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0s Maias* roteiro de leitura


0s antecedente§
(4

Gapítulos I e ll ti
Lr

(,
\0)
"Os Maias eram uma antiga família da Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas colaterais, sem $r

parentelas (...)"
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" L.) tVilaçal aludia mesmo a uma lenda, segundo a qual eram sempre fatais aos Maias as paredes _i
tu

*,".r,n"r", ,...,'
Ç).
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Juventude de AÍonso da Maia !

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Juventude de Afonso da Maia (analepse) - "(...) fora, na opinião de seu pai [Caetano da Maia], tr
\V
U
algum tempo, o mais feroz jacobino de Portugal!" . {pag. 13}

Casamento com Maria Eduarda Runa, "/...,i uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada."
e nascimento do filho, Pedro da Maia.
(pá9. 15)

Educação de Pedro, em lnglaterra: " (...) a mamã acudia de dentro, em terroc a abafálo numa gran-
de manta: depois, lá fora, o menino, acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha
medo do vento e das árvores: í.../". {pás" t8}

Morte de Maria Eduarda Runa que provocou em Pedro comportamentos antagónicos: ora saía
" todos os dias a passos de monge, lúgubre no seu luto pesado, para ir visitar a sepultura da mamã
(...)" , ou " (...) de ripanço debaixo Qo braço, com um ar velho, marchando para a igreia de Benfica.",
ora Íazia uma " vida dissipada e turbulenta, (...)" e " levado por um romantísmo torpe, procurava afo-
gar em lupanares e botequins as saudades da mamã (.. .)" . lltitçs.21"22\

lntriga secundária - Pedro e Maria Monforte

tade, a razão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abismos." {págs. ??,29"3üi

Paixão e casamento de Pedro, com Maria Monforte, a "negreira", contra a vontade de


Afonso: " Pedro da Maia amava! Era um amor à Romeu, vindo de repente numa troca de olhares
fatal e deslumbradora." ', "
- Pois pode estar certo, meu pai, que hei-de casar! (...) E não se
falou mais de Pedro da Maia."

Traição e fuga de Maria Monforte: "(...) parto para sempre com Tancredo, esquece-me que nào
sou digna de ti, e levo a Maria, que me não posso separar dela."

Suicídio de Pedro e saída de Lisboa de Afonso da Maia com Carlos: " (...) Afonso encontrou seu
filho morto, apertando uma pistola na mão. (...) Daí a dias fechou-se a casa de Benfica. Afonso da
I Maia partía com o neto e com todos os criados para a Auinta de Santa Olávia." \pitg.1l\

* As páginas entre paÍênteses referem-se à edição da Colecção Mundo das Letrâs, Porto Editora, bem como à
Livros do Brasil. de 2002.

)api ulo
A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conheci-
da na r.izinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas
\-erdes. pela casa do Ramalbele ou simplesmente o Rarnalbete. Apesar deste fresco
nonre de vir.enda campestre, o Ramalbete, sombrio casarão de paredes severas, com
um renque de estreitas varandas de femo no primeiro andar, e por cima uma tímida
fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência
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do reinado da senhora D. Maria I: com


eclesiástica que competia a uma edificaçào
uma sineta e com ulr;ra crnz no topo assemelhar-se-ia a um colégio de Jesuítas.
O nome de Ramalhete provinha decerto de um revestimento quadrado de azulejos
10 fazendo painel no lugar heráldico do Escudo de Armas, que nunca chegara a ser
colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fiÍa onde se
distinguiam letras e números de uma data.
Longos anos o Ramalbete permanecera desabitado, com teias de aranha pelas
grades dos postigos térreos, e cobrindo-se de tons de ruína. (...)
15 Este inútil pardieiro (como lhe chamava Yllaça Júnior, agoru por morte de seu
pai administrador dos Maias) só veio a servir, nos fins de 1870, paru lá se anecada-
rem as mobílias e as louças provenientes do palacete de familia em Benfica, morada
quase histórica, que, depois de andar anos em praça, fora então comprada por um
comendador brasileiro. Nessa ocasião vendera-se outra propriedade dos Maias, a
Tojeira; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias, e
sabiam que desde a Regeneração eles viviam retirados na sua quinta de Santa Olâvia,
nas margens do Douro, tinham perguntado aYilaça se essa gente estava atrapalhada.
- Ainda têm um pedaço de pão, - disse Yilaça sorrindo - e a manteiga para lhe
barrar por cima.
zs Os Maias eram uma anÍiga familia da Beka, sempre pouco numerosa, sem
linhas colaterais, sem parentelas - e agora rcdtzida a dois varões, o senhor da casa,
Afonso da Maia, um velho jâ, quase um antepassado, mais idoso que o século, e seu
neto Carlos que estudava medicina em Coimbra. (...)
(págs. 5-6, com supressões)

Gompreender

X. As primeiras páginas de OsMaias introduzem-nos na história desta família, fornecen-


do informaçóes acerca dos espaços habitados por algumas das suas gerações.

t.'§. Delimita. nos dois primeiros parágrafos do excerto, as passagens predominante-


mente descritivas.

".i: Salienta, nessas linhas, os adjectivos e as expressões que conferem à descrição


desta casa dos Maias um tom sombrio e austero.

Evidencia a expressividade dos adjectivos destacados no seguinte segmento:


"(...) uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto
tristonho de residência eclesiástica... "

Explica, por palavras tuas, a origem provável do nome " Ramalhete", atribuído à
casa dos Maias.

Esclarece o uso do conector "Apesar de"

Por que razão as " raras" pessoas que, em Lisboa, ainda se lembravam dos
Maias achavam que a família "(...) estava atrapalhada"?

Clarifica a metáfora utilizada por Vilaça Júnior na seguinte afirmação: "- Ainda
têm um pedaço de pão (...) e a manteiga para lhe barrar por cima."
ã. Nesta obra, os espaÇos físicos, para além de caracterizarem as; perSonagens que oS
habitam, são carregados de simbolismo.

,ff.t" ldentifica os espaÇos que se seguem por onde passaram alguns dos membros
da família Maia.

I n. Casa que foi habrtada durante algum tempo por Afonso da Maia i u. Ramalhete
I "
I

I
onde seu frtho, Pedro da Maia, se suicidou.
I tCt." êntr* sutrâs. SmSs"Ê?-SI e 44-§3!

l_,1
I B. Linda casa isolada no meio de um arvoredo, simples mas, h. Casa de
rimultaneamente, luxuosa, onde Carlos se instalou quando
I

Benf ica
I I

I estudava em Coimbra. {*t. $ri*ss.$s-s§i I

c. Casa de
. à sua desgraÇa - e lá que Carlos desespera depois de conhecer Arroios
r a verdade sobre Maria Eduarda e que Afonso da Maia morre.
Simboliza, ainda, na sua ruína, a decadência da sociedade
I
I
fisboeta e do país, em gerâ|. {ct., entre outras, págs

I O. Residência de Pedro e Maria Monforte, ricamente mobilada, d, " Paços"


onde o casal levou, durante algum tempo, uma existência festi- de Celas
va e luxuosa. E tambem aqui que Tancredo recupera depois de

}. Neste excerto são referidos os "dorb varões" a que está, "agora reduzida" a família
Maia: Afonso e Carlos.

Copia para o teu caderno o esquema abaixo e completa a árvore genealógica da


família com os elementos em falta.

Santo Amaro - palacete inspirador do Ramalhete Toca - refugio amoroso de María Eduarda e Carlos

Afonso d a Maia

Carlos Eduardo
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Tambem nas páginas iniciais encontramos informações acerca do tempo da história:


"Outono de 1875". Em função desta primeira data, podemos situar outras importan-
tes para o desenrolar da história.

Gapítulos da obra Datas/acontecimentos mais relevantes

I Outono de 1875 juventude de Afonso


casamento de Afonso
il nascimento de Pedro
educação de Pedro
1820-1875
casamento de Pedro
ilt
suicídio de Pedro
educação de Carlos
IV Outono de 1875 juventude de Carlos

V
a
vida de Carlos em Lisboa

xvlt

xvilt Janeiro de 1877 viagem de Carlos


+
+
regresso de Carlos a Lisboa
1 887

Observa atentamente o esquema acima e diz se as afirmaçóes que se seguem


são verdadeiras ou Íalsas:
rr Nos capítulos I a lV sáo relatados mais de 50 anos da história da família Maia.
,' Tendo em conta a data de início da história, tudo o que é relatado entre o
capítulo I e cerca de metade do capítulo lV , . ,r,, constitui uma extensa pro-
lepse (avanço no tempo da história).
, . Comparando o tempo abrangido pelos quatro primeiros capítulos com aque-
le que decorre entre o capítulo V e o início do capítulo XVlll tr,t.i:*,, pode-
mos concluir que o ritmo narrativo é rápido nos quatro primeiros e lento
nos outros.
r: Considerando que a viagem de Carlos dura dez anos (1 877-1887) e que o últi-
mo capítulo é constituído essencialmente pelo relato de um passeio de Carlos
e Ega por Lisboa, tecendo comentários àquilo que vêem enquanto falam do
passado e tiram conclusóes fatalistas acerca das suas vidas, podemos afirmar
que, neste capítulo , o tempo da historia e o tempo do dis-
curso tendem a coincidir"

Capitulo I
(...)
Afonso da Maia, com o seu filho nos braços e a mulher tremendo ao lado - viu,
impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas pela coronha
das escopetas', as mãos sujas do malsim2 rebuscando os colchões do seu leito. O
senhor juiz de fora náo descobriu nada: aceitou mesmo ta copa um cálice de vinho,
e confessou ao mordomo "que os tempos iam bem duros...". Desde essa manhã as
janelas do palacete conservaram-se cerradas; não se abriu mais o portão nobre para
sair o coche da senhora; e daí a semanas, com a mulher e com o filho, Afonso da
Maia partia parulnglaleffa e pata o exílio.
Aí instalou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de Londres, junto
ro a Richmond, ao firndo de um pârque, entre as suaves e calmas paisagens de Surrey.
(...)
Meses depois, sua mãe, que ficara em Benfica, morria duma apoplexia: e a Íia
Fanny veio para Richmond completar a felicidade de Afonso, com o seu claro juízo,
os seus caracóis brancos, os seus modos de discreta Minerva. Ali estava ele pois no
seu sonho, numa digna residência inglesa, entre árvores seculares, vendo em redor
1s nas vastas relvas dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sentindo em torno de si
tudo são, forte, livre e sólido, - como o amava o seu coração.
()
Somente Afonso sentia que sua mulher náo
era feliz. Pensatla e triste, tossia sempre pelas
salas. À noite sentava-se ao fogáo, suspirava e ftca-
?o va calada...

