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CONFISSÃO | 26/11/22

Tensão entre Criador/Autor, Criação/Obra e


Autenticidade:

- Criador e Criação - Perspetiva cristã - Watkin, Van


Til, Kasper, Chesterton, Milbank e Leithart
- autor e obra - Rumo a uma ética - Heidegger,
Chesterton, Watkin, Gusdorf e Penha - Bergman e
Tarkovsky.

Criador e Criação - Separação e Relação

Watkin - Sobre a seperação essencial entre Criador e


Criação:

"A compreensão cristã da realidade no seu nível mais


básico afirma que existe uma divisão ontológica
fundamental: entre Deus e tudo o mais". Christopher
Watkin

"A existência de Deus é "infinita, eterna e imutável",


mas a criação existe como "derivada, finita, temporal, e
mutável". Isto distingue o relato bíblico de todos os
monismos, que afirmam que existe apenas um tipo de
existência. Muito da ciência e filosofia modernas são
funcionalmente monistas, sustentando que tudo o que
existe é feito de matéria ou energia". Christopher
Watkin

A visão monista surge em Génesis 3, quando Adão e Eva se


recusam a que Deus seja Deus:

"Como pecadores, estavam ansiosos por suprimir a


distinção Criador-criatura, tal como todos os outros
pecadores. Eles simplesmente assumiram que toda a
Realidade é, no fundo, una (…). Quando Thales disse que
Tudo é Água, ele deu provas desta suposição monista".
Cornelius Van Til

"A aceitação ou recusa da distinção Criador-criatura é


uma das mais importantes linhas divisórias entre o
pensamento cristão e secular. Ou tudo o que existe
existe da mesma forma, ou o Deus eterno e auto-
suficiente criou um universo temporal e contingente.
Ambos não podem ser verdadeiros. Van Til erige a
distinção criatura-criatura como o primeiro e mais
básico movimento de todo o pensamento bíblico,
insistindo que o apologista reformado "faça a distinção
criatura-criatura básica em tudo o que ele disser sobre
qualquer coisa". Christian Watkin

Esse pressuposto de Criador gerar a criação por livre e


espontânea vontade, por emanação, também podemos dizer,
levamos a afirmar que Deus não precisava de nós. Tal
parece uma coisa fria e distante mas é precisamente a
nossa inutilidade e dependência total d'Ele que permite
um relacionamento amorosamente verdadeiro e genuíno de
Deus para connosco e entre humanos.

“O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, sendo Senhor
do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos
de homens; Nem tampouco é servido por mãos de homens,
como que necessitando de alguma coisa; pois ele mesmo é
quem dá a todos a vida, e a respiração, e todas as
coisas;” Atos 17:24-25

"Deus dá-nos tudo e não precisa de nada de nós. Isto


coloca o unilateralismo e a generosidade não merecidos
em vez do benefício mútuo no centro da visão cristã das
relações, uma prioridade que relativiza a lógica quid
pro quo [tomar uma coisa por outra] das relações
contratuais (...)". Christopher Watkin

Mas porque Deus não precisa de nós, afinal? Porque Deus


já é uma comunidade de amor e afeto antes de nos ter
criado. É a sua completude que extravasa na Criação e
não a sua vacuidade que precisa de ser preenchida com a
Criação. Por isso toda a dinânica de Criador-criação
assente num necessidade de veneração ou trooca de
favores é estéril quando comparada ao convite da criação
participar daquilo que Deus já é. Deus é a Trindade.

Trindade

"De acordo com alguns relatos, toda a história da


filosofia pode ser resumida como uma série de tentativas
de resolver o problema do "um e muitos"." Christopher
Watkin — Unidade vs. Diversidade como um problema de
opostos aparentemente irreconciliáveis.
Walter Kasper escreveu também que a história do
pensamento moderno não só é a história da destruição da
confissão trinitária como também a história das várias
tentativas de reconstruir a doutrina da Trindade.

"Unidade em Deus não é mais fundamental que a


diversidade, e a diversidade em Deus não é mais
fundamental que a unidade. As pessoas da Trindade são
mutuamente exaustivas umas das outras. O Filho e o
Espírito estão ontologicamente a par com o Pai. É um
facto conhecido que todas as heresias na história da
igreja têm de uma forma ou doutra ensinado o
subordirdinarismo." Cornelius Van Til

O problema filosoficamente insolúvel da unidade e da


diversidade, de Parménides e Heraclito é diagonalizado
no pressuposto do Deus que é na mesma medida unidade e
diversidade.

