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John Piper – Dois Paradoxos na Morte de Cristo

Não é de surpreender que o maior acontecimento da história mundial seja complexo.

1) Por exemplo, sendo que Jesus Cristo é homem e Deus em uma única pessoa, sua
morte foi a morte de Deus? Para responder a essa questão, precisamos falar das duas
naturezas de Cristo, uma divina e uma humana. Desde 451 AD, a definição calcedônica
das duas naturezas de Cristo em uma pessoa tem sido aceita como o ensino ortodoxo
das Escrituras. O Concílio de Calcedônia afirmou,

Nós (…) ensinamos que se deve confessar (…) um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor,
Unigênito, a ser reconhecido em duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis,
indivisíveis, inseparáveis, sendo que a distinção das naturezas não é de modo algum
anulada pela união, antes a propriedade de cada uma é preservada, concorrendo para
formar uma só pessoa e em uma subsistência; não separado nem dividido em duas
pessoas, mas um só e o mesmo Filho, o Unigênito, Deus, o Verbo, o Senhor Jesus
Cristo.

A natureza divina é imortal (Romanos 1.23; 1 Timóteo 1.17). Ela não pode morrer. Isso
é parte do que significa ser Deus. Portanto, quando Cristo morreu, foi sua natureza
humana que sofreu a morte. O mistério da união entre a natureza humana e a divina
na experiência da morte não nos é revelado. O que sabemos é que Cristo morreu, e
que no mesmo dia ele foi ao paraíso (“Hoje estarás comigo no paraíso,” Lucas 23.43).
Sendo assim, parece ter havido consciência na morte, de modo que a união contínua
entre a natureza humana e a divina não precisasse ser interrompida, ainda que Cristo
tenha morrido somente em sua natureza humana.

2) Outro exemplo da complexidade do evento da morte de Cristo é a forma como o Pai


a experimentou. O ensino evangélico mais comum é que a morte de Cristo foi que ele
experimentou a maldição do Pai. “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se
ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for
pendurado em madeiro)” (Gálatas 3.13). A maldição de quem? Poder-se-ia suavizar a
questão, dizendo, “a maldição da lei.” Mas a lei não é uma pessoa para que possa
amaldiçoar. Uma maldição só é uma maldição de fato se houver alguém que
amaldiçoe. A pessoa que amaldiçoa por meio da lei é Deus, que escreveu a lei.
Portanto, a morte de Cristo pelo nosso pecado e por nossa transgressão da lei foi a
experiência da maldição do Pai.

É por essa razão que Jesus disse, “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
(Mateus 27.46). Na morte de Cristo, Deus lançou sobre ele os pecados do seu povo
(Isaías 53.6), os quais odiava. E em ódio por esse pecado, Deus deu as costas a seu
Filho carregado de pecados, e o entregou para sofrer todo o poder da morte e da
maldição. A ira do Pai foi derramada sobre Cristo em nosso lugar, de forma que sua ira
para conosco foi “propiciada” (Romanos 3.25) e removida.

Mas aqui está o paradoxo. Deus aprovou profunda e alegremente o que o Filho estava
fazendo naquela hora de sacrifício. De fato, ele havia planejado tudo aquilo, junto ao
Filho. E seu amor pelo Deus-Homem, Jesus Cristo, sobre a terra se deve à mesma
obediência que levou Cristo à cruz. A cruz foi o ato de coroação de Jesus, por sua
obediência e amor. E o Pai aprovou e se alegrou profundamente nessa obediência. Por
isso, Paulo faz esta maravilhosa declaração: “Cristo nos amou e se entregou a si
mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave” (Efésios 5.2). A
morte de Jesus foi um perfume para Deus.

Assim, temos aqui mais uma gloriosa complexidade. A morte de Cristo foi a maldição
de Deus e a ira de Deus; contudo, e ao mesmo tempo, foi agradável a Deus e um doce
perfume. Embora tenha dado as costas ao Filho e o tenha entregado para morrer
carregado com o nosso pecado, ele se deleitou na obediência, no amor e na perfeição
do Filho. Portanto, temamos maravilhados, e olhemos com uma trêmula alegria para a
morte de Jesus Cristo, o Filho de Deus. Não há acontecimento maior na história. Não
há nada maior para as nossas mentes considerarem, ou para nossos corações
admirarem. Mantenha-se próximo à morte de Cristo. Tudo o que há de importante e
de bom está reunido nela. Ela é um lugar sábio, importante e feliz para se estar.
União hipostática – As duas naturezas de Jesus Cristo

O termo “união hipostática” é utilizado para definir a doutrina de que Jesus é uma só
pessoa, mas com duas naturezas, a divina e a humana. Ou seja, Ele é 100% Deus e
100% homem. Essa doutrina também afirma que essas duas naturezas coexistem, mas
não se misturam.

Em primeiro lugar, devemos nos perguntar se essa doutrina é verdadeira. Afinal, há


base bíblica para afirmar que Jesus tem duas naturezas?

A Bíblia claramente atesta a divindade de Jesus em textos como Jo 1:1-2, 14; 8:24, 58;
10:30; 20:28; 1Jo 5:20; Rm 9:5; Fp 2:5-7; Cl 1:15; 2:9; 1Tm 3:16; Tt 2:13; Hb 1:3; 2Pe
1:1; Ap 1:17-18, entre outros. Jesus é Deus que Se fez carne e habitou entre nós. Como
Deus eterno, Ele já existia desde o princípio (Miquéias 5:2; João 1:1-2; Colossenses
1:17; 1 João 3:4, 8; Apocalipse 1:8), mas escolheu vir a este mundo por meio de uma
mulher para nos libertar do pecado e da morte: “Quando chegou a plenitude do
tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da lei, a fim de
redimir os que estavam sob a lei, para que recebêssemos a adoção de filhos” (Gálatas
4:4-5).

Ou seja, Jesus também é homem (1 Timóteo 2:5). Ele já existia na eternidade antes de
Se fazer carne: “No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era
Deus. Ela estava com Deus no princípio” (João 1:1-2). Ele veio ao mundo em forma
humana: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós…” (João 1:14).
Assim, é evidente que Jesus nasceu como homem, não como Deus. De fato, a Escritura
diz: “Deles [dos israelitas] são os patriarcas, e a partir deles se traça a linhagem
humana de Cristo, que é Deus acima de tudo, bendito para sempre! Amém” (Romanos
9:5).