Pobre senhora! A nostalgra do país, da paren-


tela, das igrejas , ra-a minando. Verdadeka lisboeta,
pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo
palrdamente, tinha vivido desde que chegaru num
25 ódio surdo àquela terra de hereges e ao seu idio-
ma bârbaro: sempre arceprada, abafada em peles,
olhando com pa-vor os céus fuscos ou a neve nas
árvores, o seu coraçã.o não estivera nunca alt, mas
longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos
30 do sol. A sua devoção (a devoção dos Runas!),
sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se àquela
hostilidade ambiente que ela sentia em redor con-
tra os "papistas". E só se satisfazta à noite, indo
refugiar-se no sótão com as criadas portuguesas,
3b para rezat o terço agachada numa esteira - gozan-

do alt, nesse murmúrio de A,ue-marias em país


Regent's Park, Londres
protestante, o encanto de uma conjuração católtca!
Odiando tudo o que era inglês, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse
estudar ao colégio de Richmond. Debalde Afonso lhe provou que era um colégio
+o católico. Não queria: aquele catolicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João,

sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas - não lhe parecia a religião.
A alma do seu Pedrinho não abandonaria ela à heresia; - e para o educar mandou
vir de Lisboa o padre Vasques, capelão do conde de Runa.
O Vasques ensinavalhe as declinações latinas, sobretudo a carÍilha: e a face de
+s Afonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar de alguma caçada ou das

ruas de Londres, de entre o forte rumor da vida livre - ouvia no quarto dos estudos
a voz dormente do reverendo, perguntando como do fundo duma treva:
- Quantos são os inimigos da alma?
E o pequeflo, mais dormente, lâ ia murmurando:
- Três. Mundo, Diabo e Carne...
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Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo Vasques, obeso e
sórdido, affotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho...
Às vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agaffava a
mão do Pedrinho - para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-
-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamà acudia de
dentro, em terror, a abafâ-lo numa grande manta: depois, lâ fora, o menino, acostu-
mado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das âwo-
res: e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as
folhas secas - o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando
os ombros, pensativo, triste daquela fraqueza do fiIho...
Mas o menor esforço dele para affancar o rupaz àqueles braços de mãe que o
amoleciam, àquela cartilha mortal do padre Vasques - trazia logo à delicada senhora
acessos de febre. E Afonso não se atrevia jâ a contrariar a pobre doente, tão virtuo-
sa, e que o amava tanto! (.. .)
(págs. 16-18, com supressões)

l. escopeta espingarda. 2. mabim: fiscal, oficial de diligências, zelador de regulamentos policiais.

Gompreender
í. Atenta nos três primeiros parágrafos do texto.
1.Í. O que procuravam os homens que invadiram a casa de Afonso da MaiaT
1.2. Explica por que razão, embora nada tenha sido encontrado em sua casa, Afonso
se decide pelo exílio voluntário em lnglaterra.
1.3. Oue Íactores contribuíam para que Afonso estivesse " no seu sonho" {n" r3"I4}?

2. Concentra-te, agora na segunda parte do texto - a partir do quarto parágrafo.

2.1. ldentiÍica as razóes que estão na origem da infelicidade da mulher de Afonso


da Maia.
2.2. Comenta a expressividade do complexo verbal " ia-a minando." lt zzi.
2.3. Substitui o advérbio "debalde" {r.Jsi por outro advérbio ou expressáo de senti-
do equivalente.
2.4. Explica por que razão Afonso náo consegue convencer a mulher a deixar que o
filho seja educado no colégio de Richmond.
2.5. lnterpreta o uso do diminutivo "Pedrinho" nas duas ocorrências do sexto pará-
grafo irt.leeael.

3. Explicita a atitude de Afonso face à educaçáo de Pedro.

4. Comenta a expressividade das exclamações " Pobre senhora!" ti.2ri e " Pobre
Pedrinho!" \r.nt.

5. Descreve. sucintamente, a educação que a mulher de Afonso da Maia escolheu para


o seu filho.

6. Aponta três traÇos de personalidade que caracterizem Maria Eduarda Runa.


Capítulo II
(. ..)
Fechou a porta, e veio sentar-se junto do filho que se não movera do canto do
sofá nem despregaru os olhos ão chão.
- Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos não vemos há três
anos, filho...
-Ílá mais de três anos - murmurou Pedro.
Ergueu-se, alongou a vista à quinta, tão triste sob a chuva; depois, derramando-
-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu próprio retrato, feito
em Roma aos doze anos, todo de veludo azul, com uma rosa na máo. E repetia
ainda amargamente:
10
- Tinha razào, meu pai, Íinha razào...
E pouco a pouco, passeando e suspirando, começou a falar daqueles últimos
anos, o Inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do italiano na
casa, os planos de reconciliação, por fim aquela carta inÍame, sem pudor, invocando
a f.atalidade, arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momento üvera só
15 ideias de sangue e quisera persegui-los. Mas conseÍvava um clarào de ru2tro. Seia
rídículo, náo é vetdade? Decerto a fuga fora de antemão preparuda, e não hayia de
ir correndo as estalagens da Europa à busca de sua mulher... Ir lamentar-se à polícia,
fazê-los prender? Uma imbecilidade; nem impedia que ela fosse já por esses cami-
nhos fora dormindo com outro... Restava-lhe somente o desprezo. Era uma bonita
aman:te que tivera alguns anos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho,
sem mãe, com um mau nome. Paciência! Necessitava esquecer, pariir para uma
longa viagem , para a América talvez; e o pai veria, havia de voltar consolado e forte.
Dizia esÍas coisas sensatas, passeando devagar, com o charuto apagado nos
dedos, ntJÍna yoz que se calmava. Mas de repente parou diante do pai, com um riso
seco, um brilho feroz nos olhos.
- Sempre desejei ver a Arnéica, e é boa ocasião agora... É uma ocasião famosa,
hem? Posso aÍé nafiralizar-me, chegar a presidente, ou rebentar... Ah! Ah!
- Sim, maís tarde, depois pensarás nisso, filho - acudiu o velho assustado.
Nesse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente, ao fundo do
corredor. (...)
Quis então que o pai fosse para a mesa. Não havia motivo paru que se não jan-
tasse. Ele ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda lá tinha a
cama, náo éverdade? Não, não queria tomar nada... (...)
E vendo Afonso sentado, repetiu, já impaciente:
35
- Yâ janÍaq meu pai, vâ jantar, pelo amor de Deus...
Saiu. O pai ouviu-lhe os passos por cima, e o ruído de janelas desabridamente
abertas. Foi então andando para a sala de jantar, onde os criados, que, pela ama,
sabiam decerto o desgosto, se moviam em pontas de pés, com a lentidão contristada
dvma casa onde há morte. Afonso sentou-se à mesa só; mas jâ lá estava ovtra vez o
talher de Pedro; rosas de Inverno esfolhavam-se num vaso do Japáo; e o velho
papagaio agítado com a chuya mexia-se furiosamente no poleiro.
(...)
Daí a dias fechou-se a casa de Benfica. Afonso da Maia parÍia com o neto e
com todos os criados para a quinta de Santa Olâvia.
(págs. 47-52, com supressões)
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Gompreender
1. Relê os cinco primeiros parágrafos {u. l-rü}.

1.1. Esclarece o conteúdo das intervenções em discurso directo.

2, Atenta na segunda parte do excerto (" E pouco a pouco (...) acudiu o velho assustado."
).

' 't Reconta, introduzindo pormenores esclarecedores, o resumo dos acontecimentos


que é feito nas linhas 11 a 14.

, :.. Salienta no sexto parágrafo, apresentado em discurso indirecto livre, marcas da


emotividade do discurso de Pedro.
. .:: Explica por que razão Afonso comeÇa a ficar sobressaltado.

3. Concentra-te, agora, nos dois últimos parágrafos.

Funcionamento da Iíngua
1. Explicita a correlação que as formas verbais presentes no excerto estabelecem
entre si.
"Fechou a porta, e veio sentar-se junto do filho que se não movera do canto do sofá
nem despregara os olhos do chão. " ü1. r-?)