John Milbank afirma que a "A vida é triádica." O que


quer dizer que, se a vida é a totalidade da nossa
experiência humana, a Trindade não é apenas um modo de
ver: é O modo de ver. Esse modo de ver tem implicações
de toda a índole, por exemplo políticas. Como reparou
Chesterton:

“Se estamos particularmente interessados em vincar a


ideia do equilíbrio generoso contra a ideia da horrenda
aristocracia, seremos instintivamente trinitários, e não
unitários” (Chesterton, 2008, p. 202).

E claro que também há, como temos vindo a perceber,


implicações ontológicas e existenciais. Como mais uma
vez mostrou Chesterton, acerca da teosofista Annie Wood
Besant:

"(…) a Sra. Besant anunciou que só havia uma religião no


mundo, que todas as confissões eram, ou versões ou
perversões dessa religião única, e que ela não se
importava nada de explicar do que se tratava. Segundo a
Sra. Besant, esta igreja universal é, muito
simplesmente, o eu universal. Trata-se da doutrina
segundo a qual somos todos uma mesma pessoa, não havendo
barreiras de individualidade entre os homens. Se me for
permitido apresentar a coisa desta maneira, a Sra.
Besant não nos diz que amemos o nosso próximo, mas que
sejamos o nosso próximo. É essa a profunda, sugestiva
descrição que a Sra. Besant faz da religião no quadro da
qual todos os homens deverão estar de acordo. Em toda a
minha vida, nunca ouvi sugestão da qual discordasse com
mais violência. Eu quero amar o meu próximo, não por o
meu próximo ser eu, mas precisamente por não ser eu.
Quero apreciar o mundo, não como se aprecia um espelho –
que reflete o que nós somos –, mas, como um homem ama
uma mulher: porque é totalmente diferente dele. Se as
almas estiverem separadas, o amor é possível; se as
almas estiverem unidas, o amor é obviamente impossível.
Pode-se dizer, de forma um tanto imprecisa, que um homem
se ama a si mesmo; mas não se pode dizer que ele se
apaixonou por si mesmo; ou então, se se apaixonou, será
um namoro muito monótono. Se o mundo estiver cheio de
pessoas independentes, essas pessoas podem ser
altruístas. Já com base nos princípios da Sra. Besant, o
cosmo é apenas uma enorme pessoa egoísta." G. K.
Chesterton

Deus é criativo e Deus é relacional. Chegámos já a dois


pressupostos fundamentais para entender o ato de criação
humana, uma vez que fomos criados à imagem e semelhança
do Criador. Amor e criatividade promovem iniciativas
relacionais e artísticas. Tu e Eu, Autor e Obra.

Susan Sontag, Peter Lindbergh, Vasco Gato — Vozes


seculares sobre a importância da Relação:

"Não me interessa que alguém seja inteligente; qualquer


situação entre pessoas, quando são realmente humanas
umas com as outras, produz "inteligência"". Susan Sontag

E as duas frases aconteceu lê-las há dois dias atrás em


duas publicações diferentes na rede social "Instagram":

"Um retrato nunca é a pessoa. O que está a ser capturado


é a relação com o retratado: uma conversa silenciosa que
se materializa na imagem". - Peter Lindbergh

"O amor só é possível num ritual de vários corpos./Um


corpo sozinho é uma campa vertical." Vasco Gato, "O Fim
do Contágio", livro pós-covid.

Leithart e Guthrie - Sobre música e o canto como


fenómeno que manifesta a Trindade:

"Cada nota é irredutivelmente ela própria, com a sua


própria frequência de vibração e a sua própria
proliferação de harmónicos. Mas as notas não são átomos
de som autónomos. Elas assemelham-se a "pura
permeabilidade, pura passagem". (…) Mais do que objectos
sólidos, mais do que relações humanas, mais do que a
penetração recíproca dos tempos, mais do que o
encadeamento de palavras distintas, a música exibe o
padrão de "interpenetração mútua" que marca toda a
realidade." Peter J. Leithart, Traços da Trindade.

"À medida que cantamos juntos, atendemos à actividade


dos nossos próprios corpos em fazer som, (…) e
respondemos à nossa própria canção à medida que a
ouvimos ressoar no espaço que nos rodeia. Ouvimos e
sintonizamo-nos com o som das vozes dos outros.
Respondemos não só às pessoas, mas às qualidades físicas
do som que estamos a criar com os outros e às
propriedades físicas e acústicas do espaço em que
cantamos." Stephan Guthrie.

