Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SANTOS
1. Os pedidos no convento
isto é, tentar mapear uma possível diversidade nos interesses que levam as pessoas
a irem ao convento, o que de fato aconteceu. As razões para a vinda desdobraram-
se, e as pessoas afirmaram comparecer ali não apenas pelo santo, mas para se
aconselharem com os frades, para assistirem às missas e homilias, para encontrarem
amigos, para comprarem nas barraquinhas de comida, bebida e artigos religiosos, ou
ainda desfrutar da paz e da beleza da vista do local. Mas, por outro lado, o grande
número de respostas em que as pessoas diziam estar ali para pedir algo a Santo
Antônio, que foi a justificativa mais citada, ajudou-me a perceber a importância do
pedido ao santo como motivação para a visita ao convento:
3. Saber pedir
Santo Antônio, pede a Jesus para que ele se apaixone por mim, me
ame, sinta admiração e desejo por mim. E Santo Antônio, fazei com
que nós possamos ter um emprego estável, para que nós possamos
ter segurança nesta parte financeira que tanto nos aflige nesses
anos que estamos juntos. Obrigada por sua intercessão, junto a
Jesus, Santo Antônio. E para que o Hermes não sinta mais nada
pela Rosana, nem por nenhuma mulher.(doc no. 1519) .
O que não acontece é que um pedido seja assinado por uma coletividade
não há grupos como "a escola X", ou "a comunidade Y", ou "a família Z"
assinando pedidos. Quando se pede por vários beneficiários, a pessoa que faz o
pedido assina-o, por si mesma, pedindo por todos, ou ela assina como sendo
cada uma das pessoas envolvidas. Não há um sujeito coletivo pedindo, embora
possa haver pedidos anônimos. Embora haja pedidos em que uma pessoa peça
por "todo o clero", "os seminaristas do Brasil'.', '"a humanidade", "o povo brasi-
leiro" é sempre uma pessoa só que realiza os pedidos. Também pedidos com
beneficiários abrangentes ou abstratos, como os que acàbamos de citar, são exceções.
56 ·Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 24(1) : 46-64, 2004
O mais corrente é que se peça no círculo íntimo dos parentes (o que pode ser visto
pelos sobrenomes das pessoas, ou pela citação dos graus de parentesco).
Na conclusão do pedido, encontram-se variações: o emissor pode ou não
se identificar, e se decidir fazê-lo, pode colocar o nome completo (em alguns,
há o nome completo e também o endereço), escrever as iniciais, rubricar ou
colocar apenas o primeiro nome. E as diversas maneiras de terminar o pedido -
com um agradecimento, uma despedida, ou dizendo ·amém - assinalam as va-
riações entre um pedido mais "secularizado", isto é, mais próximo à carta, e
aquele que assume um formato mais próximo à prece.
Por fim, não apenas o texto escrito, mas o formato e o tipo do próprio
papel, e a proporção entre a escrita e o espaço livre que nele é mantida, também
são variáveis a serem consideradas. Dobrar o pedido ou deixá-lo aberto; usar o
papel do convento, trazê-lo especialmente para isso de casa ou improvisar um
bilhete com um guardanapo qualquer; ocupar a folha toda ou apenas uma parte
dela 7, etc, são diferentes maneiras de se apresentar um pedido.
As repetições que fui encontrando em pedidos que pareciam mais "ela-
borados", isto é, escritos com mais cuidado e preocupação formal, fizeram-me
perceber que a maneira de fazê-los associava-se a determinados temas e expres-
sões mencionados nos sermões das missas, nas conversas do almoço, nas entre-
vistas a respeito de "formas corretas" de pedir. Uma preocupação comum desses
pedidos mais "acabados" parece ser justamente "evitar o pedido seco", isto é,
tentar eufemizá-lo, tentar "diluí-lo" entre um número maior de informações.
Creio ser possível identificar algumas estratégias de eufemização do pedi-
do, através da transcrição de alguns exemplos. Uma primeira estratégia seria
mesclar pedidos a agradecimentos, demonstrando reconhecimento ao santo por
algo que já foi concedido, e/ou negando que o interesse maior seja pedir.
Pedir, pedir, pedir para abençoar o meu amor com o Flávio é fácil,
agora quero não só pedir mais [sic] sim também agradecer por o
nosso amor estar indo, ou melhor, caminhando muito bem, isso tudo
vem dos méritos de Deus e dos meus pedidos a Santo Antônio.
Muito obrigada. Vou continuar rezando e pedindo. (doe . no. 1451) .