2. Relaciona a locução adverbial destacada nesta passagem com os tempos verbais


usados antes e depois dela.
"Dizia estas coisas sensatas, passeando devagar, com o charuto apagado nos dedos,
numa voz que se calmava. Mas de repente parou diante do pai, com um riso seco, um
brilho feroz nos olhos. " (n.23"25)

3. Reescreve, em discurso directo, o segmento em discurso indirecto livre que te apre-


sentamos a seguir.
"Restava-lhe somente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera alguns anos, e
fugira com um homem. Adeus! Ficavalhe um filho, sem mãe, com um mau nome.
Paciência! Necessitava esquecet partir para uma longa viagem, para a América talvez; e
o pai veria, havia de voltar consolado e forte. " {u. re"2al

: Consulta as páginas 184 e


185 deste livro e assinala, no excerto seguinte, duas
características da linguagem e estilo de Eça de Oueirós:
"O pai ouviuJhe os passos por cima, e o ruído de janelas desabridamente aberÍas. Foi
então andando para a sala de jantaf onde os criados, que, pela ama, sabiam decerto o
desgosto, se moviam em pontas de pés, com a lentidão contristada duma casa onde há
morte. Afonso sentou-se à mesa so; mas já lá estava outra vez o talher de Pedro; rosas
de lnverno esfolhavam-se num vaso do Japão; e o velho papagaio agitado com a chuva
,
mexia-se furiosamente no poleiro." ,: .::
lnfância e iuventude de tarlos da Maia

Capítulos lll a V t<


(,
\(.)
" la abraçar Carlos outra vez entusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com uma bela risada, saltou do Lr

terraÇo, foi pendurar-se de um trapezio armado entre as árvores, e ficou lá, balançando-se em
cadência, forte e airoso (...)"..:,.,, ,," O
U
-i
\v

U.

Educação de Carlos O

L{

Em Santa Olávia, Carlos é submetido a uma educação tipicamente inglesa: " (...) Coitadinho dele, U

(.)
que tinha sido educado com uma vara de ferro! (...) Náo tinha a criança cinco anos já dormia num $<

U
quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro de uma tina de água tria, (...) E outras
barbaridades. (...) parece que era sistema inglês! (...)" .

Em Coimbra, o jovem Carlos da Maia forma-se em Medicina e entrega-se a duas ligaçÕes amorosas,
começando já a revelar-se a sua tendência para o luxo e para o diletantismo (sonhos, projectos utópicos
nunca realizados). Aqui nasce a sua amizade por João da Ega, que o acompanhará ao longo da vida: "Ás
férias (...) só eram divertidas para Carlos quando trazia para a quinta o seu íntimo, o grande Joáo da Ega,
a quem Afonso da Maia se afeiçoara muito (...)" . . ,

Após o fim do curso, depois de realizar uma viagem de um ano pela Europa, instala-se em Lisboa
onde depressa os seus planos grandiosos sucumbem à inactividade, acabando por se deixar envolver
por uma vida social que há-de leválo à dispersão e ao fracasso das suas capacidades: " (...) e essa
sussurraçáo lenta de cidade preguiçosa, esse ar aveludado de clima rico, pareciam ir penetrando
pouco a pouco naquele abafado gabinete e resvalando pelos veludos pesados (...) envolver Carlos
numa indolência e numa dormência (...) espreguiçava-se - (...) termínava por decidir que aquelas
duas horas de consultório eram estúpidas!".

Capítulo III
(...)
- Então, sem avisar, Yilaça? - exclamava Afonso da Maia, chegando de braços
abertos. - Nós só o esperávamos para a semaÍra, criatural
Os dois velhos abraçatam-se; depois um momento os seus olhos encontrararr,-
-se, vivos e húmidos, e tornaram a apertat-se comovidos.
Carlos ao lado, muito sério, todo esbelto, com as mãos enterradas nos bolsos
das suas largas bragasl de flanela branca, o casquete da mesma fTanela posto de
lado sobre os belos anéis do cabelo negro - continuava a m*ar o Vilaça, que, com o
beiço trémulo, tendo Íirado a luva, limpava os olhos por baixo dos óculos.
- E ninguém a esperá-lo, nem um criado 1á em baixo no rio! - dizia Afonso. -
10 Enfim, cá o temos, é o essencial... E como você está rijo, Vilaça!
- E Vossa Excelência, meu senhor! - balbuciou o administrador, engolindo um
soluço. - Nem uma ruga! Branco sim, mas uma cara de moço... Eu nem o conhe-
cia!... Quando me lembro,aúltima vez que o vi... E cá isto! câesÍa linda florl...
la abraçar Carlos outra vez entusiasmado, mas o rupaz fugiu-lhe com uma bela
th
risada, saltou do teffaço, foi pendurar-se de um Írapézio armado entre as árvores, e
ficou lá, balançando-se em cadência, forte e airoso, gritando: "Tu és o Vilaça!"
O Vilaça, de guarda-sol debaixo do braço, contemplava-o embevecido.
- Está uma linda criançal Faz gosto! E parece-se com o pai. Os mesmos olhos.
olhos dos Maias, o cabelo encaracolado... Mas há de ser muito mais homem!
Módulo El Textos narrativos/descritivos e textos líricos r61

20 É sáo, é rijo - dizia o velho risonho, anediandoz as barbas. (. . .)


-
-
Então Vossa Excelêncra agora janta de manhà? Eu pensei que era o almoço...
Eu the digo. O Carlos necessita ter um regime. De madrugada estâ já na quin-
-
ta; almoça às sete; e janta à uma hora. E eu, enfim, para vigiar as maneiras do
rapaz... (...) Mas avie-se, Yilaça, avie-se que Cailos não gosta de esperar...
(. ..)
zs Mas o Teixeira muito grave, muito sérío, desiludiu o senhor administrador.
Mimos e mais mimos, dizia Sua Senhoria? Coitadinho dele, que tinha sido educado
com uma vara de ferro! Se ele fosse a contar ao Sr. Vilaçal Não tinha a criança cinco
anos jâ dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zâs, para dentro
de uma tina de ágoa fria, às vezes a gear lá fora... E outras barbarídades. Se não se
:o soubesse a grande patxáo do avô pela criança, havia de se dizer que a queria morta.
Deus lhe perdoe, ele, Teixeira, chegara a pensá-Io... Mas não, parece que era sistema
inglês! Deixava-o corret cair, Ítepar às árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como
um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas
coisas... E às vezes a ciancinha, com os olhos abertos, a agoai Muita, muita drxeza.
ss E oTeixeira acrescentou:
- Enfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nós aprovássemos a educa-
ção que tem levado, isso nunca aprovâmos, nem eu, nem a Gertrudes. (...) Sabe
Vossa Senhoria, apenas veio o mestre inglês, o que lhe ensinou? A remar! A remar,
Sr. Vilaça, como um barqueiro! Sem contar o trapézio, e as habilidades de palhaço;
« eu nisso nem gosto de Íalar... Que eu sou o primeiro a drzê-lo: o Brown é boa pes-
soa, calado, asseado, excelente músíco. Mas é o que eu tenho repetido à Gertrudes:
pode ser muito bom para inglês, náo é para ensinar um fidalgo português... (...)

(pâgs, 54-58, com supressões)

l. bragas: calções. 2. anediar: afagar, alisat.

Compreender

r Considera o texto na sua totalidade e responde às seguintes questóes:

r . Em que consiste a educação à inglesa que AÍonso proporcionou a Carlos da Maia?

: ,l Oue resultados imediatos tem essa educação na Íigura e no temperamento de


Carlos?
j .,i Como é que Teixeira vê esse tipo de educação?

. .: Faz o levantamento das expressÕes de desacordo de Teixeira para sustentar a


sua tese de que este tipo de educaçáo " pode ser muito bom para inglês, não é
para ensinar um fidalgo português..."

Comenta a seguinte passagem:


"- Está uma linda criança! Faz gosto! E parece-se com o pai. Os mesmos olhos,
olhos dos Maias, o cabelo encaracolado... Mas há de ser muito mais homem!
/-
- E são, é rijo - dizia o velho risonho, anediando as barbas."

cPP0BT58-1 1
Capítulo III
(...) D. Ana Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da família, e
eÍa em pontos de doutrina e.de etiqueta uma grande autoridâde em Resende.
A viúva, D. Eugénia, limitava-se a ser uma excelente e pachorrenta senhora, de agra-
dável nutrição, trigueirota e pestanuda; tinha dois filhos, a Teresinha, a noiua de
s Carlos, uma rupariguinha magra e viva com cabelos negros como tinta, e o morgadi-
nho, o Eusebiozinho, uma maravilha muito falada naqueles sítios.
Quase desde o berço este notável menino revelara um edificante amor por
alfarrâbios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e jâ a sua alegria era estar
a um canto, sobre uma esteira, embrulhado num cobefior, folheando infiliost, com
n o craniozinho calvo de sábio curvado sobre as letras ganafais da boa doutrina; e
depois de crescidinho tinha tal propósito que permanecia horas imóvel numa cadei-
ra, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca apetecera um tambor ou uma
armai mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado, entre o pasmo da
mamà e da titi, passava dias a traçar algarismos, com a linguazinha de fora.
rs Assim na famílía tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro
bacharel, e depois desembargador2. Quando vinha a Santa Olâvia, a tia Anica insta-
lava-o logo à mesa, ao pé do candeeiro, a admirar as pinturas de um enorme e rico
volume, Os Costumes de Todos os Pouos do Uniuerso. Já lâ estava essa noite, vestido
como sempre de escocês, com o plaifr de flamejante xadrez vermelho e negro
20 posto a tiracolo e preso ao ombro por uma dragona; (...) nunca lhe tiravam o boné

onde se aÍqueava com heroísmo uma rutilante pena de galo; e nada havia mais
melancólico que a sua facezinha trombuda, a que o excesso de lombrigas dava uma
moleza e uma amarelidào de manteiga, os seus olhinhos vagos e azulados, sem pes-
tanas como se a ciência lhas tivesse já consumido, pasmando com sisudez para as
25 camponesas da Sicília, e pata os guerreiros ferozes do Montenegro apoiados a esco-

petas, em píncaros de serranias. (...)