Portanto, Jesus sempre foi Deus. Mas nem sempre foi homem. Ele Se fez homem há
cerca de 2.000 anos. Alguns creem que Jesus deixou de ser homem após subir ao Céu.
Mas isso não é verdade, por duas razões: 1) A ressurreição de Jesus foi física e Ele
subiu com Seu corpo físico ao Céu e 2) Jesus é chamado de homem mesmo após subir
ao Céu (1 Timóteo 2:5).

A humanidade de Jesus e a Sua divindade não se misturam, mas se unem sem


perderem suas identidades separadas. Jesus às vezes vivia com as limitações de
humanidade (João 4:6; 19:28) e outras vezes com o poder de Sua divindade (João
11:43; Mateus 14:18-21). Nos dois casos, as ações de Jesus foram de Sua única Pessoa.
Jesus tinha duas naturezas, mas só uma pessoa ou personalidade.

Por que Jesus Se fez homem?


Jesus se tornou um ser humano para nos dar o conhecimento de Deus, como se
esperava do Messias (1 João 5:20), parar poder se identificar conosco em nossas
dificuldades (Hebreus 2:17) e para poder morrer na cruz e pagar o preço de nossos
pecados (Filipenses 2:5-11).
Como entender a união hipostática de Jesus?
A união hipostática também é conhecida como união mística, porque é um mistério. É
impossível para a mente humana compreender totalmente os mistérios de Deus. Nós,
como seres humanos finitos, não devemos supor que podemos compreender um Deus
infinito. O apóstolo Paulo compreendeu bem a limitação da mente humana: “Agora,
pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a
face. Agora conheço em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma forma como
sou plenamente conhecido” (1 Coríntios 13:12).

Conclusão
Jesus é uma só pessoa, com duas naturezas: a humana e a divina. Negar isso é fechar
os olhos para as evidências bíblicas.
União hipostática: A dupla natureza de Jesus Cristo – Louis Berkhof

A obra redentora de Cristo tem valor inalcançável, incalculável e, com efeito,


incontornável. Nós, os redimidos, somos gratos a Deus por esta obra apenas na
medida em que nosso intelecto, embotado pela corrupção do pecado, é capacitado
pelo Espírito a um vislumbre, um relance da grandiosidade do amor vicário de Cristo
pelos que creem. Por causa desta magnífica obra expiatória, somos levados a refletir
na Pessoa que a mediou e na constituição substancial que a qualificou e capacitou para
propiciar Deus à humanidade. Esse assunto nos leva, assim, à discussão sobre a união
hipostática – a coexistência, em Cristo, de duas naturezas, divina e humana – e sobre
as características e consequências desta união.

À semelhança da doutrina da Trindade, a respeito da qual há também um interessante


artigo neste blog, a união hipostática é, com certeza, uma das doutrinas mais difíceis
de serem estudadas no pensamento tradicional cristão. Um dos motivos para essa
dificuldade é que, não importa o quanto estudemos ou busquemos averiguar e
formular com precisão a terminologia nela envolvida, sempre terminaremos, em
última análise, reconhecendo seu valor incognoscível, e declarando a impossibilidade
de se aquiescer cabalmente à realidade ontológica sobre a qual versa a doutrina. A
própria Escritura se refere a ela como um mistério (1Tm 3.16). O outro motivo que a
torna particularmente difícil no escopo da cristologia são as implicações que dela se
extraem: Deus é eterno, é a fonte e a origem de toda a vida; no entanto, Cristo,
mesmo sendo Deus, morreu na cruz e permaneceu morto por três dias. A morte da
pessoa de Cristo no Calvário levanta a questão de que, se Deus não pode morrer, e
Cristo é Deus mas morreu, então como isto funciona? Um exemplo como esse, da
morte de Cristo, é suficiente para nos mostrar algumas das implicações envolvidas no
estudo desta doutrina e nos apontar o nível de dificuldade com o qual teremos de
lidar.

Por outro lado, boa coisa é estudarmos algo sobre Deus e não a compreendermos
totalmente. A consciência de que há certas facetas em Deus e na Revelação Especial
que nos são intelectualmente inalcançáveis nos deixa humildes diante do Senhor, e
nos lembra do fato de que, sendo criaturas, jamais poderemos colocar o Deus infinito
sob nosso microscópio. Fixando nossas pretensões ao perímetro da Escritura,
portanto, lancemo-nos ao estudo da união hipostática.

A Definição da União Hipostática


A doutrina da união hipostática é definida pela existência de Cristo em duas naturezas,
divina e humana, que não se fundem nem se alteram; por outro lado, não se separam
e nem se dividem, compondo e estabelecendo uma só pessoa e uma só “subsistência”
(emprestando o vocabulário de Calcedônia, em 451 d.C.), eternamente. Em suma, isso
quer dizer que Cristo é plenamente divino e totalmente humano – e para todo o
sempre, visto que Cristo, mesmo agora, na eternidade, possui um corpo humano (At
1.11; Ap 5.6).

Nosso primeiro passo no approach da doutrina da união hipostática será definir os


termos envolvidos em sua formulação. O termo “natureza”, ao longo da história da
filosofia, sofreu algumas alterações em seu sentido. Na teologia, porém, denota a
soma total de todos os atributos que fazem uma coisa ser o que ela é. Por exemplo,
quando falamos em “natureza humana” ou “natureza divina”, fazemos referência à
totalidade dos atributos que qualificam estas naturezas como humana ou divina. Por
sua vez, “pessoa” é uma substância completa, dotada de razão e, consequentemente,
um sujeito responsável por suas ações.

“A personalidade não é parte integrante e essencial da natureza, mas é, por assim


dizer, o término para o qual ela tende. Uma pessoa é uma natureza acrescida de algo,
a saber, uma subsistência ou individualidade independente”. 1

Estas definições, sobretudo a de “pessoa”, serão muito importantes logo mais para
entendermos como a pessoa de Cristo pode ser, ao mesmo tempo, Deus e homem; e,
enquanto esboça atitudes e pensamentos de uma ou de outra natureza, continua se
expressando como uma só pessoa, e continua sendo o Cristo Jesus. Sobre essa dupla
natureza na unipersonalidade do Cristo, a Escritura nos fornece amplo testemunho.

