenômenos evolutivos: mutação, fluxo
gênico, deriva genética e seleção natural, sendo essencial para o entendimento de processos de
adaptação ao ambiente e especiação.

O livro Integrated View of Population Genet- genetics – seção que aborda concomitante-
ics, que tem como editor Rafael Maia, pu- mente a genética populacional e quantitativa
blicado em 2019 pela editora internacional e disponibiliza um capítulo sobre o uso da
de livros técnicos e científicos IntechOpen, genética quantitativa para avaliar o vigor em
com sede em Londres (Inglaterra), aborda o linhagens de videiras (Vitis riparia); 3) Ge-
tema de uma forma ampla, didática e mul- netic Diversity in Crop Management – aborda
tidisciplinar. É uma obra em inglês editada a importância de se acessar a diversidade ge-
por geneticistas da Universidade Federal de nética de cultivares para um melhor manejo
Campina Grande, tendo como público-alvo e produtividade. Neste tópico é apresentado
acadêmicos de todos os níveis (graduação, um capítulo focado no arroz vermelho como
pós-graduação, docentes e pesquisadores) modelo de estudo de competição, evolução
que tenham interesse pela área de genética e diversidade devido às suas implicações na
populacional e evolutiva. produtividade; 4) Population genetics for con-
servation studies – seção que aborda a apli-
O livro consiste de capítulos de trabalhos cabilidade da genética populacional para
científicos selecionados e revisados sobre o conservação das espécies, em que o capítulo
tema genética de populações, e é dividido em apresenta resultados inéditos de uma pesqui-
quatro seções: 1) Introduction – que contém sa conduzida com uma espécie de peixe (Hy-
o capítulo introdutório intitulado Population porthodus semptemfasciatus) de importância
genetics – The Evolution as a genetic function, econômica no litoral de países asiáticos ( Ja-
escrito pelos próprios editores do livro. É pão, Coreia e China), para a qual foi utilizada
uma introdução geral e conceitual do tema a técnica de AFLP fluorescente para verificar
para os leitores se situarem sobre o conteú- as diferenciações genéticas entre populações
do do livro; 2) Population and quantitative reprodutoras e descendentes.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 116


RESENHAS Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Os capítulos do livro podem ser utilizados res e na conservação de espécies. Portanto,


como textos de estudos e exercícios. O ca- cursos de pós-graduação, tanto lato sensu
pítulo introdutório abrange de forma bem quanto strictu sensu, também poderão fazer
didática conceitos básicos que são muito excelente uso do livro nas disciplinas rela-
usados na genética de populações. Cursos cionadas à genética e evolução.
de graduação que tenham em sua grade
curricular disciplinas como genética geral, De forma específica, conteúdos como teo-
genética de populações, genética da conser- rema de Hardy-Weingberg, fluxo gênico e
vação e genética evolutiva podem fazer uso introgressão genética, traços quantitativos,
desta obra como bibliografia básica e/ou diversidade morfológica e genética, podem
complementar. ser abordados de forma integrativa e in-
terdisciplinar, uma vez que estes conceitos
No âmbito da pós-graduação, os trabalhos estão contextualizados para espécies de im-
do livro são uma excelente oportunidade de portância econômica.
apresentação de seminários como mediação
pedagógica e avaliação. As aplicações de- A versão eletrônica (e-book) do livro é gra-
monstradas nas pesquisas e experimentos tuita para download e pode ser obtida no
dos trabalhos podem ser amplamente dis- link da editora: https://mts.intechopen.
cutidas e debatidas como exemplo do uso com/storage/books/6974/authors_book/
da genética no melhoramento de cultiva- authors_book.pdf .

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 117


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O gene MUTYH e o seu


papel na etiologia dos
tumores em humanos

Lázaro Batista de Azevedo Medeiros1, Ana Helena Sales Oliveira2


1
Instituto Assaly, Jardim Paulista, São Paulo, SP
2
New York University, Chemistry Department, New York, United States
Autor para correspondência - ahs6@nyu.edu

Palavras-chave: reparo de DNA, danos de DNA, DNA glicosilase,


reparo por excisão de bases, mutagênese, tumorigênese

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 118


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O gene mutY é muito conservado entre as espécies e está presente em diversos organismos, como
bactérias e humanos. A expressão gênica de mutY resulta na formação da adenina DNA Glicosi-
lase (MUTY), uma enzima que está relacionada ao reparo de DNA em uma via chamada BER
(do inglês: Base Excision Repair). A enzima MUTY apresenta uma atividade muito peculiar, pois
é a única enzima de reparo de DNA capaz de remover uma base que não está danificada. Nos
seres humanos, o gene é designado de MUTYH (do inglês: human mutY homolog) e as mutações
nesse gene resultam na predisposição hereditária aumentada a diversos tipos de cânceres, princi-
palmente o câncer colorretal denominado de MAP (do inglês: MUTYH-Associated Polyposis).

Padrão filogenético e dos cnidários. No entanto, as análises mos-


traram que as espécies do filo dos anelídeos
Região conservada - São
sequências similares ou
do gene mutY não possuem o gene mutY. Os filos dos artró-
podes, moluscos, nematódeos e platelmintos
idênticas de uma proteína que
está presente em diferentes
apresentam ocorrência variada, ou seja, o gene espécies.
Os estudos que envolvem dados filogenéticos
mostraram que o gene mutY está amplamente está presente em algumas espécies e ausente
distribuído em diversos organismos de todos em outras. O mesmo ocorre no reino Mone-
os reinos biológicos. No reino animal, o gene ra e no reino Fungi, porém, no reino vegetal e
mutY foi encontrado em todas as espécies no reino Protista todas as espécies analisadas
analisadas pertencentes aos filos dos cordatos possuem o gene mutY. (Figura 1).

Figura 1.
Árvore filogenética dos reinos biológicos com a indicação das espécies nas quais o gene mutY está presente (grafadas em preto), ou ausente
(grafadas em vermelho). Entre parênteses, estão os nomes populares de algumas espécies ou então a sua importância biológica.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 119


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O gene MUTYH tos deste gene, os quais contêm informação


para produção de outras formas da enzima
em humanos MUTYH. Atualmente, existe uma lista no
site do NCBI (do inglês: National Center
DNA Glicosilase - Enzima que
rompe a ligação base-açúcar
O gene mutY em humanos é designado de for Biotechnology Information) que descreve do DNA.
gene mutY homólogo (MUTYH), o qual todos os 13 transcritos do gene MUTYH
possui 7.1k pares de bases e contém 22 éxons. e os seus respectivos produtos. A enzima
O produto do gene MUTYH é a Adeni- MUTYH é encontrada no núcleo e nas mi-
na DNA Glicosilase humana (MUTYH), tocôndrias de todas as células humanas e
uma enzima com 535 aminoácidos e peso apresenta um domínio proteico de interação
Domínio proteico - É uma
molecular de 52 kDa (Figura 2). Estudos com a Adenina, bem como regiões distintas região da proteína associada
científicos identificaram múltiplos transcri- para se ligar aos parceiros proteicos específi- a uma específica função ou
cos (Figura 2). interação.

