Você está na página 1de 74

João Denys

DEUS DANADO
O Drama Seco

Recife
1993
Deus Danado:
Uma opção estética pelo homem da terra e seu drama seco*

Vem de longe o meu Deus Danado. Vem das brenhas do Seridó, entre
garranchos e minérios.

Em 1957, nasci numa família pobre, honesta e íntima da fé, nas lonjuras do Rio
Grande do Norte. Saí de Currais Novos, no início de 1975 e me instalei na
cidade do Recife, de outras lonjuras e particularidades. Na pequena cidade,
construí o meu imaginário matriz. Na cidade grande de Pernambuco, amadureci,
nos livros e nos debates, o inventário de imagens que fui curtindo na minha
infância e adolescência.

Dos Currais vem outro Deus: um corpo invisível reduzido à partícula, nas
âmbulas e nas custódias de ouro. Eternas vigílias diante do sacrário, embriagado
de incenso, adorando o Santíssimo Sacramento. Em outra hora, quase a mesma
comoção diante do palco de um circo qualquer que representava um velho drama,
outra paixão: Ferro em Brasa.

Da roça à cidade era um pulo. Da cidade à capital, uma eternidade. Foram-me


muito útil as memórias do também curraisnovense Antonio Othon Filho 1, na
invenção deste Deus...

Em 1979, escrevi A Pedra do Navio. Era a primeira tentativa de construir uma


obra teatral que recuperasse, de alguma forma, os acontecimentos dramáticos da
minha aldeia. Uma tentativa de ficcionar sobre a história de uma cidade onde eu
era, simultaneamente, ator e espectador.

Este projeto, de agora, busca descer mais fundo na crueldade da existência


humana, na veia nordestina, procurando, numa história de Trancoso, resgatar um
universo arcaico, de infinito deserto, onde o nada é a verdadeira experiência
interior. Com Deus Danado, tento colocar tudo em jogo. Reinventar o continente
de minhas origens com as lições do conhecimento que fui cavando nestes últimos
anos. Cavei e me perdi em Eclesiastes, Calderón de la Barca, Antoino Vieira,
Nietzsche, Kafka, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Georges Bataille, Pier
Paolo Pasolini, Beckett... Plasmei nestes universos distantes de mim, procurando
respostas. O nada, talvez. E este nada já estava dentro de mim. Escondido e
cristalizado no mais escuro e matuto dos meus modelos.

1
Othon Filho, Antonio. Meio século da roça à cidade: cinqüentenário de Currais Novos. Recife:
Companhia Editora de Pernambuco, 1970.
Bataille ensina que “quem não morre de ser apenas um homem, nunca será mais
que um homem”2. É morrendo nesta angústia, por não ter controle sobre a
realidade, controle sobre a natureza, que foi realizado Deus Danado.

Nesta danação hiper/realista/fantástica, o homem já não difere dos animais, nem


das plantas, e tampouco das pedras... (Schopenhauer?). Citando a incalculável
influência desse filósofo sobre a arte moderna, Anatol Rosenfeld revela que
“...no fundo somos bonecos, estrebuchando, com trejeitos grotescos, nas cordas
manipuladas pela vontade cega e inconsciente: palhaços a se equilibrarem, aos
tropeços, no circo do Ser absurdo. Na falência de todos os sentidos e valores,
resta só um sentido: o salto mortal para o Nada.”3 Este salto é realizado pelos
personagens Teodoro e Luiz, durante as treze jornadas do drama, entre o escuro e
o claro, a noite e o dia: O medo do escuro; As lições do mundo; Saudades da fala
de deus; As treze lamparinas; As espigas de milho; A luz cobre Roseta; A estrela
em brasa; Os olhos que queimam; A cópula da luz e da estrela; A peleja; Lux in
tenebris; A libertação da luz; A noite também é um sol. Nestas longas jornadas, o
eterno conflito dos poderosos versos oprimidos é levado às últimas
conseqüências, diante da praga do medo, do indomável sonho e o do paradoxo de
ser livre.

Num momento em que o mundo passa por uma de suas piores fomes, a seca
destrói outras culturas e a natureza humana aniquila o próprio homem/natureza,
pomos o espectador diante deste silêncio aborrecido de Deus. Eterno conflito de
todos os tempos. Desde Ésquilo a Beckett, sempre as violências do mundo: a
solidão, as desgraças, a busca desesperada da morte através da vida.

A encenação deseja problematizar estas questões com o realismo, passando pelo


hiper-realismo e saltando, mortalmente, no surrealismo. Esta é a marca da
encenação: utilizar-se dos recursos do realismo – não para encantar o público
com um pedaço da vida – porém, para redimensionar esse real. Impregnar os
elementos com novos signos; torná-los símbolos, totens de uma realidade muito
mais que realista.

O mais importante em todo este projeto é concluir que o Tudo e o Nada estão
aqui no Nordeste. Que a matéria-prima das vanguardas artísticas contemporâneas
está em nós, muito antes das tendências de última geração legitimadas pelos
poderosos. Que das mãos calejadas do agricultor Felinto Lúcio Dantas,
seridoense potiguar, brotou a música que tranca este drama. Que os sons mais
puros que poderíamos produzir vinham da força criativa de um Tavares da Gaita,
pernambucano do mundo. Que a grafia da nossa cena estava na feira, esperando

2
Bataille, Georges. A Experiência interior. Tradução de Celso Libânio Coutinho et alii. São Paulo: Ática,
1992, p. 41.

3
Rosenfeld, Anatol. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 6.
pelos nossos olhos, escrita pelo brilho magnífico de um povo que resiste com sua
sabedoria.
Quando o processo de criação Deus Danado avançava, Arnaldo Jabor, em outras
plagas distantes, parece que sintonizava com o seu caminhar. Escreveu um artigo
intitulado Seca mostra que o nada é no Nordeste – “ tragédia da miséria pode
criar momentos luminosos de arte, como uma sofisticada cena de Beckett” 4. As
coincidências emocionam, porém não foram feitas opções estéticas pela miséria.
Não se pode recuperar, através da arte, o sofrimento de um dos povos mais
criativos do planeta.

Através do resgate mítico deste história de Trancoso, seca e hostil, a encenação


espera tocar no escuro de cada espectador. Escavacar no arcaico de cada um. No
desconhecido.

A opção estético-ideológica do espetáculo é pelo homem do nosso lugar: sua


cultura e sua existência. Será que este homem se reconhece como este Deus
caviloso que constrói e destrói o seu próprio caminho? A que será que ele se
destina? Com certeza, não irá para os altares, tabernáculos e ostensórios. Será
danado e existirá nesta danação.

João Denys Araújo Leite


Recife, agosto de 1993.

* Texto publicado no programa da primeira montagem de Deus Danado, dirigida pelo autor,
para a Companhia de Arte Pernambuco-Brasil, com os atores Gilberto Brito (Teodoro) e Júnior
Sampaio (Luiz). O espetáculo estreou no Teatro José Carlos Cavalcanti Borges, Recife, em
agosto de 1993.

4
Jabor, Arnaldo. Seca mostra que o nada é no Nordeste. Folha de São Paulo, 04 maio 1993, p. 04/08.
Deus Danado

As Jornadas

1ª Jornada/1ª Noite
O Medo do Escuro ....................................................................................... 4

2ª Jornada/2º Dia 15
As Lições do Mundo ....................................................................................

3ª Jornada/3ª Noite 24
Saudades da Fala de Deus ............................................................................

4ª Jornada/4º Dia 28
As 13 Lamparinas ........................................................................................

5ª Jornada/5ª Noite 37
As Espigas de Milho ...................................................................................

6ª Jornada/6º Dia 43
A Luz Cobre Roseta .....................................................................................

7ª Jornada/7ª Noite 48
A Estrela em Brasa
.......................................................................................

8ª Jornada/8º Dia 52
Os Olhos que Queimam ...............................................................................

9ª Jornada/9ª Noite 53
A Cópula da Luz e da Estrela .....................................................................

10ª Jornada/10º Dia 55


A Peleja ........................................................................................................

11ª Jornada/11ª Noite 58


Lux in Tenebris ............................................................................................

12ª Jornada/12º Dia 61


A Libertação da Luz ....................................................................................

13ª Jornada/13ª Noite 64


A Noite Também é um Sol ..........................................................................
Personagens:

Teodoro
Um pai

Luiz
Um filho

Alma de Luzia
Um espírito
Cena 1: O Medo do Escuro
1ª Noite, 1ª Jornada

Uma habitação-santuário em pedaços. A terra tremeu, o mundo está se


acabando. Grossas paredes, enegrecidas pelas chamas de velas e
lamparinas, que sustentavam um teto inexistente. No alto da parede de
fundo, uma grande estrela de cinco pontas, moldada em ferro. Abaixo,
cobrindo-a por inteiro, uma infinidade de chocalhos de todos os tipos e
tamanhos, dependurados por tiras de couro. Tudo que restou de uma
cultura se espalha pelo espaço: dois grandes caixões de farinha, quartinhas
de barro, cochos, fogareiros de ferro, treze lamparinas de formas e
tamanhos variados, couros de bois e bodes, restos de redes de dormir,
picaretas, pás, martelos, facas, peixeiras e o pó. Pó, pó e pó...

Teodoro chega da caatinga. Conduz Luiz às costas. Está exausto e coberto


de pó. Parece o morto carregando o vivo. Suas roupas são cruas e sujas,
como se fossem feitas de alvas, grossas e antigas redes, remendadas com
restos de peles de bodes e bois. Luiz, escanchado às costas de Teodoro traz
sobre os ombros um gibão de couro. Na cabeça, um chapéu de vaqueiro e,
sobre ele, uma lamparina pendular acesa, presa ao chapéu por uma
engrenagem de ferro. Parecem bichos-homens destroçados. Teodoro traz,
dependurado no pescoço, um chocalho de touro; Luiz, um chocalho de
cabrito. Teodoro, com muito esforço, consegue transpor a entrada, que
mais parece uma cerca ou mata-burros. Entra na habitação e começa a
girar em torno de uma cadeira improvisada com tijolos cruz; pedaços de
escombros.

TEODORO
Nada!

LUIZ
Ah, Deus!

TEODORO
Nadinha de nada. Onde o pai escondeu a botija, pai do céu?

LUIZ
Nadinha nadinha. Foi-se embora a vida. Ah, pai do céu!

TEODORO
A vida está na boca da noite...

LUIZ
A noite é um sol, padrinho?
TEODORO
Eita peso! Arreia, minha sina! Ta variado outra vez?

LUIZ
Tá brabo, padrinho? Tá cansado? Tô pesando?

TEODORO
Como é que eu posso escavacar a terra, rachar a pedra, arrancar a raiz?

LUIZ
Tô com fome, tô com sede, tô com sono, tô com dor, tô com medo, tô
espatifado.

TEODORO
Você é a minha carga!

LUIZ
O senhor vai me matar, não é padrinho? (Cantando, distante da realidade)
A bênção, meu padrinho?

TEODORO
Cabeça oca de coité! Bata na boca! Esconjurado! (Silêncio) Deus lhe dê
juízo.

LUIZ
Amanhã eu morro, viro graveto e o senhor acha a botija.

TEODORO
Não posso... Eu tenho que me perder nas profundezas do chão. Como vou
rasgar o corpo desse bicho, desse sertão, com você no meu espinhaço?
Como? Me diga! Responda, carrapato!

LUIZ
Deixe eu fugir, padrinho! Me tire do espinhaço que Povoado da Cruz vai
pisar Luiz.

TEODORO
Luiz!!

LUIZ
Luiz!!

TEODORO
Tenho faca amolada pra cortar sua língua, louro atrevido!
LUIZ
Pra cortar a sua língua, faca amolada eu tenho, louro atrevido!

TEODORO
Ai, ai, ai ai ai ai ai ai! Eh eh eh eh eh eh eh eh eh!! Rê rê rê rê rê rê rê rê,
bezerro desmamado. Deu pra me arremedar, seu cabra?

LUIZ
Acelerada, acelerada, acelerada! Lá vem a noite acelerada!! Lá vem a noite
acelerada, meu padrinho!

TEODORO
Vai apanhar!!

LUIZ
Não, não, não! Apanhar não, padrinho! Eu morro, padrinho! O boi morreu,
o cabrito morreu, o jumento fugiu, morreu pinto, morreu guiné, morreu
cajueiro, morreu jaçanã, morreu babugem...

TEODORO
Vai morrer, desgraçado!!

LUIZ
Tô morto, padrinho...

TEODORO
Peste, peste, peste!

LUIZ
Defunto! Assombração!

TEODORO
Tísico dos infernos! Besta fera! Desagarre! Desagarre! Desagarre do meu
corpo.

LUIZ
Corte meu corpo do seu, padrinho. (Patético) Eu sou um anjinho num
caixão de farinha. Téu, téu, téu, téu, téu, téu...

TEODORO
Feche a língua com ferrolho, passarinho azarento.

LUIZ (Distante)
Tudo morto... todos finados... (perdendo o controle) Me separe do senhor,
padrinho!
TEODORO (Seco)
Tranque a matraca, amaldiçoado!