Embasamento Bíblico da União Hipostática


(I) Cristo é plenamente Deus.
Há abundante relato bíblico afirmando a divindade de Cristo. Jesus é apresentado na
Escritura como sendo preexistente (Jo 1.3; 1Co 15.47), qualidade logicamente restrita
à Deidade. O Senhor também manifestou, mesmo em sua primeira vinda, todos os
atributos chamados incomunicáveis, logicamente pertencentes somente a Deus (Jo
17.5; Hb 13.8; Mt 18.20; Jo 2.23; Jo 5.17; etc.)

Há aqui um ponto relevante a ser sublinhado: alguns pensam que o fato de Cristo, em
sua encarnação, ter se esvaziado e assumido a forma de servo (Fp 2.7) significa que
Cristo abdicou de alguns de seus atributos divinos ou, mais grave ainda, abdicou de sua
divindade, o que de maneira alguma poderia ser verdadeiro. Em primeiro lugar, a
Bíblia relata várias ocasiões em que Jesus deu mostras de seus atributos
incomunicáveis (noutro artigo, falaremos sobre como Cristo pôde – e pode – possuir
um corpo humano e, ao mesmo tempo, exercer onipresença). Em segundo, a suposta
renúncia de divindade, pela qual alguns incautos explicam a encarnação, seria
ontologicamente impossível de ser realizada (como um ente pode deixar de ser o ente
que é?), traria implicações gravíssimas à afirmação da imutabilidade de Deus (se Deus
pode deixar de ser Deus, então ele pode mudar; e se pode mudar, então não pode ser
Deus), e tornaria impossível a redenção do ser humano (só Deus pode redimir o ser
humano; se Cristo deixou de ser Deus em sua encarnação, então ele não nos redimiu).

Do fato de Cristo ter, ele mesmo, perdoado pecados (Mt 9.2), aceitado adoração (Jo
13.13), exercido poder sobre demônios e realizado milagres e sinais (Jo 5.21), além de
ter declarado explicitamente sua divindade (Jo 10.30), depreende-se também a
realidade de sua natureza divina.

Por fim, conforme antecipamos, Cristo é visto como Deus pelo Cânon em virtude do
fato de que somente Deus poderia redimir o homem. O ser humano não pode religar a
si mesmo a Deus, pois teria que ser livre de pecado (obviamente, o homem não é),
teria que cumprir a lei, toda ela, com perfeição (obviamente, nenhum homem pode ou
poderia fazer isto), e teria que manifestar força sobre a vida, entregando-a em favor de
muitos e tomando-a de volta na ressurreição (mais uma vez, é óbvio que o homem não
tem tal capacidade). Assim, vemos claramente que Cristo sempre foi, é, e sempre será
o Deus eterno, em quem não há variação ou sombra de mudança (Tg 1.17).

(II) Cristo é plenamente humano.


Tal como a Escritura declara nitidamente a divindade de Cristo, aponta também sua
plena humanidade. Esta humanidade pode ser vista no fato de que Cristo chamava a si
mesmo por nomes que designam humanidade (Lc 19.10), e foi assim chamado por
seus apóstolos (1Tm 2.5).

Como homem, Cristo esteve sujeito às limitações condizentes ao ser humano: sentiu
fome, sede, se cansou, chorou etc. (Mt 4.2; Jo 19.28; 4.6; 11.35)

Cristo também possuía e possui uma natureza humana completa, isto é, ele não tinha
(ou tem) apenas um corpo humano (Lc 2.52), mas também alma e espírito humanos
(Mt 26.38; Lc 23.46). Em suma, Cristo, desde sua encarnação, é um ser humano
completo. Em Cristo, Deus se fez homem e, novamente, se assim não fosse, não
poderia redimir a humanidade. Quem recebeu a promessa de morte não foi o corpo de
um ser humano, mas um homem completo, com sua constituição material e imaterial.
Logo, somente alguém que possuísse uma natureza humana completa poderia sofrer a
penalidade estipulada.

Como vemos, a afirmação correta da plena divindade de Cristo, bem como de sua
plena humanidade, tem implicações soteriológicas fundamentais. Cristo é 100% Deus e
100% homem.

Entendemos, assim, alguns dos problemas levantados pela doutrina da união


hipostática, as definições iniciais envolvidas nesta doutrina e os fundamentos
escriturísticos que sustentam e asseveram a coexistência de duas naturezas na pessoa
do Logos. Em posse desse instrumental teórico, portanto, somos agora capazes de
esboçar os principais tópicos que estruturam e desenvolvem esta doutrina central do
cristianismo.

A formulação da doutrina da União Hipostática


1. A pessoa de Cristo possui uma natureza humana e uma divina, ambas completas.
Elas não se misturam e também não são separadas. Ao contrário, coexistem na pessoa
do Logos.

2. O Cristo, como ser eterno, ao assumir uma natureza humana, não adotou uma
pessoa humana, apenas assumiu uma natureza humana. Se Cristo tivesse adotado uma
pessoa humana, poderíamos dizer que há duas pessoas em Jesus, algo totalmente
antibíblico. O Cristo é uma só pessoa. Ademais, a natureza humana adotada por Cristo
é uma natureza humana completa, constituída por corpo, alma ou espírito. Quando a
Bíblia diz que o Verbo se fez carne (Jo 1.14), não está asseverando que o Filho de Deus
“possuiu” uma constituição material humana como músculos e ossos apenas, mas que
adotou uma natureza humana completa, ecoando o verdadeiro sentido de “carne” na
terminologia joanina. Já vimos que a negação dessa realidade tornaria impossível a
obra da paixão de Cristo.

3. Apesar de Cristo ser uma única pessoa e de sua natureza humana não ser uma
pessoa humana, não se pode dizer que esta natureza é impessoal; visto que, na união
com a pessoa do Logos, ela se torna pessoal, em todos os sentidos. Devemos manter
em mente o fato de que, apesar de as naturezas de Cristo não se fundirem, elas
também não estão separadas. Antes, estão unidas na pessoa de nosso Senhor e, nele,
se configuram em um único ser. Pela importância desta verdade, a repetimos: a
natureza humana de Cristo não é impessoal, mas podemos afirmar sua pessoalidade
em virtude de sua união com a pessoa eterna do Logos.

