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António Faria

A BREVE HISTÓRIA DOS


ARQUITECTOS DE DIONISOS
ESCRITA POR
HYPPOLITO JOSEPH DA COSTA

Grémio Lusitano

LISBOA
2014
Apresentação

O MONÓLOGO DE DIÓNISOS

O presente trabalho aborda uma pequena publicação de Hipólito José da Costa Pereira
Furtado de Mendonça, natural da colónia de Sacramento, adstrita ao Brasil e
corresponde ao actual Uruguai. Hipólito José é conhecido na História por razões
políticas, científicas, jornalísticas, literárias mas, para os portugueses, por ser também
um dos obreiros do reconhecimento internacional do Grande Oriente Lusitano em 1802,
quer junto da Grande Loja de Inglaterra, para o Rito Escocês Antigo e Aceito, quer do
Grande Oriente de França para o Rito Moderno ou Francês.
A presente obra de Hipólito José intitula-se História dos Arquitectos de Dionisos, trata
essencialmente da “história do Mundo”, uma história do homem no seu universo
condensada em algumas dezenas de páginas profusamente anotadas. Essas notas são
mantidas de acordo com a grafia original. A ideia mestra de Hipólito José parte da
relação maçónica com a antiguidade pré-clássica e clássica, é abordada com mais
detalhe no posfácio, intitulado justamente “Coisas do Céu e da Terra”.
Porque se inclina igualmente sobre a natureza sagrada do teatro, para a melhor
identificação de Diónisos recorra-se a uma longa citação do texto de Natália Correia e
seja, também isso, uma lembrança honrosa da poetisa açoriana cujo talento reinou na
Lisboa do século XX. O uso indistinto de tragédia e drama merece também ser
esclarecido.
Natália Correia traduziu e anotou uma edição da peça As Bacantes, escrita por
Eurípedes na introdução da qual refere: «Pode-se também admitir que com As Bacantes,
que é uma peça sagrada, um mistério de Diónisos, pretendeu o poeta reconduzir a sua
dramaturgia às fontes sagradas e dionisíacas da tragédia, pugnando por uma
essencialidade que, na lucidez da sua genial velhice, lhe era imposta como elemento
vital do drama»1.
A asserção de Natália Correia surge explícita num diálogo entre Dionisos com o
mórbido e fanático Penteu, onde Eurípedes escreve:
«Penteu – Foi em sonhos que ele te instruiu ou estavas acordado?
Dionisos – Estivemos face a face e, assim, recebi os seus mistérios.
Penteu – Em que consistem eles?
Dionisos – Só os iniciados os podem conhecer.
Penteu – E que ganham os que celebram esses mistérios?»2
Numa nota referente ao nascimento de Diónisos, Natália Correia observa: «Cadmo teve
quatro filhas: Agave, Ino, Autonoe, Sémele, que está na origem do drama. Aconselhada
pela ciumenta Hera, mulher legítima de Zeus, Sémele quis contemplar em todo o seu
esplendor o seu amante divino (Zeus), tendo sido fulminada por um relâmpago, o que
provocou o parto prematuro do filho Diónisos»3.
Eurípedes abre a peça com um monólogo de Diónisos que tomou a figura humana para
deixar o mundo dos deuses e passar como humano na terra.
Diz Diónisos:
«Eis-me Dionisos, filho de Zeus, na terra tebana, Sou aquele que outrora Sémele, filha
de Cadmo, engendrou e que, fulminada pelo fogo do raio, pariu. Para vir às nascentes de
Dirce e às águas de Isménio, troquei a minha forma divina por esta carne mortal. Junto

1
Eurípedes, Bacantes, trad., int. e notas, Natália Correia, Porto, Civilização, 1969, p. 27.
2
Idem, ibidem, p. 197.
3
Idem, ibidem, p. 242.
do palácio, vejo o túmulo de minha mãe, a fulminada, e as ruínas da sua morada,
fumegantes do fogo de Zeus, para sempre assinalando a vingança de Hera e a sua ira
contra Sémele. Satisfaz-me que Cadmo tenha feito deste solo um santuário interdito aos
pés humanos que consagrou a sua filha e que eu próprio rodeei de vinha, envolvendo-o
em pâmpano adornado de cachos. Abandonei os campos da Lídia, fecundos em ouro e
as planícies da Frigia, pelos planaltos da Pérsia devorados pelo Sol, as cidades muradas
de Bactriana, o país dos Medos, gelados pelos Invernos, a venturosa Arábia e,
finalmente, toda a Ásia que se estende ao longo da ondas salgadas, com as suas cidades
onde se erguem belas torres, nas quais vivem misturados os Gregos com os Bárbaros.
Esta é a primeira cidade da Hélade que visito. Lá, nas regiões longínquas de onde
venho, conduzi os meus coros e instituí os meus ritos para me manifestar aos homens
como um deus. Se entre as cidades gregas é Tebas que eu escolho para sobressaltar com
a estridência dos meus gritos, lançando-lhe sobre o corpo a nébride e pondo-lhe na mão
o Tirso, esse dardo engrinaldado de hera, é porque as irmãs de minha mãe que, mais do
que ninguém deviam poupar-me a semelhante injúria, afirmaram que eu, Diónisos, não
era filho de Zeus e que Sémele, seduzida por um mortal, aconselhada pelo astucioso
Cadmo, atribuíra o seu pecado a Zeus. Com arrogância, proclamaram que Zeus lhe
enviou o raio para punir de haver-se gabado dos seus amores divinos. Eis porque, sob o
aguilhão do meu delírio, as forcei a abandonar os lares em bandos e, desvairadas,
habitam as montanhas, constrangidas a trazer as minhas insígnias orgíacas. E não só
elas, mas toda a população feminina de Tebas, todas as mulheres da cidade, eu
arranquei aos seus lares e, agora, erram, dementes, no meio dos rochedos e sob os
verdes pinheiros, misturadas com as filhas de Cadmo. Importa que esta cidade se
convença de que carece das minhas danças e dos meus mistérios e se aperceba de que
vingo a honra da minha mãe Sémele, manifestando-me aos homens como a divindade
que Zeus nela engendrou. Penteu, filho da filha de Cadmo, a quem este transmitiu o
trono, faz-me guerra, afastando-me das suas libações e nunca me invocando nas suas
preces. Mas saberei provar a ele e a todo o povo de Tebas a minha origem divina. Uma
vez estabelecida aqui a minha divindade, partirei para outras terras e, por todo o lado,
me manifestarei. Mas se a cidade dos tebanos ceder à cólera e, pelas armas, tentar
expulsar a Bacantes das montanhas, contra ela lançarei o meu bando de Ménades. Para
tanto tomei a aparência de um mortal e troquei o meu aspecto divino pelo corpo de um
homem. Oh, vós que deixastes o Tmolos, muralha da Lídia, oh, vós minhas mulheres,
iniciadas nos meus mistérios que trago das regiões bárbaras e a meu lado caminhais!
Erguei os tamboris nativos da Frigia, por mim inventados e por Reia, a Grande-mãe!
Fazei-os ressoar à volta do palácio de Penteu para que toda a cidade de Cadmo ponha os
olhos em vós, enquanto eu irei juntar-me à Bacantes, no flanco de Citéron, onde
conduzirei os meus coros»4.
Acerca dos “arquitectos de Diónisos” na sua relação com a Maçonaria, é Hipólito José
da Costa quem melhor explicita a sua escolha com evidente erudição.

António Faria

4
Idem, ibidem, p. 179-181
BREVE HISTÓRIA
DOS ARQUITECTOS DE DIONISOS

por Hyppolito Joseph da Costa, Esq.


BREVE HISTÓRIA DOS ARQUITECTOS DE DIONISOS

Os mistérios dos antigos e as associações em que as suas doutrinas foram


transmitidas têm sido aceites com muita dificuldade nos tempos modernos e sempre
com o objectivo de as desacreditar e ridicularizar.
Os sistemas da mitologia antiga têm sido tratados como monstruosidades
absurdas, aviltantes para a razão, porque conduzem à idolatria e favorecem a
depravação dos costumes.
Contudo, serão dignas da maior atenção se se tiverem em conta os motivos dos
seus criadores e mais ainda a perversão e a ignorância dos seus detractores.
Quando os homens viviam privados da luz da revelação, que levou à formação de
sistemas de moral para guiar os contemporâneos, de acordo com os ditames do
aperfeiçoamento da razão, digna da gratidão da humanidade, embora insuficiente por
aquilo que os sistemas deviam ser ou pelo que o tempo ainda não tinha ainda alterado
neles; respeito e não despeito deviam ser tomados em conta face aos esforços destes
homens bons; pensar que o seu trabalho não devia ser considerado inútil.
É deste ponto de vista que se deve considerar uma associação, erguida na mais
remota antiguidade e preservada através de inúmeras vicissitudes, que manteve sempre
as marcas originais da sua fundação, campo de acção e doutrinas.
Julga-se que, num período bastante recuado, alguns homens contemplativos
estariam desejosos de deduzir, a partir da observação da natureza, regras morais para a
conduta da humanidade. A Astronomia era uma ciência adequada a este propósito; em
seguida, a Arquitectura foi chamada em auxílio deste sistema; e os seus seguidores
formaram uma sociedade ou seita, que tinha como objecto esse conhecimento.
Por vezes, a continuidade deste sistema encontraria obstáculos, efeito natural de
teorias contraditórias, da alteração de costumes e de mudança de circunstâncias, mas
apareceria em períodos diferentes e a mesma verdade seria constantemente observada.
A importância de calcular com precisão as estações do ano, para regular os
trabalhos agrícolas, a navegação e demais actividades da vida, fizeram da ciência da
Astronomia um objecto de grande atenção no governo de todas as nações civilizadas; e
a previsão dos eclipses e outros fenómenos, alcançaram entre os eruditos desta ciência,
muito respeito e veneração da parte da multidão ignorante, tal como torná-la útil ao
legislador, ao elaborar leis para regulamentar a conduta moral do seu povo.
As leis da natureza e as regras morais daí deduzidas eram explicadas através de
histórias alegóricas, que designamos por fábulas e estas histórias alegóricas eram
impressas na memória através de cerimónias simbólicas denominadas mistérios e que,
apesar de mal compreendidas e mal aplicadas depois, contêm sistemas do mais
profundo, do mais sublime e da mais útil teoria filosófica.
Entre estes mistérios são particularmente notáveis os de Eleusis, de Dionisos,
Baco, Osíris, Adonis, Tamuz, Apolo, etc., nomes que foram adoptados em várias
línguas e em diversas nações para designar a divindade que era objecto dessas
cerimónias e admite-se geralmente que o significado das designações era Sol5.
Comecemos com um facto, não contestado, que nestas cerimónias era
representada uma morte e uma ressurreição e que o intervalo entre morte e ressurreição
era por vezes de três dias e outras vezes de quinze dias.
Agora, com o testemunho convergente de todos os autores antigos6 as deidades
chamadas Osíris, Adonis, Baco, etc., eram nomes dados a, ou a caracteres que
representavam o Sol, considerado em diferentes situações e contemplado sob vários
pontos de vista7.
Por conseguinte, estas representações simbólicas, que descreviam o Sol enquanto
morte, o que quer dizer, oculto durante três dias sob o horizonte, só podia ter origem
num clima onde o Sol, quando está no hemisfério inferior, fica, numa determinada
estação do ano, fora dos olhares dos habitantes durante três dias.
Tal clima pode, de facto, ser encontrado na região Norte à latitude 66º e é razoável
concluir que tais cerimónias, a adoração do sol, podem ser originárias de um povo que
vivesse perto do círculo polar; e alguns supuseram que esse povo foram os Atlântidas8.
A adoração do sol está geralmente associada aos ritos Mitraic e que estes foram
inventados pelo Magi da Pérsia. Mas se o Sol pode ser tido como objecto de veneração,
se a preservação do fogo pode ter sido mantida para servir cerimónias religiosas, o mais
natural é que isso podia ter acontecido com um povo que vivesse num clima gelado,
para o qual o sol é o maior conforto, cuja ausência sob horizonte durante três dias é um
acontecimento deplorável, e cujo ressurgimento acima do horizonte é uma verdadeira
fonte de alegria.
Não assim na Pérsia, onde o sol nunca está oculto durante três dias sob o
horizonte, e onde os raios dardejantes estão longe de ser uma fonte de prazer, porque
para ser protegido deles, para fruir uma sombra fresca, é um desses confortos, que é
tudo quanto toda a arte engenhosa faz para alcançar. A adoração do sol, portanto, e o
uso do fogo sagrado, devem ter sido uma introdução estrangeira na Pérsia.
A conjectura é confirmada por alguns factos importantes, alusões que,
relacionados com a astronomia, coloca a ocorrência fora da Pérsia, conquanto a teoria se
encontre aí.
No Boun Dehesch (traduzido por Anquetil Du Perron p. 400) encontramos que «o
dia mais longo do Verão é igual aos dois mais curtos do Inverno; e que a noite mais
longa no Inverno é igual a duas noites de Verão».
Esta circunstância só pode ter lugar à latitude de 42º 20’ onde o dia mais longo do
ano tem dezasseis horas e dez minutos e o mais curto oito horas e cinco minutos.

5
A quantidade de autoridades para provar isto foram coligidas por Kirker, vol. I,
p. 288.

Ogygia me Bacchum canit,


Osíris Egyptus putat,
Arabia gens Adoneum.
Ausonius in Myobarbum
Epig. 29.
6
Meursius coligiu todos as autoridades e fragmentos encontrados em autores
antigos acerca das cerimónias de Eleusis.
7
Plutarco. De Iside et Osiride.
8
Recherches sur les Atlantides.
Esta latitude está longe das fronteiras da Pérsia, onde a história situa Zoroastro, a
quem são atribuídas as doutrinas sagradas do livro persa Boun Dehesch. Porém esta
proporção de dias e noites, como regra geral pode ser verdadeira na Scythia, onde estão
as nascentes do Irtisch, do Oby, do Jenisci ou do Slinger.
Nada se sabe acerca da história antiga destes Scythios ou Massagetes, mas
sabemos que disputam a sua antiguidade com os Egípcios 9.
E que o princípio citado, portanto atribuído ao persa Zoroastro, só é aplicável à
nação destes Scythios.
Mas deixemos a origem dos mistérios do sol começar onde pode, eram celebrados
na Grécia, em vários lugares, entre outros em Apolónia, uma cidade dedicada a Apolo, e
situada na latitude 41º 22’10.
Nesta latitude o dia mais longo tem quinze horas, diferindo três horas da duração
do dia em que o sol está no equinóxio: com as noites dá-se o caso contrário.
Esta circunstância faz com que, para preservar três dias nestes mistérios, tal como
se celebra na Grécia, e também para os quinze dias ou representação do número quinze
tal como nos ritos de Eleusis.
Os números misteriosos eram empregados para designar as mesmas ou operações
similares da natureza, por isso se diz que os símbolos e segredos pitagóricos eram
extraídos dos ritos órficos ou eleusicos; e que consistiam no estudo das ciência e
utilização das artes, unidos com a teologia e a ética, e eram comunicados por meio de
cifras e símbolos11.
Intimações similares. Pode encontrar-se a importante mística dos números em
muitos outros autores12. As letras representam números, formando nomes cabalísticos,
expressão das qualidades essenciais das coisas que se pensa representar; e assim como
os gregos, quando traduziram nomes estrangeiros, cuja importância cabalística
conheciam, assim fizeram com as letras gregas, como preservar a mesma interpretação
em números, que vemos exemplificado no nome Nilo13.