LUIZ (Hierático)
Estou sem mortalha, meu padrinho. Pó! Pó! Pó! A noite se achega. Tô com
medo.

TEODORO
Pro chão, Judas Iscariotes! (Joga-o no chão) Debaixo do sol só vive a
traição!

LUIZ
Pó! Tô solto, padrinho.

TEODORO
Desembestado!

LUIZ
Tudo é pó, pa... pé, pé, pé, pó, pó, ó, ó. A Cruz secou. É o medo, meu
padrinho. Perdão, perdão, perdão, perdão. (Cantando, maravilhado) A
bênção, padrinho!

TEODORO
Você é bicho covarde, medroso! Tenha vergonha! Você é bicho macho!
Macho não tem medo de nada!

LUIZ
Me dê a bênção! Sou um anjinho morto num caixão de farinha... Entupido
de pó.

TEODORO
Mentiroso! (Acendendo os candeeiros)

LUIZ (Entrando em desespero)


Tô vendo! Tô vendo o pó me cobrindo. O escuro me abraçando Tô com
medo!

TEODORO
Mentira! Estou acendendo o candeeiro pra fazer escuridão?

LUIZ
Acenda outro, mais outro. Mais e mais! Quando mais o senhor alumia, mais
o escuro fica maior lá fora.
TEODORO
Seu mentiroso! A moléstia são seus olhos. Que inferno é esse olhar que vê
o que não existe, que enxerga o que não se vê?

LUIZ
Não sei, não sei, não sei! Vejo os ossos dos bichos. Vejo os garranchos,
tudo de osso. Vejo Roseta espumando. Vejo o olho d’água secando. Vejo o
silêncio falando...

TEODORO
Você é doido! Abilolado de nascença! Você está vivo! Vivo, porque eu
estou vivo! Eu estou andando. Cavando a terra, todo o santo dia. Oiça! Você
é desgraça e desgraça é sempre viva! (Silêncio) (Calmo) Deus lhe dê a
bênção.

(Tempo)

LUIZ (Contando as lamparinas)


Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze...
Passou, padrinho. Estou com medo não.

TEODORO
Vá buscar água pra me lavar. (Luiz vai saindo) Venha cá! Tire essa roupa.
Aqui não tem precisão. Não tem espinho, nem garrancho. (Auxilia Luiz) Vá
num pé e volte noutro. A fome tá me matando.

LUIZ
Eu tô morrendo de sede.

TEODORO
Traga a quarta pra eu beber primeiro. (Bebe) agora beba. Cuidado! Beba
devagarinho, pra não estuporar o bucho. (Luiz bebe). Agora vá e traga a
bacia e a água pra me lavar. (Luiz sai com uma lamparina na cabeça, pela
abertura oposta a que entraram e que tem o mesmo tipo de mata-burros.
Teodoro ajunta num prato de barro alguns punhados de farinha, que retira
de um caixão. Gritando para fora, a Luiz) Traga o taco de jabá, que ta no
sereno!

(Luiz retorna com um barril d’água, uma bacia e um pedaço de carne-seca.


Teodoro está sentado numa cadeira de tijolo. Luiz se aproxima e começa a
retirar-lhe as botas).

LUIZ
Este é o último pedaço de jabá. Carne de bicho a gente não vai comer nunca
mais.
TEODORO
Arre!

LUIZ
O que é, padrinho?

TEODORO
Olhe pro meu pé!

LUIZ
Tá inchado. Quase não saiu da bota.

TEODORO
Nada!

LUIZ
Ah, Deus!

TEODORO
Foi algum espinho do cão que furou o couro da bota e entrou no meu pé.

LUIZ
Eu curo, padrinho. (Apanha a bacia, despeja a água e começa a lavar os
pés de Teodoro)

TEODORO
Eita desdita danada! Quando é de dia, o calor é dos infernos. Agora, a noite
traz o frio e a ventania, que, também, é dos infernos. Esfregue mais!
(Silêncio. Luiz esfrega os pés de Teodoro, fitando-o no rosto) O que é? O
que está olhando?

LUIZ
Sua cara, padrinho. Tá mansa...

TEODORO
Já lhe disse mais de trezentas mil vezes: não olhe nos meus olhos!

LUIZ
Por que, padrinho?

TEODORO
São muito espinhentos, seus olhos. Ai!!! Cuidado, cachorro da mulinga!
(Chuta a água no rosto de Luiz)

LUIZ
Perdão, meu padrinho Teodoro!
TEODORO
Perdão. Pois sim. A cantiga da perua é uma só: perdão, meu padrinho. Lave
devagarinho. Passe a mão com cuidado. Bem de leve.

LUIZ (Acaricia os pés e parte das pernas de Teodoro)


Assim?

TEODORO
Sim.

LUIZ
Eita coisa bonita de se ver!

TEODORO
O que?

LUIZ
Os pés do senhor.

TEODORO
Lave, Luiz. Banhe meus pés e não diga besteira. Lave macio.

(Silêncio. Teodoro começa a gemer de prazer)

LUIZ
Tá sentindo alguma coisa, meu padrinho?

TEODORO
Não. Não! Não fale! Lave manso. Lave leve. Lave, leve, leve, leve, leve...
(num ímpeto, quase em êxtase) Arranque o espinho, Luiz, me cure!

LUIZ
Vai doer!

TEODORO (Mais excitado ainda)


Vá, desgraçado! Eu estou com fome!

(Luiz leva o calcanhar de Teodoro à boca e morde, sugando o espinho.


Teodoro berra. Um grito que deve ser um misto de dor e prazer. Silêncio.
Tempo. Teodoro parece desmaiado sobre a cadeira. Luiz, lentamente,
enxuga seus pés. Depois, apanha uma faca-peixeira e começa a cortar a
carne-seca em pequenos pedaços. Junta-os à farinha, no prato de barro e
se dirige a Teodoro)
LUIZ
Pronto, meu senhor. Está satisfeito? Pode descansar em paz que eu lhe dou
de comer.

TEODORO (Ainda ofegante)


Deus lhe dê juízo, meu afilhado.

(Luiz vai pondo a farinha na boca do padrinho. Age como quem dá comida
a uma criança pequena. Ele também come. Silêncio.)

LUIZ
Posso levar a água dos seus pés pra Roseta, padrinho?

TEODORO
Pode.

(Teodoro levanta-se e começa a apagar as lamparinas. Luiz retorna.)

LUIZ
Dormir, padrinho?

TEODORO
O sol pode nascer de repente. É ele saindo e eu atrás da botija.

LUIZ
E se o sol não aparecer?

TEODORO
Vai começar a variar, outra vez?

LUIZ (Com uma maldade repentina)


Eu vou morrer dormindo... E quando o senhor acordar vai estar sozinho no
mundo. Sozinho...

TEODORO
Mas antes de você morrer no sono, eu mato você de chibata!

LUIZ
Bata, então, padrinho.

TEODORO
Acabe com essa safadeza e me ajuda a tirar a roupa.

(Luiz ajuda a desnudar Teodoro, que se deita em seguida)


TEODORO
Apague o resto das lamparinas e vá se deitar.

LUIZ
Espere aí, padrinho, que eu vou beber água.

(Tempo)

TEODORO
Que água demorada da mulinga é essa, Luiz?

LUIZ
Já vou, meu padrinho.

TEODORO
Apague as lamparinas. O querosene está acabando. O que resta é quase
nada. O futuro é escuro, Luiz.

(Luiz caminha para o seu lugar de dormir. Apagou todas as lamparinas,


menos uma grande que traz para junto de si. Deita-se e a apaga. Escuro
total)

LUIZ
Diga alguma coisa, padrinho. Conte uma história.

TEODORO
Feche a boca e vá dormir.

LUIZ

Eu estou com medo.

TEODORO
Medo de quê, diabo? Já vai começar?

LUIZ
Eu estou com medo do escuro.

TEODORO
Será possível, danado? Toda noite você começa com essa ladainha? Feche
os olhos. É escuro do mesmo jeito. O escuro tá dentro da gente. Vá se
acostumando.
LUIZ
Não, não, não! Quando eu pego no sono é pior. Começo a ver gente. O
povoado da Cruz vira outro sítio. Vejo fartura que não posso pegar. Comida
que não chega na minha boca...

TEODORO
Cale a boca e vá dormir! Eu já lhe disse: o nome dessa doença é sonho.
Sonho só.

LUIZ
Quando eu adormeço, aparece asa de anjo. Vejo meus olhos furados. São
dois buracos correndo leite.

TEODORO
Reze pro anjo da guarda. Isso é sonho mau. Só sonho.

LUIZ
E que danado é sonho, padrinho? Visagem, aparição? Coisa do outro
mundo?

TEODORO
É. Sonho é um mistério. E mistério não tem explicação. É coisa do outro
mundo. Não se explica. Vá dormir!

LUIZ
Deixe eu acender um candeeiro, padrinho. Só um.

TEODORO
Já disse que não.

LUIZ
Se não tiver escuridão, eu não tenho medo.

TEODORO (Perdendo a paciência)


Não!!!

(Tempo. Silêncio)

LUIZ (Quase chorando)


Tenha piedade, padrinho. Fale alguma coisa.

TEODORO
Pra quê? (Silêncio) Falar o que?

LUIZ
Pra não ficar tão escuro. Conte uma história.
TEODORO
Que besteirada é essa? Falando ou não falando, a noite segue gorda de
escuridão.

LUIZ
Mas quando o senhor fala, conta uma história, é como se todas as lamparinas
começassem a cuspir fogo. Tudo fica claro.

TEODORO
Eita castigo da moléstia! Durma, Luiz.

(À proporção que Teodoro começa a contar a história, uma luz etérea vai
cobrindo o lugar onde eles estão)

Antigamente, esse povoado da Cruz, assim chamado, era cheio de vida.


Deus se amostrava! Era uma beleza! Fartura! Seca, sempre teve. Mas,
também, inverno sempre chegava. (Silêncio) Meu pai era um santo. Meu
avô, pai de papai, outro santo. Meu pai gostava de plantar a terra, meu avô,
de cavar. Tinha entendimento dos minérios, das pedras de valor. Nesta
Cruz, meu pai trabalhou a terra, criou família e gado. Era grande a criação.
O tempo foi-se... Meu pai ficou velho e se encantou. Quando estava
morrendo, puxou minha orelha, e falou no meu ouvido um segredo. Era
segredo da terra. Disse que aqui, na Cruz, tinha enterrada a maior botija do
mundo. Não disse o lugar certo. Disse que procurasse, porque quem
procura, acha. Depois da morte dele, veio um ano de seca atrás do outro.
Toda a gente foi-se embora pro oco do mundo. Você apareceu como uma
pedra jogada no roçado. Jogaram você no meu alpendre, na calada da noite.
(Silêncio) Era uma ferida com dois olhos. Uma ferida olhando pra mim...
(Silêncio) Minha mulher estava prenha. Na tardezinha que as dores
chegaram, o céu ficou inchado e veio uma tromba d’água do inferno. Eu
corri com ela. Ela com você. Viemos pra esse cruzeiro. Lugar de Deus, de
milagre, e que dá nome ao lugar. O céu rachou de meio a meio. Um corisco
partiu nossa casa em duas bandas. Esbagaçou-se toda. Eu, daqui, vendo
tudo. Tudo se danando lá embaixo. Luzia, minha dona, gritando de dor.
Você, berrando do lado. Ela começou a parir. Eu, pegando o rebento. Tudo
foi se arrebentando: morreu mulher e morreu filho. Fiquei com você. Por
consolo e castigo. Essa foi a última chuvada. (Silêncio) E lá se vão não sei
quantos anos... Só sei que você já é quase um garrote. Tudo se acabou e a
gente foi ficando... E enquanto eu tiver perna pra ficar em pé, coragem pra
andar e força nos braços, vou seguindo o meu destino: escavacando pras
profundas da terra. “Nu saí da barriga da minha mãe e nu voltarei pra lá.”
(Acende um candeeiro e começa a se vestir. Silêncio). Tudo passa. Tudo é
uma dificuldade. “O olho vê e não fica satisfeito. O ouvido ouve e não enche
a pança”. Você se console e durma com a sua fome. No sono, tudo se
desmancha... O cansaço se esquece. Tudo torna. O nada sempre foi e tornará
sem fadiga. Não há mais novidade. Durma, inocente. Amanhã, lavará meus
pés como faz todo dia. Amanhã, começará a aflição de ontem, anteontem e
trasantontem. Sempre a mesma ferida, a derradeira ração. Não há mais
pasto. “Não há mais nada de novo debaixo do sol”. “Deus nos fez brutos e
brutos somos” (Silêncio) Desgraçada é esta terra! Mas Deus quer, é assim
mesmo. Me desgraço nela... (Caminha para Luiz, que dorme frouxo). Ah,
se eu pudesse entrar aí, na sua carne, atrás desses olhos que só posso fitar
fechados. (Silêncio) que diabo tem dentro dessa cova? O que você está
vendo, em sonho, que eu não posso ver? Você ainda sonha. Eu, não sei mais
o que é isso. (Acaricia os cabelos de Luiz e, lentamente, cheira seu rosto,
como quem cheira um animal de estimação). Eu abençôo você, Luiz.
Durma. Durma, Luiz... Durma com outros anjos caídos que nem você.
Durma com seu cheiro de dor. Com seu cheiro de barro seco... Com seu
cheiro de pó. (Apaga a lamparina e com ela a luz que alumiava a cena.
Saindo com os instrumentos de cavar) Dormir... Dormir... Dor... me...
Cena 2: As Lições do Mundo
2º Dia, 2ª Jornada.