4. A despeito da pessoalidade da natureza de Cristo estar condicionada à união com a


segunda pessoa da Trindade eterna e ser justificada por esta união, isso não implica
em asseverarmos a ausência de consciência e vontade próprias da natureza humana
assumida por Jesus. Retomando conceitos da antropologia teológica, tanto a
consciência quanto a vontade são faculdades ligadas ao elemento imaterial do homem
(alma ou espírito). Sendo assim, o fato de Cristo ter assumido uma natureza humana
completa faz com que sua natureza humana não seja carente de consciência e de
vontade próprias. Entretanto, o fato de uma natureza humana completa,
ontologicamente, trazer faculdades volitivas e conscientes pode levar à conclusão de
que, a partir desses atributos, de tal natureza emerge a qualidade da persona. De
outra maneira, se uma natureza completa exerce consciência e volição, e estes
predicados sintetizam a característica da pessoalidade, a conclusão seria de que Cristo
possui duas pessoas, além de duas naturezas. Precisamente neste ponto – o qual, se
fosse afirmado, levaria a uma posição herética sobre a união hipostática – é onde a
correta definição de “pessoa”, conforme delineada anteriormente, fará a diferença
para uma compreensão apurada da doutrina. Como vimos, uma pessoa é definida por
algo que transcende os predicados “consciência” e “vontade”, de modo que somente
estes atributos não seriam suficientes para o estabelecimento de uma pessoalidade.
Temos, então, que uma natureza humana completa em nosso Senhor, ainda que
possua em si mesma consciência e vontade próprias, não desemboca em uma
pessoalidade autônoma ou em uma sede de personalidade independente. Ao invés
disso, adquire um status pessoal pela união com a pessoa preexistente do Filho de
Deus. Conforme bem sublinha Louis Berkhof, “há somente uma pessoa no Mediador, o
Logos imutável. O Logos fornece a base da personalidade de Cristo”. 2

5. Como consequência da dupla natureza de Cristo e da imediata constatação de que


cada natureza possui a respectiva consciência e vontade (e isso de uma maneira em
que a singularidade da pessoa de Cristo mantém-se intacta), pode-se ver, conforme o
registro bíblico, que a pessoa do Filho de Deus manifesta suas vontades e consciências
expressando-as de acordo com a natureza das quais se originaram. Nota-se isto
através de textos como Mateus 4.2, em cujo relato Jesus teve fome (e, portanto, quis
comer) mesmo a natureza divina não sendo suscetível às vontades do universo da
criação; e Hebreus 5.8, que diz que o Cristo “aprendeu a obediência pelas coisas que
sofreu”, mesmo sendo Deus, em cuja essência onisciente não há espaço para
conscientização de ordem alguma.

6. Também como consequência da dupla natureza de nosso Senhor, vemos, pela


Escritura, que ele opera e se expressa segundo os atributos e qualidades de cada uma
dessas naturezas. No mesmo compasso em que Jesus, como expressões de sua
natureza humana, afirma desconhecer o dia e a hora de seu retorno escatológico (Mt
24.36), mostra-se restrito e limitado ao espaço (Mt 14.23) e exibe fraqueza (Jo 4.6);
emerge outrossim, em evidências de sua natureza divina, como onisciente (Mt 9.4),
onipresente (Jo 1.48; Mt 28.20) e onipotente (Jo 11.43, 44).

7. Embora Cristo, conforme os Escritos Sagrados, demonstre ações e qualidades ora de


uma natureza e ora de outra, é errado falarmos nessas ações e atributos como
autorais de uma ou de outra natureza, visto que elas não subsistem
independentemente uma da outra, mas na pessoa de Cristo. Sendo assim, Cristo é o
autor e sujeito tanto de uma quanto de outra categoria de ações e/ou qualidades.
Pode-se, destarte, falar em expressões de uma ou de outra natureza, mas não em
autorias distintas, o que nos conduz ao último tópico deste artigo.

8. As propriedades tanto de uma natureza quanto de outra, em razão de Cristo ser


uma só pessoa, passam a ser propriedades da pessoa e a ela atribuídas.

“Pode-se dizer que a pessoa é todo-poderosa, onisciente, onipresente, e assim por


diante, mas também se pode dizer que é um varão de dores, de conhecimento e poder
limitados, e sujeito às necessidades e misérias humanas. Devemos ter o cuidado de
não entender a expressão no sentido de que alguma coisa peculiar à natureza divina
foi comunicada ou transmitida à natureza humana, e vice-versa”. 3

O que ocorre em Cristo, pelo fato de ser ele uma única pessoa divina e humana, é uma
comunicação de propriedades, mas não a comunhão ou fusão destas. Se tal fosse o
caso, ocorreria de ambas as naturezas sofrerem alterações, implicando, além de uma
impossibilidade metafísica (no caso de Deus), no fracasso completo da obra expiatória
de Cristo. Se a natureza divina de Jesus tivesse se humanizado, já não seria Deus e,
logo, não deteria poder para salvar a humanidade, entregando sua vida e a reavendo
em favor do seu povo. De igual modo, caso a natureza humana de Cristo se tivesse
divinizado pela união hipostática, seu sacrifício substitutivo não teria validade: o objeto
da ira e da condenação de Deus já não seria uma semelhança de homem, mas de um
ser híbrido cuja natureza estaria aquém da possibilidade de substituição e vicariedade
penal. Portanto, não houve na pessoa do Filho de Deus uma fusão das propriedades de
ambas as naturezas, mas sim uma comunicação destas propriedades.