9
Heródoto.
10
Martiniere Dicc. Geogr. Art. Appolonia.
11
Jamblicus, part. I cap 32.
12
Plutarco (na Vida de Numa) diz que «para oferecer um número ímpar aos
deuses celestiais, é conveniente um igual aos terrestres. O sentido de que está oculto ao
vulgar». O mesmo Plutarco (em Vida de Licurgo) ao explicar o número de senadores
espartanos, que era de vinte e oito, diz «alguma coisa é talvez ser um número perfeito
formado por sete, multiplicado por quatro e juntamente com o primeiro número depois
de seis que é igual a todas as suas partes». Uma outra prova da importância mística dos
números encontra-se e Plutarco (em Vida de Fábio). «A perfeição do número três
consiste em ser o primeiro dos números ímpares, o primeiro dos plurais e que contem as
primeiras diferenças e o primeiro elemento de todos os números».
13
A fertilidade causada pelas inundações do Nilo nas regiões ribeirinhas levou a
que este rio fosse considerado como uma representação mística do sol, pai de toda a
fecundidade da terra; e por isso foi dado um nome que contém o número 365, ou dias do
ano solar. Os gregos conservaram o nome:
 
 
 
 
 
 
Mas o número três ao qual são feitas muitas alusões místicas e morais, têm uma
referência aos três círculos celestiais, dois dos quais o sol toca, passando sobre o
terceiro no seu curso anual14.
Os mistérios de Eleusis, o mesmo que os de Dionisos ou Baco, era suposto terem
sido introduzidos na Grécia por Orfeu15
Devem ter vindo do Egipto, mas o Egipto deve te-los recebido num período
anterior dos persas e estes dos Scythios; mas tomando-os apenas tal como os
encontramos na Grécia, daremos então uma nota destas cerimónias.
O aspirante aos mistérios não era admitido até chegar a uma certa idade e, a fim de
o preparar para os ritos de iniciação, eram indicadas certas personalidades 16.
Aqueles, cujo comportamento fosse irregular ou culpado de crimes atrozes, eram
rejeitados, aqueles que fossem dignos de admissão eram então instruídos por meio de
símbolos significativos nos princípios da sociedade17. Na cerimónia de admissão a estes
mistérios, em primeiro lugar o candidato era mostrado numa sala escura, chamada
capela mística 18.
Faziam-lhe algumas perguntas. Quando eram introduzidos, era aberto à sua frente
o livro sagrado, entre dois pilares ou pedras19; ele era privado de visão20; era posto
perante uma extraordinária quantidade de luminárias, algumas das quais eram dignas de
referências especiais.
Ele ficava de pé numa pele de carneiro; a pessoa à sua frente era chamada para
revelar coisas sagradas21; esse estava também vestido com uma pele de carneiro ou com
um manto de púrpura, e no ombro esquerdo uma pele de mula manchada ou matizada ,
representando raios de sol ou estrelas22.

 
365
14
Potter’s Grec Antiq.
15
Dionisius Sículus, Lib VI, diz que os atenienses inventaram os mistérios
elêusicos; mas o primeiro livro da sua Biblioteca diz que foram levados do Egipto por
Erecteus.
Theodoret Lib Grec. Affect, diz que foi Orfeu que inventou estes mistérios imitando,
contudo, as festas egípcias a Isis.
Arnobius e Lactandus descrevem estes mistérios tal como faz Clemente.
16
Hesichius in . «Eram exortados a controlar as suas paixões. Porphir ap.
Sob. Ecclog. Phis. P. 142.
17
Clemente, Strom Lib. I p. 325, Lib VIII p. 854.
18

19

20

21

22
Macrobius Saturnalia Lib I c. 8 Copiarei aqui uma tradução desta passagem, que
li em qualquer parte.

«Ele que deseja na pompa da sagrada veste


exprimir pelo corpo o sol que resplandece
Primeiro enverga o brilho na púrpura do manto
É sublime a luz ardente que o envolve de branco radiante;
Uma pele de mula inteira no ombro direito
Imensamente diferente do reconhecido orgulho,
Uma imagem pendente do pólo divino
A uma certa distância permanece o porta-chama23; que representa o Sol e ao lado
do altar está uma terceira personagem que representa a Lua24; apercebemo-nos que
sobre estas assembleias presidem três pessoas, em diferentes acções, e pode notar-se que
no governo das caravanas nas regiões do Oriente, são três as pessoas que as dirigem,
além há cinco oficiais principais, ale disso três matemáticos; estas três personagens são
o comandante em chefe que regulamenta tudo; o capitão da marcha, que tem o poder de
regulamentar o curso durante o itinerário pela caravana; e o capitão do resto, ou
refresco, que assume o governo quando a caravana estaciona para refrescar-se25.
Alguns autores observaram a mesma divisão do poder na marcha dos israelitas
através do Deserto, e consideram Moisés como o capitão general, Joshua o capitão da
marcha e Aarão talvez o capitão do restante26.
A sociedade de que falamos, era regulamentada por três pessoas, com deveres
diferentes distribuídos entre si segundo um costume da mais remota antiguidade.
Os mistérios, contudo, não eram comunicados de uma só vez mas por graus27 em
três fases distintas. Os trabalhos de iniciação propriamente dita dividiam-se por cinco
momentos, como se encontra numa passagem de Theo, que compara a filosofia a estes
ritos místicos.

E estrelas cintilantes cujas orbitas eternas brilham;


Uma esplêndida faixa de ouro, sobre a sua veste
Que deve ostentar, cingi-la à volta do peito,
Como um forte sinal de luz dourada.
O sol resplandece na terra no último momento e a noite
Emerge de súbito com uma força incomparável
Lança sobre as ondas do velho Oceano em sua direcção,
Um esplendor infindo guardado como uma relíquia
Brinca na espuma, glorioso para a vista,
Enquanto as águas circundantes afluem divulgando
Em presença plena o deus radiante;
Mas o círculo do Oceano, como uma zona de luz
No largo seio do sol veste e encanta o quadro maravilhoso.
23

24
Atheneus, Lib. V cap. 7 , Apuleius Lib Metamorph.
25
Fragmentos, Dicionário de Calmer. Dissertação sobre as caravanas, obtida da
Col. Viagens na Índia de Campbell
26
Cf. supra nota 21.
27
Uma vez mais a filosofia pode ser chamada a iniciação às cerimónias sagradas e
à tradição dos mistérios autênticos; por esta razão a iniciação tem cinco partes. A
primeira é a purgação prévia; nem se comunicam estes mistérios a todos quantos estão
prontos para os receber; mas há certas personagens que são impedidas pela voz do
prelector; tais como aqueles a quem tenha as mãos impuras e uma voz desarticulada;
visto isto é necessário que aqueles que não se excluíram dos mistérios possam em
primeiro lugar ser purificados por certas expurgações; mas depois da purga acontece a
tradição dos direitos sagrados; A terceira parte é denominada inspecção. E a quarta, que
é o termo, a fixação das coroas; assim que o iniciado possa, por estes meios, estar
pronto para comunicar aos outros os ritos sagrados, nos quais foi instruído; depois disto
ele torna-se Porta-Archote, ou um intérprete dos mistérios, ou detém qualquer outra
parte do ofício sacerdotal. Mas o quinto, que é produzido por tudo isto, é a amizade e
divindade, e a alegria desta felicidade, que advém da conversa íntima com os deuses.
Theo de Smyrna, in Matematic. p. 18.
Estas cerimónias, até então, apresentam-se para conter os mistérios menores ou o
primeiro e o segundo grau do candidato no seu progresso no decurso das suas
iniciações. Havia contudo um terceiro grau, quando o próprio candidato simbolicamente
se aproximava da morte e depois regressava à vida28.
Nesta terceira fase da cerimónia, o candidato era estendido sobre o leito29 para
representar a sua morte.
Tal como nos festejos, nos quais estes mistérios eram celebrados, verificamos que
no 17º mês Athyr30 as imagens de Osíris eram fechadas num cofre ou numa arca: no 18º
era a procura31; e no 19º era o encontro32
Enquanto nas fábulas ou histórias simbólicas, que relatam estes mistérios,
encontramos Adónis morto e ressuscitado; as mulheres sírias choravam por Tamuz, etc.
Vamos examinar agora o que se pensava por via desta morte e ressurreição
simbólicas ou, no dizer de certas personagens, que visitavam o Hades e regressavam de
novo33.

28
«Aproximei-me dos confins da morte e pisando o limiar de Proserpina e sendo
levado através de todos os elementos, voltei de novo à minha situação original. No
abismo da meia-noite vi o sol refulgir com a sua luz esplêndida juntamente com os
deuses infernais e sobrenaturais e aproximar-me mais até junto destas divindades, paguei
o tributo da devota adoração». Apuleius Metamorph. Lib. III.
29

30
Este mês Athyr, de acordo com o ano juliano, corresponde a Novembro ou com
o solstício de Inverno; mas com os judeus, o mês de Tamuz, quando se celebravam na
Judeia as solenidades de Adónis, era em Junho, ou solstício de Verão. A razão parece
ser que os judeus tomando este mês do vago dos egípcios ( e não do ano fixo) situavam
Tamuz no solstício de Verão. Senden De diis Syriis, Kirker vol. I p. 291)
31
Plutarco.
32
Plutarco.
33
Podemos verificar aqui que as fábulas eram portadoras de mais de um sentido;
como prova disso copiamos a seguinte passagem:
«Algumas das fábulas são teologais, outras animistas ( ou que relatam a alma) outras
materialistas e, por fim, outras que misturam estes três aspectos. As fábulas são teologais
que empregam nada de corpóreo antes especulam sobre a profunda essência dos deuses:
assim é a fábula que Saturno devorou os seus filhos; para isso nada mais insinua do que
a natureza de um deus intelectual, porquanto o intelecto regressa a si mesmo. Meditamos
fisicamente as fábulas quando falamos sobre as energias dos deuses acerca do mundo;
considerando Saturno como tempo e designando partes do tempo as crianças do
Universo, concluímos que as crianças foram devoradas pelos pais. Mas empregamos as
fábulas com um sentido animista quando contemplamos as energias da alma; porque a
intelecção das nossas almas, ainda que por uma energia discursiva, correm em direcção a
outras coisas, já vivendo em seus pais. Por último, as fábulas são material, tal como os
egípcios na sua ignorância o empregam, chamando corpóreas a entidades divinas; tais
como Isis, Terra, Osíris, Humidade, Tufão, Calor; ora. Se uma vez mais designarmos
Saturno por água, Adónis fruto e Baco vinho. E, evidentemente, aceitar que estas sejam
dedicadas aos deuses, do mesmo modo que as ervas, pedras e animais, é a parte dos
homens prudentes: mas chamar-lhes deuses é unicamente obrigação de loucos ou de
homens maus; A não ser que falemos da mesma maneira, tal como do costume
estabelecido falamos da órbita do sol e dos próprios raios de sol. Mas podemos
compreender a espécie mista de fábulas, assim como de outras especificidades, quando
se relata, que discorda, no banquete dos deuses por causa da maçã de ouro, e que a
Verifica-se que esta característica em todas as suas formas e denominações,
indicava o sol a passar para o hemisfério inferior e regressando em seguida ao
hemisfério superior34.
Os egípcios, que cumpriam esta adoração ao Sol, sob o nome de Osíris,
representavam o Sol sob a figura de um homem velho, bem antes do solstício de
Inverno, simbolizaram-no por Serapis, que tem a constelação de Leão do lado oposto, a
Serpente ou Hidra sob ele, o Lobo a leste do Leão e o Cão a Oeste. Este é o aspecto do
hemisfério sul à meia-noite neste período do ano.
Os mesmos egípcios representaram o Sol pelo jovem Harpocrates no equinócio da
Primavera; e havia então a festa da morte, enterramento e ressurreição de Osíris; isto
quer dizer que o Sol no hemisfério inferior; no momento que reaparece e brilha no
hemisfério superior.
Nesta situação o Sol é chamado Horus, Mithras, etc., e saudado como sol invictus.
Vamos agora indicar outros símbolos que exprimem o mesmo fenómeno, ainda que
diferente daqueles que temos tratado até este momento.
Nos monumentos astronómicos Mithrical aparece a figura de um homem que
domina e mata um touro, de cada lado há duas figuras com archotes; uma apontando
para cima outra para baixo.
Estes monumentos, nos quais os mistérios em questão eram representados, o
homem que mata e domina o touro representa o Sol ao passar para o hemisfério
superior, através do signo de Touro, que neste período remoto (quatro mil ou seis mil
anos antes da nossa era) era o signo equinoxial. Os dois porta-archotes, um apontando o
archote para baixo, o outro para cima, representam o sol a passar do inferior para o
superior e regressando de novo35.
Ainda antes dos tempo remotos referidos, o Sol entrave no signo Touro no
equinócio de Verão e para os astrónomos egípcios o ano começava neste período36 .
Em seguida, em consequência da precessão dos equinócios, o equinócio de Verão
tinha lugar no signo de Áries; daqui parte dos egípcios mudarem a adoração do touro ou
vitelo para o carneiro37; enquanto outros continuaram a adorar o touro38.