Figura 2.
A ilustração da enzima MUTYH
com 535 aminoácidos está
baseada no seu transcrito mais
A enzima MUTYH é muito importante sionado. O processo de replicação do DNA longo. A MUTYH é uma enzima
que apresenta vários domínios
para a manutenção da estabilidade genômica contendo a 8-OxoGuanina tem como con-
de ligação ao longo da sua
e apresenta uma caraterística bastante pecu- sequência a incorporação de uma Adenina estrutura para interagir com a
liar nesse processo, pois é a única enzima de resultando na formação do par Adenina:- Adenina e se ligar aos parceiros
reparo de DNA capaz de remover uma base 8-OxoGuanina. Este par é substrato para a proteicos específicos (RPA,
de DNA que não está danificada. A enzima enzima MUTYH que atua no reparo pós- MSH6, APE1 e PCNA).
MUTYH atua de forma coordenada com a -replicação e apresenta atividade direciona-
enzima OGG1 para prevenir mutações que da para a fita de DNA recém-sintetizada. A
OGG1 (do inglês:
podem surgir durante a replicação do mate- MUTYH reconhece e remove a Adenina in- 8-OxoGuanine DNA
rial genético na presença da 8-OxoGuanina, corporada de forma inapropriada no DNA, Glycosylase) - É uma enzima
a qual é uma lesão de DNA originada pela e assim fornece uma nova oportunidade para que remove a guanina oxidada
ação dos radicais livres na Guanina (Figura a enzima OGG1 realizar a sua atividade de do DNA, e juntamente com a
MUTYH participa do sistema
3A). A OGG1 é responsável por reconhe- remoção da lesão (Figura 3C). A atividade GO que faz parte da via BER.
cer e remover a 8-OxoGuanina (Figura 3B) coordenada das enzimas MUTYH e OGG1
A enzima OGG1, porém, pode falhar ou se é essencial nesse mecanismo de reparo, pois
Radicais livres - São moléculas
atrasar para efetuar a remoção da lesão, mas o acúmulo dessas mutações no genoma hu- ou átomos altamente reativos
as atividades celulares são muito dinâmicas e mano contribui para a etiologia de diversos que em condições normais são
a célula pode replicar o material genético le- tumores. essenciais para o funcionamento
do organismo, mas em excesso
podem danificar biomoléculas
como proteínas, lipídios e DNA.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 120


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 3.

O gene MUTYH e a A enzima MUTYH juntamente


com OGG1 estão envolvidas

predisposição ao câncer
na prevenção das mutações
que podem surgir durante a
replicação do DNA contendo
em humanos uma Guanina oxidada
(8-OxoGuanina) a qual é
originada pela ação dos radicais
Existem vários alelos identificados para o gene MUTYH e al-
livres. A replicação do DNA
Polipose - Doença que se guns possuem alterações que podem ocasionar a produção de contendo a 8-OxoGuanina
caracteriza pela formação de uma enzima MUYTH não funcional, a qual é incapaz de cum- pode resultar em uma mutação
pólipos múltiplos no cólon ou
em outras porções do tubo prir o seu papel na remoção de lesões. Dessa forma, os indiví- após dois ciclos de replicação
duos que possuem alelos alterados de MUTYH em homozigo- (A). A OGG1 é responsável
digestivo, e que podem evoluir
por reconhecer e remover a
para a malignização. se estão mais susceptíveis ao acúmulo de mutações no genoma 8-OxoGuanina presente no
e, consequentemente, ao desenvolvimento da Polipose, essa DNA (B). No entanto, em
característica é denominada de MAP (do inglês MUTYH-As- casos de falhas ou atrasos da
sociated Polyposis). Cerca de 80-90% dos portadores homozigo- OGG1, uma Adenina pode ser
Tabela 1. tos das alterações no gene MUTYH serão afetados pela doença incorporada em frente à lesão
Risco para o desenvolvimento e resultar na formação do
de diferentes tipos de tumores por volta dos 48 anos de idade. Adicionalmente, esses pacientes par Adenina:8-OxoGuanina.
na população em geral e em também apresentam risco aumentado para o desenvolvimento A MUTYH atua no reparo
indivíduos com alterações no de vários outros tipos de tumores (Tabela 1). pós-replicativo e remove a
gene MUTYH em homozigose. Adenina presente na fita
recém-sintetizada fornecendo
Tipo de Risco da Risco dos Portadores Idade média do
uma nova oportunidade para
tumor População geral de alterações em MUTYH surgimento dos tumores a OGG1 (C) (modificado de
Colorretal 5,5% 80%-90% 48 anos OLIVEIRA et al., 2014).
Duodenal < 0,3% 4% 61 anos
Ovariano 1,3% 6%-14% 51 anos
Urotelial 1%-4% 6%-8% mulheres; 6%-25% homens 61 anos
Mamário 12% 25% 53 anos

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 121


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Localização bilidade associado à polipose e ao desenvolvi-


mento de tumores descritos na tabela 01. O
cromossômica e risco aumentado pode ocorrer em 25% dos
descendentes de um casal saudável hetero-
padrão de herança zigótico, ou seja, quando ambos apresentam
um alelo alterado para o gene MUTYH (Fi-
do gene MUTYH gura 4B). Essa probabilidade aumenta para
50% se o casal for composto por um indiví-
Na espécie humana o gene MUTYH está lo- duo heterozigótico (possui um único alelo
calizado na região 1p34.1, ou seja, no braço do gene MUTYH alterado) e um indivíduo
curto (p) do cromossomo 1, no lócus 34.1 que possui ambos alelos do gene MUTYH
(Figura 4A). O gene MUTYH apresenta pa- alterados (Figura 4C). No caso de um casal
drão de herança autossômico recessivo, assim em que ambos os indivíduos apresentem dois
é necessário que uma pessoa herde um alelo alelos alterados em MUTYH, toda a descen-
alterado do pai e outro alelo alterado da mãe dência do casal apresentará risco aumentado
para apresentar o fator genético de suscepti- para o desenvolvimento de tumores.