Concluímos reafirmando que a doutrina da união hipostática é um mistério para a


compreensão humana. O estudo desta doutrina cristológica não deve entrever a
possibilidade de uma cognoscibilidade completa e clarividente. Ao contrário, a
aproximação sobre este estudo, em última análise, deve servir ao propósito de que
evitemos caminhos e assertivas que conduzam a conclusões heréticas sobre a pessoa
de Cristo. Contentemo-nos em não propor nossas mentes adiante do que a Escritura
diz; repousar nosso conhecimento tão somente no que diz a Bíblia é sempre o viés
mais teologicamente responsável. Contentemo-nos em, mesmo não entendendo
completamente o funcionamento da união hipostática em nosso Senhor, aceitá-lo e
adorá-lo tal como ele é: o Deus-homem, nosso redentor.
União Hipostática – Mark Jones

Não há questão mais importante do que a que Jesus fez a seus discípulos (Mt 16.15):
“Quem dizeis que eu sou?” Nenhuma questão foi mais intensamente debatida,
completa e parcialmente mal entendida, ignorada com grande risco e respondida
corretamente com grande benefício do que essa. A resposta correta para essa
pergunta é, em alguns aspectos, simples o bastante para salvar uma criança, mas
também complexa o bastante para manter os teólogos ocupados por toda a
eternidade. Se a vida eterna é conhecer a Jesus Cristo (Jo 17.3), então não podemos
nos dar ao luxo de sermos ignorantes sobre aquele que é “o mais distinguido entre dez
mil” (Ct 5.10).

Pedro confessou Jesus como o “Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16). João falou de
Jesus como “o Verbo” que se fez carne (Jo 1.14). Paulo descreve Jesus não só como “a
imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação” (Cl 1.15), mas também
como “Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5). Da mesma forma, o autor de Hebreus
identifica Jesus tanto como “o resplendor da glória” (Hb 1.3) de Deus quanto como
aquele que participou de carne e sangue (2.14). Depois de tocar em Cristo, Tomé
memoravelmente confessou Jesus como seu “Senhor” e seu “Deus” (Jo 20.28). No
Antigo Testamento, Isaías teve uma visão de Cristo em que o chama de “o Rei, o
Senhor dos Exércitos” (Jo 12.41; ver Is 6.5), mas também chamou este Rei de servo do
Senhor, que não tinha “nenhuma beleza que nos agradasse” (Is 53.2).

Jesus também tinha muito a dizer sobre si mesmo. No evangelho de João, lugar das
conhecidas afirmações “Eu sou”, ele refere-se a si mesmo como o “pão da vida” (Jo
6.48), “a luz do mundo” (8.12), “a porta” (10.9), “o bom pastor” (10.11), “a
ressurreição e a vida”(11.25), “o caminho, e a verdade, e a vida”(14.6) e “a videira
verdadeira” (15.1).

Em outras passagens, Jesus é chamado de mestre (Mc 1.27), profeta (Mt 21.11), filho
de Davi (9.27), servo (12.18), Filho do Homem (12.8), Senhor (14.30), Cordeiro de Deus
(Jo 1.36), Santo de Deus (6.69), o Princípio (Cl 1.18), sumo sacerdote (Hb 5.1-10),
aquele que vive (Ap 1.18), Libertador (Rm 11.26) e a brilhante Estrela da manhã (Ap
22.16).

A essa impressionante variedade de nomes e descrições bíblicas poderiam ser


acrescentadas muitas outras; na verdade, muito mais do que podemos pensar ou
imaginar. Contudo, essas declarações múltiplas da pessoa de Cristo nem sempre são
de fácil compreensão. Na verdade, a igreja primitiva batalhou duramente antes de
chegar a uma descrição concisa e precisa da pessoa de Cristo, no Concílio de
Calcedônia (451 d.C.).

História: Heróis e Hereges

Cada século, desde o tempo de nosso Senhor e dos Apóstolos em diante, tem
testemunhado uma ou mais visões aberrantes sobre Cristo. Sem ser minucioso, no
final do primeiro século o erro do docetismo deixou sua marca. Serapião, bispo de
Antioquia (190-203), propôs a visão de que a carne de Jesus era “espiritual”. Jesus não
tinha uma verdadeira natureza humana, apenas parecia (em grego: dokeo, “parecer”)
humano. Esta visão falsa foi defendida por alguns, mesmo enquanto os apóstolos
ainda estavam vivos (2Jo 7).

No segundo século, os ebionitas (“os pobres”) rejeitaram a concepção virginal de


Jesus. Eles o consideravam o Messias, mas não aceitavam que fosse divino.

O início do terceiro século viu o surgimento de Paulo de Samósata, que foi bispo da
igreja de Antioquia (c. 260). Ele tinha uma visão peculiar de Cristo, que incorporava
várias heresias. Para ele, Jesus era um homem comum que foi habitado pelo Logos
(Verbo) e, assim, tornou-se o Filho de Deus. O Logos que habitava Jesus não era uma
pessoa divina distinta do Pai e do Espírito; antes, era o atributo divino do Pai que
habitava em Jesus.

Um dos dois principais antagonistas à visão correta sobre Cristo no século IV foi
Apolinário de Laodiceia (c. 315-92). Apolinário reagiu, em parte, a outros movimentos
heréticos. Em sua reação a uma visão como a de Paulo de Samósata, Apolinário
sustentava que o Logos assumira um corpo humano, mas não uma mente humana.
Seus adversários responderam corretamente que esta teoria significava que a
encarnação seria simplesmente a divindade habitando uma carne sem mente e sem
alma. Muitos cristãos hoje caem em um erro semelhante ao pensar que a mente e a
alma de Cristo são a sua natureza divina; mas isso é falso. O outro herege desta época
foi Ário de Alexandria (c. 250-336). Ele negou que o Logos fosse coigual ao Pai, e
sustentou que houve um tempo em que o Filho de Deus não existia.

No século V, uma cristologia mais precisa se estabeleceu, mas apenas depois de muita
luta política e teológica. Na verdade, mesmo antes de Calcedônia, houve concílios que
buscaram compreender os dados bíblicos sobre a pessoa de Cristo. Durante aquele
século, o mais significativo na igreja primitiva para o desenvolvimento da cristologia,
teólogos de Antioquia, onde Nestório recebeu seu treinamento, foram muito
determinados em fazer jus à plena humanidade de Jesus. Cirilo de Alexandria (c. 376-
444), talvez o teólogo mais importante a escrever sobre a pessoa de Cristo na igreja
primitiva, apreciava essa preocupação, mesmo que por vezes tenha dito coisas que
parecessem contradizer essa crença. De fato, Cirilo e os teólogos de Antioquia
estiveram, por um tempo, em certo acordo. Naturalmente, o acordo não era
completo; os seguidores mais extremos de Cirilo, como Eutiques, tendiam a “deificar”
a humanidade de Cristo.