Ouve-se um som de marimbau. Na verdade, é um instrumento construído


sobre uma base de madeira, com restos de uma roda de ferro e quengas de
coco, onde está tensionada uma corda metálica. Com o auxílio de um
vidrinho e um graveto, Luiz toca no escuro. Aos poucos, uma luz escaldante
penetra a cena a 90º. É meio-dia. Luiz toca como um místico ou como um
cego de feira. Teodoro invade a sala coberto de parangolés. É a figura de
outro mundo. Traz garranchos e pedras, que atira pelo chão. Começa a
despir-se dos penduricalhos.

TEODORO
Nada!

LUIZ
Nadinha de botija, padrinho?

TEODORO
Desde as quatro horas, e nada!

LUIZ
Esquece isso, padrinho. Vamos embora.

TEODORO
Tá blasfemando, moleque? Ir embora pra onde?

LUIZ
Pro oco do mundo.

TEODORO
Deixe de dizer asneira. O oco do mundo é aqui!

(Teodoro apanha um pedaço de fumo e, com uma peixeira começa a picá-


lo. Prepara um cigarro com palha seca de milho. A ação é demorada)

LUIZ
Padrinho, a fogueira do céu está cada dia maior. (Silêncio) Padrinho tem
uma brasa dentro do meu bucho.
TEODORO
O fogaréu do céu tem nome, já lhe disse: é o sol que queima a terra. A brasa,
dentro das suas tripas, também tem nome: é a fome. Primeira dor quando se
nasce.

LUIZ
Por que padrinho?

TEODORO
Porque Deus é assim mesmo...Porém, ainda temos muito para esfriar a brasa
da barriga.

LUIZ
E o fogo do céu?

TEODORO
A natureza é um mistério. Homem nenhum pode entender (Silêncio)

LUIZ
Fale mais padrinho. Fale pra eu esquecer a fome.

TEODORO
Quanto mais se fala, mais a brasa arde.

LUIZ
Quanto mais escuto, mais a brasa esfria.

TEODORO
Se a gente não estruir o comer pouco que resta, e a água que sai do olho, dá
tempo pra eu achar a botija e criar uma outra vida.

LUIZ
Eu posso ajudar o senhor a cavar.

TEODORO
Não! Essa penitência é só minha. E se você ficar cansado comigo serão duas
bocas com mais fome. O tico que resta vai se acabar mais depressa.
(Silêncio) O mundo é um mistério...

LUIZ
A,e,i,o,u...(Tempo) Mistérios são as letras que o padrinho me ensina. Quero
água.

TEODORO
Debulhe o feijão e espere o sol descer.
LUIZ
(Dirige-se á entrada da habitação para melhor olhar o céu. Ele está
parado no céu mais alto. (Volta) Hoje ele não desce. (Apanha um alguidar,
ajunta um punhado de vagens secas de feijão e começa a debulhar).

TEODORO
Deixe de asneira. (Tempo) Isso é outro mistério: o mistério do tempo; o
engano das horas; a ciência dos números.

LUIZ (Debulhando o feijão)


Grão, grão, grão, grão, grão,grão...Um grão mais outro grão, vira dois. Um
grão, mais um grão, mais um grão, vira três. Um, dois, três, quatro, cinco,
seis, sete, oito, nove, dez. Depois do dez vem um um.

(Teodoro enraivecido, toma-lhe os grãos debulhados, atirando-os pelo


chão)

TEODORO
Onze, abestalhado!! Onze, doze, treze, quatorze, quinze, dezesseis,
dezessete, dezoito.

LUIZ
Não quero mais debulhar feijão.

TEODORO
E você tem querer, moleque? Quer apanhar?

LUIZ
Não, padrinho. (Silêncio) Conte uma história, meu padrinho...A história do
começo do mundo.

TEODORO
Você só quer saber de cego, e de história, seu preguiçoso!
(Segura-o pela orelha) Levante-se para apanhar!

LUIZ
Não, padrinho! Pelo amor do pai do céu!

TEODORO
Que história de amor de pai do céu? Deixe de ser frouxo e apanhe o feijão
derramado. Vá contando cada grão, pra aprender. Enquanto você conta eu
conto a história do começo do velho mundo.

(Luiz de quatro, com uma cuia, começa a recolher os grãos de feijão


espalhados pelo chão. Enquanto conta os grãos, escuta a história. Teodoro,
solene, tira baforadas de seu cigarro. Apanha diversos tipos de faca, facão,
trinchete, punhal etc,... e nos tijolos da cadeira vai amolando uma por uma,
contando a história)

TEODORO
No começo não havia nada, nadinha. Deus não era nada. Nem era homem,
nem bicho, nem vento, nem sombra. Não era pai nem filho. Era invisível.
Sem cheiro e sem gosto. Aí o nada criou o céu e a terra. A terra continuou
em nada. Feia, coberta de escuridão. O espírito de Deus vagou por cima das
águas...(Solta uma baforada)

LUIZ
O que é o espírito, meu padrinho?

TEODORO
Quantos caroços de feijão tem na cuia?

LUIZ
O que?

TEODORO
Quantos grãos?

LUIZ
Eu me perdi no espírito...!

TEODORO (Ameaçando-o com as facas)


Seu safado!!! Você não aprende nunca? Conte o feijão que eu conto a
história.

LUIZ (Reiniciando a contagem)

TEODORO
Deus disse: existe a luz! E a luz apareceu. A luz estava enganchada com a
escuridão. E Deus desenganchou a luz das trevas. Batizou a luz com o nome
dia...

LUIZ
...e a escuridão, batizou de noite! Eu aprendi, padrinho. Eu sei! Na cuia tem
duas mãos de dez grãos.

TEODORO
De grão, na cuia, tem 20. Terminou o primeiro dia da invenção. No 7º dia
Deus separou as águas para um canto e para outro, com o céu arredondado
por cima. Depois Deus fez a terra seca e firme, separada do mar.
LUIZ
Eu nunca vi este tal de mar.

TEODORO
Eu, também, não. Mas pai dizia que era um mundo d’água salgada, cheio
de peixe gigante, cobra... Pedra viva, que andava na areia. Meu avô dizia
que o mar era um guerreiro encantado, que enfeitiçava os meninos com sua
espuma na boca, e com os braços abertos chamando: venha, venha, venha...

LUIZ
Eu estou com medo, padrinho...O mar vem me levar?

TEODORO
Você é um bezerro desmamado mesmo. Medroso! Isso não existe. É história
de Trancoso. Esse mar não existe. Não existe. Nunca vi.

LUIZ
Nem eu...

TEODORO
Então? História de Trancoso é invenção pra enganar os bestas, o tempo e a
fome.

LUIZ (Corre para a porta e olha o mundo)


É verdade, meu padrinho. O sol já está lá em baixo. Quase topando na Serra
do Chapéu.

TEODORO
Quero saber é se você apanhou o feijão. Eu já amolei facão e faca.

LUIZ
Sim senhor. (Corre e apanha um grão que restou) Só escapou este, mas já
está preso na minha cabeça. Era o que faltava pra completar cinqüenta.

TEODORO
Assim é que um macho sabido fala. Quando escurecer, eu conto o resto da
história. Pegue um pedaço de carvão. Vou tomar a lição das letras porque
no numeral você já é doutor.

LUIZ
Eu tenho medo...

TEODORO
Acabe com essa história de medo, bicho mole. Afilhado meu não tem medo
de nada. Ta se cagando de que?

LUIZ
Das letras, meu padrinho. As letras estão presas em minha cabeça, mas
quando vou soltar as bichinhas na parede, a mão não quer obedecer.

TEODORO
Deixe de besteira e chororô, que tudo nesta vida se aprende na marra. A
letra é como um touro valente, que a gente vai dominando de pouquinho,
em pouquinho. Pegue o carvão e venha pra parede. (Luiz dirige-se a um
fogareiro e apanha um pedaço de carvão) Segure o pensamento que eu
domino sua mão. (Segura a mão de Luiz, guiando-a numa das paredes
laterais) Vamos ao abecedário! Diz um A...

LUIZ
Algodão, arroz, agave. Ave, avelós, água do olha d!água.

TEODORO
Diz um B...

LUIZ
Botija, bonita, bondosa e bela e boi burro, botão.

TEODORO
Diz um C...

LUIZ
Casa, café, cabra e cruz. Cobra, copo, corpo, couro, caco, cardeiro,
cachorro, candeeiro, caroço, caçuá e cela. Cipó, cacimba, cuscuz, cru,
carrapateira, caju, cerca, cangalha e cu.

TEODORO
Ta bom! E diz o ch (chê)...

LUIZ
Chapéu, chicote, chocalho, chibata e chuva e cheiro e chão. Diz chifre e
chiqueiro e...

TEODORO
Diz um D...

LUIZ
Deus do dia, diabo, dedo, dor, divino e danado...

TEODORO
Diz um E...

LUIZ
Estribo, esqueleto, espora, escavacar...

TEODORO
Diz um fê...

LUIZ
Fogo, formoso, farinha. Formiga e facheiro. Faca, fiar, fitar, falsidade e
fel.

TEODORO
Diz um Guê...

LUIZ
Galo e galinha. Goela, graveto, garapa, garupa ...

TEODORO
Diz um H...

LUIZ
Hora, homem, honesto, hoje, honra...

TEODORO
Diz um I...

LUIZ
Infame, inferno, infeliz...

TEODORO
Diz um Ji...

LUIZ
Jurema, jumenta, juízo, juramento...

TEODORO
Diz um Lê...

LUIZ
Légua, lume, lamparina, luta, lei, lua, lagartixa, luto, luz...

TEODORO
Diz um Mê...

LUIZ (Luiz desesperado)


Mãe!

TEODORO
Diz um Me...!?

LUIZ (Corre para a entrada da habitação e estanca. Silêncio. Quase chorando)


Mãe...

TEODORO (Avançando para Luiz)


O que? E miséria, e maldade, e mal-assombro, e medroso, e ...

LUIZ
É difícil, padrinho. Eu esqueci...

TEODORO
Nesse buraco do mundo não existe lugar pro o esquecimento, seu sem-
vergonha! Também esqueceu do mundo? Da malacacheta, da maniçoba, da
matraca, do maribondo, da mutuca? Deslembrou-se da mosca, do mosquito,
do machado? Macho, machucar, magreza, magoar. Molambo, maldade,
maldito, malícia, martelo, marreta, mentira. E a mortalha? Esqueceu-se de
mijar? Esqueceu-se da merda, do medo da morte? Esqueceu-se de mim? Me
tirou dos seus miolos?

LUIZ
Meu padrinho, o senhor é padrinho e padrinho é mais na frente. Padrinho é
com P. O nome do senhor é Teodoro. E Teodoro é muito mais pro fim. É T.
(Silêncio)

TEODORO
Não interessa. Você esqueceu de mim, e mim é com Mê. (Silêncio) Diz um
Nê...

LUIZ
Um nê não diz nada!

(Luiz dirige-se para a parede oposta a que estava escrevendo. Agora, sem
o auxílio do padrinho, vai riscando as letras que restam. À proporção que
escreve, o dia vai caindo, quase que imperceptivelmente, até que ao final
da jornada restam apenas rasgos alaranjados de um sol agonizante)

TEODORO
Diz um O...

LUIZ
Ovo, olho, oração e ouro.
TEODORO
Diz um Pê...

LUIZ
Diz pouco, pedra, pau. Pequeno, podre, pele, ponto, pé, porco, pão, piolho,
peste, poeira, perna, pote, peixeira, piaba, pereba, palha e pó.

TEODORO
Diz um Quê...

LUIZ
Queijo, quilo, quente, querosene...

TEODORO
Diz um Rê...

LUIZ
Rato, resto, ramo, risada, roçado, rês, rapadura, réstia...

TEODORO
Diz um Si...

LUIZ
Sim. Silêncio, sabiá, sino, sonho, sofrimento, sangue, só, satanás!

TEODORO
Diz um Tê...

LUIZ
Trouxa, tarde, terra, trapo, tamborete, titela, tempo, tapioca, tudo...

TEODORO
Diz um U.

LUIZ
Unha. Urubu, último...

TEODORO
Diz um Vê...

LUIZ
Vaqueiro, vaquinha, vida, vela...

TEODORO
Diz um Xê...
LUIZ
Xerém, xiquexique, xexéu...

TEODORO
Diz um Zê...