disputa dela cresceu entre as deusas, foram enviadas por Júpiter para tomar julgamento
de Paris, que, encantado com a beleza de Vénus, lhe deu uma maçã preferindo-a às
demais. Porque nesta fábula o banquete denuncia os poderes supermundanos dos deuses,
e por causa disto, a conjunção permanente com cada um; mas a maçã de ouro significa o
mundo, que por causa da sua composição de naturezas contrárias, não é incorrecto dizer
que está desgastado pela discórdia e pela disputa. Mas ainda uma vez mais, desde os
diversos presentes que são oferecidos ao mundo por deuses diferentes, aparecem a
contestar uns com os outros pela maçã. E uma alma que vive de acordo com o seu
sentido, (e neste caso é Paris) e não percebendo outros poderes no Universo, entende
apenas que a maçã é apenas a beleza de Vénus. Desta espécie de fábulas, tal como
teologicamente pertencem aos filósofos, o físico e o animista aos poetas. Mas foral
mistas com os ritos iniciáticos e a intenção de todas as cerimónias místicas é unir-nos ao
mundo e aos deuses.
Salústio, o Filósofo Platónico.
34
Orfeu, Hino, Sol e Adão.
35
Kirker, vol. I p. 127. Vide Hide, Hist. Vet. Persar. 113.
36
Os egípcios começavam a contar os meses a partir do tempo em que o sol
entrava no início do signo Áries» Rabb. A. Seba.
37
«Porque é que ele (Aratus) tomou o começo do ano de Câncer, quando os
egípcios datam o princípio de Áries?» Theon., p. 69.
Podemos explicar isto na linguagem dos modernos astrónomos dizendo que os
eruditos egípcios continuaram a orientar-se pelo Zodíaco móvel; e esta circunstância
produziu uma multiplicação de seitas entre o povo, assim como uma divergência de
opiniões entre os eruditos.
De igual modo, pela mesma precessão dos equinócios, o Sol passou de Áries para
Peixes no Equinócio da Primavera, cerca de trezentos e trinta e oito anos antes da nossa
era; por isso o início do ano continuou a ser calculado de Áries. Se a astronomia egípcia
e a religião egípcia existiram com igual vigor, foi porque ambos teriam sofrido talvez
uma alteração idêntica; mas os sistemas egípcios neste período foram aniquilados.
Podemos observar, todavia, que os cristãos, no início da nossa era, marcavam os
túmulos com peixes, como emblema de cristandade, para distinguir os seus sepulcros
dos pagãos, como um símbolo desconhecido para estes.
Retomando o nosso assunto depois desta pequena digressão, temos de observar
que, se estas cerimónias e símbolos querem significar a representação do Sol, e as leis
do seus movimentos, estes diversos fenómenos da natureza foram estudados de um
ponto de vista moral, como sendo eles próprios modelos ou argumentos para uma
filosofia mais sublime ou metafísica; e as regras morais deles deduzidas, foram
impressas na memória através destas imagens e representações vivas.
A imersão do Sol no hemisfério inferior, e o seu regresso, foi contemplado
também como uma prova ou um símbolo da imortalidade da alma; uma das mais
importantes, talvez o mais sublime preceito da Filosofia Platónica39.
As doutrinas da espiritualidade e imortalidade da alma, exposta por estes
símbolos, foram muito pouco compreendidos, mesmo pelos iniciados; encontramos isso
em alguns deles40 tomando estes tipos para significar meramente o corpo presente, pelas
suas descrições dos sofrimentos infernais; porém, o verdadeiro sentido destes mistérios,
inculcou a doutrina de um estado futuro da alma, futuros castigos e recompensas; e
assim é que foram reveladas essas as doutrinas desses filósofos por muitas reputadas
autoridades41.

Herodotus (I, 2 cap. 24 diz que a estátua de Júpiter Ammon tinha a cabeça de um
carneiro. Eusebius (Praeparat Evang. I, 3, cap. 12) diz que o ídolo Ammon tinha a
cabeça de carneiro com os chifres de uma cabra.
38
Strabo (I, 17) informa-nos que no seu tempo os egípcios ainda sacrificavam
carneiros mas no Niotic Nome.
39
«Também Píndaro, falando dos mistérios elêusicos, deduz esta inferência:
“Ferido está ele, que tendo visto as coisas vulgares sobre a Terra, também conhece o que
é o fim da vida, porque conhece o império de Júpiter», Clemente Strom. Lib III, p. 518.
«Desde em Phaedo ele venera com um subido silêncio, a asserção enviada pelos
Discursos Arcanos; este homem está colocado no corpo, como numa certa prisão, seguro
por um guarda, e testemunha, de acordo com as cerimónias místicas, as diferentes
porções de alma pura e impura no Hades; os seus hábitos, e o tríplice caminho que
desperta das suas essências, e então, de acordo com as instituições paternais e sagradas,
todos quantos estejam imbuídos pela teoria dos símbolos, e pelas descrições poéticas que
concernem à ascensão e queda das almas, dos signos dionisíacos, a punição dos Titãs, o
castigo e a vida errante no Hades, e todas as coisas da mesma espécie», Proclus, in
Comm. of Plauto’s Politics.
40
Macrobius.
41
«Vivemos a sua morte e morremos a sua vida» o próprio Macrobius.
A união da alma com o corpo foi considerada a morte da alma; a sua separação
como a ressurreição da alma42 e tais cerimónias e caracteres foram projectadas para
marcar a doutrina da imersão da alma na matéria como fica confirmado43
Pelo emblema do Sol descendente para o hemisfério inferior era também
representada a alma do homem, que pela ignorância e incultura, estava num estado
comparável ao sono ou talvez à morte; este mistério destinava-se a estimular o homem
para o estudo das ciências44.
Os egípcios consideravam também a matéria como uma espécie de lama ou lodo,
dos quais a alma estava impregnada45; no mesmo sentido podemos encontrar num autor
antigo a recapitulação destas teorias46

42
«Os antigos teólogos testemunham também que a alma está no corpo, como
num sepulcro, para sofrer o castigo» Clemente, Strom. Lib III p. 518.
43
«Quando a alma desce para a procriação participa no mal e penetra
profundamente na região da dissimulação, para ser submersa inteiramente em nada mais
do que o escuro lodo».
Ou ainda
«A alma morre através do vício, tanto quanto é possível para a alma morrer e a morte da
alma é, submersa ou baptizada, como se fora, no corpo presente, para descender até à
matéria, e cheia por essas impurezas; e depois partindo deste corpo, para jazer absorvida
por essa imundície, até regressar a uma condição superior, e elevar os seus olhos da do
opressivo lodo. Para ser mergulhada na matéria é descender ao Hades, e aí ficar
adormecido». Plotino, Ennead. I, Lib. VIII, p. 80
«Que miserável homem eu sou! Quem poderá livrar-me do corpo desta morte?» Rom
VII v. 24.
44
« Aquele que não está preparado pelo exercício da razão para definir a ideia de
bom, separando-o de outros objectos e penetra, como numa batalha, através de cada um
dos argumentos; esforçando-se por refutar, não concordar com a opinião, mas concordar
na essência, e agindo através de todas estas energias dialécticas, com uma razão firme:
ele que não pode cumprir isto, não te dirá que nada sabe sobre o próprio bom, nem coisa
alguma a que possa chamar bom? Poderás tu não afirmar que alguma coisa, quando
apreende qualquer imagem da realidade, apreende-a completamente tanto por meio da
opinião como da ciência; que nesta vida presente se afunda no sono e levado ao engano
dos sonhos, e o que antes estava num estado vigil, descerá ao Hades e ser protegido com
um sono perfeitamente profundo? Platão, De Rep. Lib. VII.
45
Os egípcios chamavam matéria (que simbolicamente designavam por água) ao
refugo ou ao sedimento da primeira vida, sendo a matéria, como foi, um certo lodo ou
lama. Simplicius, in Aris. Phis p. 50.
46
«Finalmente, pelo que eu posso compreender da opinião dos teólogos antigos
sobre o estado da alma após a morte, em poucas palavras, eles consideravam, como já
verificamos, as coisas divinas como únicas realidades e que tudo o mais eram apenas as
imagens ou sombras da verdade. Por isso eles verificaram que os homens prudentes, que
se empenharam seriamente nos assuntos divinos, estavam acima dos restantes num
estado de vigilância. Mas esses homens imprudentes, que procuravam objectos de
natureza distinta, estando adormecidos, como estavam, ficaram comprometidos apenas
na desilusão dos seu sonho; e que se eles desejavam morrer nesse sono, antes de terem
despertado, ficariam muito aflitos com as visões ainda mais ausentes num futuro estado.
E aquele que neseas realidades procuradas pudesse gozar depois da vida a verdade mais
elevada; assim é que quem jogar com falácias, pode vir a ser atormentado por falácias e
desilusões extremas; como aquele que se delicia com os objectos verdadeiros da alegria,
Os persas, que seguiram os preceitos de Zerdoust, chamado Zoroastro pelos
gregos, tendo recebido as mesmas doutrinas pela contemplação mística do Sol, fez a
mesma aplicação à alma, da passagem do Sol pelos signos do Zodíaco47.
O Sol, além disso, foi considerado como o símbolo do princípio activo; ao passo
que a Terra e a Lua era símbolos do passivo48.
O próprio Sol, considerando a sua influência benéfica sobre o mundo físico, foi
escolhido como símbolo da Deidade, tomado de imediato pelo vulgo como Deidade49
Deve ser observado aqui em especial, que os diferentes nomes, que os egípcios (de
quem os gregos aprenderam) davam a Deus, em vez de pensar vários deuses eram
apenas expressões dos efeitos de um Deus único produzido por deuses diferentes50.

também o outro será atormentado pelos aspectos dessuasores da realidade», Ficinus, De


Imortalitate Anim. Lib XVIII p. 411.
47
Platão menciona que Zoroastro doze dias depois da morte, quando estava
colocado no féretro, regressou à vida, que talvez representava, senão outra coisa mais
abstrusa, a ressurreição daqueles que foram recebidos no céu, indo através dos doze
signos do Zodíaco; e diz ele, além disso, tomaram a alma para descer através dos
mesmos signos quando tem lugar a geração. Num outro sentido pode entender-se como
os doze trabalhos de Hércules, pelos quais, quando feitos, a alma se libertou de todos as
dores deste mundo. Clemente, Strom. Lib. V p. 711.
48
Apuleius.
49
Mocopulus, in Hesoid, Ptol. Ver Cudworth, livro I, cap. 4 «Este Deus, se deve
ser chamado àquilo que está acima do espírito e compreende, ou a ideia de todas as
coisas, ou o único (desde que a unidade parece ser a mais antigas de todas as coisas) or
outra coisa, como Platão quis tratá-lo, o Deus, falo desta causa uniforme de todas as
coisas, que é a origem de toda a beleza e de toda a perfeição, unidade e poder, produziu
de si mesmo um Sol inteligível, tal como ele em cada caminho, do qual o Sol sensível é
apenas uma imagem» Julian Orat. In praise of the Sun.
«Vemos a unidade (de Deus) tal como o Sol obscurecido pela distância, se te
aproximares, mais obscuro fica; e, finalmente, impede que vejas seja o que for.
Realmente é uma luz incompreensível, inacessível; e profundamente ele é comparado ao
Sol, quanto mais olhas para ele mais cego te tornas» Damascius Platonicus, De Unitate.
«As relíquias dos sectários de Zoroastro, agora chamados na Pérsia Guebres,
que levam uma vida miserável, e são mais perseguidos pelos maometanos do que os
judeus pelos cristãos na Europa, continuar a aperfeiçoar a sua devoção, e a fazer as suas
orações ao Sol e ao Fogo, mas asseguram que não os adoram por si mas antes os
concebem como símbolos da Deidade». Vide Stanley, De Vet. Persar.
50
«O primeiro Deus, antes de ser e só, é o pai dos do primeiro Deus, que gerou,
preservando a sua solitária unidade, e isto está acima de qualquer compreensão, e este
protótipo que é considerado como o seu próprio pai e verdadeiramente bom Deus …
Este é o princípio, Deus dos deuses, unidade de um, essência superior, o princípio da
essência, essência que vem dele, estes são os princípios mais antigos de tudo… Esta
inteligência de agir e operar, que é a verdade do Senhor, e a ciência, tanto quanto mais
avança gerando, trazendo à luz o poder oculto das razões dissimuladas, na linguagem
dos egípcios é chamado Ammon; mas quanto mais ele age sem falácias, e do mesmo
modo artificialmente com a verdade, é chamado Phta; os gregos chamam-lhe Vulcano,
considerando a agir e o operar; e tanto mais que ele é o agente de todo o bem é
designado por Osíris, que em consequência da sua superioridade tem muitas outras
denominações, em virtude dos muitos poderes e diferentes acções, que ele exercita»
Jamblicus, De Myst Egypt.
Não muito diferente do que os judeus deduziram do grande nome
Tetragramaton51.
As fábulas, alegorias, e caracteres dos antigos, que são de três espécies 52 contêm
por vezes diversos sentidos; além disso, algumas das cerimónias às quais é conferida
uma importância sublime, são também aplicadas para tipificar operações menos
dignificadas, no sistema natural. Assim, por exemplo, a fábula de Prosérpina, que alude
à imersão da alma no corpo, foi também empregue para simbolizar a operação de
semear a terra53.
Mas a doutrina geral de Platão da descida da alma à escuridão do corpo, os perigos
das paixões, os tormentos do vício, aparecem perfeitamente descritos por Virgílio 54; este
poeta pertencia de facto à seita epicurista, a mais elegante desses tempos.
Os mistérios menores representados, como vimos, a descida da alma ao corpo, e
os sofridos ali infligidos. Os maiores mistérios destinavam-se a caracterizar as visões
esplêndidas ou os mais felizes estado de alma, ambos aqui e agora, quando purificados
da corrupção da natureza material. Estas doutrinas foram igualmente inculcadas pelas
fábulas das ilhas afortunadas, os campos Elísios, etc. As purificações diferentes nestes
ritos eram símbolos da gradação das virtudes, necessárias à re-ascensão da alma. A
pureza interior, da qual as purificações exteriores eram símbolos, só podia ser obtida
pelo exercício destas virtudes55 para a alusão destas virtudes deve ser compreendido o
que Sócrates disse56, que a tarefa dos filósofos é estudar o morrer e estarem eles
próprios mortos; e ao mesmo tempo ele reprovava o suicídio, tal morte não podia pensar
nenhuma outra salvo a morte filosófica, ou o exercício do qual ele chama as virtudes
catárticas.
Se este era o sentido e a importância dos ritos, símbolos e cerimónias elêusicas e
dionisíacas, deve permitir-se que a sociedade ou a seita, que empregou na contemplação
destas verdades sublimes, não pode ser olhada sobre as frivolidades ou desregramento.
Os padres cristãos, que atacaram a religião pagã com tanta força, confessaram a
utilidade destes símbolos57; e que as circunstâncias prévias para iniciação a estes
mistérios tendem a excluir noções empíricas e preparar o espírito a ouvir a verdade58