D. Ana, depois de bocejar de leve, retomou a sua ideia: (...)
E, voltando-se para o Eusebiozinho, que se conservava ao lado dela, quieto
como se fosse de gesso:
30 - Ó filho, diz tu aqui ao Sr. Vilaça aqueles lindos versos que sabes... Não sejas
atado, andaL.. Vá, Eusébio, filho, sê bonito...
Mas o menino, molengão e tristonho, não se descolava das saias da titi: teve ela
de o pôr de pé, amparâ-to, para que o tenro prodígio não aluísse sobre as perninhas
flâcidas; e a mamã prometeu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite
:r com ela...
Isto decidiu-o: abriu a boca, e como duma torneira lassa veio de lá escorrendo.
num fio de voz, um recitativo lento e babujado:

E noite, o a,stro saudoso


Rompe a custo um plúmbeo céu,
40 Tolda-lbe o rosto formoso
Aluacento, búmido ueu...
(págs. 68-76, com slrpressÕú:

L. in-folio: livro. 2. desembargador: luiz (do TribLrnal da Relação ou com assento no Tribunal de Justiça). 3. pla:.;
manta rectangular usada sobre o ombro esquerdo como parÍe da. vestimenta tradtcional escocesa.

l
Módulo E Textos narrativos/descritivos e textos líricos

Gompreender
1. Este excerto é particularmente representativo de algumas características da lingua-
gem e estilo de Eça de Oueirós.
1.1. Assinala, ao longo do texto, três momenio. que a ironia está presente.
",
primeiros parágrafos,
1.2. Faz o levantamento, nos dois de um outro recurso usado
por Eça para evidenciar a debilidade física de Eusebiozinho.

2. Sublinha a passagem em que se mostra que o tipo de educação dada a Eusebiozinho


passa pela deformação da vontade própria através do suborno afectivo.

3. O recurso à memorização está também evidenciado na educação desta personagem.


Encontra, no final do excerto iri iir-:ti , dois recursos estilísticos através dos quais o
narrador ridiculariza este'atrlbuto' de Eusebiozinho,
il Considera, agora, a globalidade dos dois textos extraídos do capítulo lll e compara a
Íigura de Eusebiozinho à de Carlos tendo em conta, entre outros, os seguintes pontos:
aspecto físico; forma de vestir; atitudes e comportamentos; interesses demonstra-
dos/actividades praticadas.

0Íicina de escrita
1. Lê, atentamente, a informaÇão contida no quadro.

Modelos educativos e seus resultados práticos


Personagens
Ca racterísticas Vertentes
Modelo a quem Conseq uências
do modelo educativo dominantes
é aplicado
Trad iciona l, Pedro a protecção dos braços da mãe, que o "amoleciam" inf luência Não encontra
português o refúgio no colo das criadas feminina e solução para a sua
a influência pedagogica escolástica do Padre Vasques religiosa vida: suicida-se
o estímulo do espírito boémio do romantismo FALHA A VIDA

E usebiozin ho desde o berço que mostrava interesse pelo saber desenvolvimento leva uma vida
ainda gatinhava e já gostava de folhear livros e inte lectu a I de devassidão
permanecer imovel livresco FALHA A VIDA
quando crescido, permanecia inactivo numa cadeira
a desenhar letras
recitava versos sem qualquer expressividade

lnglês Carlos dormia so antes dos cinco anos inf luência vida ociosa;
tomava banho em águ a fria todas as manhãs mascu lina, viola as leis
tinha uma dieta alimentar rigorosa desenvolvimento morais ao
podia correr livremente, pular, cair, subir às árvores físico, religião praticar incesto
e moral consciente m ente
secu ndá rias FALHA A VIDA

Quadro in IlrsÍória da Literatura em Portugal, Uma Pe?spectiua Didáctica, vol. 2, Âmélia Pinto PaiS, Areal Ed.

1.Í. Redige um texto expositivo comparando os dois tipos de educação.


I"2. Num texto expositivo-argumentativo (entre 150 e 180 palavras) discute a ver-
dade da afirmação de Jacinto do Prado Coelho: "Carlos não fraquejou por causa
da educação recebida mas apesar da educação recebida."
(questão adaptada do exame de Português A, 1." fase, 1.'chamada. de 1999)
Capítulo rV
(...) Em Coimbra, estudante do Liceu, Carlos deixava os seus compêndios de
lógica e retórica para se ocupar de anatomia: (...)
Esta inesperada carreira de Carlos (pensara-se sempre que ele tomaria capelo
em Direito) era pouco aprovada entre os fiéis amigos de Santa Olâvia. As senhoras
s sobretudo lamentavam que um rupaz que ia crescendo tão formoso, tão l>om cava-
leiro, viesse a estÍagaÍ a vida receitando emplastros, e sujando as mãos no jorro das
sangrias. O doutor juiz de direito confessou mesmo um dia a sua descrença de que
o sr. Carlos da Maia quisesse "ser médico a séio".
- Ora essa! - exclamou Afonso. - E por que não há-de ser médico a sério? Se
ro escolhe uma profissáo é para a exercer com sinceridade e com ambíção, como os
outros. Eu não o educo para vadio, muito menos para amador; educo-o para ser útil
ao seu país...
(.. .)
E o que iustamente seduzia Carlos na medicina era essa vida "a sério", prâtica e
útil, as escadas de doentes galgadas à pressa no fogo de uma vasta clínic4 as exis-
rs tências que se salvam com um golpe de bisturi, as noites veladas à beira de um
leito, entre o terror de uma família, dando grandes batalhas à morte. Como em
pequeno o tinham encantado as formas pitorescas das vísceras - aÍraíam-no agora
estes lados militantes e heróicos da ciência.
Matriculou-se realmente com entusiasmo. Para esses longos anos de quieto
zo estudo o avô preparara-lhe uma linda casa em Celas, isolada, com graças de cottage
inglês, ornada de persianas verdes, toda fresca entre as árvores. Um amigo de Cados
(um certo João da Ega) pôs-lhe o nome de "Paços de Celas", por causa de luxos
então raros na Academia, um tapete na sala, poltronas de marroquiml, panóplias2 de
armas, e um escudeiro de libré.
2s Ao princípio este esplendor tornou Cados venerado dos fidalgotes, mas suspeito
aos democratas; quando se soube porém que o dono destes confortos lia Proudhon,
Augusto Comte, Herbert Spenceq e considerava também o país uma cboldra ignóbil
- os mais rígidos revolucionários começaram a vir aos Paços de Celas tào famlliar-
mente como ao quarto do Trovão, o poeta boémio, o duro socialista, que tinha ape-
3c nas por mobília uma enxerga e urrraBíblia.
Ao fim de alguns meses, Carlos, simpático a todos, conciliara dandie§ e filó-
sofos: (...)
Os Paços de Celas, sob a sua aparência preguiçosa e campestre, tornaram-se
uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma ginástica científica. Uma velha
r cozinha fora convertida em sala de aÍmas - porque naquele grupo a esgrima passa-
va como uma necessidade social. À noite, na sala de jantar, moços sérios faziam um
u,bisf sério: e no salão, sob o lustre de cristal, com o Fígaro, o Times e as revistas
de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocando Chopin
ot MozarÍ, os literatos estirados pelas poltronas -havia ruidosos e ardentes cavacos,
.rc em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismark, o

Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flameiava no fumo do tabaco, tudo
tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussões metafísicas, as próprias ceÍtezas
revolucionárias adquiriam um sabor mais requintado com a presença do criado de
farda desarrolhando a ceweja, ou servindo croquetes.
Módulo EI Textos narrativos/descritivos e textos líricos

45 Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas,
os seus expositores de medicina. A Literatura e a Arte, sob todas as formas, absorve-
ram-no deliciosamente. Publicou sonetos no Instituto - e um artigo sobre o
Pártenon: tentou, num atelier improvisado, a pintura a óleo: e compôs contos
arqueológicos, sob a influência da Salammbó. Além disso, todas as tardes passeava
os seus dois cavalos. No segundo ano levaria um R se não fosse tão conhecido e
rico. Tremeu, pensando no desgosto do avô: moderou a dissipação intelectual, acan-
toou-se mais na ciência que escolhera: imediatamente lhe deram um accessits. Mas
tinha nas veias o veneno do diletantismo6: e estava destinado, como dizia Joào da
Ega, a ser um desses médicos literários que inventam doenças de que a humanidade
papalva se presta logo a morrer!
(págs. 88-90, com supressões)

l. rnarroquim: coúto. 2. panóplia: colecção de armas exíbidas numa parede com função decomtiva. 3. dandie
(dândi): indivíduo que se veste com elegância e requinte. 4. wbist: jogo de cartas. 5. accessit: aprovaçào.6. dile-
tantismo dedicação a uma arte ou ofício exclusivamente por pr^zeÍ; tm diletante é aquele que pratica uma arte
ou um ofício como um pâssatempo e não como um meio de vida.