"Agostinho e muitos outros reconheceram que a música


oferece uma percepção especial sobre a natureza do
tempo. A música revela que a sujeição ao tempo não é um
obstáculo à vida humana, mas a condição do florescimento
humano. (…) A música demonstra que "há coisas que só se
aprendem ao passar por este processo, ao ser apanhado
por esta série de relações e transformações". O tempo
exige uma espera paciente, e assim viver no tempo é um
caminho para a maturidade. A tentativa de contornar o
tempo, mesmo que seja feita por um filósofo ou artista
sofisticado, é infantil. Por ser temporal, a música
depende da transitoriedade (…)." Peter J. Leithart,
Traces of the Trinity.

Autor e Obra

Que o ato de criação seja uma separação, não significa


que seja um abandono, uma condenação à liberdade, como é
a visão de alguns existencialistas, nem tampouco uma
condição de servidão, mas antes a distância que cria a
possibilidade de relacionamento:

“Ora, a frase original de todos os teísmos cristãos é a


seguinte: Deus é um criador, como um artista é um
criador. Um poeta está tão manifestamente separado da
poesia que faz, que fala dela como daquela coisita que
«deitou cá para fora». No próprio acto de a produzir,
distanciou-se dela. Este princípio, segundo o qual toda
a criação e procriação consiste numa separação, é pelo
menos tão consistente ao longo do cosmo, como o
princípio evolutivo segundo o qual todo o crescimento é
um desenvolvimento. As mulheres separam-se dos filhos no
próprio ato de os terem. Toda a criação é separação. O
nascimento é uma despedida tão solene como a morte.
O mais básico dos princípios filosóficos do cristianismo
era o de que este divórcio presente no acto divino da
criação (o mesmo que distancia o poeta do poema e a mãe
do filho recém-nascido) era a descrição mais correcta do
acto por meio do qual a energia absoluta criou o mundo.
De acordo com a maior parte dos filósofos, ao criar o
mundo, Deus escravizou-o. De acordo com o cristianismo,
ao criar o mundo, Deus libertou-o” G. K. Chesterton

"Uma resposta artística só existe depois de plenamente


assumida enquanto acção no mundo, momento em que cessa
de pertencer ao seu criador." Rui Penha

A palavra que ainda não foi dita, é criação em


potencial. No ato intencional de a proferir, é libertado
o mundo, que passa a ser criado e que passa a ser um
ente distinto do criador. Se entendermos a arte como uma
separação, que possibilita o relacionamento e o
encontro, o criador quer que a obra seja o mais
autossuficiente possível, tal como o Criador quando nos
criou. Poderíamos chamar a isso a mimesis da Graça
criadora. Como escreve Heidegger:

"(…) será que a obra é alguma vez acessível em si? Para


que isto pudesse suceder, seria necessário extrair a
obra de todas as referências àquilo que ela própria não
é, para deixá-la estar só consigo. Mas não é já para aí
que se dirige o almejar mais próprio do artista? Por
meio dele, a obra deve ser libertada para o seu puro
estar-em-si-mesma. É precisamente na grande arte — e é
só dela que aqui se trata — que o artista permanece,
face à obra, algo indiferente, quase como uma passagem
que se destrói a si mesma no criar, uma passagem para o
passar-a-ser da obra." Martin Heidegger, A Origem da
Obra de Arte.
As implicações éticas da criação artística

Diálogo de Bergman entre David e Martin em "Såsom i en


Spegel".

Toda a criação implica a apropriação de algo. A


apropriação cultural num mundo globalizado é inevitável.
Rui Penha identifica a questão "Quem se apropria?" como
política e a questão "Como se apropria?" como artística.
A sua resposta, e a qual subscrevo, é a de submeter a
questão política à questão artística: tudo depende da
forma como se apropria. Sem concessão e sem ofensa.