LUIZ
Zebu, zunido...(Corre desesperado e se agarra com Teodoro. Um grito
imenso de dor invade a habitação)

TEODORO
O que foi, Luiz? (Continua o grito) Fala peste!

LUIZ (Corre e, de joelhos no chão, se debruça sobre a cadeira de tijolos)


O dia acabou!...(Chora, tal uma criança em pânico)
Cena 3: Saudades da fala de Deus
3ª Noite, 3ª Jornada

O escuro se estabelece. Teodoro acende uma lamparina. Luiz está


petrificado sobre a cadeira. Teodoro apanha uma chibata e se dirige a
ele.

TEODORO
Nada! Nada de novidade. O sol se acaba todo dia. Quando é que você vai
tomar jeito, seu menino? (Silêncio) Engoliu a língua? Virou pedra?
(Silêncio. Luiz permanece petrificado) Responda! (Diante da falta de
reação de Luiz, Teodoro começa a surrá-lo com a chibata. Luiz continua
imóvel e calado. Teodoro se espanta). Cão dos infernos! Meu afilhado virou
pedra? (Bate com mais força) Desperte, lajeiro! (Silêncio. Teodoro começa
a temer) Não faça assim, moleque. Acabe com essa dureza. A noite está
mansa...Pode ser até que a dindinha lua mostre a cara no firmamento. É o
medo da escuridão, já sei, já sei. (Tempo) Demônio, donde vem esse medo?
Que susto da mulinga é esse que endurece as carnes? E esses olhos
acatitados? Isso é um nada! Ta certo, ta certo. Eu acendo o resto das
lamparinas. (Teodoro acende todas as lamparinas. Luiz reage num choro
baixinho. Teodoro se aproxima dele. Mostra-se lamentoso. Apanha-o da
cadeira, com carinho.) Vamos, meu garrote. Fique em cima dos pés. Da
próxima vez eu quebro você com uma marreta. Pedra se quebra com
marreta. Pare de chorar, seu brocoió. Esta noite eu estou amolecido. Tô
brando...(Leva Luiz para deitar) Você ta precisando de um consolo.Deve
ser os nervos se torcendo. Eu tenho aqui uma prenda pra você. Faz muito
tempo. Está escondida no caixão de farinha. Espere aí. (Vai ao caixão de
farinha e enfia o braço, procurando) Pronto! Tá aqui. Um pedaço de
rapadura. Ainda é do tempo em que Deus se amostrava. Vá comendo, que
nesta noite eu vou cavar.

LUIZ
Eu vou ficar só?

TEODORO
Avexe-se pra dormir. Avia!Eu saio depois que você pegar no sono.

LUIZ
E se eu acordar?

TEODORO
Acorda não! Essa rapadura faz dormir até um boi. Quanto mais você. (Num
ímpeto, como se fosse mordido por todos os demônio) Ai, ai, ai, aiiiiiiii
Luiz...ai ai ai...

LUIZ
O que foi, padrinho?

TEODORO
Me ajude!. É uma coceira endemoniada!

LUIZ
Onde, padrinho?

TEODORO
No espinhaço. No lombo, nas pernas. Ta correndo! Parece um formigueiro.
Me ajude!

LUIZ
Não pode ser. Não existe mais formiga.

TEODORO
Formiga de roça. Tá me matando. Me ajude! Arreia minha roupa. Depressa!
Coce, coce, coce! (Teodoro cai gritando. Luiz coça suas costas, da cabeça
aos pés.) Mais em cima!

LUIZ
Aqui?

TEODORO
Sim, sim! Coce com força. Como uma enxada na terra. Vá, vá. Pra cima,
pra baixo, pra cima, pra baixo. Trinque os dentes!

LUIZ
Vai arrancar o couro!

TEODORO
Parece urtiga. Nas canelas e nas coxas. Parece urtiga!

LUIZ
Tô com vergonha! Vai sangrar. Tô com vergonha! (Protegendo-se atrás do
espaldar da cadeira de tijolos)

TEODORO
Miserável! Eu tô passando a maior agonia do mundo e você tá com
vergonha, seu diabo? Coce!!!

LUIZ
O senhor está nu. Parece um bicho!

TEODORO
Este é o meu corpo! Coce, amulengado! Mais pra cima! Na pá, no cangote!
Pra baixo! No fundo, nos quartos! Coce!

LUIZ
Eu não tenho mais unha!

TEODORO
Pegue um garrancho, esfregue!

(Luiz corre e apanha um garrancho no chão. Esfrega as costas de Teodoro,


que geme de prazer!)

LUIZ
Passou, padrinho? Ta satisfeito? Descanse.

TEODORO
Não sei o que seria de mim se não fosse você. Tô cansado. Esse silêncio de
Deus tá me devorando.

LUIZ (Conduz Teodoro e o debruça sobre a cadeira de tijolos)


Descanse, padrinho. Vou passar água no seu espinhaço. (Luiz apanha uma
quartinha d’água e molha as costas de Teodoro) Sua história prometida,
padrinho, já sei de cor e salteada.

TEODORO
Cuidado! Passe devagar que ta ardendo.

LUIZ
Deus é assim mesmo...Ficou mouco, cego e surdo. Fugiu...se
escondeu...Mas no 3º dia Deus era falante. Disse para existir erva verde,
semente, fruta, mato de toda espécie, espinho que não acabava mais..Estou
indo certo, padrinho?

TEODORO
Tá, moleque de mão mansa. É pena que você não viu a fartura que era isso
aqui. Você só viu o mundo se acabando...Mas esse 3º dia era todo dia. A
terra parindo e a gente fazendo roça. Tudo paria nessas bandas. Tudo ficava
armado, amojado: a cachoeirinha, a ubaeira, o marmeleiro, a aroeira, a
jurema branca, a baraúna, a catingueira, o angico, o imbuzeiro. A grandeza
da oiticica. A boniteza sem tamanho da caraibeira. A dureza de pedra do
pedreiro.

LUIZ
Essas plantas, nunca vi.

TEODORO
O venenoso avelós, a espinheira amorosa, o pau-pedra, a maniçoba. ..

LUIZ
Dessas eu me lembro. Me lembro do xiquexique, do cardeiro, da palma,
facheiro, da macambira, do gravatá, do agave.

TEODORO
A terra para feijão, jerimum, macaxeira. Batata doce, algodão, milho...

LUIZ
Deus disse: apareçam os luzeiros no céu. Tudo se bulindo, fazendo a noite
e o dia: o sol, a lua e os astros. Assim acabou o 4º dia da invenção. A história
ta indo certa, meu padrinho?

TEODORO
Tá até demais, seu cabrito.

LUIZ
No 5º dia ele fez os peixes e os passarinhos de toda espécie.

TEODORO
Xexéu, acauã, rolinha, juriti, anum, andorinha, cigarras...

LUIZ (Sonolento, abrindo a boca)


Não fique triste, padrinho. Tudo se arrebentou, mas o senhor ainda se
lembra da fala de Deus. Na 6ª feira santa o criador fez todo tipo de animal.
De tardezinha, quando estava caído de cansaço, ajuntou água com o pó da
terra. Pisou, amassou, esfregou, trincou os dentes, gemeu, bateu, apertou,
mordeu, mexeu o corpo no maior vai e vem. Massacrou a lama de pó pra
frente e pra traz como uma enxada no chão, se aprumou, esticou e soprou
um sopro de alívio: o homem. (Luiz está quase adormecido por cima de
Teodoro)

TEODORO
É...(Geme e sopra) Muito tatu. Muita lacraia. Muito mocó. Teju, raposa,
onça pintada...(Sopra e geme) É...tinha muita gente...Zé Lourenço, Nazário,
Maria Mouca, Rafael Doido, Chico Rosa, João Bolo, Maria Tutu, Inácio
Boró, Mariana Bento, Luzia... Epa! Já pegou no sono, cabra? (Tentando se
desvencilhar, sem despertá-lo) Deve ter sido a rapadura...(Vestindo-se e
apagando as lamparinas) Durma Luiz... durma que eu vou atrás da minha
sina. Você não sabe da história. Um quartinho. O homem que ele fez se
chamava Adão. Adão estava morrendo sozinho. Era um bicho sem
serventia. Naquele tempo, Deus se apiedou do coitado. E um dia. Quando
Adão tirava uma madorna assim feito você, ele trincou os dentes, bufou,
ficou todo arrepiado, enfiou as mãos dentro do bucho daquele que dormia e
arrancou uma fêmea que morava dentro daqueles ossos. (Sai com uma
lamparina na cabeça)

(Tempo. Luiz como sonâmbulo, acende todas as lamparinas e as coloca


junto á parede dos chocalhos. Volta à cadeira e dorme. Fala dormindo.)

LUIZ
Eu estou com medo. Não. Não pode acender as lamparinas. Vai acabar o
querosene. Tô sentindo cosca... Esta noite tá um dia...
Cena 4: As 13 Lamparinas
4º Dia, 4ª Jornada

Uma luz discreta invade a cena. O dia amanhece. Teodoro se aproxima.


Volta da noite debaixo da terra. Entra na habitação esbaforido.

TEODORO
Nada, nada de nada (Espantado) Luiz!

(Luiz se levanta, corre e apaga as lamparinas)

LUIZ
A benção, padrinho!

TEODORO
Amaldiçoado! Você quer acabar comigo, não é?

LUIZ
Perdão, padrinho!

TEODORO
Nunca, desgraçado.

(Avança com um grande ramo seco para Luiz e o arrasta de joelhos)

LUIZ
Eu estava com medo.

TEODORO
Tome isso, moleque do inferno! Tome mais moleirão. Você quer, mas não
vai acabar comigo. Eu vou encontrar a botija. É ouro que não acaba mais.
Só tem 2 litros de querosene e você deixa as lamparinas acesas á noite toda?
Que desgraça é essa, futico? Os astros se apagaram, os vagalumes foram
pro oco do mundo, e você de fogo aceso, mulingado? Tome mais pra
aprender!

LUIZ
Bata mais, padrinho. Eu sou ruim. Eu tenho medo. Eu estou com medo.

TEODORO
Bato, bato, bato e rebato. Eu devia matar você!

LUIZ
Eu tenho medo, meu padrinho, me mate!
TEODORO
Mal-agradecido. Tome mais. Matar não vou não. Você quer me acabar.
Quer que eu caia em solidão. Quer que eu fique só. Sem ajudante, sem ter
com quem falar. E o que eu fiz por você?

LUIZ
Eu sou bicho ruim, padrinho. Acabe comigo!

TEODORO
Acabo não, enjeitado! Você foi jogado na minha porta. Uma ferida com
poucos dias.

LUIZ
Tô ferido!

TEODORO (Pára de bater)


Sua vida toda será de perebento. Nem homem, nem bicho. Uma chaga
escancarada. Uma cruz, um castigo!

LUIZ
Eu vou embora, padrinho!

TEODORO
Deixe de arranco. Vá buscar água.

LUIZ
Não posso me levantar.

TEODORO
Me tire as botas!

LUIZ
Não posso me bulir.

TEODORO
Seu chocalho está calado. O meu não. Canta e canta!

LUIZ
O chocalhinho caiu...

TEODORO
Já? Também era muito fino. Caiu como um umbigo. (Vai até a parede dos
chocalhos) Aqui eu tenho outro mais grosso. Você não é mais menino.
Escute o meu. (Mexe-se como um animal) É chocalho macho. Com ele, eu
sei que você sabe que eu existo. Que eu estou por perto. O único bicho vivo
nestas bandas. Bulindo e rebulindo.
LUIZ
E eu, padrinho? E Roseta?

TEODORO
Roseta vai morrer logo. Ela é meu consolo. Você já está ficando homem e
quando precisar dela, a terra já comeu (Solenemente coloca o chocalho no
pescoço de Luiz) Tá aqui seu sinal. Pra eu saber que você está vivo. Que se
bole em algum lugar.

LUIZ
Perdão, padrinho.

TEODORO
Perdão...Arranje outra rima pra sua safadeza. Você é uma ferida que se
escanchou em mim, pedindo perdão, perdão, perdão. Mariana foi ajudante
até morrer. Não foi embora como os outros. Ela criou você. Eu ajudando.
Era mais velha, mas agüentou a fome até você completar sete anos. Lavei
seu lombo, dei de comer, dei de beber...E o que é que eu recebo? Ingratidão!
(Silêncio) Vamos, levante-se! Quero sentir o chocalho novo.

LUIZ
Padrinho, me perdoe de novo. Tô entrevado.

TEODORO
Deixe de moleza, seu safado. Eu ajudo você. (Auxilia Luiz a se levantar)
Pronto! Agora você está em cima dos pés. Corra!

LUIZ
Não posso sair do canto.