Gompreender
Por que rczão a opção de Carlos pela medicina " era WUco aprovada entre os fiéis ami-
gos de Santa Olávia." $.qt?

Encontra, no excerto, indícios de que a dúvida do doutor juiz de direito em relação à


seriedade da escolha profissional de Carlos tem fundamento.

Relê as páginas 128 e 129 de Os Maias e explica de que forma o diletantismo de Carlos
e o seu comportamento dispersivo o levam à frustração das suas potencialidades.

Relaciona os três grandes espaços a seguir mencionados com as três fases da vida
do prolagonista, Carlos da Maia:

Coimbra lntegraÇão social


Lisboa Juventude e formação académica
Santa Olávia lnfância e educaÇão

Zona antlga cla cidade de Coimbra Paisagem do Douro, in Visão, 74-09-2A06


A cronica de custuÍnss B a intriga printipnl
-
Capítulos Vl a XVll l.i
Íi
d
()
" (...) Entravam entáo no peristilo do Hotel Central - e nesse momento um coupé da Companhia, \c)
li

chegando a largo trote (...) veio estacar à porta. 4


Um esplêndido preto, já grisalho (...), correu logo à poftinhola; (...) um rapaz (...) apeando-se, indolente
e poseur, ofereceu a mão a uma senhora alta, loira, com um meio véu muito apeftado e muito escuro N
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(..). Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles com um passo soberano de deusa, (.. .)" ui

\.J

iu
L

+J
\u

Jantar do Hotel Central , : primeiro Carlos vê Maria Eduarda pela primeiravez U


l-i

grande contacto de Carlos com a sociedade {gr;tg. §S§}i U


lisboeta, num jantar organizado por Ega que
reúne um grupo de 'rapazes' - Alencar,
Dâmaso, Craft, Cohen, entre outros - onde se
discutem temas como a literatura e crítica
I ite rá ri a ( Rea is mo/Natu ra ismo, representado
I I

por Ega , versLts Ultra-romantismo, representado


por Alencar), a decadência nacional (assumida
por Ega que defende medidas extremas para
despertar a consciência nacional - a bancarrota
e a invasão espanhola) e finanças (cinicamente
comentadas pelo banqueiro Cohen).
Corridas no hipodromo : através Carlos procura Maria Eduarda no Aterro
deste episodio e-nos dada uma visão caricatural em Sintra {pmg1s"ãSâ-tr4§}, e no
{pmfg*.âff§-§#4, ã4§},
da sociedade lisboeta, criticando-se a imitação hipódromo {p*9, S§ã}
rnadequada de modas estrangeiras que dão a
todo o evento um ar de provincianismo snob. Carlos conhece Maria Eduarda na casa da
É o retrato da sociedade lisboeta que Ega Rua de S. Francisco ip*s. $êS1
pretende traçar na sua comedia com o
significativo título " O LodaÇal".

Jantar nos Gouvarinhos :neste Declaração de Carlos a Maria Eduarda {p*tx. S#*}
jantal onde estão presentes, entre outros,
Carlos, Ega, Sousa Neto e os condes de
Gouvarinho, critica-se o atraso intelectual do
país e a falta de cultura dos responsáveis
pelos destinos nacionais e debate-se a
educação das mu lheres; nas palavras
sarcástrcas de Ega, a mulher tinha apenas dois
deveres'. " (...) primeiro ser bela, e depois ser
estúpida. .." , ' e duas prendas " (. ..)

Episodios da " Corneta do Diabo" Consumação do incesto ia:;*fS. S$*i


e de " A Tarde" ',, ,. , ', ,, ,. : Carlos e Ega,
Encontro casual de Maria Eduarda
"
a troco de cem mil reis", compram a Palma
"Cavalão", director da " Corneta do Diabo" , com Guimarães ip*g. §3}i
a informação acerca do autor de uma carta
injuriosa sobre Carlos e Maria Eduarda que tinha
sido aí publicada; a vingança vai ser feita através
da publicação, no jornal " A Tarde", de uma carta
onde Dâmaso, o autor das injúrias, se retrata.
Neves, o director deste jornal, que e deputado,
político, acede a publicar esta carta para pagar
favores pessoais. Através destes dois episodios,
critica-se a decadência do jornalismo
português e a corrupção dos jornalistas.

{ecfitÍnfta na pá9. *eguint*}


Módulo EI Textos narrativos/descritivos e textos líricos

{cçntinuação da pág. anteriar}

Sarau literário do Teatro da Trindade Revelações de Guimarães a Ega : ,

:neSteepisodio,ondeVamoSenContrarRevelaçÕeSdeEgaaCarlos
Ega, Carlos, Cruges, RuÍino e Alencar, entre Revelaçóes de Carlos a Afonso ,: ..- ::,; .

outros, dá-se conta do gosto convencional e


vv Lr vv, vv 9v vvr r Lv vv
vvglv
vvl r v va rvrvr

retrógrado da alta burguesia e da aristocracia lncesto consciente : :

portuguesas, critica-sê a oratória balofa, a


retórica fácil e os excessos do Ultra- Encontro de Carlos com Afonso
-romantismo.
Morte de Afonso ipi*g;. *i§#i

Revelações de Ega a Maria Eduarda {pi*gs. s§§


n ss4l
Partida de Maria Eduarda {pá9.68?}

CapítuloYI
(. ..)
Entravam então no peristilo do Hotel Central - e nesse momento tm coupé da
Companhia, chegando a largo trote do lado da Rua do Arsenal, veio estacar à porta.
Um esplêndido preto, já grisalho, de casaca e calção, correu logo à portinhola;
de dentro um rapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os braços
5 uma deliciosa cadelinha escocesa, de pelos esguedelhados, finos como seda e cor
de praÍa; depois apeando-se, indolente e poseur, ofereceu a mão a uma senhora
alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplen-
dor da sua carnação ebúrnea. Craft e Cados afastaram-se, ela passou diante deles,
com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si
10 como uma claridade, um reflexo de cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia um

casaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre as lajes do peris-


tilo brilhou o verniz das suas botinas. O rapaz ao lado, esücado num fato de xadre-
zinho inglês, abria negligentemente um telegrama; o preto seguia com a cadelinha
nos braços. E no silêncio a voz de Craft murmurou:
ls - Tràs chic.
Em cima, no gabinete que o criado thes indicou, Ega esperava, sentado no divã
de marroquim, e conversando com tm rapaz baixote, gordo, frisado como um noivo
de província, de camélia ao peito e plastrão azul celeste. O Craft conhecia-o; Ega
apresentou a Carlos o sr. Dâmaso Salcede, e mandou seryir vermute, por ser tarde,
zo segundo lhe parecia, para esse requinte literário e satânico do absinto...

Fora um dia de Inverno suave e luminoso, as duas janelas estavam ainda aber-
tas. Sobre o rio, no céu largo, a tatde morria, sem uma arageml numa paz elísia,
com nuvenzinhas muito altas, paradas, tocadas de cor-de-rosa; as terras, os longes
da outra banda jâ se iam afogando num vapor aveludado, do tom de violeta; a âgoa
zs jazia lisa e luzidia como uma bela chapa de aço novo; e aqui e além, pelo vasto

ancoradouro, grossos navios de carga, longos paquetes estrangeiros, dois couraça-


dos ingleses, dormiam, com as mastreações imóveis, como tomados de preguiça,
cedendo ao afago do clima doce...
- Vimos agora lâ em baixo - disse Craft indo sentar-se no divã - uma esplêndida
m mulher, com uma esplêndida cadelinha griffon, e servida por um esplêndido preto!
o sr. Dâmaso Salcede, que não despegava os olhos de carlos, acudiu logo:
Bem sei! Os Castro Gomes... Conheço-os muito... Vim com eles de Bordéus...
-
Uma gente muito chique que vive em Paris.
Caflos voltou-se, reparou mais nele, perguntou-lhe, afável e interessando-se:
3E - O senhor Salcede chegou ãgota de Bordéus?
EsÍas palavras pareceram deleitar Dâmaso como um favor celeste: ergueu-se
imediatamente, aproximou-se do Maia, banhado num sorriso:
- vim aqui hâ qutnze dias, no orenoque. vim de Paris... Que eu em podendo é
lá que me pilhaml Esta gente conheci-a em Bordéus. Isto é, verdadeiramente conhe-
n cia a bordo. Mas estávamos todos no Hotel de Nantes. Gente muito chique: criado
de quarto, governanta inglesa para a filhita, femme de cbambre, mais de vinte
malas... Chique a valert Parece incrível, uns brasileiros... Que ela tta voz nào Íem
sotaque nenhum, fala como nós. Ele sim, ele muito sotâque... Mas elegante também,
Vossa Excelência não lhe pareceu?
4s - Vermute? - perguntou-lhe o criado, oferecendo a salva.
- Sim, uma gotinha para o apetite. vossa Excelência não toma, sr. Maia? Pois eu,
assim que posso, é direitinho para Paris! Aquilo é que é terra! Isto aqui é um chi-
queiro... Eu, em não indo lá todos os anos, acredite Vossa Excelência, até começo a
andar doente. Aquele Boulevarzinho, hem!... Âi, eu gozo aquilo! E sei gozat, sei
n gozar, que eu conheço aquilo a palmo... Tenhoaté um tio em Paris.