Penha e Gusdorf - Sobre a dificuldade do que é complexo


de comunicar e o problema da apropriação do Outro na
arte:

"Os lugares-comuns e as conversas sobre a chuva e o bom


tempo representam não o supremo êxito, mas a caricatura
do entendimento entre os homens. A verdadeira
comunicação é realização de unidade, ou seja, obra
comum. Unidade de cada um com o outro, mas, ao mesmo
tempo, unidade de cada um consigo mesmo, recomposição da
vida pessoal no encontro com outrem. Eu não comunico,
senão enquanto me esforço por libertar o sentido
profundo do meu ser. A comunhão de amor, que representa
um dos modos mais completos de entendimento, não resulta
sem uma recomposição de personalidade, descobrindo-se
cada um no contacto com o outro. (...) A expressão mais
pura, a afirmação do génio na arte, fundamenta uma nova
comunhão, e a comunicação perfeita liberta em nós
possibilidades de expressão que estavam adormecidas."
Georges Gusdorf

"É aqui que reside, em simultâneo, a sua fragilidade e a


sua força: ao não pretender ser superficialmente
entendida por todos, entrega-se plenamente à
possibilidade de ser profundamente recebida por alguns."
Rui Penha

"O esforço do criador pede, reciprocamente, um esforço


análogo de renúncia: a comunicação implica uma partilha
da dificuldade." Georges Gusdorf

Um tipo de apropriação particular e que implica também


particular sensibilidade é da apropriação de um Outro
singular, isto é, quando o assunto da criação é uma
pessoa, como é o caso no diálogo do filme de Bergman.

"Quando se torna, então, inaceitável a apropriação?


Penso que isso acontece sempre que reduzo o outro, ou
uma das suas manifestações significantes, à condição de
objecto ao qual me contraponho enquanto sujeito em
condições de o manipular, de o representar ou de pôr em
evidência as suas propriedades, num processo que coloca
o foco num cercear de mim próprio enquanto sujeito e não
na transformação do mundo através do que é revelado pelo
encontro." Rui Penha

Watkin - pessoal vs. impessoal:

"A desconexão entre impessoalidade radical e ética


aponta para uma conclusão existencial interessante: é
possível manter filosófica ou cientificamente a primazia
do pessoal - por outras palavras, ter um impessoalismo
teórico mas um personalismo funcional. De facto, é assim
que vive hoje um grande número de pessoas. Para os
cristãos, a grande questão e o grande desafio é se,
mesmo mantendo teoricamente uma posição personalista,
vivemos de facto funcionalmente de acordo com a primazia
do impessoal. Um tal impessoalismo funcional pode
incluir a utilização de pessoas como meio para o fim da
obtenção de coisas ou "coisas", ou tratar as pessoas
como se fossem apenas máquinas complicadas." -
Christopher Watkin's Thinking Through Creation

Um fenómeno também interessante de refletir sobre é o de


quando nos apropriamos de nós próprios para nos fazermos
imagens de nós mesmos na obra que criamos. Quando a obra
torna o autor refém, tanto por causa da expecativa dos
outros quanto de si próprio. Ou ainda: quando o autor se
faz objeto dele próprio.

"Colocas o teu coração e a tua alma na tua obra. Vão


devorar-te. (...) Eu costumava pensar que os meus livros
ajudavam alguém a melhorar, mas ninguém precisa de mim.
(...) Eu queria mudá-los, mas eles mudaram-me para me
adequar à sua própria imagem". Escritor, Stalker,
Tarkovsky.

Costumo dizer que o meu processo de composição é um


processo de tradução do enigma da vida. A tradução, como
eu a entendo, não é um processo de imitação (no sentido
mais arcaico de mimesis enquanto mera representação),
mas também não é um trabalho original (no sentido da
obra de génio, ou de sujeito autocrático, como lhe chama
Heidegger. É sim, ser genuíno no sentido de ser fiel à
origem da experiência que se gerou na relação
“acustemológica”. Quando se é genuíno, isto é, quando se
é “fiel à vivacidade da experiência”, o artista saberá —
com mais clareza que ninguém — quais os meios a usar
para concretizar a obra. Como critica Feldman, os
imitadores estão interessados não no que o artista fez,
mas nos meios que ele usou para o fazer. É nesse momento
que o ofício emerge como um absoluto, uma posição
autoritária que se divorcia do impulso criativo que
originou a obra (Feldman, 2000). Essa é a essência de
todos os -ismos, do estilo, de categorias que interessam
à Cultura e à "Indústria Criativa", e não à Arte. É
dessa tentação que eu tento fugir.