TEODORO
(Vai num outro lugar e traz uma quartinha de barro e enfia na boca de
Luiz.) Tome isso. É aguardente de raiz. Do tempo que Deus se amostrava.
(Luiz se engasga e tosse muito) Pronto. Corra! (Luiz começa a correr aos
poucos. Está todo encurvado. O chocalho toca) Eita! Eita! Eita! Corre meu
afilhado! Corre Luiz. Corre Luiz. Eu vou pegar você! Eu vou lhe pegar!
(Luiz corre em círculos. Teodoro o segue) Eita, Luiz! (A ação lembra uma
vaquejada) Cadê a poeira? Poeira, poeira, poeira. Vou lhe derrubar, cabra
danado! Corre Luiz! Vou pegar! Eita! Eita! Corre, meu bezerro! Luiz, Luiz,
Luiz! (Teodoro depois de muito esforço, agarra os fundos da roupa de Luiz
e derruba como a um boi. As gargalhadas) Levante! Levante, bicho
excomungado! (Silêncio) Deus lhe abençoe. (Pega uma quartinha d’água e
bebe água. O resto despeja no rosto de Luiz)

LUIZ
Sim senhor, meu padrinho. Vou buscar água. Ela tá muito barrenta, mas dá
pra lavar seus pés. (Saindo)

TEODORO
Ei!

LUIZ
Senhor?

TEODORO
E o meu abraço?

(Luiz corre para Teodoro. Hesita e o abraça forte)

LUIZ
Seu abraço, padrinho. Tome. (Saindo)

TEODORO
Ei!

LUIZ
Senhor?

TEODORO
E o meu cheiro?

(Luiz volta lento, cheira o rosto de Teodoro)

LUIZ
Seu cheiro, padrinho. Vou buscar a água.

TEODORO (Mudando da água pro vinho)


Vá logo, bicho ruim. Depressa! Estou com fome. O sol vai alto! (Luiz sai.
Teodoro senta na cadeira de tijolo) Vida sem vida. Eita calor dos infernos!
Hoje cavei não sei quantos metros pra dentro da terra e nada. Eu não desisto.
Eu vou entrar até na barriga do mundo, mas acho essa botija.

(Luiz entra com uma bacia d’água, põe as pés de Teodoro e começa a
retirar as botas)

LUIZ
Padrinho, vamos embora daqui.
TEODORO
Você pensa que eu sou um frouxo feito você?

LUIZ
A gente tá se acabando. Tudo já morreu. O resto está acabando de morrer.

TEODORO
Não diga asneiras! Ainda tem o que comer. Eu vou achar o ouro reluzente.

LUIZ
Não existe botija, padrinho.

TEODORO (Esbofeteando Luiz)


Infame! Eu não me chamo Teodoro e quero morrer aleijado, estropiado, se
não encontrar essa botija.

LUIZ
Perdão, padrinho.

TEODORO
Perdão, perdão. É só o que você sabe dizer. É só o que você sabe pedir.

LUIZ
Eu tenho pena do senhor.

TEODORO
O que? Pena do que, seu vadio. Eu sou forte como uma lacraia. Já cavei
quase uma légua. Não vou deixar pra trás o meu suor.

LUIZ
Mas a botija não vem.

TEODORO
Virá. Um dia ela virá. Um dia você vai ter de comer todos os pedaços de
ouro.

LUIZ
Quando o padrinho achar a botija, a gente vai fazer o que?

TEODORO
Vamos nos danar pelo mundo em busca de chuva.

LUIZ
Eu não me lembro da chuva.
TEODORO
Pudera. Você era um garotinho. Não pode se lembrar.

LUIZ
Quanto tempo eu tenho, padrinho?

TEODORO
Não sei mais. Não se pode mais contar o tempo. Não sei se é dezembro ou
se é julho. Está tudo igual.

LUIZ
E essa água?

TEODORO
Você sabe, vem do olho da terra. Um olho chorão

LUIZ
E se o olho parar de chorar?

TEODORO
A gente morre. Mas morre junto. Eu agarrado em você e você agarrado em
mim.

LUIZ
Pronto, padrinho. Tá tudo lavado. Posso levar a agu dos seus pés pra
Roseta?

TEODORO
Vá depressa e traga um pedaço de beiju pra eu comer.

LUIZ
Sim senhor.

TEODORO
E a tabuada? E as letras?

LUIZ
Senhor?

TEODORO
6 x 6?

LUIZ (Saindo)
36
TEODORO
2 x 2?

LUIZ
Quatro.

TEODORO
Cem mais cem?

LUIZ
Duzentos.

TEODORO
9 X 9? (silêncio. Aos berros) Nove vezes nove?

(Luiz aparece, cabisbaixo. Traz um pedaço de beiju na mão)

LUIZ
Nove vezes nove?

TEODORO
Seu jumento. Quem está perguntando sou eu. Eu pergunto. Você responde.
Nove vezes nove? (Apanha uma chibata) Nove vezes nove, estou
perguntando!

LUIZ (Em pânico)


Oitenta!

TEODORO
Venha cá. Tire o resto da roupa pra ficar igual a um bicho de verdade. É pra
isso que serve a roupa e tudo que se bota em cima da carne. Pra ficar
diferente dos bichos. Tire tudo, pra ficar igualzinho a um pagão. Agora,
ajoelhe-se. Agora sim. Agora você não vai esquecer nunca mais. Nove
vezes nove? (Bate em Luiz sem piedade) Oitenta e um, oitenta e um, oitenta
e um, oitenta e um...(Prossegue batendo e repetindo “oitenta e um”, até
cair possesso)

LUIZ (Levanta a cabeça e, soluçando, oferece o pedacinho de beiju)


Sua comida, padrinho.

(Teodoro pega o beiju e vai para a cadeira. Luiz não consegue sair do
lugar)

TEODORO
Quanto resta de feijão?
LUIZ
Uns cem caroços.

TEODORO
E o querosene?

LUIZ
Litro e meio.

TEODORO
O que?

LUIZ
As lamparinas...Não fui eu não.

TEODORO
Tá doido? Não tem um pé de gente neste mundo fora eu e você. Você é
ruim. Está ficando pior. Eu passei a noite debaixo da terra, na escuridão e
você com 13 lamparinas acesas?

LUIZ
Não fui eu, padrinho. Ou então foi a visão. Eu acordei tremendo de medo.
O frio tava grande. O chão começou a tremer também. Entrou um vento
forte espalhando as casacas de feijão. Das paredes do chocalho abriu-se uma
porta de duas bandas e entrou uma mulher.

TEODORO
Uma mulher? Você nunca viu uma mulher.

LUIZ
E Mariana?

TEODORO
Você era um menino!

LUIZ
Ela entrou macio como uma cobra. Os cabelos escorregavam pelo
espinhaço até passar dos quartos. A boca vermelha que nem sangue,
sorrindo pra mim. A voz era fininha. Eu disse que estava com medo. Ela
disse que não tinha de que ter medo. Ela foi acendendo as lamparinas. Eu
disse que não podia. Ela disse que podia. Sentou-se do meu lado. Botou
minha cabeça no seu colo. As pernas macias...Começou a fazer cosca na
minha cabeça, e cantou uma cantiga triste pra mim.

TEODORO
Ela disse como se chamava, quem era?
LUIZ
Não. Ela cantava e eu dormia. Ele gemia e eu ressonava. Tinha uns olhos
grandes, claros feito o sol.

TEODORO (Furioso)
Não!!! Mentiroso. Você quer me destruir. Isso não é nada! Foi um sonho.
Um sonho. Nada mais! Você deixou as lamparinas acesas e está inventando
essa história. Você está mentindo. Sonho maldito. Sonho maldito. Só isso.

LUIZ
Tá certo, padrinho. É mistério, sonho. Posso botar a roupa, me cobrir?

TEODORO (Descontrolado)
Pode, pode, pode! (Luiz se veste)O sol já vai baixo. Vou correr pro meu
buraco.

LUIZ
Por que o senhor ficou tão brabo com o meu sonho, padrinho?

TEODORO
Porque não pode ser. Só isso. Não pode! Eu vou arranjar um jeito de acabar
com os seus sonhos.

LUIZ
Por que, padrinho?

TEODORO
Debulhe as últimas espigas de milho. A noite vem aí. Vou-me embora. (Sai)

LUIZ
A benção, padrinho?

Cena 5: As Espigas de Milho


5ª Noite, 5ª Jornada
O escuro já está quase estabelecido. Luiz acende as lamparinas e apanha
uma bacia de zinco. Senta na cadeira de Teodoro, com a bacia aos seus
pés. Levanta-se e apanha algumas espigas de milho seco. Enquanto se
movimenta, conversa com a escuridão que invade o ambiente.

LUIZ
Você pensa que vai me fazer medo é, escuridão? (Ameaça o escuro com
um candeeiro). Fite aqui o candeeiro! Eu tenho fogo pra você. Tome fogo,
noite sem vista! Pegue fogo, noite da gota serena! Não tenho medo de
você não! (Dirige-se para a cadeira do pai e começa a debulhar o milho)
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete... Não conto mais e pronto! Não
conto. (Pára de debulhar). Padrinho Teodoro vai chegar. Todo dia ele
chega. Toda hora ele chega. Ele é o meu padrinho. (À escuridão) Você ta é
contente porque ele apaga os candeeiros, as lamparinas. Ta toda satisfeita,
não é? Pra tomar conta de tudo, pra fazer assombração. Não sou anjinho
mais não. Acabou-se o medo! Sou quase um touro. Tô todo feito! Quer
ver? Tô pronto pra morrer. (Começa a tirar a roupa, alucinado.
Completamente nu, segura as lamparinas e vai formando um círculo no
chão. Corre e apanha duas facas enormes e desafia o escuro. Elas são os
seus apontadores). Espie meu corpo, noite venenosa. Não é mais corpo de
anjo não. é outro corpo. Mas é o mesmo pó. Tudo ta crescendo. Minha
venta incha, meus peitos estufam! Espie meus braços! Mire minhas
canelas. Estou cheio de pêlo. Eu não tenho mias medo de você não. Eu lhe
mato, escuridão! Mato, mato, mato e remato. Vigie minhas coxas, meu
lombo, meus quartos, meu cangote! Meu espinhaço é brasa pra lhe
queimar. Meu corpo é outro. Olhe pra minha cara, noite maldita! Veja a
minha boca. Você não tem vista! Vigie meus olhos! Eu vejo até por dentro
de você! Eu não tenho mais medo não. eu furo você com faca. Eu corto
você com peixeira. Eu acabo você com fogo. Este é o meu corpo! Venha!
Esta é a minha carne! Me enfrente! Fite meu cajado, olhe minha vara,
vigie minha espiga, pronta pra debulhar. Veja minha semente, meus grãos,
cobertos de babugem. Peleje comigo, escuridão infame! Eu rasgo você
com minha espiga! Eu não tenho mais medo de você! Não tenho mais
medo! Não tenho não! (Cai, completamente desolado)

(Luiz, aos poucos se recupera. Levanta-se com dificuldade e vai até a


cadeira de tijolos. Retorna a debulhar, hierático, as espigas. Ri
compulsivamente. Pára. Continua a debulhar. O ato o excita. É uma
verdadeira masturbação simbólica. Os sons emitidos por Luiz são
animalescos. Em seu êxtase, Luiz desmaia sobre a cadeira e, aos poucos,
adormece. De sua mão caem os últimos grãos de milho. Tempo. Teodoro
entra esbaforido, carregando um enorme garrancho seco. Vem
cambaleando.)
TEODORO
Luiz! Luiz! (Silêncio)
Acorde, Luiz. Depressa! Estou ficando sem vista! Luiz!

(Luiz acorda assustado e cobre-se com um pano de rede)

LUIZ
Padrinho! A bênção?

TEODORO
Corpo de Deus, não deixe que eu morra.

LUIZ
Sou eu, padrinho! O que foi?

TEODORO
Uma cascavel. Eu tô cheio de veneno.

LUIZ
O que é que eu faço, meu senhor? (Agarra-se com Teodoro e o leva para
a cadeira de tijolos).

TEODORO
Cuspa na minha boca, homem!

LUIZ
Cuspir? O senhor ta variando. Ta pegando fogo!

TEODORO
Obedeça, cão danado! Escarre na minha boca!

LUIZ
Eu não posso. Tô com a língua seca.

TEODORO
Corpo de Deus, não deixe que eu morra.

LUIZ
Sou eu, padrinho! O que foi?

TEODORO
Depressa, que eu estou me acabando. Morda a língua. Escarre! Escarre!

(Luiz, com pavor, cospe dentro da boca de Teodoro. Tempo. Silêncio)

LUIZ
Padrinho Teodoro!? (Silêncio) O senhor engoliu o meu cuspo? (Silêncio)
Meu cuspo tem alguma serventia? (Silêncio) O senhor está me escutando?
Onde a cascavel deu a mordida?

TEODORO (Falando com dificuldade)


Na canela. Seu cuspo ta me salvando.

LUIZ
Que mistério é esse?

TEODORO
Depois...

LUIZ
Mas, como ela furou o couro?

TEODORO (Com mais dificuldade)


Eu estava nu...

LUIZ
Que outro mistério é esse?

TEODORO
Despeje água na minha cara...

LUIZ
Vou buscar.

(Luiz pega rápido uma quarta d’água e despeja no rosto de Teodoro. Ele
se refaz um pouco.)