Figura 4.
O gene MUTYH está localizado na região cromossômica p34.1 do cromossomo 01
humano (A). O aumento do risco para o desenvolvimento de tumores ocorre em
25% dos descendentes de um casal heterozigótico saudável, isto é, quando ambos
apresentam apenas um alelo alterado no lócus do gene MUTYH (B). A probabilidade
aumenta para 50% para casal composto por um indivíduo heterozigótico (apresenta
um alelo do gene MUTYH alterado) e o outro indivíduo com ambos alelos de MUTYH
alterados (C). No caso do casal em que ambos os indivíduos apresentem os dois
alelos alterados para MUTYH, toda a descendência terá risco aumentado para o
desenvolvimento de tumores. (Modificado de Oliveira et al., 2021).

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 122


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Considerações Para saber mais


finais OLIVEIRA A. H. S. et al. MutY-glycosylase: an
overview on mutagenesis and activities beyond
the GO system. Mutation Res. v.769, p.119-131,
A identificação do gene MUTYH permi-
2014.
tiu desvendar o seu papel na prevenção das
mutações que contribuem na etiologia de ERIKSEN, K. A. Location of DNA damage by charge
diversos tipos de tumores em humanos, pois exchanging repair enzymes: effects of cooperativ-
ity on location time. Theor Biol Med Model. v.2,
o produto deste gene atua em um importan- p.15, 2005.
te mecanismo celular relacionado ao reparo
de lesões no DNA. Indivíduos que possuem JANSSON, K. et al. Evolutionary loss of 8-oxo-G
repair components among eukaryotes. Genome
alelos alterados em homozigose no lócus do
Integrity. v.1, p.12, 2010.
gene MUTYH estão mais propensos a de-
senvolver diversos tipos de câncer quando
comparados com uma população que não
possui os alelos alterados (Tabela 3).
Recentemente a medicina disponibilizou
testes genéticos que permitem a identifica-
ção precoce dos indivíduos homozigotos de
alelos alterados para o gene MUTYH. Esse
diagnóstico antecipado fornece a possibili-
dade de acompanhamento médico especiali-
zado que promovem exames regulares para
identificar os tumores nos estágios iniciais e,
incentivam a conduta de estilo de vida mais
saudável, com o objetivo de prevenir ou re-
tardar o surgimento dos tumores. Os testes
genéticos também são importantes para pa-
cientes que já apresentam um quadro pato-
lógico instalado, pois ajudam no desenvolvi-
mento de um tratamento personalizado para
cada indivíduo e, também auxiliam:
A) no aconselhamento genético das fa-
mílias afetadas;
B) no levantamento e interpretação do
histórico familiar;
C) no cálculo dos riscos de ocorrência e
recorrência dos tumores;
D) na transmissão de informações perso-
nalizadas sobre as probabilidades de
herança genética dos alelos alterados
de MUTYH.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 123


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Mth: o gene "Matusalém"


e a longevidade em moscas
Yasmin de Araújo Ribeiro1,2, Tiago Campos Pereira1,2
1
Depto de Biologia, FFCLRP, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP
2
Programa de Pós-Graduação em Genética, FMRP, Universidade de São Paulo,
Ribeirão Preto, SP
Autor para correspondência - tiagocampospereira@ffclrp.usp.br

Palavras-chave: longevidade, Mth, Matusalém, GPCR,


receptor de insulina, moscas

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 124


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A busca pela longevidade acompanha o homem desde os primórdios, por meio de histórias
fantásticas como as que rodeavam a alquimia. Com o avanço científico, essa busca adquiriu
um novo caráter e passou a incluir também a investigação de genes que estivessem associados
a uma maior expectativa de vida. Nesse contexto, estudos investigando o gene Mth da mosca
de fruta Drosophila melanogaster mostraram que este, quando mutado, pode prolongar a vida
do organismo. O gene Mth codifica um receptor transmembrana para os peptídeos endóge-
nos Stunted A e B, e se acopla à proteína G. Receptores acoplados à proteína G estão relacio-
nados a diversas atividades biológicas como neurotransmissão, fisiologia hormonal, resposta a
drogas e transdução de estímulos. Desse modo, tal receptor atua recebendo e repassando in-
formações para a célula, e assim, interferindo em sua longevidade. Estudos como esses fazem
com que, aos poucos, nosso entendimento sobre a expectativa de vida torne-se mais amplo e
detalhado, o que também traz a longevidade para mais perto da nossa realidade.

A longevidade Com o avanço científico e a descoberta da


relação entre genes e características biológi-
e os genes cas, aspirações como a de prolongar a vida
humana passaram a ser investigadas de for-
De acordo com a Torá, o livro sagrado do ma mais concreta. Assim, não demorou para
judaísmo, Matusalém foi um patriarca que que os pesquisadores começassem a buscar
gerou muitos filhos e filhas, e foi designado genes que se relacionassem com as mais di-
por Deus como sacerdote. Ele se destaca de versas características, inclusive, com a nossa
todos os demais personagens devido a uma expectativa de vida. Nesse contexto, deu-se
característica muito peculiar de sua histó- início às pesquisas que buscavam estender a
ria: a sua extrema longevidade. Segundo a longevidade de diversos animais.
tradição judaica, posteriormente incorpora- Uma forma de se investigar a relação de um
da à bíblia, Matusalém teria vivido por 969 gene e um determinado fenótipo é promo- Restrição calórica - redução
anos. Como não há relato de algum outro ser vendo mutações no primeiro, e observando da ingestão total de calorias em
humano que tenha vivido por tanto tempo, o consequente efeito de sua ausência no or- aproximadamente 20-50%, sem
‘Matusalém’ logo tornou-se sinônimo de lon- ganismo. Paralelamente sabe-se, desde 1988, que haja desnutrição.
gevidade na cultura judaico-cristã. que a restrição calórica é uma intervenção
O termo “longevidade” pode ser interpreta- que aumenta a longevidade em diversos or-
do e definido de diversas formas. Aqui, nós ganismos.
consideramos longevidade tal como definida As hipóteses sobre os mecanismos molecu-
pelo dicionário e no mesmo sentido que as lares relacionados ao envelhecimento são Insulina - hormônio produzido
pesquisas exploradas consideraram: “duração complexas e diversas, envolvendo diferentes pelo pâncreas, responsável por
da vida de uma pessoa, de um grupo, de uma vias e processos, tais como o encurtamento permitir a entrada da glicose
espécie, mais longa que o normal” – como re- de telômeros, o reparo de DNA, sirtuínas/ nas células.
presentado pelos longos anos de vida de Ma- desacetilases, estresse oxidativo, entre outras.
tusalém, que extrapolam, e muito, a expecta- A sensibilidade à insulina e a formação das
tiva de vida do homem atual, que é por volta espécies reativas de oxigênio são frequente-
de 73 anos. A busca pela longevidade teve Espécies reativas de
mente citadas como diretamente envolvidas oxigênio - moléculas tóxicas
início muito tempo antes da Torá, e percorre no processo de envelhecimento. Apesar de e com elevado potencial
toda a história com contos e mitologias in- existirem controvérsias, as espécies reativas de reagirem quimicamente
trigantes, representados na busca incansável de oxigênio são constantemente relacionadas com outros compostos
dos alquimistas por um elixir da longa vida. ao envelhecimento, de modo que o aumen-
(orgânicos) próximos. Em altas
concentrações, elas podem
danificar organelas, ácidos
nucleicos, lipídeos, proteínas e
provocar danos teciduais.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 125