51
Os hebreus chamam-lhe (HEBRAICO) Shem Hamphoresh.
52
V. not p. 14.
53
Porphyr. Citado por Eusebius De Preap. Lib. III, cap. 2.
54
Eneid. Lib VI.
55
«Nos ritos sagrados, as purificações populares são em primeiro lugar trazidas
para diante, e depois destas seriam como que novos Arcanos. Mas em terceiro lugar,
eram recebidas conjuntos de várias coisas no interior de uma; seguia-se a isso a
inspecção. As virtudes éticas e políticas, enfim, são análogas para as purificações
aparentes (ou populares). Mas algumas das virtudes catárticas como banir todas as
impressões externas corresponde às purificações mais ocultas. As energias teoréticas
sobre o inteligível são análogas para os exames; mas a contracção destas energias para
uma natureza indivisível, corresponde à iniciação. A simples auto-inspecção de forma
simples é análoga à visão epoptica», Olimpiodorus in Fédon de Platão.
56
Vide nota 2, p.18.
57
«A interpretação da espécie simbólica é usual em muitos aspectos; Clemente,
Strom. Lib V p. 673
58
«Para antes da entrega destes mistérios, devem ter lugar algumas expiações.
Que estas, quem foi para ser iniciado, deve perder as opiniões ímpias, e ser convertido à
verdadeira tradição». Clemente, Strom. Lib. VII, p. 848.
Estes mistérios foram ocultados da gente vulgar; porque seria uma prostituição
ridícula das mais sublimes teorias abri-las à multidão incapaz de as compreender,
quando muitos dos iniciados, por falta de estudo e aplicação, não compreendiam o
sentido real dos símbolos.
A multidão só era chamada em abstracto, a doutrina de um estado futuro de
prémios e castigos, e eram mandados informar com o calendário, o resultado das
observações astronómicas; o conhecimento que estava relacionado com as festividades e
interesses agrícolas. De igual modo lhes eram ensinados aspectos práticos da ciência
calculados para uso geral.
O segredo destes mistérios foi a primeira causa da repreensão contra eles; depressa
vieram, atrás das dúvidas, a depravação dos seguidores e a perversão dessas
assembleias, primeiro em encontros de convívio, depois em associações mais
debochadas.
O segredo também foi proibido por lei, estava morto para poder revelar alguma
coisa que pertencera aos mistérios elêusicos; para evitar qualquer imprudência acerca
disso, foi considerado indecoroso; disso encontramos um testemunho inestimável em
Plutarco59.
Fora das considerações sobre este costume, aos alunos eram, em geral, ensinadas
apenas doutrinas esotéricas60; as doutrinas acroamáticas eram comunicadas em sessões
privadas e viva voce apenas a um pequeno grupo seleccionado.
Mas quando a ignorância de alguns professores destes mistérios ficou apenas pelas
suas formas, a essência estava perdida., só a sombra permaneceu; e então, estas formas e
cerimónias eram frequentadas por pessoas que ignoravam a sua importância, e
perverteram o suficiente para defender os seus interesses privados, como uma maquina
empregada para defraudar o povo, e para ocasiões de deboche e depravação. Vamos dar
um exemplo disto.
Os mistérios de Eleusis, ou do Sol, eram idênticos ou análogos aos de Dionisos ou
de Baco; porque, de acordo com a teologia órfica, o intelecto de cada planeta era
denominado Baco; assim quando o Sol era considerado como a inteligência espiritual,
que movia ou causava o movimento deste planeta, no seu ciclo anual, era designado por
Baccus Trictericus61.
Portanto, as cerimónias de Baco eram esperadas com regozijo, como triunfo do
espírito sobre a matéria; mas esta circunstância, ligada tão intimamente com as noções
sublimes dos mistérios elêusicos, foi completamente desviada para banquetes,

59
«Alexandre obteve dele (Aristóteles) não só o conhecimento moral e político,
mas foi igualmente instruído nos mais secretos e profundos ramos da ciência, a que
chamava epoptico e acroamatico; e aquilo que não comunicaram a cada um dos alunos.
Quando Alexandre estava na Ásia e recebeu a informação de que Aristóteles publicou
alguns livros, nos quais esses pontos foram explanados, escreveu-lhe uma carta, em
defesa da Filosofia, na qual censurava o caminho que tinha tomado. O seguinte é uma
cópia disso: “Alexandre para Aristóteles, prosperidade – cometeste o erro de publicar as
partes acroamáticas da ciência. Como e em que é que nos diferenciaremos dos demais,
se o sublime conhecimento que obtive de ti, for comum a toda a gente? Por mim, antes
quero atingir a grandeza da humanidade pela superioridade dos conhecimentos do que
pela dimensão do poder e do domínio. Adeus», Plutarco in Vit. Alex.
60
Aulus Gélius Lib XX, cap. 5.
61
Era chamado Dionisus, porque se transportava com um movimento circular pela
extensão dos céus imensos» Versos Órficos, apud.
procissões de povo bêbado, que nada mais sabia das cerimónias para além de levar
ramos de árvore nas mãos62.
Mais ainda: um sacerdote depravado introduziu em Roma estes mistérios
bacanais, com o mais horrendo dos propósitos, o que alarmou o Senado, foi infligida a
mais severa das punições assim como aos seus seguidores63.
Por isso é que, em consequência desses abusos, Sócrates recusou ser iniciado64 e o
mesmo fez Diógenes, alegando que Pataecion, um notório ladrão, conseguiu a
iniciação65; também Epaminondas e Agesilau nunca o quiseram66.
Mas se aqueles desejavam ser licenciosos, fechados sobre si mesmos com os
mistérios, isto nada tem a ver com os preceitos originais da instituição. Pela pureza dos
seus devotos foi conduzida, de acordo com os primitivos mistérios, até ao ponto mais
delicado e escrupuloso67.
Depois destas respeitáveis autoridades, a que se fez referência, devemos rejeitar,
como calúnias despudoradas, a asserção de Tertuliano, quando diz que as partes naturais
de um homem estavam encerradas na arca transportada durante a procissão destes
mistérios; Theodoret e Arnobius dizem, que eram as partes de uma mulher; outros
eruditos não têm meios para assegurar o que era acessível a qualquer um, fora dos
limites dos mais recônditos mistérios68.

62
Com certeza que há, como é dito, que entre nos mistérios; com certeza uma
multidão de porta-ramos (thyrsirii) mas muito poucos baquianos» Sócrates em Platão;
apud Clemente, Lib I p. 372.
63
Livii, Lib XXXIX cap. 8 e 18.
64
Luciano Demonat. Tomo 2 p. 308.
65
Plutarco De aud. Poet. To. 2 p. 21.
66
Diogen. Laert. Lib VI &39.
67
«Uma mulher perguntou quantos dias deviam passar depois de estar com o
marido, antes de poder atingir os mistérios de Ceres. A resposta, com o seu marido,
imediatamente, com outro homem, nunca» Clemente, Strom IV, p. 619.
68
Como uma prova de sublime ideia de Deus, mantida pelos sábios egípcios, em
contradição com as maiores acusações, copiámos as seguintes passagens, do grande
Mercurio Tremegistus, tal como foi relatado por Pimandros. «O Artífice fabricava o
universo inteiro com a sua palavra não com as mãos. Tem sempre presente no espírito,
agindo sobre tudo, um só Deus, que constituiu todas as coisas conforme o seu desejo;
este é o seu corpo, intangível, invisível, em nada semelhante a qualquer outro; pelo que
ele não é fogo, nem água, nem ar, nem sequer espírito; mas dele dependem todas as
coisas boas; contudo, como ele é, todas as coisas lhe pertencem».
Ainda:
«Mas se não podes querer o principal nome de Deus, nem podes ignorar aquilo que é
claro e parece oculto de muitos; se nunca aparece é porque está algures. Aquilo que
aparece só pelo som é criado; aquilo que é oculto é eterno; nem essa é uma razão para
que não possa aparecer, como nunca tem fim; põe cada coisa ante os nossos olhos, mas
ele permanece oculto; porque ele goza de vida eterna: nitidamente ele traz cada coisa à
luz, mas ele delicia-se no adytum; um, e não criado, incompreensível à nossa imaginação
(fantasia); mas como cada coisa está iluminada por ele, ele brilha em tudo e através de
todas as coisas; e agora aparece principalmente a estes, a quem lhe agradou comunicar o
seu nome».
E ainda:
«Não há nada na natureza que não esteja nele: ele é tudo o que existe; ele é ale disso o
que não é; e o que é, ele trá-lo à luz. E como nada pode ser feito sem aquele que faz,
Podemos supor com mais razão, que na arca, transportada na procissão e se dizia
conter o corpo de Osíris, eram colocadas esferas em representação do nosso sistema
solar69.
Em face destas acusações, encontradas em alguns escritores eclesiásticos,
podemos observar, que muitos deles, levados por excesso de zelo pela religião cristã,
desfigurada no grau mais repreensível, os antigos monumentos históricos; tomando, por
exemplo, a maneira como a história do Egipto foi escrita por Manethon, transmitida até
nós por estes escritores eclesiásticos70: outros escritores como estes, de facto, nada
sabiam acerca dos mistérios egípcios71
Por esta razão, a conclusão é a de que os motivos destas instituições eram boas e
puras, tendiam para o estudo da ciência e prática da moralidade, ainda que as mesmas
instituições tivessem degenerado depois72 e a sua degenerescência seguida da ruína do

também tens de pensar que Deus está sempre a fazer, é impossível alguma coisa existir
no céu, ar, terra, mar, em todo o mundo, em qualquer partícula do mundo, na qual ele
seja ou não seja. Isto é com o seu melhor nome, Deus; isto, de novo, é a mais poderosa
de todas as coisas; isto, conspícuo na mente; isto, presente com olhos; isto, incorpóreo;
isto, tal como foi, multi-corpóreo, para que nada seja nos corpos que não esteja nele;
porque, só ele existe em tudo; ele tem todos os nomes; porque ele é o único pai; assim
não tem nome porque é o pai de todas as coisas». Apud Kirker, vol. II, p. 504.
69
Synesius, falando dos hierofantes egípcios, observa isto:«eles têm
que são arcas, ocultando, dizem, esferas» Ver Plutar. De Iside e Osíride.
70
Julius Africanus, um padre cristão, judeu por nascimento, fez um pequeno
compêndio da história de Manethon, que o próprio autor podia ter dispensado; isto foi
cerca do ano 230 da era cristã. Achando que a cronologia bíblica do Egipto, alterou as
datas de Manethon para a pôr de acordo com a Bíblia. Além disso, este trabalho de
Africanus perdeu-se também e só temos extractos dele, preservados pelo trabalho de um
monge, conhecido genericamente pelo nome de Syncellus, que confessa ter mutilado e
alterado Africanus. Agora este indivíduo não teve o original da Bíblia, mas apenas uma
tradução grega, que confessadamente tem a cronologia viciada; mas já os dados acerca
de Manethon haviam sido desfigurados e interpolados, para poder fazer-se com
exactidão com a incorrecta tradução grega da Bíblia.
71
«Celsus parece-me aqui fazer justiça como se um homem, viajando para o
Egipto, onde os homens sábios dos egípcios, de acordo com os conhecimentos do seu
país, filosofe muito, sobre estas coisas que considera divinas, enquanto os idiotas, ao
mesmo tempo, ouvindo apenas certas fábulas, de que não conhecem o sentido próprio, se
divirtam com elas: Celsius, digo, não fez mais do que passar pelo Egipto, conversou
apenas com esses idiotas, não conseguiu de modo algum a instrução dos sacerdotes, nos
seus arcanos e recônditos mistérios, poderia engrandecer tudo o que soube como
pertencente à teologia egípcia» Origenes, Contra Celsum L. I, p. 11.
«Quando entre os egípcios havia um rei escolhido fora da ordem militar, ele era
trazido imediatamente pelos sacerdotes, e por eles instruído na teologia dos arcanos
cujas verdades misteriosas se ocultam sob fábulas e alegorias obscuras» Plutarch. De
Iside
72
Contentemo-nos aqui com a autoridade de Kircher, um dos mais reputados
antiquários em matéria egípcia.
« Hermes, o grande autor da doutrina hieroglífica, que elucida muitas coisas,
mormente sobre Deus, e as suas perfeições, igualmente da criação do mundo, e da sua
preservação, da administração do mesmo mundo e das suas partes, ambos dele próprio,
a através dos anjos, como ele ouviu dos Patriarcas sobre o governo do mundo,
estado, assim como anunciou o próprio Tremegisto, que na sua predição provou como
era grande como filósofo e político73.
Tendo em conta o sentido e a importância dos mistérios elêusicos ou dionisíacos
entre os gregos antigos, tal como foi transmitido até nós o seu conhecimento e tendo
mostrado que as cerimónias na sua origem não eram tomadas como adoração do Sol,
considerado como uma deidade, vamos proceder ao exame de como estes mistérios
foram transmitidos pelos gregos às outras nações.
Cerca de cinquenta anos74 antes da construção do Templo de Salomão em
Jerusalém, uma colónia de gregos, principalmente jónios, lamentando os estreitos
limites do seu país, com uma população aumentada, emigraram; e tendo-se instalado na
Ásia Menor, deram a essa região o nome de Jónia75.