TEODORO
Vigie a ferida. Passe a língua...

LUIZ
Lamber?

TEODORO
Depressa! (Silêncio) Depressa! (Silêncio maior)

LUIZ
Eu devia deixar o senhor morrer.

TEODORO
Então deixe, infeliz!
LUIZ
Vou cavar sua cova.

TEODORO
Não tem precisão. Apague as lamparinas.

LUIZ
De jeito nenhum. Pra que?

TEODORO
Você vai morrer só. Sem ninguém pra fechar seus olhos.

LUIZ
Eu vou-me embora. Levo Roseta comigo.

TEODORO
Ela não agüenta. Ta doente. Vai morrer nesses dias...

LUIZ
Vou vestir a roupa pra ir embora.

TEODORO
Debulhou o milho, que eu mandei?

LUIZ (Começa a se vestir)


Todas as espigas. Passei a maior agonia do mundo. Eu gostei. Eu gostei
debulhando as espigas. Fiquei todo melado. Saiu uma baba, um caldo de
dentro de mim.

TEODORO
Agora deu! (Tempo) Você vai pra onde?

LUIZ
Andar sem parar. Correr mundo.

TEODORO
Não vai chegar em lugar nenhum.

LUIZ
Eu vou assim mesmo.

TEODORO
Não vai ficar pra me ver morrer?
LUIZ
Pra que?
TEODORO
Pra fechar os meus olhos.

LUIZ
A terra faz isso melhor do que eu .

TEODORO (Despertando, quase curado)


Deixe de ser besta que morrer não posso mais. Seu besta! Eu já engoli o
seu cuspo. Você foi bento e rebento contra peçonha, contra cobra e
veneno. O bicho que morder você, morre. Quem foi mordido e engolir o
seu cuspo não morre. Seu cuspo corta o veneno.

LUIZ
E se eu não lamber a ferida? O que assucede?

TEODORO
Pode ser que eu fique aleijado. Mas é só de uma perna. Cadê o milho que
eu mandei debulhar? Quero ver.

LUIZ
O senhor quer ver?

TEODORO
Quero!

(Luiz apanha a bacia e atira o milho sobre Teodoro, como quem joga
água fora)

LUIZ
Taí!!

TEODORO
Amaldiçoado! Você me paga!

LUIZ
Adeus, padrinho. Não lhe devo nada!

TEODORO
Ingrato! Vá, infeliz das costas ocas! Você é vivo por causa de mim.

LUIZ
O senhor é mouco, não tenho culpa. Já morri de pedir pro senhor me
matar. Foi só o que eu lhe pedi.
TEODORO
Desmemoriado! E as histórias, e o medo de escuro?
LUIZ
Como o senhor mesmo diz, tudo passa. Pois tudo isso já passou. Como
senhor vive dizendo, debaixo do sol só vive a traição. Tudo é passado.

TEODORO
Acabou!!! Pode ir. Eu mereço tudo isso... ingratidão, desrespeito, traição...
Vá, vá, vá! Me deixe aqui com minha perna ferida e envenenada. O que
você está esperando? Puxa daqui!

(Tempo. Teodoro fecha os olhos, como se dormisse. Luiz sai devagar.


Teodoro começa a dormir e roncar. Tempo. Luiz retorna devagarinho.
Apaga todas as lamparinas e fica com uma acesa. Dirige-se para o
padrinho. Olha muito para a ferida e, aos poucos, começa a lambê-la.
Tempo. Deita-se, como um cão, aos pés de Teodoro, apaga a sua
lamparina e dorme. Faz-se a escuridão.)
Cena 6 A Luz Cobre Roseta
6º Dia, 6ª Jornada

A luz diagonal, do princípio do dia, penetra na habitação. Teodoro está


fora da cena. Luiz ainda dorme na mesma posição da jornada anterior. O
sol sobe ligeiro. Teodoro entra.

TEODORO
Nada! (Luiz mexe-se, espreguiçando-se) Eu disse nada! Ta me ouvindo?
Nada!

LUIZ (Levantando-se, assustado)


Nadinha de botija, padrinho? A bênção!?

TEODORO (Abaixa-se e começa a catar o milho espalhado pelo chão,


colocando-o numa tigela)
Que botija, traidor?

LUIZ
Deixe que eu apanho, padrinho.

TEODORO
Não chegue perto de mim! Eu disse nada. Você é um nada. Nadinha
(Tempo) Deus lhe dê juízo.

LUIZ
Meu corpo ta estourando.

TEODORO
Tomara que se esbagace. E o que é que você ta fazendo aqui? Esta noite
não se meteu a cavalo do cão? Não disse que ia embora? Fugir pra lugar
nenhum?

LUIZ
To arrependido. Tive pena do senhor. Até lambi a sua ferida.

TEODORO
Pois não tinha precisão. Nem tô sentindo nada na perna. E mais uma coisa:
não quero sua pena não. Vá embora!

LUIZ
Não vou de jeito nenhum. Agora eu não quero mais. Mate seu afilhado!
(Num gesto de dor, curvando-se com as mãos, comprimindo os órgãos
sexuais) Ai, tou duro!
TEODORO
Você não merece piedade, mas eu vou sarar você.

LUIZ
Eu não suporto mais o senhor.

TEODORO
O que, cabra safado?

LUIZ
Já disse a vida toda: eu não quero viver. Não agüento o senhor.

TEODORO
Cala a boca, besta fera. Você ta doente do juízo. É a loucura.

LUIZ
Tou sentindo uma dor.

TEODORO
Na penca, não é?

LUIZ
Uma brasa, entre as pernas.

TEODORO
É o fogo da carne. É a fome do sangue. Coitado. Tem que cruzar.
Coitado... Não tem mais uma fêmea.

LUIZ
Eu vou correr. Eu quero gostar, padrinho.

TEODORO
Eu botei água no fogo, lá fora. Leve o milho e jogue dentro da panela.
Depois abrace Roseta bem de leve. Vou lhe ensinar a cruzar. Ta no tempo.

LUIZ
Não, não, não! Ela é um bicho. Não! Ela é uma vaca. Não. Eu tenho nojo.

TEODORO
Tenha vergonha, seu safado enxerido. Que luxo é esse? Nesse mundo não
se pode ter nojo, nem vergonha, nem medo, de nada de nada. E o seu
cuspe que eu engoli sem nojo e por necessidade? E minha perna fedorenta,
de suor e peçonha, que você lambeu? Roseta é bicho igual a você. Um
monte de osso coberto de couro. É limpa e só. Só e sozinha feito você.
Acontece que debaixo da cauda dela tem uma casinha pra abrigar sua dor.
LUIZ
Eu não quero. É melhor debulhar milho.

TEODORO
Acabou-se o milho. Só resta o sabugo pra Roseta comer. Pare com essa
safadeza, seu frouxo. Se quiser vá se danar entre as pedras. Se esfregar nos
espinhos, roçar nos ossos que encontrar lá fora, até sangrar. Vá! Vá por aí
galando o chão. Vá, vá, vá, vá. Vá se esfregar com você. Morra lá fora.
Aqui dentro eu não quero macho amojado, gemendo com o cajado afiado
como uma peixeira.

LUIZ
O milho, padrinho.

TEODORO
Sua doidice é fogo em demasia. Nunca se aliviou no cruzamento. Tome o
milho. Eu vou dizendo como é que você cobre a vaquinha.

LUIZ
Eu vou depressa. (Sai)

TEODORO
Eita fogo dos infernos. Quase me queima. (Teodoro começa a se vestir,
enquanto dá as instruções a Luiz). Colocou o milho no fogo?

LUIZ (De fora)


Já, sim senhor!

TEODORO
Tire a roupa.

LUIZ
Já estou nu, sim senhor!

TEODORO
Bote o cocho pequeno, emborcado atrás da vaca, pra você subir.

LUIZ
Já está, sim senhor.

TEODORO (Sentando-se em sua cadeira)


Passe a mão, de leve, no lombo da bichinha. Dos chifres até o rabo.
(Ofegante)

LUIZ
Tô passando!
TEODORO
Bem macio. De leve. Alise o cangote. Se abrace com ela. Cheiro o
focinho.

LUIZ
Botei água pra ela beber.

TEODORO
Muito bem. Isso é providência pra ela não sair do lugar. Passe a mão por
baixo, alisando as tetas. (Mais ofegante) Afaste o rabo. Suba no cocho. Dá
pra cobrir?

LUIZ
Está dando.

TEODORO
Vá devagarinho. Encontre a casa. É a porta de baixo. Alise devagar. A
porta é macia, a porta é molinha. Cheire o espinhaço. Você ta cansado. O
coração ta saindo pela boca. Trinque os dentes. Respire com força. A porta
se abre. O rabo levanta. Tudo arde, parece pimenta. Cubra Roseta. Seu
corpo queima. Segure os ossos dela. Bufe! Balance o corpo como uma
picareta quebrando a pedra. Como uma enxada. Pra frente e pra trás.
Como a colher mexendo. Morda o couro. De leve, de leve. Vá! Vai e vem!
Pra frente, pra trás. Tudo ta fervilhando. Tudo arrepiando. Agora, com
força. Chore, berre, babe. Pode ranger os dentes. Respire com força. A
agonia já vem. Depressa! Segure a dor, solte o alívio. Depressa, depressa.
Corra, corra! Respire com força, estique, trinque os dentes, mastigue a
língua.

LUIZ (Aos berros)


Meu Deus, eu vou gostar!!!

TEODORO (Aos berros)


Goste, Luiz. Goste, goste, goste, goste, goste, goste... (Luiz grita de
prazer. Depois, silêncio) Agora, que você ta farto, se desagarre de Roseta.
Faça um asseio, que eu vou escavacar. Eu também tô satisfeito.

LUIZ
Tô no chão!

TEODORO
É a fraqueza!

LUIZ
Tô manso.
TEODORO
Eu sei. Daqui a pouco se levante, lave as partes com juá e vigie o milho no
fogo.

LUIZ
Sim senhor.

TEODORO
Pode dar risada, homem besta!

(Teodoro sai. Luiz dá uma risada solta e longa. O sol já está no poente.)
Cena 7: A Estrela em Brasa
7ª Noite, 75ª Jornada

A noite se aproxima. Luiz entra em cena, quase no escuro. Veste pouca


roupa. Ele acende todas as lamparinas. Teodoro entra, exausto,
carregando um enorme garrancho sobre as costas.

TEODORO
Nada!

LUIZ (Tirando sons de uma quenga de coco e de um marimbau)


Já sei, já sei. Nada de nada. (Furioso) O senhor é um nada!

TEODORO
Cale a boca, infeliz!

LUIZ
Deixe de ser jumento, padrinho Teodoro. Essa botija não existe. É história
de Trancoso.

TEODORO
O quê, filho do cão? Atrevido dos infernos. História de Trancoso é o seu
juízo que não existe. Prepare-se para apanhar!

(Luiz corre e apanha uma faca-peixeira)

LUIZ (Ameaçando-o com a faca)


O senhor vai ter de pelejar comigo. Venha! Ou eu mato o senhor ou o
senhor me mata.

TEODORO
Epa, epa, epa, epa, epa! Ta querendo ser touro antes do tempo? Só porque
hoje andou cruzando com uma vaca doente?

LUIZ
Se quiser bater em mim, vai ter de lutar!

TEODORO
Pois eu não vou lutar não. Não lhe dou esse gosto. O cão deve ter entrado
no seu couro.

LUIZ
O senhor é que está ficando cada dia mais doido!
TEODORO (Tentando avançar)
Feche a matraca...

LUIZ
Se se achegar, eu meto a faca!

TEODORO
Então meta. Meta!

LUIZ (Se afastando)


Não lhe dou esse gosto não.

(Teodoro se despe da maioria das vestes)

TEODORO
Um bosta. Você é um bosta e da sua boca só sai bosta! (Silêncio) Que
revolta é essa, da noite pro dia?

LUIZ
É o único jeito de continuar vivo sem querer viver. Se eu tivesse uma
fêmea, eu me danava com ela pelo mundo.

TEODORO (Numa gargalhada enlouquecida)


Isso você nunca vai ter. A única fêmea que se bole é Roseta. Se ela não
morrer logo, eu mato a bichinha só pra ver você gemer. Quero água!

(Luiz se dirige ao instrumento musical)

LUIZ
Roseta é minha!

TEODORO
Sua? (Gargalhada) Já se amigou?

(Luiz tange seu instrumento musical)

LUIZ
Meu sangue ta dentro dela.

TEODORO
Bruto! Não se meta a sabido. Eu só lhe ensinei um nadinha da vida.
(Tempo. Sons de Luiz) Ta mangando de mim, seu ingrato? Pois fique
sabendo que o seu sangue, dentro de Roseta, não tem serventia nenhuma.
Não vai produzir nada! É como se você plantasse uma pedra: não nasce
nada! (Silêncio) Não vai responder, respondão? Ou será que virou Luiz
mouco? Ta fazendo ouvido de mercador, é? Pare com essa latomia. Quero
água, já disse!