- E que tio! - exclamou Ega, aproximando-se. - Íntimo de Gambetta, goYerÍrLa a

França... O tio do Dâmaso govema aFrarrça, menino! (...)


(págs. 756-758, com supressões)

Gompreender
1. lndica o assunto do texto e mostra que o seu desenvolvimento em partes lógicas
corresponde à focal ização sucessiva de espaços diferentes.

"- O senhor Salcede chegou agora de Bordéus7' lt.ss't


Explica por que razão esta pergunta de Carlos pÕe em evidência a sua elegância de
maneiras.

Duas personagens de Os Maias estão aqui em evidência: Maria Eduarda e Dâmaso


Salcede.

3.1. Prova que Maria Eduarda é caraclerizada directa e indirectamente.

3.2. Demonstra que a caracterização directa de Dâmaso é confirmada por muitos


pormefiores de caracterização indirecta.

4. Relê, no texto, a descrição de uma paisagem {11.21-28}.

4.1. Assinala os recursos que contribuem para a expressividade daquela descrição


(sensações, figuras de estilo, tempos verbais...).

5, Póe em evidência a linguagem e os recursos estilísticos mais marcantes de Eça pre-


sentes neste excerto.
,wjj,,-

Módulo E Textos narrativos/descritivos e textos líricos

CapítuloYI
(...)
Então, (...) Cohen condescendeu em dize4 no tom mais suave da sua voz, que
o país necessitava reformas...
Ega, porém, incorrigível nesse dia, soltou outra enormidade:
- Pornrgal não necessita reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão
espanhola.
Alencar, paúiota à antiga, indignou-se. O Cohen, com aquele sorriso indulgen-
te de homem superior que lhe mostrava os bonitos dentes, viu ali apeÍ]as "um dos
paradoxos do nosso Ega". Mas o Ega falava com seriedade, cheio de razões.
Evidentemente, dizia ele, invasão não significa perda absoluta de independência.
10 (...) Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só
trago, por um país que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguém
consentiria em deixar cair nas mãos de Espanha, naçào militar e marítima, esta
bela linha de costa de Portugal. Sem contar as alianças que teríamos a troco das
colónias - das colónias que só nos seryem, como a prata de família aos morgados
15 arruinados, para ir empenhando em casos de crise... Não havia perigo; o que nos

i-l

Gravura de Bernardo Marques, Uma cena de Os Maias - ao centro, João da Ega


aconteceria, dada uma invasão, num momento de guerra europeia, seria levarmos
uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnização, perdermos uma ou duas
províncias, ver Íalvez a Galiza estendida até. ao Douro...
- Poulet aux cbarnpignons - murmurou o criado, apresentando-lhe a travessa.
zo E enquanto ele se servia, pergsntayamJhe dos lados onde via ele a saluação do
país, nessa catástrofe que tornaria povoação espanhola Celorico de Basto, a nobre
Celorico, berço de heróis, berço dos Egas...
- Nisto: no ressuscitar do espírito público e do génio português! Sovados, humi-
thados, arrasados, escalavrados, tínhamos de fazer um esforço desesperado para
zs viver. E em que bela situação nos achávamos! Sem monarquia, sem essa catewa de
políticos, sem esse tortulho da inscrição, porque tudo desaparecia, estâvamos novos
em folha, limpos, escarolados, como se nunca tivéssemos servido. E recomeçava-se
uma história nova, um outro Portugal, um Portugal sério e inteligente, forte e decen-
te, estudando, pensando, fazendo civilização como outrora... Meninos, nada regene-
30 ra uma nação como uma medonha tareia... Oh! Deus de Ourique, manda-nos o cas-

telhano! E você, Cohen, passe-me o St. Emilion'. (...)


Ega rugiu. Para quem estavam eles fazendo essa pose heróica? Então ignoravam
que esta raça, depois de cinquenta anos de constitucionalismo, criada por esses
saguões da Baixa, educada na piolhice dos liceus, roída de sífilis, apodrecida no
ss bolor das secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o
músculo como perdera o carâcter, e era a mais fraca, a mais covarde ruça da
Europa?...
- Isso são os lisboetas - disse Craft.
-Lisboa é Portugal - gritou o outro. - Fora de Lisboa não hâ nada. O país estâ
qo todo entre a Arcada e S. Bento!...

(. ..)
(págs. 767-170, com supressões)

L. .t . Emilion: vinho francês.

Gompreender
1. Atenta na fala de Ega contida entre as linhas 23 e 31 ("- Nisto: (...) St. Emilion."l

1.1. Encontra, neste segmento:


. uma gradação;
. um exemplo de utilizaçáo expressiva do adjectivo.

t.2. Explica, por palavras tuas, a teoria de Ega acerca das vantagens da " invasão
espanhola."

2. Faz o levantamento das passagens textuais que provam que os outros convivas não
estavam de acordo com a teoria de Ega.

3. Oue traços da personalidade de Ega estão em evidência neste excerto?


Módulo f,I Textos narrativos/descritÍvos e textos líricos

0ficina de escrita
1. Resume o texto a seguir transcrito, que tem duzentas e noventa e cinco palavras,
reduzindo-o a cerca de um quarto do seu tamanho original (entre oitenta e noventa
palavras).

À te fitaÇáo iberista Íra, históúa das cluas fiaÇóes


A nostalgia da Hispânia tem sido um tema recorrente
nos meios intelectuais portugueses. Camões e Gil Vicente
deixarum obra em castelhano e, durante o período dos
Filipes (1580-1640), autores portugueses como António de
.. !.. .: .. .rr.. , ,

Sousa de Macedo e Duarte Gomes Solis defendeÍam quer a


tntegraçáo quer a autonomia do rectângulo lusitano dentro ill"i'1\i.1,
de uma unidade política peninsular. Depois da Restauraçáo 1.,1 i q I','-{

de 1640 os dois países seguiram uma política de costas vol- #"


tadas. Na sequência das revoluções liberais de LB20 nos Ir- it, .i a:.
#*v
dois países falou-se, pela primeira vez, numa "Federaçáo
Ibéríca", mas Manuel Fernandes Tomás opôs-se de forma
in www. geocities. com/rod-centurion/hisp ania.jp g
decisiva às propostas do coronel espanhol Barrero.
Em 1868, quando Isabel II foi obrigada a abdíca\ a coroa de Espanha foi oferecida a
D. Femando, pai do rei D. Luís de Portugal. Ciente da confusão que o esperava, recusou.
Na segunda metade do século XD(, a corrente federalista ganhou força entre os intelectuais
socialistas e republicanos, como Latino Coelho, Antero de Quental, Teófilo Btaga e
Magalhães Lima. Oliveira Martins avisou: "A união ibérica não é actualmente o programa de
nenhum dos partidos espanhóis mas é o iÍrstinto de todos." Após o regicídio, em 1908, e
sobretudo depois da implantação da República, Afonso )([II tentou por diversas formas
intervir em Porhrgal. Durante a Guerra Civil espanhola, Salazar agitou o fantasma da união
ibérica sob a égide do comunismo - mas era um sector da Falange, chefiado pelo cunhado
de Franco, Serrano Suf,er, que acalentava deseios expansionistas na península. O apego a
Portugal de pensadores espanhóis como Unamuno e Ortega y Gassett (que cá.esteve exila-
do), a permanência em Madrid de Almada Negreiros e, mais recentemente, o reconhecimen-
to da obra de Femando Pessoa nos meios culnrrais espanhóis, além do "exílio" de Saramago
emLanzarote dão conta da aproximaçáo gradual entre intelectuais dos dois países.

Joáo Ferreira, rn DN online, 16 de Julho de 2007

l. A actualidade da crítica social é uma das qualidades mais evidenciadas quando se


fala da obra de Eça de Oueirós.
A prová-lo estão, por exemplo, as afirmações que se seguem feitas por Ega:
"
- Lisboa é Portugal - gritou o outro. - Fora de Lisboa não há nada. O país está todo
entre a Arcada e S. Bento!..." {ll" 39-{0}

De facto, é frequente, nos nossos dias, ouvirmos afirmaçóes semelhantes.