seriamente esforçados em penetrar nestas coisas: daqui brotou uma nova filosofia na
qual é tratada das mais sublimes coisas que um ignorante pode compreender, ele velou
sob uma nova arte, a que chamaria hieroglífica, que passou por compreensões rudes,
não em monumentos de madeira, mas em figuras místicas, gravadas em pesadas pedras,
para uma eterna memória com a posteridade; como uma ciência sublime de coisas
merecedoras de veneração eterna, e recomendadas a todos com a maior dignidade; e
como imitação do grande Arquitecto eterno, na administração do mundo, ele constituiu
assim este sistema, que foi comunicado somente a hieromistas, sacerdotes, estolistas e
hierogramatistas seleccionados, homens de grande génio, sábios para o governo do
estado, de acordo com as regras da administração, prescritas nos obeliscos, e homens
que mostraram habilidade e aptidão, e eram, acima de tudo restringidos, através do
juramento, a manter o segredo. Com estes meios os sacerdotes, sendo encarados por
todos com admiração, em consequência do seu saber nestas coisas novas, expressa por
símbolos, foram honrados pela multidão enquanto semi-deuses. Mas para intensificar
esta veneração eles comunicaram ao povo muitas coisas sobre a aparição dos deuses, as
suas respostas, e como queriam ser adorados para os aliviar e torná-los clementes: para
isso deve juntar-se o grande lucro que têm com as suas máquinas e inventos mecânicos
e a perícia em matemática; e a sua maneira de fazer estátuas que movem os olhos e a
cabeça, para exprimir a aprovação ou desaprovação; e que a multidão miserável foi
enganada e iludida, pagando sempre para obter um favor dos deuses, ou acalmar a sua
fúria. Daqui acontece que no decurso do tempo, esta religião concebida por Tremegisto
com um sentido sincero, foi-se gradualmente degenerado até uma aberta e declarada
idolatria» Kircher, vol. IV p. 82 .
73
Ó Egipto, Egipto, da tua religião só as fábulas restam, e esta incrível para a tua
posteridade» Tremegisto , in Asclépio.
74
A emigração dos jónios para a Ásia Menor é mencionado por Heródoto, e
outros, mas a época é fixada por vários autores de modo diferente:
Por Playfair no ano a.C. 1044
Gillies 1055
Barthélémy. Anarchasis 1076
75
«Diz-se que o chefe da colónia jónica era Androclus, filho legitimo de Codrus,
rei de Atenas; está relatado assim, que os jónios instalaram o seu reino; e que os
descendentes desta raça, até agora, intitulados reis, e gozando das suas honras, tal como
é dito, um lugar donde assistem aos espectáculos e os jogos públicos, usando a púrpura
real, e um bastão em vez de um ceptro, e os ritos elêusicos» Strabo, Lib XIV, p. 907.
Esta emigração é igualmente mencionada por Heródoto76 não há dúvida que o
povo levou consigo os costumes, as ciências e a religião; e os mistérios de Eleusis77
entre o demais. Concomitantemente achamos que uma das suas cidades, Biblos, foi
famosa pela adoração de Apolo, tal como Apolónia foi com os seus ancestrais78.
Foram estes jónios, que participaram no aperfeiçoamento da civilização na qual a
sua pátria, a Grécia, cultivou as ciências e as artes aplicadas; mas apresentou também a
mais notável arquitectura e inventou ou aperfeiçoou a ordem designada pelo seu próprio
nome, Jónica.
Os jónios formaram uma sociedade cujo objectivo era dedicar-se à construção de
edifícios. A assembleia geral da sociedade, primeiro manteve-se em Theos; mas depois,
em resultado de certa agitação civil, passou para Lebedos79.
Esta seita ou sociedade era então chamada Arquitectos de Dionisos, porque se
supunha que Baco seria o inventor da construção de teatros e organizavam as
festividades em honra de Dionisos80. Além disso estenderam-se à Síria, à Pérsia e à
Índia81.
A partir deste período, a Ciência da Astronomia, que deu vida aos símbolos dos
ritos dionisíacos, passou a ser relacionada com os aspectos ligados à arte da
construção82.
Estas sociedades jónicas dividiam-se em secções diferentes ou assembleias
menores83. Estas assembleias mais pequenas ou associações dependentes possuíam
também nomes diferentes84.
Mas expandiram as seus pontos de vista morais, juntamente com a sua arte de
construir, com propostas de uso múltiplo e para a prática de actos de beneficência85.

76
Us, Lib I cap. 142 e 148; Aelianus Lib VIII; Pausânias in Achaicis; Plutarcus in
Homero, Veleius Paterculus, in Chronico. Clemente, Lib I Strom.
77
Vide Estrabão, supra.
78
«Biblos foi capital de Cinera, e teve um templo de Apolo, situado num lugar
elevado, não longe do mar. Além disso há um rio chamado Adónis» Estrabão, L. XVI,
p. 1074.
79
«Lebedos foi a sede e a assembleia dos Arquitectos de Dionisos, que habitaram
da Jónia ao Helesponto; ali havia anualmente encontros solenes e festas em honra de
Baco. A sua primeira sede foi Theo». Estrabão, Livro XIV, p. 921.
O tradutor latino de Estrabão interpreta como Arquitectos de Dionisos
() artífices cénicos; porque era suposto serem Baco ou Dionisos os
inventores do teatro e scena, derivado do hebraico (HEBRAICO) habitar.
80
Polydor, Virg. De Rer. Invent. Lib 3 c. 13)
81
Estrabão, p. 471.
82
Desde a aplicação dos instrumentos de arquitectura à moralidade, os filósofos
platónicos e pitagóricos usaram não só as ferramentas mas também as palavras para
expor as suas ideias morais. Por exemplo, o homem recto (rectus); obrigação, de ligação
(ligare) e mesmo a lei (lex a ligare); enquadrar, ajustar as nossas acções (quadrare),
justum aequum, etc., mentalidade rudemente polida, de pedra bruta e pedra polida, etc..
83
Os encontros e assembleia dos Arquitectos de Dionisos tiveram vários nomes
( contubernium, que era o espaço onde se realizava o encontro. A
sociedade era por vezes designada  (colegium); ) secta);
congregatio);  communitas). Aulus Gelius L. Cap.II.
84
Ver Chiseul, Antiquitates Asiaticae, p. 95.
85
«Este exemplo imitado pelos jónios que emigraram da Europa para as regiões
marítimas de Caria (Ásia Menor) e também os dórios, seus vizinhos, que construíram
Encontramos o registo de que estas sociedades e a sua utilidade foram muitas
vezes investigadas por Cambises, rei da Pérsia, que as aprovou e agraciou com grandes
honras86.
É essencial observar que estas sociedades tinham palavras significativas para
distinguir os seus membros87; e com os mesmo propósito usavam emblemas extraídos
da arte de edificar88.
Vejamos uma informação da passagem dos Arquitectos de Dionisos pela Judeia.
Salomão obteve de Hiram, rei de Tiro, homens hábeis na arte de construir, quando o
Templo foi erguido em Jerusalém89. Entre os estrangeiros que vieram nesta altura,
encontramos homens de Gabel, chamados Gibelinos90; quer isto referir os jónios
instalados na Ásia Menor, em Gabbel ou Biblos, a cidade onde ficava o templo de
Apolo, onde se celebravam os ritos eleusicos ou mistérios dionisíacos, como já
constatámos91.

templos num esforço comum. Os jónios construíram o templo de Diana em Éfeso, os


dóricos o templo de Apolo em Triopi, onde viveram com as mulheres e os filhos num
certo momento, onde praticaram os ritos sagrados, onde tinham o mercado, assim como
jogos, corridas, lutas, sessões de música de diferentes espécies, e em comum faziam
oferendas aos deuses. Quando acabavam os espectáculos ou o comércio no mercado, ou
terminavam, cumprido uns para com os outros os deveres dos seus semelhantes, se
havia qualquer litígio entre as cidades, organizavam-se como juízes para serenar as
disputas; além disso, nessas assembleias debatiam como fazer a guerra com os bárbaros,
e os meios para alcançar o mútuo acordo entre as nações» Dionis. Halicarn. Lib. III, p.
229 ed. 1691.
86
Depois disto, os habitantes da Jónia acharam justo apelar a Cambises, e tendo
explicitado perante ele qual eram os seus objectivos, o rei ordenou-lhes que fossem à
sua presença, perguntou-lhes quem eram, como pretendiam viver nos seus domínios; e
tendo examinado e assegurado do modo como procediam, ele admirou-os, e mais
decidiu ele próprio institui-la como sociedade, além de permitir que recebia os seus
serviços como contributo para as suas instalações; e por conseguinte para lhes
demonstrar isso, despediu-os com presentes, como expressão da sua magnanimidade»
Libanius, in Orat. XI. Antiochus, vol. II, p. 343.
87
Robertson’s Greece.
88
Eusebius de Prep. Evang. L. III c. 12, p. 117.
89
Reis, cap. V.
90
A tradução inglesa da Bíblia em Reis, c. V. v. 18 onde o original hebraico diz
Gibblin (HEBRAICO) ou Gibblites, que quer dizer habitantes de Gebbel, trata-os pelo
nome apelativo de canteiros ou cortadores de pedra (stone squares). A prova de que
esta leitura não é correcta, não é apenas porque as opiniões diferentes das outras versões,
que entendem por este Gibblin os habitantes de Gebbel, mas porque a mesma tradução
inglesa, noutra parte da Bíblia, tratam-nos pelo nome de ancient of Gebbel (Ezek cap.
XXVII, v. 9). Agora que Gebbel era o mesmo que Biblos é claro; porque a versão
Septuaginta traduz sempre Gebbel por Biblos, e penso que haveria várias cidades com
este nome, porquanto esta parece ser a que ficava entre Tripoli e Berite, e se chamava
Gebail. De facto, Luciano, no seu Tratado De Dea Síria, diz expressamente, que Gabala
era Biblos, famosa pelo culto de Adónis.
91
Podem encontra-se em Ezequiel estas palavras: «E eu vi as mulheres sentadas
em pranto por Tamuz», quer isto dizer, Adónis: Mas, contudo, foi o que aconteceu pelos
habitantes destas cidades, em testemunho do qual, enviaram cartas às mulheres que
estavam em Biblos, quando Adónis fundou e depois disso fechou e lançou ao mar, diz
Em favor deste argumento podemos recorrer a qualquer autoridade: segundo
Josephus o estilo grego foi usado no Templo de Jerusalém92.
Depois disto não nos podemos surpreender ao verificar que as cerimónias de
Eleusis ou de Tamuz seriam introduzidas na Judeia, especialmente, como o próprio
Salomão, depois de ter sido iniciado no estudo das Ciências, na construção do Templo,
não se tenha libertado da acusação de grande superstição e idolatria93.
Por isso encontraremos alguns anos depois o profeta Ezequiel a lamentar-se que as
mulheres israelitas adoravam Tamuz num certo período do ano, em muitas portas do
Templo94.
Mas é muito natural supor-se que os Arquitectos de Dionisos podiam não ter
tentado introduzir estes ritos, entre os judeus religiosos, como uma mera questão de
idolatria, mas para a adoração do Sol. As ideias dos israelitas, no que respeita à unidade
de Deus, podiam revoltar-se contra qualquer coisa que induzisse uma crença no
politeísmo dos gentios.
Todavia, o símbolo destes mistérios, teriam sido explicados aos judeus, só para
compreender o Sol, como emblema da omnisciência de Deus para com o homem; e o
movimento aparente desta luminária, primeiro como guia para fixar as estações, depois
como expressão ou fixação da imortalidade da alma; para este dogma nada aparece mais
claro nos livros dos judeus antes deste período ou universalmente admitido entre eles
como um dado muito tardio95.
Além disso, corroborar qualquer alusão à idolatria nestas cerimónias e símbolos,
outra personagem ou outro nome foi substituído por Adónis ou Osíris; e como a morte e
a ressurreição simbólicas eram essenciais, na alegoria do sistema, foi substituída a
história pela morte de outro indivíduo……
Todavia, ao construir esta nova história simbólica, tais circunstâncias tiveram de
ser relatadas e relacionadas com a morte daquela personagem, a fim de tipificar e para
se explicitar por completo os mistérios de Eleusis, ou a passagem do Sol de um
hemisfério superior para o inferior e o seu regresso de novo96.

que foram levadas espontaneamente para Biblos; e, quando ali chegaram, as mulheres
deixaram de adorar Adónis. Procopius, in Isaiah, cp. VVIII.
92
Josephus Antiquit. Lib. VIII c. 5)
93
Reis, cap. XI, v. 5 e 6.
94
Ezeq. C VIII, v. 14. Tamuz significa o nome de um mês, tal como o nome de
um ídolo ou divindade, que até na opinião de S. Jerónimo é o mesmo de Adónis.
Plutarco diz que os egípcios designavam por Osíris a Ammuz e dessa corruptela derivou
o nome de Júpiter Ammon. Robertson (Thesaurus Linguae Sanctae) diz que a palavra
Ammuz (ler Ammoum) usada por Heródoto e Plutarco, eram corrupções do hebreu
Tamuz (HEBRAICO). Também se diria que a palavra originariamente egípcia, e tornada
hebraica pela adição da desinência HEBRAICO); e mais ainda, como Ammuz na língua
egípcia significa (pela explicação de Manethon em Plutarco) qualquer coisa de profundo
ou oculto; o que contem uma evidente alusão à morte oculta ou simbólica de Osíris ou
Adónis.)
95
Marcus cap. XII, v. 18 )
96
Assim os números 3, 5, 7, 12, 15, devem ser considerados como essencial. Nas
cerimónias, o símbolo da morte e ressurreição; a passagem da linha equinocial duas
vezes, etc. No tempo, a estação do ano, quando o Sol chega aos dois trópicos, o nascer,
o brilhar, voltar para o Sul, a direcção.
Na formação deste novo sistema, ou melhor, esta nova alegoria para o mesmo
sistema, apenas o nome do herói mudou, as circunstâncias foram preservadas, tão
distante como sólido com novos nomes…..
A construção completa do Templo favoreceria uma alusão deste espécie.
A primeira pedra foi colocada no segundo dia do segundo mês 97; o que
corresponde, conforme uma estimativa, a 20 de Abril, calculando o ano sagrado, depois
de fixado o Zodíaco.
Agora se se rectificar o globo para a latitude de Jerusalém (31º 30’) no período do
ano, ter-se-á o Sol em Áries, ou o Sol representado por uma ovelha ou um carneiro, ou
um homem com uma pele de carneiro, tal como o hierofante se apresentava nos
mistérios de Eleusis98.
Portanto, o período do ano no qual a primeira pedra do Templo é colocada,
proporciona uma oportunidade para que sobre ela assente um novo sistema alegórico,
para explicar o mistério antigo.
Se supusermos que o globo representa o mundo na posição acima descrita, ficando
o aspirante a Ocidente face ao hierofante, que o Oriente representa o Sol nascente, o
próprio candidato se encontra entre os dois trópicos, representados pelas duas colunas99
colocadas na entrada do Templo a Ocidente …
Para se compreender a facilidade como o antigo sistema pode ser adaptado às
circunstâncias do Templo de Jerusalém, o melhor é considerar-se o seu típico emblema,
de acordo com as noções dos judeus e de alguns padres cristãos.
Os templos construídos em honra de vários deuses foram tão bem concebidos,
para dar a ilusão de conter atributos desses deuses100. Mas o Universo foi suposto pelos
platónicos para ser o verdadeiro Templo da Verdade e do único Deus 101. Portanto, o
templo dedicado ao verdadeiro Deus, foi para ser o símbolo do Universo.
Deste modo se verifica que o Templo de Jerusalém estava situado a Oriente e a
Ocidente, com todas as dimensões e símbolos que representavam o sistema universal da
natureza102.

97
Cron. Cap. Iii, v. 2.
98
V. nota p. 10.
99

100
Vitruvius L. IV c. 5.
101
«Justamente, portanto, Platão que conhecia o mundo como sendo o templo de
Deus, mostrou um lugar na cidade onde os símbolos responderiam». Clemente Strm
Lib. V p. 691.
102
Pode demonstra-se em primeiro lugar a autoridade dos judeus neste ponto.
«Agora consideremos o que pode ser subentendido pelo querubim e a espada flamejante
rodando todos os dias. Podemos pensar a partir daqui na circunvolução da totalidade
celeste? »
« Mas da espada flamejante rodando dia após dia, pode ser compreendido desta maneira
significar o movimento perpétuo deste (Querubim) e do todo celeste. Mas o que pode ser
tomado de outro modo? Sendo assim que os dois querubins significam ambos os
hemisférios» Philo Judeus p. III, & 112.
« A túnica do grande sacerdote sendo de linho, representa a Terra; mas o azul, o pólo
celeste; as luzes são indicadas por romãs; os trovões pelo som dos sinos, etc….»
«…Mas as duas pedras preciosas (sardonixes), com as quais o trajo pontifício está
afivelado, revela o Sol e a Lua, mas se qualquer desejo refere as doze pedras aos doze
meses, ou a igual número de estrelas (constelações) no círculo, que os gregos chamam o
Zodíaco, não estamos longe do verdadeiro sentido» Josephus, Antiq. Lib III
Se o Templo de Salomão fosse uma imagem do universo, para simbolizar que
Jehovah não era um Deus local, mas sim Deus, Senhor do Universo, também a tradição
nos diz que o lugar de reunião dos Arquitectos de Dionisos era alegoricamente descrita
pelas suas dimensões, como um símbolo do universo, em comprimento, largura, altura e
em profundidade.