Tudo isso aponta para o fato de que todos os teólogos até esse ponto tinham em
comum a crença nas duas naturezas de Cristo. Suas diferenças, entretanto, estavam na
qualidade ou integridade das duas naturezas ao se relacionarem na pessoa de Cristo.
Alguns enfatizavam tanto a natureza divina que muito pouco, ou nada, era deixado da
natureza humana de Cristo; outros faziam o oposto. Calcedônia parece ter resolvido
com grande sucesso os problemas que atormentaram a igreja durante os primeiros
cinco séculos.
O credo calcedoniano (451)

À medida que as crises cristológicas do século V continuavam a se intensificar, a


imperatriz Pulquéria e o imperador Marciano convocaram um concílio em Calcedônia.
O concílio foi rigorosamente monitorado. Não apenas alguns bispos foram autorizados
e outros rejeitados, como também certos documentos foram admitidos e outros
proibidos. No Concílio de Éfeso (431), o Tomo de Leão, bispo de Roma, não foi
admitido. Mas em Calcedônia, o Tomo de Leão foi permitido para que, combinado com
as ênfases de Cirilo de Alexandria, se chegasse a algum tipo de declaração em comum.
Cirilo, que morreu anos antes de Calcedônia, enfatizou bastante a união das duas
naturezas em uma “unidade” impecável (em grego henosis). A ênfase nas duas
naturezas, um produto da cristologia ocidental (típica de Agostinho e outros
ocidentais), refletiu uma ênfase de Leão, que também chega até o credo. No parágrafo
central de Calcedônia lê-se:

Seguindo os Santos Padres confessamos um e o mesmo, nosso Senhor Jesus Cristo, e


todos ensinamos unânimes que o mesmo é perfeito em divindade, o mesmo perfeito
em humanidade; verdadeiro Deus e verdadeiro homem; o mesmo de uma alma
racional e corpo; consubstancial com o Pai na divindade e também consubstancial
conosco em humanidade; semelhante a nós em tudo, exceto no pecado; gerado antes
da eras, do Pai na divindade; o mesmo nestes últimos dias, e para nossa salvação,
nascido da Virgem Maria Theotokos [“portadora de Deus”] na humanidade; um e o
mesmo Cristo, Filho, Senhor, único; reconhecido em duas naturezas, inconfundíveis,
imutáveis, indivisíveis, inseparáveis; a diferença das naturezas não sendo de forma
alguma desfeita por causa da união, antes o caráter distintivo de cada natureza sendo
preservado, combinando-se em uma pessoa e hipóstase; não dividido ou separado em
duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho e Unigênito Deus, Verbo, Senhor Jesus
Cristo; como os profetas do passado e o próprio Senhor Jesus Cristo nos ensinaram a
seu respeito, e como o credo dos pais foi entregue a nós.

Esta declaração sobre a pessoa de Cristo permanece sendo uma bela demonstração de
ortodoxia, com a qual deve concordar quem deseja permanecer ortodoxo e fiel à
totalidade do testemunho bíblico. Ela tem resistido ao teste do tempo. É certo que a
definição se presta a interpretações variadas. Por exemplo, teólogos católicos
romanos, luteranos e reformados desenvolveram cristologias que não podem ser
harmonizadas em alguns pontos. Novamente, se a relação entre as duas naturezas
provou-se a fonte de muitos conflitos pré-Calcedônia, não se pode negar que alguns
conflitos permanecem até hoje, mesmo que não tenham a ferocidade política da igreja
primitiva. Agora, partindo das declarações do credo calcedoniano, vamos procurar dar
uma resposta abrangente à pergunta feita por Cristo: “Quem dizem os homens que eu
sou?”

Perfeito em divindade

A evidência de que Jesus de Nazaré é plenamente divino, homoousios (uma


substância) com Deus, é tão abundante que fica muito difícil simpatizar com aqueles
que lutam contra esta verdade. Se Jesus não é plenamente Deus, os escritores do Novo
Testamento se esforçaram para confundir e mentir para a igreja (por exemplo, veja Fp
2.5-11; Cl 1; Hb 1).

O prólogo do Evangelho de João fornece evidências explícitas o suficiente para que a


igreja possa concluir satisfatoriamente que Jesus é “verdadeiramente Deus”. Considere
as palavras de abertura: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o
Verbo era Deus”. Mais adiante no prólogo, João apresenta o ponto surpreendente
(talvez o verso mais inacreditável para qualquer judeu do primeiro século): que “o
Verbo se fez carne”. A palavra “era” no versículo 1 deve ser contrastada com “se fez”
no versículo 14. O Verbo (Logos) não “se fez” no sentido de vir a existir. Ao contrário, o
Verbo simplesmente “era”. Outras passagens do Evangelho de João só servem para
confirmar e reforçar esta verdade (Jo 3.13; 6.62; 8.57-58; 17.5; 20.28). Além disso,
quando Isaías viu “o Rei, o Senhor dos Exércitos” (Is 6.5), João cita uma grande parte
desse capítulo e, em seguida, afirma que Isaías disse isso “porque ele viu a glória dele e
falou a seu respeito [de Jesus]” (Jo 12.41). Em Isaías, somos informados de que Deus
não dá a sua glória a ninguém a não ser a si mesmo; não obstante, em João 17.5, Jesus
pede ao Pai para glorificá-lo em sua presença “com a glória que eu tive junto de ti,
antes que houvesse mundo”. Se Jesus não é Deus, então ele não é apenas um iludido,
mas seu pedido é uma abominação.

No livro de Apocalipse, há igualmente muitos lugares que demonstram a divindade de


Cristo. Ao descrever Jesus no livro de Apocalipse, João claramente faz uma ligação
entre Jesus e Yahweh (o Senhor):

“Eu, o Senhor, o primeiro, e com os últimos eu mesmo” (Is 41.4). “Não temas; eu sou o
primeiro e o último e aquele que vive” (Ap 1.17-18).

“Eu sou o primeiro e eu sou o último, e além de mim não há Deus” (Is 44.6). “Ao anjo
da igreja em Esmirna escreve: Estas coisas diz o primeiro e o último, que esteve morto
e tornou a viver” (Ap 2.8).

“Eu sou o mesmo, sou o primeiro e também o último” (Is 48.12). “Eu sou o Alfa e o
Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim” (Ap 22.13).