1.1, Relembrando a técnica do debate, discute, com os teus colegas, a pertinência


destas palavras.
Capítulo xII
(.)
Uma onda de sangue cobriu toda a
face de Maria Eduarda.
- Não diga isso...
- E que necessidade há que eu tho
s dtga? Pois não sabe perfeitamente que a
adoro, que a adoro, que a adoro!
Ela ergueu-se bruscamente, ele
também e assim ficaram, mudos,
cheios de ansiedade, trespassando-se
'r0 com os olhos, como se se tivesse feito
'!
&*
uma grande alteraçã,o no Universo, e

ffiffi eles esperassem, suspensos, o desfecho


supremo dos seus destinos... E foi ela
que falou, a custo, quase desfalecida,
15 estendendo para ele, como se o quises-

ffi se afastar, as mãos inquietas e trémulas:


- Escute! Sabe bem o que eu sinto

W w
H* z0
por si, mas escute... Antes que seja tarde,
hâ uma coisa que lhe quero dizer...
Carlos vLa-a assim tremeq vta-a toda
pâlida... E nem a escutara, nem a com-
.F: : :-'.. :
preendera. Sentia apenas, num deslum-
o amor comprimido até
:::i- ::: r:+.r1.r' . .l
f a.:

bramento, que
ii
:,.11,r:.,1i:1r!:J!li:' : :,.: f: ri,l
:ii: il;:_ii:riri:1t!: i:i :

-:;.t+ r,,,, l: , .. ,

aí no seu coraçã,o irromp eta por fim,


x triunfante, e embatendo no coraçã.o
dela, através do aparente mármore do
Joana Vasconcclos, Coração htdepen dente
seu peito , ftzeta de lá ressaltar uma
chama igual... Só via que ela tremia, só via que ela o amava... E, com a gravidade
forte de um acto de posse, tomoulhe lentamente as mãos, que ela lhe abandonou
g0 submissa de repente, já sem força, e vencida. E beijava-lhas ora uma, ora outra, e as

palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas:


- Meu amor! meu amor! meu amor!
Maria Eduarda caka pouco a pouco sobre a cadeia; e, sem tethar as mãos,
erguendo para ele os olhos cheios de paixão, enevoados de lágrimas, balbuciou
x aínda, debilmente, numa derradeira suplicação:
-Há uma coisa que eu lhe queria dizei...
Carlos esiava jâ ajoelhado aos seus pés.
- Eu sei o que é! - exclamou, ardentemente, junto do rosto dela, sem a deixar
falar mais, certo de que adivinhara o seu pensamento. - Escusa de dizer, sei per-
m feitamente. É o que eu tenho pensado tantas vezest É que um amor como o nosso
não pode viver nas condições em que vivem outros amores vulgares... É que
desde que eu lhe digo que a amo, é como se the pedisse para ser minha esposa
diante de Deus...
Hloduto EI Ter*os narrativosldescritivos e textos tÍricos

Ela recuava o rosto, olhando-o angustiosamente, e como se não compreendes-


se. Carlos continuava mais baixo, com as mãos dela presas, penetrando-a Íoda da
E
emoção qtue o fazia tremer:
- Sempre que pensava em si, era jâ com esta esperança de uma existência toda
nossa, longe daqui, longe de todos, tendo qüebrado todos os laços presentes, pondo
a nossa patxào acima de todas as ficçôes humanas, indo ser felizes para algum canto
do mundo, solitariamente e paÍa sempre... Levamos Rosa, está claro, sei que se não
pode separar dela... E assim üverízmos sós, todos três, num encanto!
- Meu Deus! Fugirmos? - murmurou ela, assombrada.
Carlos erguera-se.
E qLre podemos fazer? Que outra coisa podemos nós faze4 drgna do nosso
amof?
()
- Mas conhece-me tão pouco!... Conhece-me tão pouco, para irmos assim
ambos, quebrando por tudo, criar um destino que é irreparável...
Carlos tomou-lhe as mãos, fazendo-a sentar ao seu lado, braadamente:
- O bastante para a adorar acima de tudo, e sem querer mais nada na vidal
(...)
(págs. 409-411, com supressões)

Compreender
T. Neste excerto sobressai, essencialmente, o diálogo entre Carlos Eduardo da Maia e
Maria Eduarda.

l.l. Prova que o estado de espírito de ambos não é semelhante, baseando-te nas pala-
vras que pronunciam e na forma como o Íazem, explicitada através da pontuação.

1.2. Explica o sentido da seguinte aÍirmação de Carlos:


"É que um amor como o nosso não pode viver nas condiçoespm que vivem
outros amores vulgares..." {ll. 4í}4t}

2. Por duas vezes, Maria Eduarda tenta dizer alguma coisa a Carlos, mas ele, no seu
arrebatamento, quase não a escuta.

2.t. Oue revelação queria Maria Eduarda fazer?

3. Assinala no texto as passagens que mostram que os movimentos corporais das duas
personagens são fundamentais para interpretar o desenrolar dos acontecimentos.

{. Salienta a expressividade de três verbos introdutores de relato de discurso.

5. Passa para o discurso indirecto a seguinte fala de Carlos:


"- Eu sei o que é! - exclamou, ardentemente, junto do rosto deia, sem a deixar falar
mais, certo de que adivinhara o seu pensamento. - Escusa de dizer; sei perfeitamente.
É o que eu tenho pensado tantas vezes! É que um amor como o nosso não pode viver
nas condições em que vivem outros amores vulgares... É que desde que eu lhe digo
que a amo, é como se lhe pedisse para ser minha esposa diante de Deus..." {lt.3s-{31
Capítulo )nru
()
Passavam à porta do
Hotel Aliança quando Ega sentiu
alguém que se apress ava, chamat atrá,s: "Ó sr. Egal Vossa
Excelência faz favot, sr. Ega?..." Parou, reconheceu o chapéu
recurvo, as barbas brancas do sr. Guimarães.
ri - Vossa ExcelêÍtcta desculpe! - exclamou o demagogo
esbaforido. Mas vi-o descer, queria dar-lhe duas pala-
vras, e como me vou embora amanhã...
Perfeitamente.. . Ó Cruges, var andando, jâ te
apanho!
10 O maestro estacionou à esquina do Chiado.
O sr. Guimarães pedia de novo desculpa. De resto
etaÍn duas curtas palavtas...
- Vossa Excelêflcra, segundo me disseram, é
o grande amigo do sr. Carlos da Maia... São
1rr como irmãos...
- Sim, muito amigos...
A rua estava deserta, com alguns garotos
apenas à pofia alumrada da Trindade. Na
noite escura a alta fachada do Aliança lan-
70 Çava sobre eles uma sombra maior.

Todavra o Sr. Guimarães baixou a yoz


cautelosa:
Aqui estâ o que é... Vossa
Excelêncra sabe, ou talvez náo saiba,
'ltt que eu fui em Paris íntimo da mãe
do sr. Carlos da Maia. .. Vossa
Excelência tem pressa, e náo vem
agora a propósito essa história.
Basta drzer que aqui há, anos
3o ela entregou-me, paru eu guar-
Giorgio de Chirico, Enigma da Fatalidade, 7974 dat, um cofre que, segundo
drzra, continha papéis im-
portantes... Depois, naturalmente, ambos tivemos muitas outras coisas em que pen-
sar, os anos cofi:eram, ela morreu. Numa palavra, porque Vossa Excelência está com
35 pressa: eu conservo ainda em meu poder esse depósito, e trouxe-o por acaso quan-

do vim a Portugal por negócios da herança de meu irmão... Ora hoje justamente, ali
no teatro, comecei a reflectir que o melhor era entregâ-Lo à famllía...
(...)
Então o sr. Guimarães, à pressa, resumiu o pedido. Como sabia a intimidade do
sr. João da Ega e de Carlos da Maia, lembrara-se de lhe enffegar o cofrezinho para
40 que ele o restituísse à famflia...

- Perfeitamente! - acudiu Ega. - Eu estou mesmo em casa dos Maias, no


Ramalbete.
Módulo EI Textos narrativos/descritivos e textos líricos

Ah, muito bem! Então Vossa Excelência manda um criado de confiança ama-
-
nhã buscáJo... Eu estou no lfotul Paris, no Pelourinho. Ou melhor ainda: levoJho
eu, não me dá incómodo nenhum, apesar de ser dia de partida...
- Não, não, eu mando um criado! - insistiu o Ega, estendendo a máo ao
democrata.
Ele estreitou-lha com calor.
Muito agradecido a Vossa Excelência! Eu junto-lhe então um bilhete e Vossa
-
Excelência entrega-o da minha paÍte ao Carlos da Maia, ou à irmã.
Ega teve um movimento de espanto:
- À irmã!... A que irmã?
O sr. Guimarães considerou Ega também com assombro. E abandonando-lhe
lentamente a mào:
- A que irmã!? A irmã dele, à única que tem, à Marial
(...)
- Eu parece-me - dizia o Ega sorrindo, mas nervoso - que nós estamos aqui a
enrodilhar-nos num equívoco... Eu conheço o Maia desde pequeno, vivo até agora
em casa dele, posso afiançar-lhe que não tem irmã nenhuma...
(...)
(págs. 673-675, com slrpressões)

Compreender

1. Neste romance de Eça de Oueirós, encontramos uma grande afinidade temática da


intriga do romance com o universo da tragédia.
Lê o texto da página 187 ('Os Maias- uma acção trágica") e responde às questóes
a seguir formuladas.

1.1. Explica por que razão podemos afirmar que neste excerto nos encontramos
num momento determinante da tragédia que se abateu sobre a família Maia.

1.2. Oue papel cabe a Guimarães nesta tragédia?

Até determinada altura, a atitude de Ega para com Guimarães é de cordialidade.

2.1. Faz o levantamento das expressÕes que o provam.

2.2. ldentifica o momento em que a atitude de Ega muda radicalmente.