LUIZ
O senhor anda esquecido... Esqueceu do meu sonho? Pegue a quarta e
beba! (Teodoro vai e bebe) Aquela mulher do meu sonho me ensina a
cantar e tanger. Não tenho mais medo de nada... (Furioso) Mentiroso!

TEODORO (Soprando o resto da água da boca em Luiz)


O que, infame?

LUIZ
Pode estrebuchar. Aí atrás dos chocalhos tem um quartinho. Eu sei de
tudo.

TEODORO (Desesperado)
Que quartinho, que quartinho? Perdeu o tino de vez? Já lhe disse. A estrela
é a marca do gado dos Pacheco.

LUIZ
Já conheço essa história de Trancoso: o gado foi morrendo e o senhor
apanhando e pregando os chocalhos na parede... E esse canto aqui, o que
é?

TEODORO (Pegando uma garrafa e bebendo)


O cruzeiro do Povoado da Cruz.

LUIZ
Não carece beber cachaça. É o fim.

TEODORO
Pra agüentar suas besteiras, só tomando aguardente.

LUIZ
Não vai adiantar... É mentira por cima de mentira. Engano por cima de
engano. A mulher formosa do sonho me contou tudo. O pai do seu pai, seu
avô, foi esfolado aqui. Era intriga, era inveja, vaidade. Tudo por causa de
uma mina. Surraram o velho aqui. Furaram ele todinho com peixeira.
Esbagaçaram ele por causa do ouro. Depois atearam fogo no resto que
sobrou. Ele virou cinza, debaixo da cruz.

TEODORO (Corre e pega uma corda de amarrar boi)


É mentira!!
LUIZ
É verdade! Isso aqui virou um oratório. Vinha gente de toda parte. Vinha
pra ver aonde o velho Pacheco virou cinza. Aí começou a devoção. O
povo fez dele um santo. Era uma fila de promessa, um curral de milagre.
Onde o senhor entocou os santinhos? Onde o senhor socou os dedos, as
mãos aleijadas, as pernas secas, as cabeças de vento, os pés inchados, tudo
de pau? E os retratos dos devotos, onde o senhor meteu? Onde o senhor
escondeu os buchos lombriguentos, o amarelão, a maleita, a bruxaria, a
constipação, a carne trilhada, o ventre caído, os peitos abertos? Onde
enfiou a moléstia do mundo?

TEODORO (Duro de ódio)


Deixe os defuntos, condenado. Não chafurde no descanso das almas. Não
sou obrigado a lhe contar nada.

LUIZ
Ainda bem que eu não tenho o seu sangue de bicho nas carnes.

TEODORO
Já que você quer assim, vai ter!

LUIZ
Vou-me embora.

TEODORO
Ta certo. Só lhe digo uma última coisa. Pra onde você correr, no canto que
parar, os defuntos vão saber que você é minha propriedade. (Joga, rápido,
o laço sobre Luiz, como uma cobra no bote. Luiz se debate.)

LUIZ
Desgraçado, me solte. Desagarre! Desagarre do meu corpo.

(Teodoro consegue envolver todo o corpo de Luiz com a corda. Faz, da


cintura para o pescoço, uma verdadeira touceira. Trabalha em silêncio,
enquanto Luiz grita. Por fim, Teodoro põe um pedaço de caule, com
garrancho, na boca do afilhado, amarrado com corda.)

TEODORO (Seco, contido)


Agora, mostre sua sabedoria. Mostre, cão dos infernos. Eu devia arrancar
sua língua. Mas fico com pena. Fale, agora! (Luiz geme) Coitado... Eita! Eu
me esqueci do fogo, lá fora. Vou buscar minha marca alumiada. (Sai. Volta
com um ferro em brasa. É um ferro de marcar gado, com forma de uma
estrela de cinco pontas. Enlouquecido, como se falasse com outra pessoa)
Oxente, compadre Chico Nazaré! Você ta caducando agora, é? Se esqueceu
de marcar esse touro? Logo o meu preferido? Ora, homem, esse é o maior
reprodutor do Povoado da Cruz. Quem vai saber que ele é do meu gado?
Não. não venha com desculpa não! Pode deixar que eu faço o serviço. Faço
questão de marcar o bichinho. (Teodoro avança para Luiz e o arrasta para
detrás da cadeira. Prende sua cabeça entre os pés e crava-lhe o ferro na
testa. Luiz perde os sentidos. Teodoro mostra o ferro para o mundo) Olhe
aqui, compadre! Quem nesse mundão deserto encontrar um touro brabo,
sabido e falante, com uma estrela na testa, já sabe: é propriedade de Teodoro
Pacheco. (Percebendo a aurora que se insurge) Eita danado. Lá vem a barra
do dia. (Apaga as lamparinas e carrega Luiz para o seu lugar de dormir)
Cena 8: Os Olhos que Queimam
8º Dia, 8ª Jornada

A passagem dos dias e das noites vai se acelerando. A luz invade a cena.
Luiz está amarrado no seu lugar de dormir. Teodoro, bebendo, em sua
cadeira .

TEODORO
Nada! Nada de novo! É o dia outra vez. Passa logo dia das mortes. Passa,
passa, passa, passa, rasga-mortalha. He, he, he, he... Arreia, arreia, arreia,
arreia meu boi mimoso! Esse touro tinhoso pensava que eu não tinha mais
cachaça. Essa, tava enterrada na farinha. Boi, boi, boi, boi! (Chora) Por
que, por que, meu Deus? Por que você é tão caviloso? Pra que essa
futricagem toda? Minha Luzia vagando, seu Deus? (Embriagado) Luzia!
Luziazinha... Cadê meu cheiro? Luzia, vem cá, mulher. Tô precisando me
aliviar... (Luiz levanta-se alquebrado. Dirige-se para Teodoro) Ah, você
ta aí, meu muçambê. Oh, minha Luzia, me abrace, mulher. Oxente, o que é
isso? Cruz credo! Você ta toda amarrada? E essa trave na boca? (Luiz
geme, Teodoro berra). O que é, danado? O que é que está me espiando?
Tire esses olhos de cima de mim! Espie pra esses olhos. Eles ardem, eles
fervem, eles esturricam. É como se você tangesse o sol quente pra dentro
de casa. Você quer escaldar os meus olhos, não é? Escaldar! Derreter a
menina dos meus olhos! Por que você tem esses olhos? Por que esses
olhos assim, que nem brasas. Saia daqui! Não fite, não fite! Fite a lenha,
fite o feijão. Cozinhe o milho, amorne a água, prepare o angu, mas não fite
os meus olhos. Esses olhos... Esses olhos não são seus. São os olhos do
tinhoso. Seu olhar estraçalha a terra, me espinha. Seu olhar me espicha no
terreiro feito um couro de boi espichado no terreiro. Seu olhar é um
purgatório. Seus olhos, o inferno mesmo. Espie pra lá! Veja a escuridão
que se achega. (Teodoro acende a lamparina da cabeça). Essa noite vai
passar voando. E essa estrela na testa?... Pia só! Você é meu! Essa marca é
a estrela dos Pacheco. Quero ver você acender lamparina hoje. Ah, essa eu
quero ver. Tem uma vozinha dizendo no meu ouvido que hoje eu acho a
botija. (Sai)
(Volta) Ah, você diz que eu sou mentiroso, não é? Pois eu vou lhe dizer
uma verdade nua e crua: tem uma novidade aqui fora que eu já tô besta de
ver. Roseta ta deitada no terreiro esperando por você: morta!

(Luiz, completamente desolado, caminha de um lado para o outro. A


escuridão vai dominando).
Cena 9: A Cópula da Luz e da Estrela
9ª Noite, 9ª Jornada

A escuridão imensa toma conta da habitação. Luiz se deita gemendo. A


queimadura arde. A terra treme e os sons de chocalhos de todos os tipos se
fazem ouvir. Em meio aos sons, uma matraca se destaca. A matraca passa
a predominar. A parede dos chocalhos se abre ao meio. É um quartinho
com as paredes cobertas de quadros de santos, com destaque para o de
Santa Luzia, envolvido num laço de fita vermelha. Fotos antigas e ex-votos
de madeira, iluminados com uma luz celestial. Uma senhora termina de
abrir as portas, internamente cobertas de quadrinhos de santos. A senhora
dos sonhos de Luiz veste uma máscara que reproduz, exatamente, o rosto
dele. Tem longuíssima cabeleira que cai sobre seu roupão branco e
diáfano. Seu corpo flutua e dele se destacam o sereno rosto, as delicadas
mãos e os pés desnudos. Lentamente, ela acende as lamparinas da sala.
Dirige-se para Luiz. Ele geme, assustado. Não se pode escutar o que ela
diz. Apenas as réplicas de Luiz são ouvidas. A senhora desamarra,
carinhosamente, o corpo de Luiz.

LUIZ
Nada!

(Tempo. Os sons param)

LUIZ
Minha cabeça ta fervendo. A senhora viu quando ele me marcou? Está
doendo...

(A senhora caminha lento. Aproxima as lamparinas. Com cuidado,


começa a lamber a testa de Luiz)

LUIZ
Tô aliviado.

(Tempo)

por que a senhora não me diz como se chama?

(Tempo)

Então é ali. Todo mundo ta enterrado ali.

(Tempo)

O nome é esse? Cemitério...


(Tempo)

E a senhora?

(A senhora acaricia o corpo de Luiz. Beija seu rosto)

Esse cheiro vem de longe. Eu conheço esse cheiro.

(Tempo)

Tô sentindo uma cosquinha nas carnes.

(Tempo)

Deixe eu espiar o quartinho. E cadê o outro menino?

(Tempo)

E quando será esse tempo?

(Tempo)

Por que a senhora não me leva?

(Tempo)

E que hora é essa que não chega nunca?

(Tempo)

Então me abrace, minha senhora.

(A senhora deita-se por cima de Luiz)

Meu coração ta saindo pela boca. Tô todo arrepiado. A barra do dia já


vem. Padrinho vai chegar. Ele sempre chega. (Luiz arfa de desejo. Quase
violento, troca de posição com a senhora, cobrindo-a. Permanecem
deitados e petrificados) Siiiiiiiiiiiu! Não diga nada! Não, não fale. Lave
manso. Lave leve. Leve, leve, leve... Eu estou com fome! Pra frente e pra
trás. Como a enxada na terra. Pra frente e pra trás. Trincando os dentes.
Pra cima e pra baixo. Vai e vem. Coce, coce, coce, coce! Estou com
vergonha! A agonia... No cangote, no espinhaço, nos quartos, nas canelas.
Minha espiga! Esfregue! Corra, corra, corra. Poeira! Cadê a poeira? O
quartinho, respirando com força. Mastigando a língua. (Num grito de
agonia) Meu Deus!!!
(A matraca dispara. Ela se desvencilha dela cautelosamente. Beija-o no
rosto e flutua pela habitação, apagando as lamparinas com um chocalho
pendente numa tira de couro. Entra no quartinho e fecha a porta. O som
da matraca já vai longe. A manhã está bem perto.)
Cena 10: A Peleja
10º Dia, 10ª Jornada

O sol penetra manso na habitação. Luiz se levanta. A estrela da testa está


sarada. É de um marrom escuro, quase negro. Ele dirige-se ao caixão de
farinha. Procura e encontra um pedaço de carne-seca escondida. Devora
a carne como um animal. Apanha uma quartinha d’água e se afoga.
Noutro lugar, apanha algumas facas e as amola nos tijolos do espaldar da
cadeira de Teodoro. Aos poucos, vai retirando os tijolos e destrói o
espaldar. Tempo.

TEODORO (Entrando)
Nada!

LUIZ
Nadinha de nada, velho miserável?

TEODORO
Desgraçado, como você se soltou?

LUIZ
Se vier, a peixeira come no centro!

TEODORO (Saca a peixeira. Um jogo de morte se anuncia. A cada fala,


Teodoro avança pra furar Luiz e vice-versa. Um, sempre escapando do
outro)
Foi o cão!

LUIZ
Foi a senhora formosa.

TEODORO
Não pode ser!

LUIZ
Já sei de tudo!

TEODORO
Minha história é minha praga!

LUIZ
A senhora lambeu minha estrela. Me soltou!

TEODORO
A senhora é minha. É Luzia!
LUIZ
Minha, também, mulher!

TEODORO
É a alma de Luzia. Respeite!

LUIZ
Ela me cheirou!

TEODORO
Mentira!

LUIZ
Ela me cobriu!

TEODORO
Traidor!

LUIZ
Foi sonho!

TEODORO
Não pode!

LUIZ
Vou matar!

TEODORO
Vou esfolar!

LUIZ
Eu gostei!

TEODORO
Mentira!

LUIZ
Tô todo melado, veja!

TEODORO
Vou lhe capar!

LUIZ
Quero saber de tudo!
TEODORO
Nunca!

(Luiz avança. Os dois se debatem. As peixeiras caem. A luta é de bicho.