Quanto a isso, pode-se ainda agradecer primeiro, para depois pedir. Neste
caso, o agradecimento que antecede o pedido estabelece uma ponte com um
pedido anterior, já concedido, construindo uma espécie de "encadeamento",
parecendo lembrar ao santo que se trata de uma relação já consolidada:
Oh! Meu glorioso Santo Antônio, aqui estou mais uma vez para vos
agradecer por todas as vezes que lhe pedi e fui atendida em minhas
preces, recorro hoje mais este pedido, de ver resolvido o problema
Saber pedir: a etiqueta do pedido aos santos 57
da minha casa na rua Tinharé, sei que está difícil, mais [sic] com
sua ajuda tenho fé que há de resolver.
Confiante espero, não esqueçais de mim, oh! meu glorioso Santo
Antônio.
De sua devota
Margarida. (doe no. 308).
lo. Deve acontecer, portanto, em cada pedido, uma certa sedução do santo, no
sentido de torná-lo propenso a conceder a graça demandada.
(... ) Santinho bom, manda uma pessoa para alugar meu ap. (... )
(doe. no. 127).
Surgiu também uma outra forma de pedir que parece legitimar-se por
engrandecer o Santo e, contrastivamente, realçar a dependência do devoto para
com ele, como que ressaltando a assimetria de posições e justificando pela
pequenez e fragilidade dos seres humanos o pedido.
Deus vos salve meu Glorioso e amável Sto. Antônio, amigo como
Vós não acharei, Rogo-vos alcançai de Deus Todo Poderozo [sie]
auxílio para todas necessidades, tanto espirituais como corporais.
Rogai por Nós, intercedei a Deus por [4 nomes]. Obrigada Sto.
Antônio. (doe. 191).
Meu glorioso Sto. Antônio, muito obrigado por tudo que fizestes por
nossa família espero que cada dia faça mais, particularmente vos
peço as minhas graças:
Peço pela minha coluna pra que cada dia ela fique mais forte e
principalmente reta. Peço pela minha inteligência, para que cada
dia volte como era a anos atraz [sie]. Peço também pela saúde de
todos os meus familiares. Se estas gmças não forem possíveis eu enten-
derei mas espero que esses pedidos se realizem.
Muito obrigado! Sto. Antônio.
Dorgival Magno Júnior. (doe no. 419 - grifos meus).
4. A etiqueta do pedido ,
Vou contar a graça de Santo Antônio ter feito minha mãe voltar a
andar. Minha mãe, que era superativa, teve uma trombose e ficou
em cadeira de rodas, cama de hospital. Mas como era muito alegre,
animada, sofria muito por não estar podendo se adaptar, ela não
conseguia se acostumar. Eu chorava sem parar, desesperada com o
sofrimento de minha mãe. Um dia, eu disse: "Mãe, você vai voltar
a andar. Você quer, você vai voltar. Se for a vontade de Deus, vai
voltar". Então vim aqui, com Santo Antônio, e pedi.
Passou algum tempo, e no dia do meu aniversário, a mãe me cha-
mou de manhã no quarto e estava de pé, andando. Provavelmente
[estimulada] pelo fato de ser meu aniversário, e ela ainda não ter
podido me dar os parabéns.
Depois, ela viveu bem mais cinco anos, quando voltou a piorar. Fui
de novo a Santo Antônio. Comecei a formular o pedido, e quando
olhei para ele, parei. Ele estava olhando para mim como se dissesse:
"Mas o que você está querendo? Cinco anos não foram o suficiente?
O que você quer mais?" E eu, entendendo meu egoísmo, parei o pedido
no meio. Meu egoísmo em querer que minha mãe ficasse viva de
qualquer maneira, mesmo sofrendo. E me conformei. (Rita, 6!3/2001 ,
grifos meus).
Conclusão
Referências Bibliográficas
BELMONT, Nicole; LAUTMAN, François. (1993), Ethnologies des faits religieux en Europe. Paris:
CI1-IS.
BOUTRY, Philippe; FABRE, Pierre Antoine; JULIA, Dominique. (2000), Rendre ses vreux: les
identités pelerines dans tEurope Modeme (XVIe-XVIli siecles). Paris: Ed. EHESS.
COUSlN, Bernard. (1983), Le miracle et le quotidien. Les ex-voto provençaux. Images d'une société.
Paris: Societés, Mentalités, Cultures.
ELIAS, Norbert. (1985), «I.:étiquette et la logique du prestige•. ln: La société de cour. Paris:
Flammarion, p.63-114.
FROTA, Lélia Coelho. (1981), "Promessa e milagre nas representações coletivas de ritual católico,
com ênfase sobre as tábuas pintadas de Congonhas do Campo, Minas Gerais". ln: MEC/SEC/
SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA. Promessa e milagre no Santuário de Bom]esus dos Matosinhos- Congonhas
do Campo, MG. Brasília: MEC, p. 16-53.