2.1. Diz o que está na origem dessa alteração de comportamento.

3. lnterpreta as palavras de Ega :


" - Eu parece-me (...) que nós estamos aqui a enrodilhar-nos num equÍvoco..." {11.56-5?}

4. Recorda a leitura que fizeste da obra e responde:


a. Oue acontecimento da vida dos Maias está na origem de todo este 'equívoco'?

b. De que forma as diversas personagens - Ega, Carlos, Maria Eduarda, Afonso da


Maia - vão reagir a esta revelação?
Capítulo XVlll +r
í<

(,
" Nos fins de 1886, Carlos (...) escreveu para Lísboa ao Ega anunciando que, depois de um exílio de \O
Li

quase dez anos, resolvera vir ao velho Portugal, (. ..) Havia trés anos (desde a sua últíma estada em \
Paris) que ele não via Carlos. (...)" ,, ,, , ", ()

;
\u
tb
Após o regresso a Lisboa, Carlos faz com Ega, uma " romagem sagrada", passando pelo Largo de a.)
!,)
Camóes onde " (...) Nada mudara. A mesma sentinela sonolenta rondava em torno à estátua triste \u
t<

de Camõea Os mesmos reposteiros (...) O Hotel Aliança conservava o mesmo ar mudo e deserto. i-)
\u

( ,)" , pelo Chiado " (...) E Carlos reconhecia, encostados às mesmas portas, sujeitos que
U
t-

lá deixara havia dez anos,'iá assim encostados, já assim melancólicos. finham rugas, tinham U

brancas. (...)" , pela Avenida onde'. " Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagaí
(...) Era toda uma geração nova e miúda que Carlos não conhecia (...)" e pelo Rossio.
Chegam, Íinalmente, ao Ramalhete: " (.. ) Com que comoçáo Carlos avistou a fachada severa do
Ramalhete. " que era, agora, um " casarão deserto" onde " os móveis de brocado, cor
de musgo, estavam embrulhados em lençóis de algodão, como amortalhados, exalando um cheiro de
múmia (,,,)" )?) e " (,..) uma ferrugem verde, de humidade, cobria os grossos membros da

Vénus Citereia; o cipreste e o cedro envelheciam juntos, como dois amigos num ermo í.../" (pá9. ,l0l
Este passeio é simbólico: tudo está, na sua essência, como há dez anos atrás; no entanto, a
degradaçáo de Lisboa e de Portugal, simbolizada no Ramalhete em ruÍnas, tinha-se instalado.

A exclamação de Ega " - Falhámos a vida, menino!" dá-nos conta que o percurso de vida
do ser humano é determinado por causas que lhe são totalmente alheias. Assim, Carlos estabelece
a sua " teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o govemava. Era o
fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um
desapontamento. Tudo aceitaL o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as
naturais mudançs de dias agrestes e de dias suaves. L . ) E, mais que tudo, não ier contrariedades."
(pág.7Í5)
O fatalismo aqui presente, que parte da ideia que o ser humano não tem capacidade para fugir ao que
lhe está destinado, contraría as teses naturalistas que assentam na primazia dos factos observados e
experimentados e nas relaçóes de causa-efeito que lhes estão associadas:
" (...) Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só
pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexÍvel, secos,
hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim... (...)".\pág.nal

Capítulo )ilruIl
(.)
]--
Entraram no quarto. Ytlaça, na suposLçã,o de N
o\
Carlos vir para o Ramalbete, mandata-o prepara\ e t"
\)
todo ele rcgeLava com o mármore das cómodas ct
espane jado e vazto, rrma veLa tntacta num castiçal
solitário, a colcha de fustão vincada de dobras sobre
\
ê
§

o leito sem cortinados. Carlos pousou o chapéu e a \


bengala em cima da sua antLga mesa de trabalho. U

Depois, como dando um resurrro:


E aqui tens tu a vrda, meu Ega! Irleste quarto,
10 durante noites, sofri a cetteza de que tudo no mundo i&

acabara para mim... Pensei em me matat. Pensei em


Módulo EI Textos narrativos/descritivos e textos líricos

ir para a Trapal. E tudo isto friamente, como uma conclusào lógica. Por fim, dez
anos passaram, e aqui estou outra vez...
(...)
Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se enteffaÍa, se, nesses últimos
15 anos, ele não tivera a ideia, o vago desejo de voltar para Portugal...

Carlos considerou Ega com espanto. Para quê? Para arrastar os passos tristes
desde o Grémio até à Casa Havanesa? Não! Paris era o único lugar da Terra congé-
nere com o tipo definitivo em que ele se fixara: "o homem rico que vive bem".
Passeio a cavalo no Bois; almoço no Bignon; uma volta pelo bouleuard; uma hora
zo no clube com os jornais; um bocado de florete ra sala de armas; à noite a Comédie

Française ou uma soirée; Trouville no Verão, alguns tiros às lebres no Inverno; e


através do ano as mulheres, as corridas, certo interesse pela ciência, o bricabraque, e
uma pouca de blague. Nada mais inofensivo, mais nulo, e mais agtadâvel.
- E aqui tens tu uma existência de homem! Em dez anos não me tem sucedido
zs nada, a não ser quando se me quebrou o faetonte na esffada de Saint-Cloud... Vim
no Figaro.
Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
- Falhámos a vida, menino!
- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se
s0 sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginaçáo. Diz-se: "Vou ser

assim, porque a beleza está em ser assim." E nunca se é assim, é-se invariavelmente
ASSado, como dizia o pobre marquês. Às vezes melhor, mas sempre diferente.
(...)
Uma comoção passouJhe na alma, murmurou, travando do braço do Ega:
- É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a
ss minha vida inteiral
Ega não se admirava. Só ali, no Ramalbete, ele vivera realmente daquilo que dá
sabor e relevo à vida - a paíxão.
- Muitas outras coisas dão valor à vida... Isso é uma velha ideia de romântico,
meu Ega!
40 - E que somos nós? - exclamou Ega. - Que temos nós sido desde o colégio,
desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam
na vida pelo sentimento e não pela razão...
Mas Cados queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se
dirigiam só pela tazão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter
4s na sua linha inflexíveI, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...

- Creio que não - disse o Ega. - Por fora, à vista, são desconsoladores. E por
dentro, para eles mesmos, sào talvez desconsolados. O que prova que neste lindo
mundo ou tem de se ser insensato ou sem sabor...
- Resumo: nãovale a pena viver...
s0 - Depende inteiramente do estômago! - atalhou Ega.
Riram ambos. Depois Carlos, ouúa vez sério, deu a sua teoria da vída, a teoria
definitiva que ele deduzira da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo
muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança -
nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquili-
rs dade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E,
deixar esse pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se

:::,:,,rr.taez,
ffitüp"*

ih

l'

1,,,1

*ry{.''

Os "Carros americanos" no Aterro

deteriorando e decompon do até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobre-


tudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses
60 estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um
passo para alcançar coisa alguma na Terra porque tudo se resolve, como já ensinara
o sábio do Ecclesiastes, em desilusão e poeira.
- Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilis
ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para 1:
65 corresse, eu não apressava o passo... Não! Não saía deste passinho lento, prudente.
correcto, seguro, que é o único que se deve Íer navida.
- Nem eu! - acudiu Carlos com uma convicção decisiva.
E ambos retardaram o passo, descendo para a Rampa de Santos, como se aque-
le fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrarem ao fir:--
desilusão e poeira, não devessem jamais avar,çaÍ senão com lentidão e desdém. _T:.
avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesr:
de contrariedade:
- Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de ma:.-
dar fazer hoje, para o jantar, um grande prato de paio com ervilhas.
E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até aí esquecido em memól,,
do passado e sínteses da existência, pareceu ter inesperadamente consciência *
noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram se:. =
um quarto!
- Oh, diabo!... E eu que disse ao Vilaça e aos Íapazes para estarer: :.
Bragança, pontualmente, às seis! Não aparecer por aí uma tipóia!...
Módulo EI Textos narrativos/descritivos e textos líricos

Espera! - exclamou Ega.-Lâvem um americano2, ainda o apanhamos.


-
- Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Cados, que arrojara o charuto,
ia dizendo na aragem Íina e fna que thes coÍtava a face:
tlt:t
- Que raiva Íer esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos
a Íeoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr
com ânsia para coisa alguma...
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
- Nem para o amor, nem para a glóia, nem para o dinheiro, nem para o
poder...
A lanterna vermelha do americano, ao longe, no escuro, p rara. E foi em Carlos e
emJoão daEga uma esperança, outro esforço:
- Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o americano, os dois
amígos romperam a correr desesperadamente pela Rampa de Santos e pelo Aterro,
sob a primeira claridade do luar que subia.

(págs. 712-71,6, com supressôes)

l. Trapt ordem religiosa, fundada em Trappe (em França), em 1,140. 2. amerícano: transporte colectivo sobre
carris de ferro, com tracção animal ou eléctrica.

Compreender

t. Atenta nas palavras de Carlos:


" aqui tens tu a vida, meu Ega! Neste quarto, durante noites, sofri a cerÍeza de que
- E
tudo no mundo acabara para mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E
tudo isto friamente, como uma conclusão lógica. Por fim, dez anos passaram, e aqui
estou outra vez..." llt-s-131.

Lt" Explica até que ponto a educação recebida por Carlos poderá ter contribuído
para que tivesse rejeitado as duas primeiras ideias que o assaltaram depois da
desgraça que lhe aconteceu.

2. Podemos afirmar que o romance termina com uma mensagem que podemos identi-
ficar com uma concepÇáo fatalista da existência? Porquê7

3. Mal acabam de expor todo o seu pessimismo existencial, Ega e Carlos deixam-se
atrair por solicitaçóes mais triviais.
, ldentif ica-as.

.i. Como interpretas esta corrida Íinal das duas personagens atrás do americano?

4. Salienta três recursos estilísticos típicos da prosa queirosiana utilizados neste excer-
to da obra.

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