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

to da resistência ao estresse oxidativo con- Caenorhabditis elegans, e deu origem a outros


tribuiria no sentido contrário, promovendo estudos demonstradores de que a mutação
uma maior longevidade. Pesquisas indicam em genes da via da insulina do nematoide
que tal correlação tem se mostrado verdadei- aumentava em até 100% sua longevidade.
ra porque o aumento da produção de enzi- Enzimas antioxidantes -
mas antioxidantes, que atuam na resistência A figura 1 e 2 ilustra a atuação do receptor de proteínas que catalisam reações
insulina ativo e inativo, evidenciando como para neutralizar radicais livres e
ao estresse e lidam com as espécies reativas espécies reativas de oxigênio.
de oxigênio, ocorre como efeito secundário o efeito secundário de uma mutação na via
das mutações nos receptores de insulina. Por da insulina pode ser a resistência ao estresse.
isso, é esperado que mutações que causam A ilustração é baseada no que ocorre quando
restrição calórica ou tolerância a estresses um dos receptores de insulina do organismo
resultem em efeito semelhante, prolongando modelo C. elegans tem seu respectivo gene
a longevidade. Com isso em mente, cientis- mutado, e assim, o receptor está inativo. Vale
tas começaram a avaliar o efeito de mutações ressaltar que esse é o exemplo de um meca-
em genes que atuavam em vias bioquímicas nismo desencadeado para lidar com estresses
potencialmente relacionadas, e a observar e que, de modo curioso, tal mecanismo in-
seu efeito na longevidade de diversos orga- terfere na longevidade. Outros mecanismos
nismos. Esse tipo de manipulação genética, também podem atuar de forma semelhante
cujo resultado aumentou a longevidade, foi e apresentar interferência na longevidade do
identificada pela primeira vez no nematoide organismo.

Figura 1.
Representação do receptor de insulina ativo. Quando o receptor de insulina (representado em laranja) está ativo, moléculas de insulina
(representada em rosa) conseguem se ligar a ele. Assim, o receptor é ativado, o que também resulta na ativação da proteína AGE-1. Esta
proteína atua catalisando a conversão de bifosfato de fosfatidilinositol (PIP2) em trisfosfato de fosfatidilinositol (PIP3). Em seguida, o PIP3 se
liga ao complexo AKT-1/AKT-2, expondo locais de fosforilação. Em paralelo, a quinase PDK-1 por ligação ao PIP3, fosforila e ativa AKT-1. Por
fim, a AKT-1 fosforila o fator de transcrição DAF-16 e, assim, assegura sua retenção no citoplasma. Uma vez fosforilado, DAF-16 não consegue
adentrar no núcleo, e é impedido de auxiliar na transcrição de genes codificadores de proteínas de resposta a estresses. Dessa forma, temos
o acúmulo de espécies reativas de oxigênio (EROS; representadas por OH, H2O2, O2•-), o que causa danos nas membranas, proteínas e ácidos
nucleicos da célula. Como fenótipo, temos o envelhecimento da célula e a redução da expectativa de vida do organismo. Imagem feita por
Ribeiro Y.A., utilizando elemento gráfico da Noun Project (DNA por Shuai Tawf).

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UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 2.
Representação do receptor de insulina inativo. Com o receptor de insulina inativo (representado em cinza e marcado com um ‘x’) a molécula
agonista não pode ser reconhecida, e a cascata de reações é inviabilizada (também marcada com um ‘x’). Uma vez que a via está inativa, o fator de
transcrição DAF-16 (representado em marrom) está livre para adentrar no núcleo celular. No núcleo celular, DAF-16 atua na transcrição de genes
importantes para a resistência ao estresse. Após a transcrição, os RNAms resultantes são traduzidos, e assim, as proteínas necessárias para lidar com
o estresse, como enzimas antioxidantes (representadas em azul), são sintetizadas, e estão prontas para lidar com as espécies reativas de oxigênio
(EROS; representadas por OH, H2O2, O2•-). Imagem feita por Ribeiro Y.A., utilizando elemento gráfico da Noun Project (DNA por Shuai Tawf).

O estudo realizado por Lin e colaboradores 57 dias, as moscas mutantes vivem 77 dias.
(1998) em Drosophila, mostrou que a muta- Além disso, tais moscas apresentam resistên-
ção no gene Mth resulta em uma expectativa cia a estresses como calor, fome, dessecação e
de vida aumentada em 35% (Figura 3) em dano oxidativo. Não à toa, esse gene recebe
relação ao tempo de vida média. De modo o nome de Mth, do inglês Methuselah, em
específico, o estudo em questão mostrou que, referência à personagem que conhecemos no
enquanto moscas selvagens vivem em média início deste artigo, Matusalém.

Figura 3.
Representação da
longevidade de Drosophila
melanogaster. Com o
receptor ‘matusalém’ inativo
(representado à direita) a mosca
apresenta uma longevidade
35% maior do que quando a
mesma proteína está ativa,
mosca selvagem (representada
à esquerda). Imagem feita
por Ribeiro Y.A., utilizando
elemento gráfico da Noun
Project (mosca da fruta por
Phạm Thanh Lộc).