Esses paralelos marcantes deixam pouca dúvida quanto ao que o próprio Jesus
acreditava ser: ninguém menos que o próprio Yahweh.

Perfeito em humanidade

Jesus não é apenas divino, mas também verdadeiramente humano. Como Calcedônia
afirma: “verdadeiro homem; o mesmo de uma alma racional e corpo; […]
consubstancial conosco em humanidade; semelhante a nós em tudo, exceto no
pecado”. Por isso, ele é chamado de “Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5), que participou
de “carne e sangue”, a fim de derrotar o diabo através da morte (Hb 2.14). Ele é
semelhante a nós “em todas as coisas” (2.17), até o ponto de ter sido tentado em
todas as coisas à nossa semelhança, mas sem pecado (4.15).
A evidência da verdadeira humanidade de Cristo é tão conclusiva quanto a evidência
de sua verdadeira divindade. Sendo verdadeiramente humano, Jesus experimentou
reações físicas tais como fome (Mt 4.2), sede (Jo 19.28) e fadiga (Jo 4.6). Ele chorou
(11.35), pranteou (Lc 19.41), suspirou (Mc 7.34), e gemeu (Marcos 8.12). Como B.B.
Warfield disse: “Não falta nada para nos causar a forte impressão que temos diante de
nós, em Jesus, um ser humano como nós”.

Mas porque ele era sem pecado, todos as suas paixões eram mantidas em perfeita
proporção e equilíbrio. Ele ficou apropriadamente irado quando estava com raiva, bem
como completamente alegre quando estava alegre. De fato, ele experimentou “não
apenas alegria, mas exultação, não mero aborrecimento irritado, mas furiosa
indignação, não mera pena passageira, mas os movimentos mais profundos de
compaixão e amor, não mera angústia superficial, mas uma profunda tristeza até a
morte, [que ainda assim] nunca o dominaram” (Warfield). Todos os seus afetos foram
mantidos em total submissão à vontade de seu Pai.

Nascido da Virgem Maria Theotokos

Como compreendemos o fato de que Jesus é totalmente Deus e totalmente homem?


Uma palavra: encarnação (Lc 1.26-38). O maior prodígio de Deus é a encarnação do
Filho de Deus. O céu beijou a terra. Consequentemente, o Criador é para sempre
identificado com a criatura. Na união das duas naturezas na pessoa de Cristo, vemos
eternidade e temporalidade, eterna bem-aventurança e tristeza temporal, onipotência
e fraqueza, onisciência e ignorância, imutabilidade e mutabilidade, infinito e finitude.
Ou, como Stephen Charnock coloca: “Que Deus sobre um trono seja um infante em um
berço; que o trovejante Criador seja um bebê chorando e um homem sofredor são
expressões de tão grande poder, bem como de tal amor condescendente, que
surpreendem os homens na terra e os anjos no céu”.

Mas o que dizer da linguagem que diz que Maria é Theotokos (a portadora de Deus)? A
verdade desta afirmação não deve ser rejeitada por causa de como tem sido mal
interpretada pelos católicos romanos e usada para venerar Maria como “Mãe de
Deus”. O título de “portadora de Deus” diz algo sobre Jesus, não sobre Maria.

Quando o Filho se fez carne (Jo 1.14), ele assumiu uma natureza humana, não uma
pessoa humana. A natureza humana subsiste na personalidade do Filho de Deus: “não
dividido ou separado em duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho e Unigênito Deus,
Verbo, Senhor Jesus Cristo”. Os teólogos chamaram a encarnação do Filho de Deus de
“união hipostática”. A união das duas naturezas em uma pessoa significa que, quando
falamos de Jesus, não dizemos que sua natureza humana fez isso ou sua natureza
divina fez aquilo. Em vez disso, dizemos que Jesus fez isso ou aquilo de acordo com sua
natureza humana ou divina. Paulo pontua isto no início de Romanos: “com respeito a
seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi” (Rm 1.3).

Aquele que Maria deu à luz não era meramente humano, nem tinha apenas uma
natureza humana. Aquele que nasceu de Maria era uma pessoa divina que possuía
tanto uma natureza humana quanto uma natureza divina. Essa pessoa é o Filho de
Deus, o que significa que Maria pode ser chamada de “a portadora de Deus” desde
que fique claro o que isso significa. O título theotokos afirma que Jesus permaneceu
completamente divino mesmo ao assumir a natureza humana. Ele não diz que Maria é
digna de veneração como “Rainha do Céu” ou como “co-mediadora” com Cristo, como
ensina a doutrina católica romana.

O caráter distintivo de cada natureza sendo preservado

A maioria dos teólogos cristãos afirma a distinção entre as duas naturezas de Cristo.
Mas como essas duas naturezas referem-se uma à outra tem sido uma fonte de grande
disputa entre várias tradições teológicas. Neste ponto, o credo calcedoniano permite
uma variedade de interpretações.

Teólogos reformados se apegam à máxima teológica de que o finito (humanidade) não


pode conter o infinito (divindade). Esta máxima é verdadeira quanto às duas naturezas
de Cristo, mesmo agora no céu. Por essa razão, Cristo tem limitações de acordo com a
sua natureza humana. Ele se desenvolveu desde a infância até a idade adulta, e
experimentou um crescimento no conhecimento apropriado para cada fase de sua
vida (Lc 2.52). Ele teve que ser ensinado por seu pai (Is 50.4-6). De acordo com a sua
humanidade, ele teve de se contentar que nem tudo lhe foi revelado durante seu
tempo na terra: “Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do
céu, nem o Filho, senão o Pai” (Mt 24.36). Ele “aprendeu a obediência” através do
sofrimento (Hb 5.8).

Uma vez que a relação entre duas naturezas de Cristo tem sido calorosamente
debatida desde Calcedônia, a Confissão de Fé de Westminster (8.7) oferece uma
explicação da “comunicação de propriedades” que esclarece o ponto acima: “Cristo, na
obra de mediação, age de conformidade com as suas duas naturezas, fazendo cada
uma o que lhe é próprio; contudo, em razão da unidade da pessoa, o que é próprio de
uma natureza é, às vezes, nas Escrituras, atribuído à pessoa denominada pela outra
natureza”. Uma advertência cabe aqui, no entanto. Embora os atributos de qualquer
natureza possam ser e são predicados da pessoa, os atributos de cada natureza não
podem ser predicados da outra natureza. Por exemplo, Jesus não morreu de acordo
com a sua natureza divina, porque não se pode predicar a morte, algo apenas uma
natureza humana pode sofrer, à natureza divina. Jesus morreu de acordo com sua
natureza humana, mas não com sua natureza divina.