Agora para os padres cristãos:


«Seria longo seguir (as exposições) proféticas e legais que foram expressas por
enigmas; que as Divinas Escrituras na seu todo oferecem este tipo de oráculos»
Das razões propriamente suficientes encontraremos para este propósito, daremos alguns
exemplos. Assim, por exemplo, o que disseram os antigos do templo, as sete portas, que
também remetem para outras coisas na história dos hebreus, e o que havia no interior da
aparência destes símbolos, que remetem para aparências, significado na sua composição
no que concerne ao céu e à terra. Significa, por isso, qual a natureza dos elementos que
importam para a revelação de Deus. Para a púrpura, que vem da água, o linho ()
que vem da terra, o azul (jacinto) da cor do céu, quando está escuro; o vermelho, o fogo.
No meio, todavia, do templo está o véu, para além do qual só os sacerdotes podem ir; há
o turíbulo, símbolo da terra, que é este mundo, e no qual as exaltações têm lugar. Mas
esse lugar, que em seguida dentro do véu, onde só os altos sacerdotes têm permissão de
entrar, e só em dias certos; o pátio exterior que está aberto a todos os hebreus, diz-se que
é o meio entre o céu e a terra. Outros dizem que era o símbolo do mundo, que é
apercebido pelos nossos sentidos intelectuais. Mas o fecho que separa a infidelidade do
povo, estende-se antes das cinco colunas, e separa-os que estão no pátio»» Clemente,
Strom. L V p. 665.
Este sacerdote cristão explica estas colunas com a seguinte passagem de Platão: «Platão
diz que devemos contemplar estas colunas e ver cuidadosamente que nenhum profano
ousa ir ali. Estes são os profanos que esquecem que nada existe, mas o que eles podem
tocar com as mãos, só as acções e gerações e essas coisas que não pode ver, coisas que
existem, não têm número. Por isso há quem espere por nada além dos sentido».
Clemente L. V.
«Agora para o candelabro, que está colocado a Sul do turíbulo. Por isto fica
exemplificado o movimento dos sete planetas que têm os seus movimentos a Sul. Para
que haja ramos de cada lado do candelabro e luz neles; porque o Sol também, como uma
lâmpada, está colocado no meio dos outros errantes (estrelas), e estas que estão abaixo
dele, e aquelas que estão acima dele, por uma certa divina harmonia recebe luz dele».
Clemente Strom Lib. V p. 666.
«Estas coisas por conseguinte dizem da arca sagrada, significa que o mundo percebido
pelos sentidos intelectuais, que estão ocultos e fechados ao vulgo. Além disso, estas
imagens douradas, cada uma com seis asas, querem significar as duas ursas, tal como
alguns as têm; ou, como parece mais conveniente, os dois hemisférios. Certamente o
nome do querubim significa um conhecimento extenso. Mas ambos têm duas asas, e isso
significa o mundo sensível, e o tempo apresentado pelo circulo do Zodíaco». Clemente
Strom. Lib V, p. 667.
«Mas os 360 sinos, pendentes da longa túnica (do sacerdote) são os dias do ano; por isso
se diz, este é o ano do Senhor, pregando e entoando a grande chegada do Salvador».
Clemente, Strom. Lib V. p. 668.
«As mais brilhantes pedras de esmeralda, que estão na estola, significa que o Sol
e a Lua, que são os auxiliares da natureza. Por isso se supõe que o ombro é o princípio
da mão. Mas as outras doze pedras, dispostas em quatro filas, descrevem-nos o circulo
do Zodíaco, de acordo com as quatro estações do ano» Clemente, Lib V p. 691.
Os antigos representavam o percurso das estrelas pelo movimento da serpente;
mas se esta serpente fosse colocada com a cauda na boca, então representava a
eternidade.
Então se se considerar o início do ano civil entre os hebreus, o mês Tisri, que era o
equinócio de Inverno103; o Sol, vindo dali, aproxima-se do Sul e toca o Trópico de
Capricórnio; depois retrocede em direcção a Norte, atravessando a linha equinocial, e
tocando o Trópico de Câncer; daqui parte de novo em direcção a Sul. Chega à linha
equinocial, terminando o ano.
Num mapa com os dois hemisférios estes pontos parecem separados; mas o
emblema da serpente mordendo a sua cauda, representará o fim do ano, o encontro do
princípio104.

103
O primeiro mês civil dos judeus, chamado Tisri (HEBRAICO) vinha do egípcio
Misri, mudando apenas a formativa (hebraico) para (hebraico). E a palavra era derivada
de (HEBRAICO) (rectum esse), porque então o Sol estava na linha equinoxial; e os
rabinos, a este dia, designavam-no por equinoxial (HEBRAICO). Os gregos escreviam
mal em boa caligrafia o nome do mês chamado pelos egípcios mês ().
104
O número 12, que é o dos meses do ano, e alude a um dos muitos símbolos do
Templo, também deve ter proporcionado facilidades para estabelecer o sistema dos
Artífices de Dionisos; e portanto pode dar-se uma ideia da filosofia bárbara ligada a este
número, no seguinte extracto de Suidas: «O grande Demiurgo ou arquitecto do Universo,
empregou doze mil anos no trabalho que produziu e dividiu em doze tempos as doze
casas do Sol» Suidas, Art. Tyrrhenia.
No primeiro milénio , ele fez o céu e a terra. No segundo milénio, o firmamento
(expansão) a que chamou coelum. No terceiro milénio, fez o mar e a água que corre na
terra. No quarto, fez as duas grandes tochas da natureza. No quinto, fez os quadrúpedes,
os animais que vivem na terra e nas águas. No sexto dia ele fez o homem».
«Os primeiros seis mil anos que precederam a formação da raça humana, parece que só
existiriam durante seis mil anos, que são os outros para completar o período de doze mil
no fim dos quais queria o mundo terminado». Suidas, id.
Agora se se tomar o signo do Zodíaco por 24.000 anos, explicar-se-á o referido
mistério. Quando o Sol sai de Áries, o signo da Primavera, diz-se que o mundo nasceu;
aqui começa o período da vida. Quando o Sol está em Câncer, ou seja no Verão, é o
prazer e as delícias da vida. Quando atinge Libra, a vida declina: depois disto tudo é o
Inverno da morte; e derivam as fábulas acerca das quatro idades do mundo.
Os livros da Mitologia Persa explicam o mesmo sentido:
«Tempo é 12.000 anos, diz-se na lei, que o povo celeste existe há três mil anos, e então
o inimigo (Satan ou Arhiman) já não está no mundo, que faz seis mil anos…»
«Os milhares de bom apareceram no Carneiro, no Touro, o Câncer, o Leão e o Carneiro,
que fazem seis mil anos. Depois do milhar de Deus, veio a Balança (Libra), Arhiman
veio ao mundo (isto quer dizer Inverno)». Boun Desh; tradução du Perron p. 420.
«Orsmud, falando na lei, disse, “eu fiz os produtos do mundo em 365 dias”; é por esta
razão que os seis gahs gahambars (meses) estão incluídos no ano» ib. P. 400
Astronomicamente falando, não há períodos ou ciclos de 12.000 anos. Mas Dupuis
resolveu o mistério, dizendo, que os períodos dos antigos indianos e Caldeus,
respondiam a séries 1,2,3,4 ou 4,3,2,1.
Por isso a duração das quatro idades do mundo, de acordo com Ezour Vedan, eram
1ª idade --------------4.000 anos
2ª --------------------- 3.000
3ª --------------------- 2.000
O Senhor Hutchinson provou que os globos no topo das duas colunas, no pórtico
do Templo, eram planetários ou representações mecânicas do movimento dos corpos
celestes105.
Penso que, dadas as circunstâncias, que proporcionadas tantas facilidades para a
introdução do sistema dos Artífices de Dionisos na Judeia, a permanência do mesmo,
em períodos subsequentes, não é difícil de explicar.

4ª --------------------- 1.000
Memória da Academia dos Inscrpt. Tom. 31, p. 254.
O Baga Vedan conta também,
1ª idade ----------------- 4.800 anos
2ª ------------------------ 3.600
3ª ------------------------- 2.400
4ª ------------------------- 1.200

Os indianos figuraram este sistema através de uma vaca com quatro patas, ou o número
doze aparece sucessivamente quatro vezes.

Um outro período indiano estabelece a duração do mundo assim:

1ª idade ---------------1.728.000 anos


2ª ---------------------- 1.296.000
3ª ---------------------- 846.000
4ª ---------------------- 432.000
________
Total 4.320.000

Agora, o mais pequeno destes números (432.000) elevado a 2, 3 e 4, dá a soma total de


4.320.000.
Os indianos dizem que o ano dos deuses é composto de 360 anos do dos homens; se se
dividir 4.320.000 por 360 obtém-se 12.
No período dos Caldeus, tal como é dado por Berosus, encontram-se os mesmos
números de 432.000, e para o alcançar, ele segue uma ordem aritmética, assim:

1º grau -------------- 12.000


2º -------------------- 24.000
3º -------------------- 36.000
4º -------------------- 48.000
5º -------------------- 60.000
6º -------------------- 72.000
7º -------------------- 84.000
8º -------------------- 96.000
______
Total 432.000
105
As colunas ou pilares denominam-se (HEBRAICO) e (HEBRAICO); a primeira
significa estabelecido de (HEBRAICO) estabelecer ou firmar; o segundo significa na
força da proposição (HEBRAICO) em, e a raiz (HEBRAICO) força.
Encontramo-lo expresso nos Livro dos Macabeus106, que a sociedade existiu na
Judeia nestes dias, chamada Assideos ou Cassideos, cuja função era cuidar das
reparações do Templo.
Destes Cassideos derivou a seita ou sociedade dos Essenios, que, que acordo com
Philo e Josephus, foram os mesmos como os Assideos; provavelmente, porque não
admitiam mulheres nas suas reuniões, Plínio diz que se propagaram sem esposas107.
Josephus108 refere o primeiro dos Essenios, no tempo de Aristobulus e Antigonus,
filhos de Hircanus; mas Suidas109 e outros foram da opinião que eram um ramo dos
Rechabitas, que subsistiram antes do cativeiro.
Josephus, que provavelmente ignorava a doutrina secreta dos Essénios, também os
acusa de adoradores do Sol, ou por fazerem as orações antes do Sol despontar. Mas
estas acusações, uma vez mais, identifica-os com a seita dos Artífices de Dionisos, que,
como se manifesta pelas razões acima referidas, era suposto adorarem o Sol.
Josephus relata muitas outras particularidades, pelas quais, de uma maneira
admirável, lhes confere aquilo que se relatou acerca de outras sociedades que os
precederam110. Também considera a conformidade das suas ideias com a dos platónicos

106
«Agora os Assídios foram os primeiros dente os filhos de Israel que espalharam
a sua paz». Maccab. Vii, v. 13
Transmitirei este passagem de modo diferente, assim:
«E aqueles que entre os filhos de Israel eram chamados Assideos, foram os primeiros
desta assembleia e desejaram falar de paz»
De acordo com esta interpretação, muita mais expressiva do texto, verifica-se que os
Assideos eram um corpo respeitável, porque eram os primeiros daquela assembleia.
Em 1 Maccab. ii v. 42 diz-se: «Chegou junto dele uma companhia de Assideos, que
eram importantes homens de Israel, e todos eram voluntariamente devotos da lei».
A palavra Assideos ou Cassideos supõe-se ser derivada do Hebreu Cassidim,
que no Salmo 78, v. 2 é tomado com o sentido de pio, feliz, cheio de piedade e
compaixão
107
«Assim por milhares de séculos, o incrível seja dito, este povo é eterno, sem que
ninguém seja nascido entre eles» Plínio, Lib V cap. 17)
108
Josephus, Li, 13 cap. 19)
109
In 
110
Antes de admitirem na sua seita alguém que o desejasse, punham-no à prova
durante um ano, e habituavam-no a praticar os exercícios mais difíceis. Depois do seu
termo admitiam-no no refeitório comum, e no lugar onde se lavavam; mas não no
interior de casa, até decorrer outro período de dois anos; então era-lhes permitido fazer
uma espécie de profissão, em que se comprometiam com um juramento horrível, para
observar as leis da piedade, justiça e modéstia; fidelidade a Deus e ao Príncipe; nunca
revelar a estranhos os segredos da seita, e preservar os livros dos seus mestres e os
nomes dos anjos com grande cuidado». Josephus, loco citato.
e dionisíacos, acerca da natureza da alma111. Em suma, eles usaram símbolos, alegorias,
e parábolas, segundo a maneira dos antigos112.
As práticas dos essénios foram descritas por Philo113 como os mais pacíficos e
cheios de virtudes sociais; e, entre eles, os mais entusiastas pelos seus princípios,
tinham seus bens em comum, tal como tiveram os Cristãos nos primeiros anos do
Cristianismo114.
As cerimónias e mistérios dos Essénios não ficaram registados na história; mas
por aquilo que conhecemos, transmitiram à posteridade as doutrinas que receberam dos
seus avós115; também distinguiram os signos116; e os banquetes festivos117; contudo não
parece que tenham seguido exclusivamente a profissão de construtores ou arquitectos.
Fora da Judeia também se encontram sociedades distintas com a mesma
personalidade dos Essénios e com os mesmos princípios de Platão; assim, os pitagóricos
também usaram os símbolos da arte de construir118.
Os Arquitectos de Dionisos existiram igualmente na Síria, Pérsia e Índia 119; e os
mistérios elêusicos foram preservados na Europa, exactamente em Roma, até ao século
dezoito da era cristã120;
Depois desta época, a Europa foi assolada por muitas nações bárbaras que,
perseguindo toda a investigação científica, espalhou a escuridão total, durante a qual
todo o trabalho dos antigos em favor da humanidade esteve quase perdido na ignorância
geral desses tempos.