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 127


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O gene Mth por splicing alternativo e uma outra iso-


forma (E) foi mapeada e identificada com-
Splicing alternativo -
processo, durante a formação
putacionalmente (Figura 4). A isoforma A do RNAm, que permite a
De acordo com o banco de dados National
possui um RNAm de 1967 nt e resulta em reorganização, de diferentes
Center for Biotechnology Information (NCBI; maneiras, dos éxons que foram
uma proteína de 514 resíduos de aminoáci-
EUA), o gene Mth (ID: 38058) de Drosophi- transcritos. Dessa forma, um
dos (aa). A isoforma B possui um RNAm
la melanogaster está localizado no cromosso- mesmo gene pode gerar RNAm
de 1882 nt e corresponde a uma proteína distintos e, consequentemente,
mo 3L, possui nove éxons e oito íntrons. Ao
de 522 aa. Finalmente, a isoforma E possui proteínas diversificadas.
todo, o gene Mth possui 3580 nucleotídeos
RNAm de 2420 nt e codifica uma proteína
(nt) e pode gerar três transcritos alternati-
também de 514 aa.
vos. Duas isoformas (A e B) são produzidas

Figura 4.
Representação do gene Mth.
O gene Mth possui nove éxons
(representados por retângulos
em azul claro) e oito íntrons
(representados por linhas em
Aparentemente, a espécie humana é despro-
vida de um gene homólogo ao Mth, entretan- Mecanismo de azul escuro), com total de 3580
nucleotídeos. Após os eventos
to, alguns grupos de pesquisa argumentam
que o gene ADGRG6 (do inglês, adhesion ação de Mth de transcrição, podemos
ter até três tipos de RNAm
(representados em verde), que
G protein-coupled receptor G6) seria o homó- O gene Mth codifica uma proteína que atua denominamos de RNAm A, com
logo em nossa espécie, apesar de haver uma como receptor na membrana da célula, com 1967 nt; RNAm B com 1882 nt;
baixa similaridade de sequência das proteí- dois ligantes conhecidos - os peptídeos endó- RNAm E com 2420 nt. Seguida
nas codificadas por eles - somente 23% de se- a tradução, os respectivos
genos Stunted A e B. Esse receptor é classifi- RNAm resultam na Isoforma A
melhança. Indivíduos homozigotos com mu- cado como ‘receptor associado à proteínas G’ com 514 aa; Isoforma B com
tações nesse gene apresentam a "síndrome 9 (GPCR, do inglês G Protein-Coupled Recep- 522 aa e Isoforma E com 514 aa
de contratura congênita letal", caracterizada tor), ou seja, ela associa-se a uma família de (representadas em vermelho).
pela degeneração de neurônios da medula es- proteínas de ligação a nucleotídeos de guano- Imagem feita por Ribeiro Y.A.,
pinhal, atrofia muscular esquelética extrema utilizando elemento gráfico da
sina, denominada de ‘proteínas G’. Sua estru- Noun Project (mosca da fruta
e contrações permanentes e involuntárias das tura consiste em um ectodomínio contendo por Phạm Thanh Lộc).
articulações; sem relação com longevidade. um local de ligação ao ligante, sete segmentos Ectodomínio - uma porção
de uma proteína de membrana
que se estende para o espaço
extracelular.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 128


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

transmembrana, e fica acoplado à proteína G, molécula denominada guanosina difosfato


localizada na membrana plasmática da célula. (GDP); e ativo, quando está ligada a uma
A proteína G é formada por três subunida- molécula guanosina trifosfato (GTP).
des: α, β e γ. Além disso, próximo à proteína Durante a interação entre o receptor e o li-
G há uma enzima efetora, que é importante gante, a subunidade α da proteína G é ati-
no contexto funcional (Figura 5). vada. Uma vez ativa, a subunidade α pode
trocar o GDP ligado a ela por um GTP,
Os GPCR são responsáveis por mediar o que permite que a proteína dissocie-se
uma ampla variedade de atividades biológi- do receptor e ligue-se à enzima efetora vi-
cas como neurotransmissão, fisiologia hor- zinha. Assim que a enzima efetora recebe
monal, resposta a drogas e transdução de a informação, ela se tornará ativa e a via
estímulos, como luz e odores. Dessa forma, jusante será guiada para atuar de acordo
para que uma informação seja passada do com a informação que recebeu, resultando
meio extracelular para o meio intracelular, numa cadeia de sinalização e mesma res-
é necessário que haja um intermediário – posta celular.
nesse caso, um GPCR. Quando uma molé-
cula sinalizadora se liga a um GPCR, ocor- Essa cascata de eventos promovida pelo
re uma alteração conformacional, isto é, na receptor e pela ativação da proteína G
estrutura tridimensional, no domínio intra- transmite sinais e induz uma atuação de
celular do receptor, que afeta sua interação acordo com a informação recebida, con-
com a proteína G à qual está associado. trolando o metabolismo celular, por meio,
por exemplo, da transcrição de genes e da
A proteína G alterna-se entre dois esta- secreção de moléculas.
dos: inativo, quando está ligada a uma

Figura 5.
Atuação da proteína transcrita pelo gene Mth. Após o ligante
(representado em rosa – peptídeo Stunted A ou B) interagir com
GPCR (representado em marrom; observe os sete segmentos
transmembrana), a proteína G (representada em verde com
suas respectivas subunidades) é ativada. Sua subunidade α
troca a molécula GDP (representada em amarelo) por uma GTP
(representada em azul), o que resulta na sua dissociação do receptor.
Em seguida, a subunidade α é direcionada para a enzima efetora
(representada em amarelo na membrana) a jusante, dando início a
uma cascata de sinalização que varia de acordo com a função da
enzima e informação passada. Imagem feita por Ribeiro Y.A.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 129