HERBERlCH, Genevieve, RAPHAEL, Freddy. (1982), "Messages et prieres des pelerins de
Thierenbach" Revue des Sciences Sociales de la France de l'Est. (11): 3-46.
HEREDIA, Beatriz. (2002), "Entre duas eleições. Relação político-eleitor" . ln: HEREDIA, Beatriz;
TEIXEIRA, Carla; BARREIRA, Irlys. (orgs). Como se fazem eleições no Brasil. Estudos antropo-
lógicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 17-37.
MENEZES, Renata de Castro. (2003), A benção de Santo Antônio e a "religiosidade popular". Estudios
sobre Religión - Newsletter de la Asociación de Cientistas Sociales de la Religión en e! Mercosur
(16): 2-6, dezembro.
MENEZES, Renata de Castro. (2004), A dinâmica do sagrado. Um estudo antropológico de um
"santuário" católico no Rio de Janeiro. Tese de doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro:
PPGAS I Museu Nacional I UFRJ.
PEIRANO, Mariza. (org) . (2002), O Dito e o Feito. Ensaios de Antropologia dos Rituais. Rio de Janeiro:
Relume Dumará: NuAP.
PIERSON, Donald. (1966), Cruz das Almas. Rio de Janeiro: José Olympio.
TAMBlAH, Stanley. (1985), Culture, thought and social action. Harvard, Harvard University Press.
Notas
1
Os termos em itálico referem-se a categorias significativas do universo pesquisado.
2
Em Menezes (2003; 2004) há uma etnografia detalhada da benção, que assim aparece definida: "a
benção é uma prática que combina palavra, gesto, água, balde, vassourinha, movimentos de
caminhada pela igreja, sinais da cruz, imposição de mãos, t4do isso na interação entre sacerdote e
audiência. Entretanto, há que se lembrar que, subjacente. a essa combinação, está o santo, que de
alguma maneira se faz presente através desse ritual de consagração e abençoa seres e coisas,
estendendo-lhes sua proteção" (Menezes 2003: 4)
64 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 24(1) : 46-64, 2004
3
Um "santinho" é um papel de cerca de 7 X 11 cm, no qual há na frente a reprodução vertical da
imagem de um santo (desenhado ou através de foto de estátua), e atrás uma oração tida como "sua",
isto é, como especial para conseguir algo dele, ou para louvá-lo. A oração costuma ser acompanhada
de procedimentos de uso: rezar tantas vezes por tantos dias. Às vezes, os santinhos possuem também
referências a episódios da vida do santo representado. Este material é produzido em gráficas
especializadas, e é vendido aos milheiros, e geralmente traz a seguinte frase: "Por uma graça
alcançada, mandei imprimir um milheiro dessa oração"
4 "Novenas" são folhas de papel contendo orações a um santo, apresentadas como fórmulas mágicas
de obter algo dele: há que se repetir a oração um determinado número de vezes, sob condições
específicas, fazer um número de cópias definido, passá-las adiante e "a coisa" que se deseja é
conseguida. Geralmente acompanha a novena uma detalhada explicação sobre seu modo de utili-
zação, mais a indicação de que ela deve ser feita apenas em casos de necessidade, e algumas garantias
de sua eficácia, através da citação de exemplos de pessoas que já receberam algo através dela.
5 Obviamente, estou me referindo a devoções que continuam, pois há sempre a possibilidade de perda
de crença em um determinado santo, ou mesmo no sistema como um todo.
6 Como nos lembra Benveniste (1969: 202) : "Au-dela du circuit normal des échanges, de ce qu'on donne
pour obtenir - il y a un deu.xil!me circuit, celui du bienfait et de la reconnaissance, de ce qui est donné
sans esprit du retour; de ce qui est offert pour 'remercier"'.
7 A questão da apropriação do papel me parece significativa e pretendo voltar à ela em trabalhos
futuros, em que a simbolização dos pedidos seja objeto de uma análise detalhada. O que pude
registrar por enquanto é a ruptura da idéia de que um papel menor é igual a menos pedidos: tentando
dar conta do total de 2.700 papéis que possuo, comecei a analisar os menores, julgando com isso
agilizar o trabalho. Mas na verdade, essa premissa revelou-se falsa, porque as pessoas utilizam táticas
como escrever com uma letra minúscula, sobrepor textos, escrever em margens, para que mesmo
em um papel pequeno caiba tudo aquilo que desejam colocar.
8 Essa clivagem apareceu em entrevista com a presidente da Pia União que, ao falar do trabalho de
organização da festa, estabeleceu distinções entre o "público da festa" e o do resto do ano: "Quem
vem só à festa, vem por crendices porque Santo Antônio é isso, Santo Antônio é casamenteiro,
é aquilo, acha coisas perdidas. A festa tem um público mais com crendices, é uma festa popular".
(entrevista, 2/5/01) .