111
«Consideram ser a alma imortal, e acreditam que as almas descem do alto para
os corpos animados por elas, para onde são arrastadas por alguma atracção natural, a
que não podem resistir; e depois da morte, regressam velozmente ao lugar, de onde
voltam, como se libertas de um longo e melancólico cativeiro. A respeito do estado da
alma após a morte, eles tem quase os mesmos sentimentos que os bárbaros, que
colocam as almas dos homens bons nos Campos Elíseos, e os dos maus no Tártaro».
Josephus loco citato.
112
Philo Lib V cap. 17.
113
«Alguns empregam-se na lavoura, outros no comércio e manufacturas de várias
coisas úteis em tempo de paz, sendo os seus desígnios bondosos para si mesmos e para
outros homens…»
«Entre eles pode encontrar-se um artífice que saiba fazer uma flecha, um dardo,
ou uma espada, ou elmo, ou couraça, ou escudo, ou qualquer espécie de armas, máquina
ou instrumento bélico», Philo, loco citato
114
«As suas instruções dirigem-se principalmente para a felicidade, equidade,
justiça, economia, política, a distinção entre o verdadeiro bem e o verdadeiro mal; do
que lhes é indiferente, do que devem procurar ou evitar. As três máximas fundamentais
da sua moral são amar a Deus, a virtude e o próximo» Philo, loco citato
115
«Os Essénios transmitiram as doutrinas que receberam dos seus ancestrais»
Philo. De Vita Contemplativa, apud opera, p. 691
116
« Também distinguiram os signos» Ib.
117
«Eu diria qualquer coisa das suas congregações e como muitas vezes
celebravam os seus banquetes, etc» Ib. P. 692.
118
Vide Jamblicus, de Vita Pythagore, cap. 17, e Basmage, History oh the Jews, B
II, cap. 13.
119
Strabo p. 471.
120
Psellus, citado por Clinch, Antologia Hibernica, para Janeiro, 1794.
Foram também muitas as sociedades e seitas, maltratadas, em certos períodos e as
cerimónias convertidas, como se viu, pelos piores propósitos: este foi outra causa
poderosa da seu declínio e da sua ruína.
O Cristianismo foi então na Europa, o único padrão de moralidade, pelo qual o
poder seria, em certa medida, controlado ou refreado.
Quando as ciências começaram a reviver, prevaleceu um fanatismo geral e
apareceu um espírito de perseguição, que pôs em causa as antigas doutrinas dos
filósofos e os antigos sistemas de moralidade foram preservados, embora como
produtos do ateísmo e práticas de idolatria.
Nestas circunstâncias, os Arquitectos elêusicos, dionisíacos, assídeos ou essénios,
afundaram-se no esquecimento, a que nenhuma história faz menção.
No século décimo, durante a guerra das cruzadas, foram instituídas certas
sociedades na Palestina e que na Europa adoptaram certos regulamentos semelhantes
aos das antigas fraternidades. Mas foi em Inglaterra, principalmente na Escócia, que as
relíquias do velho sistema, identificado com o dos Arquitectos de Dionisos, foram
descobertos nos tempos modernos.

Coetera desunt
COISAS NO CÉU E NA TERRA

Horácio,
há mais coisas no Céu e na Terra
do que a vossa filosofia julga.
W. Shakespeare121

Só é possível identificar a natureza do homem como história dando à natureza o


significado harmonioso e global de uma unidade que supera as contradições
fundamentais contidas no seu desenvolvimento desigual. A natureza, assim considerada,
forma-se num conjunto universal de relações, onde as diversidades e contradições
constituem um dos mais fortes elementos de coesão que, por essa razão, só pode ser
encontrada concretamente na história universal. Por muitas razões esta designação
global nos aparece sob noções variadas desde o período pré-clássico.
O estudo dos símbolos parte para o conhecimento da origem das palavras e dos
números não como representações mas como coisas. Nesse sentido, o símbolo não é
uma palavra mas uma coisa que pode ser uma palavra, um número, um objecto ou
qualquer outra forma de apresentação que lhe confere identidade.
As traduções da primeira frase do Génesis, entre outras explicações, graças à
complexidade do que exprime e à sua «tradução» ao longo dos tempos, pode ser um
exemplo historiográfico rigoroso do que significa história e conhecimento histórico.
Porque a dialéctica, o exercício da contradição essencial, se integra na essência da
tradição do pensamento ocidental, não será necessário remontar à revolução no
pensamento teológico desencadeada por Abelardo (século XII) para obter uma
demonstração (racional) do contrário daquilo que confirma.
Mas, para além disso, há toda a reflexão e todas as construções que se
desenvolveram a partir daí, transformando a doutrina em retórica, a retórica em
hermenêutica, a hermenêutica em desejo e o desejo em metáforas impelidas pelos
impulsos que as geram.
Tzvetan Todorov, ao abordar a história dos símbolos, recorda sucessivamente
pensamentos de Santo Agostinho («todas as coisas se aprendem de boa vontade com a
ajuda de comparações e que se descobrem com prazer quando as procuramos com uma
certa dificuldade») e comentários de Macrobius («julgou ter visto as próprias deusas
eleusinas, vestidas de cortesãs, oferecendo-se à porta de uma casa de prostituição»)122.
Se a história está contida na génese da própria coisa, o conhecimento histórico
implica uma pluralidade de determinações exteriores à coisa e à história mas que as
movimentam, impelem e manipulam.
O conhecimento histórico é uma intervenção científica que envolve todos os
elementos relativos a essa área específica do saber. A negação da história como ciência
seria a negação da própria investigação científica, que Hegel aponta claramente ao
referir-se a Newton: «A filosofia de Newton outra coisa não contém senão ciência

121
William Shakespeare, Hamlet, (trad. Dr. Domingos Ramos) Porto, Lello & Irmão, s.d.,
p. 82.
122
Tzvetan Todorov, Teorias do Símbolo, Lisboa, Edições 70, 1979, pp. 69-70.
natural, isto é, o conhecimento das leis, das forças e da constituição geral da natureza
fornecido pela percepção e pela experiência»123.
Todos estes conceitos estão presentes enquanto se falar em história ou até, mais
paradoxalmente, na «ausência» dela. Fala-se da historiografia não para designar a
história escrita mas a escrita da história com todo o empenhamento e limitações de
carácter pessoal, pressões e omissões. Daí o grande equívoco em considerar história
onde deve ler-se afinal historiografia e na qual, sempre desajustadamente, se utiliza o
termo imparcialidade124.
No essencial, o objectivo deste trabalho é simples e elementar: aceder ao
conhecimento dos poderes que impulsionaram consciente ou inconscientemente a acção
de indivíduos que agem historicamente. Esta acção gerou, voluntariamente ou não, um
conjunto de circunstâncias e determinado estilo de pensar crítico que constitui a
Tradição Cultural Ocidental.
O império romano obteve e, como reconhecimento, aglutinou, a partir das
civilizações conquistadas, um conjunto de saberes sob a forma de deuses «nacionais»
que acabou por adequar à unidade mundial politicamente gerada em torno do Mar
Mediterrâneo. A consolidação ideológica do «império mundial», com sede em Roma,
gerava já no seu âmago uma religião mundial, nascida da teologia oriental e da filosofia
grega que se impôs a partir do século IV e se consolidou durante a Idade Média. Com as
suas raízes orientais e africanas, elaboradas e reelaboradas por homens que tiveram
consciência da necessidade de estruturar a sociedade e o pensamento que ela tem
produzido, reflecte-se naquilo que há de mutável e do que se crê «imutável»,
introduzindo no uso corrente as ideias mais simples, elementares e cognoscíveis.
Não se trata de um estudo filosófico mas de um estudo de história, pese embora o
facto de a filosofia conter a linguagem da história, a história dar à filosofia o método
para atingir a estrutura lógica e a arquitectura oferecer algumas das «ferramentas»
simbólicas essenciais para compreender ou aceder a certos patamares do conhecimento
pré-clássico e clássico.

Um lugar para o conhecimento histórico

O conhecimento depende não só daquilo que está formado e é transmitido através


da linguagem mas também de processos «inconscientes» que surgem por vezes como
manifestações inesperadas e fora de um contexto «lógico» para se definirem com a sua
lógica histórica própria. Cabe ao investigador agir não só com aquilo que a linguagem
lhe oferece para ascender ao ponto de partida sem se perder com os bambúrrios
etimológicos que ao longo do tempo foram sendo disseminados deliberadamente para
iludir o sentido dos conceitos no interesse dos poderes gerados pela estratificação social.
A cultura no século XX foi penalizada pelas descobertas científicas do século
anterior particularmente na área da economia e da física ao que acresce as suas
repercussões na vida social. A filosofia e a história ressentiram-se desse fenómeno. A
distinção do que é história-crónica e história-ciência, exposta por Joaquim Barradas de

123
Hegel, Introdução à História da Filosofia, 3ª ed., Coimbra, Arménio Amado
Editor, 1974, p. 109.
124
Na abertura da obra de Todorov pode ler-se uma curiosa citação de Novalis:
«Depois de muito reflectir sobre o assunto, parece-me que um historiador deve também
e necessariamente ser poeta, pois só os poetas podem entender esta arte que consiste em
ligar os factos com habilidade». Cf. Tzvetan Todorov, op. cit., frontspício.
Carvalho125, repôs a discussão da metodologia e a necessidade fundamental da crítica ou
do sentido crítico a partir da ideia de empenhamento nas transformações que se
evidenciam na sociedade ou de compromisso com a época, defendida com vigor na
investigação filosófica no século XX por Jean Paul Sartre.
A ideia que Sócrates fazia de si mesmo ou, mais propriamente, a ideia que os seus
discípulos, mormente Platão e Xenofonte, interpretaram, transcreveram ou
transliteraram do discurso socrático sobre si próprio, tem levantado sucessivas
interpretações, aperfeiçoamentos de linguagem, criou métodos de análise, gerou teorias
e conceitos, que tornaram mitos não só a Sócrates mas aqueles que o rodearam na hora
da misteriosa morte. Tanto mais misteriosa, integrada no conceito dos antigos mistérios,
porque a transformaram na própria morte da razão criadora. Idêntico fenómeno terá
ocorrido com outros mitos para que fosse celebrada a ressurreição simbólica do instinto
crítico, que faz da negação a natureza da lógica.
Sócrates transfigurou-se não pelo corpo mas pelo legado comportamental que
atravessou os séculos. Cientistas e filósofos houve que foram igualmente perseguidos e
sentenciados pela ignorância ou pela característica cegueira governante. A filosofia e a
política, pensar e actuar, são um permanente conflito. O que distingue Sócrates está na
sua atitude excepcional face à condenação e àqueles que o condenaram: os
comportamentos têm de ser orientados por normas éticas absolutas e radicais. Sócrates,
segundo aqueles que o relataram, aborda a política de forma radical onde ser radical
significa apenas ir à raiz da questão.
O poder do Estado não iliba os governantes pelos crimes que cometem contra os
cidadãos. Que governem ou exerçam lugares políticos aqueles que são capazes de
assumir superiormente, de modo racional e moral, o exercício para que são designados e
a sua autoridade possa ser, em rigor, um modo de aprendizagem comum na qual a
comunidade se reveja. Não se vive por padrões absolutos mas que isso não signifique
que se permita o locupletamento, o abuso de confiança e a corrupção.
O apego legal vai sentir-se, depois desse exemplo socrático do sentido de justiça,
particularmente em Roma e em toda a estrutura do poder, sempre insaciável por legislar,
de modo a assegurar perante os povos a justiça nos actos. Como se a legislação,
alcançada por artifícios que encobrem as suas causas, pudesse não ser uma das
principais garantias da injustiça de qualquer déspota. Obviamente que o conflito do
pensar e do actuar permanece como princípio e o desenvolvimento da sociedade é uma
sucessão escabrosa do lugar da violência de um grupo organizado em Estado contra a
maioria dos cidadãos.
A associação da ideia de progresso à sobreposição das reflexões e críticas, que
podem intencional ou momentaneamente afastar a atenção do elemento fundamental do
problema, a pedra angular continua assente nas colunas do templo de Apolo e no que
Sócrates poderá ter reflectido: «Mas eu não tenho tempo para me dedicar a tais ócios e a
razão, amigo meu, é que ainda não cheguei a conhecer-me a mim próprio, tal como o
exige o preceito délfico»126.
As forças desencadeadas pelo conhecimento, em presença do reconhecimento,
constituem a essência do indivíduo face a si mesmo e ao outro nas mesmas condições, a
força de coesão social e da sua tessitura, que passa necessariamente pela organização do
pensamento.

125
Joaquim Barradas de Carvalho, Da História-Crónica à História-Ciência, 7ª ed.,
Lisboa, Horizonte, 1991.
126
Platão, Fedro, 229.Cf. Ernst Cassirer, Linguagem, Mito e Religião, p. 6.
Não faltam compêndios com a história da filosofia nem as reflexões sobre
filosofia da história que dão uma ideia mais ou menos exacta de uma galeria de acções e
comportamentos situados de acordo com a evolução referida.
Porém, interessa considerar de imediato que tudo o que é contém em si mesmo a
sua história e isso significa apenas que olhar o presente é ter em presença todas as
condições e circunstâncias que determinaram aquilo que se depara perante os sentidos
do observador actual.
Cada coisa pressupõe uma matéria preexistente que se encontra a si mesma num
determinado presente, visto que ela é não só a sua existência histórica como a sua
existência na história.
Nietzsche reagiu à evidência da factualidade ligada ao positivismo com uma
pergunta perturbadora: «Que significa esta monstruosidade da investigação histórica
que tanto inquieta a cultura moderna, esta compilação de inúmeras culturas, este
devorador desejo de conhecer o passado, que significa senão o desaparecimento do
mito, o afastamento da pátria mítica, a perda do seio maternal do mito?»127
Há alguma coisa mais do que essa inquietação ou essa perplexidade naquilo que
dá coerência a tantas dúvidas. É a história o que desvenda e permite compreender a
perplexidade imediata perante o contraditório do objecto na aparente imutabilidade e na
eternidade relativa de todas as coisas. As transformações ocorrem na perpetuidade de
ciclos que se percorrem e interpenetram, onde apenas se detém e reserva o que tem sido
objecto de registo no tempo.

A história na história

A possibilidade de desafiar o passado, o desafio dos vivos aos mortos perante a


eternidade alcançada, não faz sentido. A ideia de história como sucessão de ocorrências
contraria o conceito de tempo que a simples ideia de mensurabilidade não justifica. O
primado do actual pode ser interpretado como uma negação do presente. Há livros
sagrados que referem e advertem para que não se diga «morreram» daqueles que jazem
mortos porque nós estamos vivos e não compreendemos que eles permanecem enquanto
nós durarmos.
Sempre se procurou o eixo, o centro do círculo. Do ponto de vista de certos cultos
e mistérios sagrados, o centro do universo é o templo e o templo é o homem com a sua
consciência. O templo não é memória mas o presente infinito, o tempo e o espaço
absolutos, por outras palavras, é o ponto escolhido onde a consciência gera o
conhecimento ou executa a construção do conhecimento128.
O invisível não significa forçosamente o inexistente nem põe em dúvida a
existência material das coisas. A partir do hiato entre o visível e o invisível o espírito
humano despertou e construiu sucessivamente um conjunto de instrumentos racionais,
operativos e práticos que, pelo simbolismo inerente, lhe permitisse o acesso ao que os
sentidos lhe recusavam. «Descobrir» significa encontrar ou dar a conhecer num dado
momento uma solução que pode ser conhecida e confirmada como tal desde há séculos.
E aqui o que é válido para as ciências é igualmente válido para todas as disciplinas que
visem o conhecimento e a coesão social.