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Transmissão sináptica

Conclusões
De modo mais específico, devido à semelhan- - processo pelo qual uma
informação gerada ou
ça do receptor Mth com outros de função já
processada por um neurônio é
conhecida, cientistas concluíram que ele atua transmitida a outro neurônio ou
Identificar a função de um gene, ou de muta-
como um GPCR relacionado à transmissão célula efetora.
ções no mesmo, é um grande passo para elu-
sináptica. Embora sua atuação celular seja
cidar a relação entre nossos genes e a longe-
bastante especulativa, pesquisas mostraram Exocitose - processo que leva
vidade, bem como entendê-la de modo mais à expulsão de determinada
que Mth regula positivamente a exocitose de
profundo. Cada informação obtida é como substância do interior da célula.
neurotransmissores, controlando o tráfego
uma peça de um quebra-cabeça que contri-
de vesículas pré-sinápticas. Nesse sentido, Neurotransmissores -
bui para, futuramente, entendermos o qua-
como as moscas mutantes Mth têm trans- moléculas que agem como
dro geral e delinearmos com detalhes os pro- mensageiros químicos entre
missão sináptica defeituosa, é possível que
cessos biológicos que envolvem a vida. Por neurônios, enviando um sinal
Mth faça parte de um controle do envelhe-
fim, estudos analisando a relação dos mutan- entre eles.
cimento animal relacionado ao sistema ner-
tes Mth com uma maior/menor incidência
voso.
de problemas tipicamente associados com o
A relação entre transmissão sináptica e pro- transcorrer do tempo biológico são impor-
longamento da expectativa de vida é ainda tantes para termos um entendimento melhor
um grande enigma. Com o intuito de tentar sobre a interação de todos esses elementos,
compreender esse cenário, embora não haja tais como câncer e doenças neurodegenera-
dados moleculares de como Mth atua, os tivas. O incentivo a pesquisas relacionadas
pesquisadores postulam que a longevidade ao tema pode nos deixar mais próximos de
seja um reflexo da regulação da transmis- compreender e, quem sabe, alcançar uma
são sináptica e/ou da resistência ao estresse. maior longevidade, isto é, dentro dos limites
Nesse sentido, a expectativa é que a ausência impostos pela biologia, fortuitamente, com
do receptor codificado por Mth tenha efeito saúde e qualidade de vida.
Vesículas pré-sinápticas -
similar a outros receptores, como o receptor
Para saber mais
pequenas bolsas membranosas
de insulina em C. elegans (Figura 2) resul- que armazenam os
tando na resistência aos estresses de forma neurotransmissores liberados
secundária. A resistência ao estresse, isto é, CVEJIC, S. et al. The endogenous ligand Stunted of pelos neurônios.
the GPCR Methuselah extends lifespan in Dro-
como lidar com os danos celulares, é um as- sophila. Nature cell biology, v. 6, n. 6, p. 540-546,
pecto importante quando mencionamos en- 2004.
velhecimento. e está amplamente relacionada
a longevidade. LIN, Y. j. ; SEROUDE, L.; BENZER, S.. Extended
life-span and stress resistance in the Drosophila
mutant methuselah. Science, v. 282, n. 5390, p.
Saiba mais em https://tinyurl.com/3hsff-
943-946, 1998.
c4d.
PAABY, A. B.; SCHMIDT, P. S. Functional signifi-
Finalmente, é possível também que a relação cance of allelic variation at methuselah, an aging
entre a função reguladora de Mth e a longe- gene in Drosophila. PLoS One, v. 3, n. 4, p. e1987,
vidade seja direta já que os estudos até então 2008.
não foram conclusivos e uma vez que apenas SOLON-BIET, S. M. et al. Macronutrients and ca-
o detalhamento dos mecanismos molecula- loric intake in health and longevity. The Journal of
res que envolvem o gene Mth podem trazer endocrinology, v. 226, n. 1, p. R17, 2015.
luz para compreensão da longevidade esten- SONG, W. et al. Presynaptic regulation of neurotrans-
dida das moscas. mission in Drosophila by the g protein-coupled
receptor methuselah. Neuron, v. 36, n. 1, p. 105-
119, 2002.

WARNER, H. R. Longevity genes: from primitive


organisms to humans. Mechanisms of ageing and
development, v. 126, n. 2, p. 235-242, 2005.

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 130


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Gene Lep e a obesidade

Karynne de Nazaré Lins de Brito1, Marina Saldanha da Silva Athayde2,


Rafael Lima Kons3, Yara Costa Netto Muniz4, Juliana Dal-Ri Lindenau4
1
Pós-Graduanda no Programa de Pós-Graduação em Biologia Celular e do Desenvolvimento Universidade Federal de
Santa Catarina, Departamento de Biologia Celular, Embriologia e Genética, Florianópolis, SC
2
Pós-Graduanda no Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal de Santa Catarina,
Departamento de Educação Física, Florianópolis, SC
3
Universidade Federal da Bahia, Departamento de Educação Física, Bahia, BA
4
Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Biologia Celular, Embriologia e Genética, Florianópolis, SC
Autor para correspondência - rafakons0310@gmail.com

Palavras-chave: sobrepeso, tecido adiposo, LEPR, desregulação endócrina, gene obese

Genética na Escola | Vol. 17 | Nº 1 | 2022 Sociedade Brasileira de Genética 131


UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A descoberta da leptina demonstrou o papel fundamental das funções do tecido adiposo como
regulador do metabolismo energético e do consumo de alimentos. A leptina é um hormônio
peptídico produzido principalmente pelos adipócitos ou células gordurosas e sua descoberta
marcou uma importante transição sobre os pensamentos acerca das funções desse orgão. O
Gene Lep está ligado à obesidade e fatores associados e a leptina pode ser um agente que
contribui com a doença em dois aspectos, ou o indivíduo possui uma deficiência na produção
da leptina pelos adipócitos ou este possui uma resistência à sua ação, o que leva a um dese-
quilíbrio entre consumo calórico e gasto energético, contribuindo para o aumento de peso e,
consequentemente, um risco potencial à obesidade.

Recombinação alternativa
- Processamento diferencial

Estrutura do gene pode possuir 166 ou 167 resíduos de ami-


noácidos e um peso molecular de aproxima-
do pré-RNA mensageiro, onde
éxons e íntrons são clivados
e reorganizados com padrões
Lep e a proteína damente 16 kDa. A variação no tamanho da
proteína está relacionada a duas isoformas
diferentes. Permite a síntese
de diferentes isoformas de
que ele codifica de leptina, que podem ou não apresentar
um resíduo de glutamina na posição +49 da
proteínas a partir do mesmo
transcrito primário, as quais
cadeia de aminoácidos, devido ao mecanis- podem apresentar diferentes
Em humanos, o LEP é um gene codifican- funções.
te de proteína de cópia única, localizado mo de recombinação alternativa durante o
no braço longo do cromossomo 7, mais es- processamento do pré-RNAm. O gene LEP,
Pré-RNAm - forma primária
pecificamente na região 7q32.1 (Figura 1). também conhecido pelas siglas OB, OBS ou de RNA mensageiro transcrito
O gene apresenta três éxons e dois íntrons. LEPD, é expresso principalmente nas células a partir do DNA e que é
O primeiro éxon é formado por apenas 30 do tecido adiposo branco, além da mucosa processado para formar o RNAm
gástrica, placenta, adeno-hipófise e epitélio maduro.
pares de bases, está localizado na região 5’
não traduzida e contém o sítio de início de mamário. A leptina é secretada na circulação
transcrição do gene. Os éxons 2 e 3 contêm a sanguínea, sendo sua principal função rela-
região codificadora da proteína leptina. LEP cionada à homeostase energética através da Homeostase Energética -
codifica um RNA mensageiro de 4.5 kb, o sua interação com os receptores de leptina Processo regulatório ativo que
qual é traduzido na proteína Leptina, que (LEPR). visa igualar a quantidade de
energia adquirida do ambiente,
através da alimentação,
com a energia utilizada para
manutenção das necessidades
fisiológicas essenciais e
voluntárias.