"E os líderes do mundo de hoje falam eloquentemente


sobre a paz. Sempre que lançamos as nossas bombas no
Vietname do Norte, o Presidente Johnson fala
eloquentemente sobre a paz. Qual é o problema? Falam da
paz como um objectivo distante, como um fim que
procuramos, mas um dia temos de vir a ver que a paz não
é apenas um objectivo distante que procuramos, mas que é
um meio pelo qual chegamos a esse objectivo. Temos de
perseguir fins pacíficos através de meios pacíficos.
Tudo isto é dizer que, em última análise, os meios e os
fins devem coexistir porque o fim é preexistente nos
meios, e, em última análise, os meios destrutivos não
podem trazer fins construtivos." - Martin Luther King,
Jr., "A Christmas Sermon on Peace", The Trumpet of
Conscience, 24 de Dezembro de 1967

"Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o


bem." - Romanos 12:21

"Resta-me apenas confiar na sinceridade do meu processo


e manter, até prova em contrário, a esperança de que
qualquer pessoa que esteja na posse de condições de
interpretação da plausibilidade das minhas intenções se
sinta interpelada, mas não ofendida, pela minha
proposta." Rui Penha

A obra artística que deixamos no mundo é como um


juramento que fazemos. O compromisso que temos com a
obra deve renovar-se a cada instante. Daqui nasce a
necessidade de autenticidade do criador na relação que
estabelece com a sua obra.

Georges Gusdorf - Sobre autenticidade na palavra e na


comunicação:

"Qualquer palavra (…), mesmo se não foi formulada sob a


fé do juramento, é uma promessa e devemos vigiar para
não profanarmos nós próprios uma linguagem em que os
outros leem a marca da nossa vida pessoal." Georges
Gusdorf.

"A ética da palavra, numa experiência renovada dia após


dia, afirma uma exigência de veracidade. Trata-se de
falar verdade, mas não há falar verdade sem ser
verdade." George Gusdorf.

"Não é simples a tarefa de constituir a palavra como o


único ponto fixo, no coração de uma realidade humana
sempre variável, e qualquer juramento talvez prometa
mais do que é possível assegurar — intervindo então o
outro perigo de se tornar escravo de uma palavra dade e
prescrita, cujo sentido o tempo esvaziou e que se impõe
doravante como uma superstição inútil. O homem continua
senhor da sua palavra, mas só pode renunciar a uma
fidelidade morta para afirmar uma autenticidade mais
viva." Georges Gusdorf

Assim, e acima de tudo, é preciso cuidar do coração para


que ele não se apaixone mais pela obra que envolve a
pessoa, do que pela pessoa que envolve a obra.

“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e


desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?" Jeremias
17:9

Chegados a esta parte, poderão questionar-se: "Mas,


então, onde está a parte da confissão?" Eu poderia
responder evasiva, mas justamente, pois recorreria a uma
aceção da palavra: de que reconheci publicamente uma
crença, um modo de pensar que ultrapassa as fronteiras
de mim enquanto sujeito; uma confissão de fé. Mas decido
não me esquivar e levar a Confissão (ou seja, este
momento que decidi nomear desta forma) para a aceção
mais pura e agostiniana do termo, do voltar a conhecer,
do re-conhecimento. Confesso que: há cerca de dois anos,
quando o Ricardo me convidou para participar no Atrium,
o evento já tinha sido adiado uma primeira vez, para
poucos meses depois da primeira data. Nessa altura eu
disse-lhe: "O facto de ter sido adiado acabou por ser
bom, porque neste espaço de tempo houve uma série de
coisas que tiveram de acontecer para que estivesse
preparado espiritualmente." Disse isto do alto de uma
bazófia desmedida. Presunção e água benta tomei-as em
grandes quantidades e em igual medida. Falei como um
rapaz mimado, que reclama o que não merece. Assim,
depois de uma pandemia, de uma experiência de quase
esgotamento e da dor de um relacionamento acabado,
confesso com toda a firmeza que não mereço de modo algum
estar aqui e nunca estarei preparado para o que quer que
seja se for eu a dizer: "estou preparado". A grande
ironia é como isso resulta num tremendo alívio e numa
profunda consolação. Acredito que estou no trilho da
Trindade, isso é dizer que estou no trilho do Amor — e
que esse trilho está longe de terminar. Porque, para
começar, nunca acaba.

“Eu, o SENHOR, esquadrinho o coração, eu provo os


pensamentos; e isto para dar a cada um segundo o seu
proceder, segundo o fruto das suas ações” (Jeremias
17:10). Amen.

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