Teodoro consegue dominar Luiz)

TEODORO
Já dominei touro maior do que você, demônio. Agora eu vou capar você!
(Luiz tenta se desvencilhar) É pra você aprender a nunca mais cruzar com
a alma da mulher do seu padrinho.

LUIZ
O dia ta acabando!

TEODORO (Arrastando-o, imobilizado)


Tome o fogo. Acenda as lamparinas. Não me fite, degenerado!
Cena 11: Lux in Tenebris
11ª Noite, 11ª Jornada

A noite surge, cheia de escuridão. Luiz acende as lamparinas, forçado por


Teodoro. Luiz é jogado sobre o que restou da cadeira. Teodoro ameaça-o
com uma picareta.

TEODORO
Nada! A noite ta correndo. Cadê a valentia?

LUIZ
Quero saber o resto. Dona Luzia me contou quase tudo. Tem um mistério:
sua mãe!

TEODORO
Cale a boca! O que foi que ela falou daquela mulher?

LUIZ
O senhor não perdoa sua mãe, não é? Frouxo! Medroso” Sua mãe não
tolerava sua mulher Luzia. Era contra o casório. Ela, sua mãe, estoporou
de raiva. Rogou a maior praga do mundo. Disse que era melhor morrer do
que ver o senhor casado com aquela mulher da família dos Anjos.
Praguejou que se nascesse filho ia ser morto. Se vivo nascesse, era pra ser
cego, doido e endemoniado. Praguejou que o filho, se vivo fosse, era pra
matar o pai. Foi praga por cima de praga, não foi? O senhor casou, sua
mãe morreu de desgosto. Dona Luzia ficou prenha. Veio a tromba d’água.
Veio um menino. Mais outro. Dois meninos. Dois machos. No quartinho.
Morreu tudo!

TEODORO
Pare, pare, pare! A noite ta indo embora!

LUIZ
Que se dane a noite! No quartinho só tem um menino. Eu quero ver o
outro!

TEODORO (Alcança um jarrinho, dos penduricalhos do traje, destampa-o e


despeja o conteúdo nos olhos de Luiz)
Não vai ver nunca! Não pode, não pode, não pode.

LUIZ (Desatinado com a dor)


Paaaaaaaaaaaai!
TEODORO (Descontrolado)
Cego! Cego da mulinga! (Solta Luiz) Você cavou e se perdeu. Ta tudo
perdido, meu filho. Seus olhos são dois buracos escorrendo leite de avelós.
Leite das unhas do cão. (Cai, exausto)

(Luiz se levanta e tateia no ar. Teodoro cai exausto sobre a cadeira. Luiz
apanha uma enxada e, vendo tudo, avança e quebra as pernas de
Teodoro.)

LUIZ
Tome isso, desgraçado. Tome isso, cão dos infernos!

TEODORO (Aos berros)


Bata, meu filho!

LUIZ
Bato, bato e rebato!

TEODORO
Eu tinha medo!

LUIZ
Safado! Moleirão!

TEODORO
Me mate, meu filho! Eu sou ruim!

LUIZ
De jeito nenhum. E eu vou ficar só, sem ajudante? O senhor quer que eu
caia em solidão?

TEODORO
Ai, que dor! Estou quebrado! Você é muito besta. Besta! Não está vendo
que você está cego?

LUIZ
Tô vendo, sim. Tô vendo tudo. Agora é tudo igual: noite e dia (Apanha um
chocalho de touro na parede do quartinho)

TEODORO
Estou espatifado...

(Silêncio)

LUIZ (Muito calmo)


Pai!
TEODORO
Que é, Luiz?

LUIZ
Tudo está desembestado. O dia se intrometendo... (Pondo, lentamente, o
chocalho no pescoço) Tudo está desembestado. O dia se intrometendo...
(Silêncio) Estou cego, enxergando tudo. Os astros se rebulindo dentro da
minha cabeça... (Silêncio) Não pode ser! Não pode ser! E eu imaginando
que não tinha seu sangue de bicho dentro das minhas carnes. Tudo por
causa do medo. (Silêncio) Que danado de medo é esse, pai? O medo, o
medo, o medo... O tempo todo o senhor me arrebentando... Todo dia, todo
dia (Grita) Ai, minha cabeça! (Chora. Silêncio) Morto. Tudo morto. Fui
parido morto! Finado a vida toda! Como, pai? Que porcalhada é essa? Não
pode ser! Não pode ser tanta malvadeza! Infeliz! Só pode ser isso. O
senhor sempre foi isso! Um bicho sem alegria. Do mesmo jeito do
Povoado da Cruz. E eu? Eu sempre aprendendo o nada que o senhor me
ensinava: 9 vezes 9 dá 81. Aprendia tudo! Não posso mais querer saber
nada. E minha mãe? Minha mãe Luzia dos Anjos é um buraco. Uma cova
funda de bairro cheiroso. (Grita) Ai, meus ouvidos! (Geme) Como a
enxada na terra, no sonho. Eu cavando minha mãe. Galando minha cova!
(Grita) Ai, meus olhos! Duas bolas de fogo. (Silêncio) Tudo é uma
danação: ave, avelós, botija, cruz, chão, diabo, escavacar, fel, goela, honra,
inferno, juízo, luto, maldade, nada, ouro, pó, quente, réstia, sangue, tempo,
última, vida, xiquexique, zunido. Eu não agüento mais essa passagem! O
senhor tem precisão dos olhos. Eu tenho precisão das pernas. Estou solto!
Desgarrado! Que danado é estar solto? Só sei que sou solto! Seu corpo no
meu corpo, e vou. Vou me danar desembestado no dia. (Tempo) Lá vem a
barra...

(Luiz apaga os candeeiros com as mãos)


Cena 12: A Libertação da Luz
12º Dia, 12ª Jornada

O sol surge forte, como ao meio-dia. Luiz – o cego que vê –


apanha uns molambos e os rasga em tiras.

LUIZ
Nada!

TEODORO
Tudo tá acabado.

LUIZ (Agarra Teodoro e o coloca sobre o caixão de farinha)


Eu não sei o que seria de mim se não fosse você, velho danado.
(Enfaixando as pernas de Teodoro)

TEODORO
Ai, devagar, seu cachorro da mulinga!

LUIZ
Deixe de ser frouxo, velho nojento.

TEODORO
Cego safado! Ai que dor! Minhas canelas vão apodrecer. Tá doendo. Ai, ai!

LUIZ
Cale a boca. Feche a matraca, rabugento. Acabe com esse chororô,
esconjurado. (Pondo uma tira nos seus próprios olhos)

TEODORO
O sol é uma noite, meu filho?

LUIZ
Arreia, minha sina. Tá caducando, velho abilolado?

(Luiz vai á cadeira de Teodoro e começa a desmontar o que restou dela)

TEODORO
O que é que você ta fazendo?

LUIZ
Estou acabando de espatifar a lembrança;

TEODORO
O querosene acabou.

LUIZ
E eu com isso?

TEODORO
Deus lhe abençoe.

LUIZ
E eu to pedindo?

(Luiz põe Teodoro nos braços, abre o caixão de farinha e o coloca dentro
dele)

TEODORO
Cuidado, seu diabo! Vou ficar de castigo, é? Os bichos vão comer minhas
canelas.

LUIZ (Vestindo o peitoral de Teodoro)


Deixe de besteira! A farinha conserva, Ainda é cedo.

TEODORO
Eu não quero ficar aqui, entupido de farinha.

LUIZ
E o senhor tem querer, seu caduco? Quer apanhar?

(Arruma-se pra sair)

TEODORO
Não, meu filho. Perdão, perdão, perdão.

LUIZ
Perdão! Daqui pra frente, a cantiga da perua vai ser uma só: perdão, meu
filho. Perdão!

TEODORO
Ta ouvindo? A terra ta parindo de novo.

LUIZ
Vai começar a variar?

TEODORO
Ai que dor! Você vai me matar, não é filho? Deus lhe abençoe.

LUIZ (Repreendendo)
Pai!

TEODORO
Pai!

LUIZ
Tenho faca amolada pra cortar a sua língua, louro velho!

TEODORO
Pra cortar sua língua, faca amolada tenho, louro velho!

LUIZ
Ai ai ai ai ai ai ai! Eh, eh, eh, eh, eh, eh, eh! Rê rê rê rê, cachorro rabugento!
Deu pra me arremedar, bode fedorento?

TEODORO
Perda, perda, cascão.

LUIZ
O sol vai cair já, já. Vou atrás da minha sina: escavacar a terra, ferir o chão.
Eu não me chamo Luiz, se hoje eu não achar essa botija! (Teodoro solta
uma gargalhada) A benção, meu pai (Sai)

(O escuro vai se fazendo aos poucos, entre os dourados do crepúsculo)

TEODORO
Eita, danado. A noite vem desembestada. Dessa, eu não passo.
Hum...cheirinho bom! É de chuva . Eita! O açude vai ficar uma beleza. E
vem gente. Pode chegar! Vem se achegando! Venha se achegando, venha!
Foi meu filho quem descobriu. Mas fui eu quem cavou a mina. A maior
mina de ouro desse mundo! (Rindo) Eu atrás da botija e tava dentro dela.
(Risada) Tem que trabalhar, tem que trabalhar. Deus quer se amostrar de
novo. Amostrado, se amostre.! Eita, fartura! Olhe o gado chegando, olhe o
movimento! Poeira. (Sem tino) Sou um anjo velho num caixão de
farinha...Me tire daqui, seu menino! Olhe o ouro em pó! Pode chegar! (joga
farinha no ar, fazendo o maior estardalhaço) Olha a chuva! (Tempo.
Teodoro se encolhe e fecha a tampa do caixão) Luiz! Ô Luiz! Venha
embora, menino. Ta ficando escuro!

(O escuro vai se completando)

Cena 13: A Noite também é um sol


13ª Noite, 13ª Jornada

O escuro se estabelece. É o fim. Luiz entra no escuro acendendo as


lamparinas e as colocando sobre os escombros da cadeira de Teodoro)

LUIZ
Nada!

TEODORO
Nadinha de botija, meu filho?

LUIZ
O senhor é tapado. Jumento emperrado!

TEODORO
Já sei. Mais não digo.

LUIZ
O senhor estava cavando dentro da botija.

TEODORO
Arreia, minha sina! Tudo de ouro, não é meu ceguinho? Olhe aqui o ouro.
(Atira a farinha sobre Luiz)

LUIZ
Ta mangando de mim, velho excomungado?

TEODORO
A chuva não pegou você não, meu filho?

LUIZ
Aleijado! Ta caducando outra vez?

TEODORO
É. É o fim, Luiz (Encolhe-se no caixão)

LUIZ (Aproxima-se de Teodoro)


Venha pro meu colo, pai!

(Luiz retira Teodoro do caixão)

TEODORO
Seu abraço, meu filho. Tome!
LUIZ (Carregando Teodoro ás costas)
Vamos, pai. Quero ver o cemitério. O cheiro da minha mãe está lá. Quero
ver a cova de onde eu vim. (Luiz abre as portas dos chocalhos)
TEODORO
Está ouvindo, Luiz? Vem gente chegando.

(O quartinho dos ex-votos aparece com uma luz, ao mesmo tempo, celestial
e infernal)

LUIZ (Observando atentamente os objetos do quartinho)


Besteira. Eu não estou ouvindo nada!

TEODORO
Você não ouve porque furei os seus ouvidos.

LUIZ (Gira, com Teodoro ás costas entorno dos escombros da cadeira)


Mas eu ainda tenho tino. Estou com os olhos que o senhor me arrancou.

(Chocalhos finos tocam distante...)

TEODORO
Então, escute! Vem chegando gente. Os chocalhos estão tocando.

LUIZ
Já disse. Besteira infeliz. Não estou ouvindo nada. Não estou vendo nada.

TEODORO
Você está cego, meu filho. Se vem gente, algum canto há de ter para onde
se ir.

LUIZ
O pó, pra retornar.

TEODORO
Besteira, filho. O mundo é grande...

LUIZ
É um nada.

TEODORO
Escute, moleque. Eles chegam mais perto. Vão entrar aqui.

LUIZ
Feche a matraca! Acabou! Isso que o senhor sente é sonho. Sonho só.Vai
passar... É o mistério do sonho...

TEODORO
Acabado...Está certo. Nunca mais eu falo. Estou calado. Mudo.
LUIZ
Está certo. Sonhe calado. Vamos atravessar a escuridão. O senhor fica
comigo. Escanchado. Agarrado comigo que nem um carrapato. Nunca vou
me livrar da sua carne grudada na minha carne. É o fim. (Apanha um
chocalho na porta do quartinho) Não há nenhuma novidade debaixo do sol.
Acabou-se. Vamos. Vamos apagar as lamparinas pra fazer claridão.

(Luiz, com o chocalho pendente, vai cobrindo as chamas das lamparinas,


apagando-as. Enquanto a luz do quartinho morre lentamente, o som
assustador e triste da matraca invade a habitação e se funde com uma
música divinal que ilumina a escuridão)

FIM

João Denys Araújo Leite


Recife, último dia de maio de 1993

Você também pode gostar