Figura 1.
Esquema da localização e
estrutura do gene LEP. O gene
da leptina está localizado na
região 7q32.1 do cromossomo
7 em seres humanos. O gene
apresenta três éxons, sendo
que a região codificando para o
leptina encontra-se nos éxons
2 e 3.

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UM GENE Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Mecanismo de zimática. A isoforma LEPR-e é secretada na


circulação e é considerada um receptor solú-
ação da leptina vel de leptina envolvido no seu carreamento
na corrente sanguínea.
Proteína transmembrana
A secreção da leptina é regulada pelo esta- A leptina atua principalmente sobre o Siste- - proteínas integrais das
do energético do organismo. Em um esta- ma Nervoso Central, especialmente sobre o membranas celulares,
do nutricional recém-alimentado, com alto hipotálamo. Entre as diferentes isoformas de apresentam um domínio que se
suprimento de energia, a leptina é liberada encontra inserido na bicamada
LEPR, LEPR-b é considerada a forma com- lipídica, um domínio extracelular
na circulação pelo tecido adiposo branco e pleta do receptor, sendo associada aos efei- e outro intracelular.
sinaliza para o cérebro o excesso de energia tos do hormônio, desencadeando uma série
disponível para vários eventos biológicos, de eventos intracelulares, como ilustrado na
como regulação do metabolismo energético Figura 2.
e sistema imune (Figura 2). Em uma situa-
ção de baixo estado nutricional, com pouca A leptina é secretada pelas células do tecido
energia disponível para as funções celulares, adiposo na circulação. No hipotálamo, esse
a secreção de leptina é reduzida. hormônio liga-se ao seu receptor específico
presente na membrana plasmática e o ativa,
A ação da leptina ocorre através da sua inte- desencadeando vias de sinalização intracelu-
ração com seu receptor específico (Figura 2), lar, sendo a via Jak-STAT a principal a ser
o LEPR, conhecido também como Ob-R. Já Via Jak-STAT - Janus
ativada. O processo de sinalização celular Kinase/signal transducers
se identificaram cinco isoformas de LEPR, culmina com a regulação da expressão de and activators of transcription
sendo quatro isoformas (a-d) proteínas diferentes genes que estão associados ao me- - principal via de sinalização
transmembranas localizadas na membrana tabolismo energético, como o gene do Hor- intracelular ativada por
plasmática. A leptina liga-se à região extra- mônio Liberador de Corticotrofina (CRH) citocinas.
celular do receptor, levando à ativação da re- (Figura 2).
gião intracelular que apresenta atividade en-

Figura 2.
Mecanismo de ação do
hormônio leptina. A leptina
é secretada pelas células do
tecido adiposo branco e age
sobre as células do hipotálamo,
que apresentam em suas
membranas os receptores
específicos de Leptina
denominados LEPR. A ligação
do receptor com o hormônio
ativa uma via de sinalização
regulatória, denominada Jak-
STAT, que regula a expressão
de vários genes envolvidos na
homeostase energética.

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A leptina atua como um mecanismo de re- seja, este hormônio comunica ao cérebro Lipólise - Processo de
troalimentação negativa do tecido adiposo se as reservas de gorduras são suficientes e degradação de lipídios em
ácidos graxos e glicerol.
para o cérebro, sendo que a sensação de sa- reduz o consumo de alimentos. Além disso,
ciedade e diminuição da fome estão relacio- estimula o maior gasto energético, sendo um
nadas a uma maior secreção desta proteína importante regulador do metabolismo ener-
(Figura 3). Quanto maior a quantidade de gético, ao estimular, por exemplo, a lipólise
gordura corporal, maior é a secreção de lep- do tecido adiposo e inibir a lipogênese neste Lipogênese - Processo
tina e menor é a ingestão de alimentos, ou tecido. metabólico que sintetiza ácidos
graxos e triglicérides.

Figura 3.
Relação da secreção de
leptina com a taxa de gordura
corporal. A síntese de leptina
é proporcional à quantidade
de tecido adiposo. Indivíduos
que apresentam alta taxa de
massa de gordura expressam
e secretam mais leptina na
circulação do que indivíduos
magros. O hormônio leptina age
sobre o hipotálamo, levando à
maior sensação de saciedade e
maior gasto energético, além
de reduzir o apetite. Indivíduos
que possuem menor taxa de
gordura corporal secretam
menos leptina e apresentam
maior apetite e menor sensação
de saciedade.

A importância do hormônio na regulação da resistência à leptina, indivíduos obesos apre-


homeostase energética pôde ser comprovada sentam níveis plasmáticos do hormônio ele-
em modelos tanto animais quanto huma- vados (hiperleptinemia). Este aumento pode
nos que apresentam deficiência de LEP ou ser uma tentativa de compensar falhas na si-
LEPR. Todos eles apresentam altos níveis de nalização intracelular ativada pela leptina, ou
glicocorticoides, infertilidade hipotalâmica e seja, o organismo aumentar a expressão de GRE - Elemento responsivo a
Glicocorticoides presente na
diminuição das funções tireoidianas e imu- LEP e a secreção de leptina para balancear o
região regulatória do gene.
nológicas, assim como do crescimento. A pouco efeito fisiológico observado, o que aca-
deficiência de leptina mimetiza o estado de ba causando uma resistência ao hormônio.
fome do indivíduo, levando ao aumento do
anabolismo e do armazenamento de gordura
corporal.
Lep: descoberta do
É importante ressaltar que a patogenicidade gene e regulação
da obesidade em humanos está mais associa-
da à resistência à leptina do que à deficiên-
da expressão
cia do hormônio. Estudos mostraram que O gene da leptina foi descrito pela primeira
o tratamento com leptina exógena não foi vez em camundongos, nos anos 90. E ainda
completamente eficaz em reduzir o consumo nessa década estudos realizados em camun-
de alimentos e promover a perda de peso em dongos mostraram a associação do gene Lep
humanos com obesidade. A leptina exógena com o desenvolvimento de obesidade. Foi,
tem um maior efeito em crianças obesas, que assim, inicialmente chamado de gene Obe-
apresentam deficiência na síntese de leptina, se (OB), o qual estaria altamente associado
com redução de apetite e adiposidade, do à alimentação, ao metabolismo e ao peso
que em adultos. Corroborando a teoria de corporal. Em seguida, o homólogo do gene