Para se ter uma ideia do que a confissão quer dizer aqui, consideremos Atos 20.28:
“Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu
bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio
sangue”. Neste versículo, a pessoa única de Cristo é denominada pela natureza divina.
Em outras palavras, ele é referido como “Deus”, mesmo sendo Deus e homem, divino
e humano. Entretanto, por ser um Espírito, Deus não tem sangue. O sangue é próprio
apenas da natureza humana, não da natureza divina. O que a confissão está dizendo é
que, porque as duas naturezas estão unidas em uma só pessoa, o sangue (que é
próprio apenas da natureza humana) é atribuído à pessoa única de Cristo (que neste
versículo está sendo chamado ou denominado “Deus”, apesar de o nome de Deus ser
próprio apenas da natureza divina). Porque Cristo possui duas naturezas unidas,
podemos falar do “sangue de Deus”, já que “o que é próprio de uma natureza é, às
vezes, nas Escrituras, atribuído à pessoa denominada pela outra natureza”. Os
atributos de qualquer das naturezas podem ser predicados da pessoa de Cristo,
mesmo quando Jesus é referido por um nome ou de um modo que é próprio apenas
de uma dessas naturezas.

Perguntas especiais

Subordinação: Jesus voluntariamente se submeteu à vontade do Pai. No movimento


“alto-baixo-alto” de Filipenses 2.6-11 o Filho de Deus, “subsistindo em forma de Deus,
não julgou como usurpação o ser igual a Deus” (alto), mas a si mesmo se esvaziou,
assumiu a forma de servo, e obedeceu ao Pai até à morte de cruz (baixo), que por sua
vez levou à sua exaltação, na qual lhe é dado o nome acima de todo nome (alto). Todas
as declarações no Novo Testamento a respeito da “subordinação” de Cristo (Jo 14.28)
precisam ser entendidas à luz do acordo entre as pessoas da Trindade, pelo qual o
Filho assumiria carne humana e se subordinaria à vontade do Pai.

Impecabilidade: Poderia Jesus, uma vez que foi tentado, ter a possibilidade de pecar?
Teólogos têm discordado sobre esta questão, mas a resposta deve ser “não”. Há duas
razões por que Jesus não poderia pecar. Primeiro, se Cristo pudesse pecar, então
surgiria um problema quanto à relação entre as vontades humana e divina de Cristo. A
definição de fé do Sexto Concílio Ecumênico de Constantinopla (680-81) afirma: “E
estas duas vontades naturais não são contrárias uma à outra como afirmam os ímpios
hereges, mas sua vontade humana segue, não resistindo ou relutante, antes sujeita, à
sua vontade divina e onipotente”. A vontade humana não pode ser contrária à vontade
divina em Cristo, mas apenas sujeita a ela. Em segundo lugar, por causa da unidade da
pessoa, Cristo não poderia pecar sem comprometer a Deus. A natureza humana de
Cristo pode ser “pecável” (capaz de pecar); mas uma vez que em sua constituição ele é
o Deus-homem, ele é, portanto, uma pessoa impecável.

O Espírito Santo: Se Cristo era completamente divino, por que lemos tantas referências
à obra do Espírito Santo sobre ele durante sua vida terrena? Desde o momento da
encarnação (Lc 1.31,35), passando por seu batismo (Mc 1.10), sua tentação (Mc 1.12;
Lc 4.14), sua pregação (Lc 4.18), a operação de milagres (Mt 12.28), sua morte (Hb
9.14), sua ressurreição (Rm 1.4; 8.11), até sua ascensão e entronização (Sl 45.1-7; At
2.33), descobrimos que o Espírito Santo foi um companheiro constante e inseparável
de Cristo.

Cristo escolheu não considerar sua igualdade com Deus como algo a se explorar ou
tirar proveito (Fp 2.6). Portanto, em completa dependência do Espírito Santo, Cristo
obedeceu ao Pai perfeitamente, sem apego à sua própria natureza divina. Como John
Owen argumentou, “O que quer que o Filho de Deus tenha operado em, por ou sobre
a natureza humana, ele o fez pelo Espírito Santo”. O Espírito Santo produz em Cristo o
fruto do Espírito (Gl 5.22). Assim, os crentes podem esperar não apenas um salvador
formidável, que derrotou os poderes das trevas, mas também um salvador
misericordioso, paciente, bondoso e amoroso, porque ele é pleno das graças do
Espírito Santo. Por causa desta verdade, Thomas Goodwin afirmou que os pecados do
povo de Deus movem Cristo mais à compaixão do que à ira. De fato, Goodwin
acrescenta: “Se houvesse infinitos mundos feitos de criaturas amorosas, não haveria
tanto amor neles como houve no coração do homem Cristo Jesus”.

Conclusão

Por causa da entrada do pecado no mundo através do homem, o homem deve prestar
reparação a Deus. Mas o homem pecador não pode reparar o dano pelo seu pecado.
Um mero homem sem pecado só poderia, potencialmente, fazer restituição por um
homem pecador. Reparação por muitos homens (“como a areia da praia”) só pode
acontecer através do Deus-homem, Jesus Cristo, por causa do valor infinito de sua
pessoa. Ele é o Messias designado por Deus, o único que pode trazer a salvação para
os pecadores por meio de sua morte e ressurreição. Pedro reconheceu essa grande
verdade, para seu grande benefício. Pela fé, Pedro confessou Jesus como o Cristo, o
Filho de Deus (Mt 16.16). Pela visão, Pedro agora contempla a glória de Deus na face
de Jesus Cristo. Aqueles que contemplam a glória de Deus na face de Jesus Cristo nesta
vida, pela fé (2Co 3.18), podem confiantemente esperar fazer o mesmo na vida por vir,
por vista (5.7). Essa é a nossa esperança; essa é a nossa alegria. É por isso que a única
esperança para a igreja hoje não é um mero homem, mas o Deus-homem, que
pergunta a você: “Quem dizes que eu sou”?

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