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Hiperfagia - Desordem
Obese de camundongos foi caracterizado em tecido adiposo, o qual foi, durante muito alimentar causada pela
humanos. tempo, considerado como apenas um local ingestão excessiva de alimentos
ultrapassando a quantidade
de armazenamento de gordura. Tal revelação
Desde sua descoberta, o gene LEP foi iden- necessária para atender as
elevou o tecido adiposo de um simples arma- demandas energéticas do
tificado em diferentes espécies de mamíferos, zenador para um órgão endócrino altamente organismo.
como ratos, coelhos e morcegos, além de importante no metabolismo energético, uma
répteis e peixes. Ele é altamente conservado vez que a leptina é um hormônio que apre-
entre espécies, sendo que a leptina humana Adiponectina - Hormônio
senta um papel fundamental na sinalização proteico secretado pelo tecido
possui cerca de 84% de semelhança com a para o cérebro do controle da ingestão de adiposo na corrente sanguínea
leptina de camundongos. A função da lepti- alimentos e do gasto energético. Atualmente, associado à obesidade,
na é também conservada tanto em mamífe- sabe-se que o tecido adiposo secreta outras síndrome metabólica e diabetes
ros quanto em não mamíferos. moléculas, tais como adiponectina e diver-
tipo 2.

O alelo ob do gene LEP é caracterizado por sos tipos de citocinas, confirmando o tecido
Citocinas - Grupo de pequenas
uma mutação sem sentido, que codifica uma como importante órgão imunoendócrino re- proteínas que regulam
proteína truncada, sem atividade funcional. gulador do metabolismo corporal, envolvido a resposta imunológica,
Camundongos homozigóticos recessivos com uma gama de processos fisiopatológicos. importantes para imunidade,
inflamação e hematopoiese.
para o alelo ob/ob são obesos, hiperfágicos, A expressão de LEP é regulada por vários
diabéticos e estéreis. fatores metabólicos e endócrinos (Figura 4).
Seres humanos com mutações no gene LEP, Por exemplo, a insulina é um importante
Insulina - Hormônio produzido
ou no gene do receptor LEPR, que inviabi- regulador de LEP, sendo que baixos níveis pelo pâncreas endócrino
lizam a função do hormônio, também apre- plasmáticos desse hormônio estão relaciona- responsável por controlar os
sentam obesidade e hiperfagia. Em huma- dos à diminuição da leptina. A baixa expres- níveis de glicose no sangue.

nos, entretanto, a associação da leptina com são de LEP também está relacionada a baixas
obesidade não é assim tão clara, porque a temperaturas, estimulação adrenérgica, GH,
GH - Hormônio do Crescimento
obesidade é uma característica (ou condição) hormônios tireoidianos. Já o aumento na - além de estar relacionado
multifatorial, determinada por vários genes expressão de LEP está relacionado a altas ao desenvolvimento ósseo
concentrações plasmáticas de hormônios gli- e crescimento em estatura,
(poligênica) em combinação com o estilo de esse hormônio produzido pela
vida e fatores ambientais, como sedentaris- cocorticoides e citocinas pró-inflamatórias.
adeno-hipófise também está
mo e dieta com alto teor calórico, por exem- A secreção de leptina varia de acordo com o relacionado à regulação do
plo. Devido à natureza multifatorial da obe- metabolismo energético, tendo
ciclo circadiano, sendo maior durante a noi- uma ação semelhante à da
sidade, as mutações no gene da leptina não te. Também possui variação pelo sexo, uma leptina.
são a única causa da condição. vez que já foi observado que entre mulheres
e homens que apresentam a mesma massa de Hormônios tireoidianos - São
Pode-se dizer que a descoberta do gene LEP os hormônios Triiodotironina
e a função da leptina revolucionaram o en- gordura, a secreção de leptina é mais acen- (T3), Tiroxina (T4) e calcitonina,
tendimento que se tinha até então sobre o tuada em mulheres. responsáveis por controlar o
metabolismo e a homeostase
em todo o organismo.

Figura 4.
Representação esquemática dos mecanismos regulatórios da expressão
de LEP. A caixa verde apresenta os fatores estimulatórios da expressão
do gene e a caixa vermelha apresenta fatores inibitórios da síntese de
leptina. Setas para cima indicam aumento dos níveis plasmáticos; setas
para baixo indicam diminuição dos níveis plasmáticos. Fonte: autores.

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Variações no gene LEP já foram identifica- Já o polimorfismo rs8179173 foi associado


das, sendo algumas classificadas como po- a maiores valores de índice de massa corpó-
limorfismos, os Polimorfismos de Nucleo- rea, todos eles apontando a relação da leptina
tídeo Único (SNPs), que levam a troca de com fatores relacionados à obesidade.
SNP - Polimorfismo de
aminoácidos na sequência proteica da lep- Nucleotídeo Único (Single
tina ou mutações que alteram o quadro de
leitura do gene; assim como marcadores de
Para saber mais nucleotide polimorphis),
causado por mutação de um
microssatélites, já foram identificados pró- 2021. LEP leptin (Homo sapiens). NCBI Database. único nucleotídeo na sequência
Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/ do DNA.
ximos ao gene LEP e vêm sendo estudados
gene/3952. Acesso em 24 de abril de 2021.
para buscar uma possível associação com o
desenvolvimento da obesidade. Um exemplo AIRES, Margarida de Mello. Fisiologia. 4.ed. Rio de
de polimorfismo no LEP é o rs7799039, que Janeiro: Guanabara Koogan, 2012.
se localiza na posição -2548 da região pro- FREITAS, Priscila Correa et al. Relação entre leptina,
motora do gene. Alguns estudos sugerem obesidade e exercício físico. Clinical & Biomedical
que este polimorfismo está associado a uma Research, v. 33, n. 3/4, 2013.
Microssatélites - Unidades
variação nos níveis plasmáticos de leptina e MAMMES, Olivier et al. Novel polymorphisms in the de repetições de pequenos
com isso, ocasionaria um aumento na sus- 5'region of the LEP gene: association with leptin trechos de nucleotídeos na
cetibilidade à obesidade. Outros polimor- levels and response to low-calorie diet in human sequência de DNA. Variável
fismos no gene do receptor LEPR, como o obesity. Diabetes, v. 47, n. 3, p. 487-489, 1998. entre indivíduos.
rs1137100, apresentaram associação com al- MÜNZBERG, Heike; MORRISON, Christopher
tos níveis de leptina circulante, ocasionando D. Structure, production and signaling of leptin.
alterações no metabolismo de carboidratos. Metabolism, v. 64, n. 1, p. 13-23, 2015.

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