127
Nietzsche, Frederico, A Origem da Tragédia, trad. Álvaro Ribeiro, 4ª ed.,
Lisboa, Guimarães Editores, 1985.
128
Neste sentido, cf. António Damásio, O Sentimento de Si, Mem Martins,
Publicações Europa América, 2000.
A tendência para distinguir o «pensamento racionalista» da «mentalidade
religiosa», valorizando o segundo pela suposta capacidade de compreensão de um tema
tão nobre no conhecimento do pensamento como o ritual de iniciação, conduz
directamente a um ponto essencial.
Hyppolito José da Costa não necessitou conhecer o Papiro T 32 de Leiden, que
revela o conteúdo de rituais praticados em diversas cidades egípcias, estudado e
publicado por B. S. Stricker em 1950 (embora encontrado numa tumba profanada por
comerciantes de antiguidades no início do século XIX) para deduzir a existência de um
ritual de iniciação na passagem do profano a iniciado durante o período faraónico. As
referências a Lucius Apuleius, iniciado na Grécia, assim como outros testemunhos
gregos, revelam o contacto com os mistérios (festas e celebrações de carácter religioso)
e a iniciação nas idades clássicas e pré-clássicas, a força inexplicável dos símbolos tão
bem expressa por Jâmblico, de que faz uso. É por demais evidente que o Papiro de
Leiden veio apenas confirmar o que historicamente foi assumido pela Ordem Maçónica.
O papiro T 32, em escrita hierática evoca os termos rituais do percurso do postulante
desde a recepção pelos oficiantes até à recepção da luz, após a visita ao mundo
subterrâneo simbólico onde se processava a visita a Osíris morto para que o
recipendário se tornasse ou incarnasse Osíris vivo, após a purificação pelos elementos
primordiais e o conhecimento da maat (a verdade e a justiça por antonomásia).
Tanto as ciências como as religiões possuem uma história que lhes é exterior,
acerca das suas origens, difusão, aceitação, mobilidade, desvios, normas, preceitos,
contingências, itinerários, com um princípio, um meio e um fim, como se tratasse de
uma totalidade acabada, feita de opiniões e representações mais ou menos subjectivas.
Mas possuem também uma história intrínseca, tumultuosa, necessária, conceptualizada,
que está para além dessa superfície, que as individualiza, desenrola a sua perpetuidade e
decide os aspectos que se projectam pela sua exterioridade.
Um estudo concreto acerca dos mistérios de Eleusis ou do culto de Adónis, não
podem ser confinados à participação dos cidadãos nos mistérios religiosos. Embora
essa participação socialmente materializada constitua o objectivo ou o resultado
consumado pela assistência, a prática religiosa essencial só era acessível a iniciados.
Esses iniciados não diferiam dos restantes cultores salvo no que concerne à consciência
que lhes dava acesso à compreensão dos mistérios, dos objectivos e ao espírito que
imprimiam à sua dedicação. Era neles que se identificava o espírito e a consciência da
unidade da natureza, do sentido das metáforas e alegorias que utilizavam como
instrumentos. Era essa postura de iniciados que lhes dava igualmente acesso aos graus e
qualidades no seu percurso iniciático.
O desenvolvimento do espírito está nesse movimento perpétuo que ele
desencadeia para diversificar, unir, divergir, juntar, até que se consuma em si mesmo no
acto e no momento de reconhecimento. Essa será a procura da verdade na unidade das
coisas distintas que definem uma coisa concreta. Não só define a coisa mas também o
sujeito.
Este tipo de compreensão é imemorial. Alcançou manifestações ou formas
diversas, identificou-se com outros nomes, por força dessas contradições internas que
desencadearam o seu desenvolvimento.
Hippolyto José da Costa não é historiador nem cronista ou antiquário. De facto é
apenas um publicista capaz de utilizar a «pena» para se dedicar a uma investigação
sobre o passado da sociedade ocidental no seu processo civilizacional, cujos
fundamentos só podia encontrar nos adversários das ideias que uma seita ou sociedade
secreta prossegue. E assim o passado inclui o seu próprio passado. Algumas das suas
obras são de carácter autobiográfico.
A história da Ordem Maçónica, pelas características apontadas, está em
variadíssimos casos conferida pela opinião dos seus detractores e relatórios da polícia
política. E isso começa, numa perspectiva historiográfica, pelo que concerne à obra do
próprio Hippolyto José da Costa, que é fundamentada pelos arquivos da polícia e da
Inquisição, mercê das perseguições que lhe moveram e dos maus tratos pelos quais
passou, apesar de os ter descrito por seu próprio punho.
Uma pesquisa desta ordem não se faz sem algumas dificuldades. No caso vertente
trata-se de confirmar por um lado os dados do tema estudado por Hippolyto José da
Costa sobre história clássica e pré-clássica ou até pré-histórica (fase convencionada
como anterior ao aparecimento da escrita reconhecida como tal) e os fundamentos que
apresenta nas inúmeras citações e referências. Por outro lado as razões do seu estudo e
respectiva publicação.

O lugar da Maçonaria

Tanto os escritores que se dedicam a assuntos maçónicos como os seus


historiadores informam que os maçons defendem que a Maçonaria existe desde «tempos
imemoriais» sob diversas formas e designações.
A Maçonaria é uma ordem iniciática, uma sociedade de pedreiros muito especial
visto que a construção, os materiais que utilizam e as ferramentas, tem algo a ver com o
trabalho de pedreiro mas numa perspectiva simbólica, especulativa, não operativa. Os
seus fins são expressivamente qualificados em três palavras: trata-se de uma sociedade
filosófica, filantrópica e filadélfica. Esta tríade tem um significado não menos
expressivo: os seus membros exercitam o pensamento enquanto expressão positiva da
vontade na procura do conhecimento, sensibilidade e desejo. A sua acção no «mundo
profano» aponta para o desenvolvimento material e espiritual, melhoria do homem em
sociedade, através da promoção de valores éticos por meio da intervenção na política,
no ensino, na investigação científica, na consolidação da cultura, em obras de apoio
social a necessidades prementes como o mutualismo, a cooperação. A relação entre
maçons e a relação dos maçons com o «mundo profano» pautam-se pelo exercício da
tolerância ou melhor e para utilizar o termo que significa o elemento de equilíbrio dos
demais, a Fraternidade.
De facto o lema da Maçonaria é a tríade conhecida, mas com um significado
igualmente transcendente, adoptada socialmente em parte devido a interesses políticos
e militares da época e divulgada com a Revolução Francesa: «Liberdade, Igualdade,
Fraternidade»129.
Um esquadro significa a matéria, mas também a rectidão, tal como o compasso
significa o espírito e a justa medida do progresso, que constituem o grande emblema da
Maçonaria. Mas assim como a pedra é o próprio pedreiro e a sua consciência, a «pedra
bruta» que ele desbasta para erigir um templo interior é o homem mas igualmente a
humanidade.

129
«O judeu de origem lusa, Martinez de Pasqualis (provavelmente Pascoal
Martins), fundou o rito dos Cohen-Eleitos. Seu discípulo, Luís Cláudio de Saint-Martin,
cognominado o Filósofo Desconhecido, fundou o dos Martinistas e foi criador do mote
que devia correr o mundo e se tornar como que o símbolo intangível do liberalismo
moderno: Liberdade – Igualdade – Fraternidade». Cf. Menendez y Pelayo, «Historia de
los heterodoxos españoles, tomo III, p. 358, Matter «Saint Martin, le Philosophe
Inconnu», Paris 1862, ap. Gustavo Barroso, História Secreta do Brasil, p. 193.
O maçon é na sua essência um homem em construção por via de uma
aprendizagem iniciática, que principia no momento em que «recebe a luz» e prossegue
através de um trabalho perseverante ao longo da sua vida até passar ao «Oriente
Eterno».
A leitura da pequena obra de Hippolyto José da Costa pressupõe estes valores
materiais e espirituais sumariamente indicados para se entender a procura das raízes
maçónicas numa base iniludivelmente histórica.
O trabalho que, traduzido à letra, será o Esboço para a História dos Arquitectos de
Dionisos. Um Fragmento da autoria de Hippolyto José Costa, aliás Hipólito José da
Costa Pereira Furtado de Mendonça, é um modo de fazer história e é isso o que o torna
bastante atraente. Provavelmente terá sido escrito para ser lido perante uma assembleia
uniforme e receptiva não só ao conteúdo mas também à aura que rodeava o seu autor.
Daí as condições nitidamente românticas com que faz ressurgir o seu tema de textos dos
autores mais recônditos, expondo-os com entusiasmo e salienta-o quando se refere a
eles: «Nestas circunstâncias, os arquitectos elêusicos, dionisíacos, assídeos ou essénios,
afundaram-se no esquecimento, a que nenhuma história faz menção»130.
Esse interesse não está propriamente no assunto estudado mas sobretudo na
necessidade de o apresentar, explicar e fundamentar aos contemporâneos, no início do
século XIX, o que terá levado alguns pensadores a dizer que o século XIX exagerou o
poder do método histórico a ponto de sobrevalorizar o estudo das coisas no seu «estado
embrionário»131.
Nesse período de afirmação revolucionária, que resultou da vitória revolucionária
norte-americana e francesa sobre o «feudalismo», as descobertas em todos os domínios
do saber podiam parecer paradoxais. O empirismo evidenciava-se na procura de
modelos capazes de simplificar a compreensão da realidade por uma maior quantidade
de pessoas. Mas, tal como hoje, o paradoxo estava na dificuldade para apreender mais
do que é revelado pela aparência das coisas132. O grande surto científico resultou da
necessidade de conhecer mais do que até então era intuição e prática corrente onde por
vezes é preciso afirmar o contrário do que as evidências demonstram. Não era só
apetência circunscrita mas uma necessidade rigorosa de pensar e agir de uma forma
diferente, sobretudo pelas repercussões que isso teve nos círculos sociais, associações,
sociedades. A irreversibilidade do movimento social passa pela compreensão do que
nele se engendra e na variedade de «esferas de acção» que movimenta.
A Maçonaria é atrabiliariamente situada entre as associações designadas por
«sociedades secretas», em grande parte pelos seus detractores, para limitar o poder da
sua acção fundamental na estruturação da sociedade de várias nações.
No British Museum há registos maçónicos relativos à Maçonaria dita operativa,
elaborados por um monge com data de 1390 e um de 1450 escrito por um membro da
Maçonaria dita especulativa. Esta distinção considerada fundamental – a passagem de

130
Cf. infra.
131
Alfred North Whitehead, Simbolismo. O seu significado e efeito, Lisboa,
Edições 70, 1987.
132
Paul Hazard faz uma leitura curiosa acerca do lugar da Maçonaria e situa o
«pedreiro-livre» no centro do paradoxo setecentista, «pessoas que recusam
terminantemente a igreja, frequentam uma capela escura (…) recusam terminantemente
ritos e símbolos, recorrem a símbolos e mitos (…) Racionalistas que vão procurar no
fundo das idades os elementos de um misticismo que, mais tarde, nalguns dentre eles irá
substituir a razão. Anti-sectários que fundam uma seita». Cf Paul Hazard, O
Pensamento Europeu no Século XVIII, Lisboa, Presença, 1989, pp. 253-256.
associações de pedreiros para associações intelectuais de políticos, eclesiásticos,
senhores de terras e do comércio – de facto tem sido uma fonte de equívocos e
absurdos, nomeadamente aquilo a que os historiadores chamam muito simplesmente de
anacronismo. Situar os acontecimentos no tempo à luz do presente significa omitir o
futuro que deles resultou e o passado que os originou.
É possível que o Templo de Salomão, a catedral de Sevilha ou o mosteiro dos
Jerónimos tenham dimensões mais pequenas do que certos edifícios bancários ou
pareçam minúsculos se comparados com as construções erguidas no centro de Nova
York, de Singapura ou de Hong-Kong. Mas para quem vivia à altura do chão, dormia na
palha, aquecido no Inverno pelo gado ovino ou caprino, em cavernas irregulares, vãos
de penedos, choças ou até casas de tijolo onde mal se moviam, as pirâmides egípcias, os
altares gregos, as «vilas» romanas imperiais, os castelos medievais e os monumentos
religiosos do período moderno atingiam alturas celestes.
É fundamental atender ao estado do desenvolvimento da sociedade em que as
formas são produzidas para se compreender o significado das Constituições de
Anderson (1723) ou da recolha de uma centena de velhos pergaminhos anteriormente
escritos e organizados por Jean-Theophile Désaguliers sob o título de Old Charges, para
se compreender a mudança qualitativa que um breve texto desencadeou133.
O primeiro registo de uma iniciação maçónica será a de John Bossuel, de
Aucherleck, numa loja de Edimburgo, a 8 de Junho de 1600. A loja era operativa e
Bossuel aparece como o primeiro não-pedreiro efectivo a ser iniciado como tal. Os
registos mais antigos incluem Robert Moray em 1641, Elias Ashmole em 1646 em
Inglaterra e Jonathan Belclur, o primeiro nado norte-americano, iniciado em 1704 numa
loja de Massachussets.
Elias Ashmole atraiu à Ordem Maçónica vários notáveis, os que viriam a formar a
Royal Society de Londres – que na gíria maçónica seria a «Universidade Invisível» e
publicou os trabalhos do proscrito intelectual Francis Bacon - entre eles, Isaac Newton e
John Wilkes.
A maçonaria desenvolveu-se na cordialidade e nesse curioso «isolamento» onde
medra a paciente procura e a transmissão do saber, a vontade de conhecer, o desejo de
alcançar o inatingível, através da leitura, do estudo, da experimentação. Não pode
confinar-se este acontecimento ao encontro de maçons ingleses do século XVIII. Mas é
certo que o que devia ser visto foi dado a ver dessa maneira.
Efectivamente esses maçons reuniam-se depois do trabalho diário em tabernas
públicas e deixavam que os outros clientes vissem que tagarelavam, cantavam, comiam
e bebiam como qualquer cidadão do seu tempo. Com o objectivo de consolidar a
estrutura maçónica entre si procuravam ainda assim o que os preocupava e afinal lhes
pertencia desde tempos distantes, sob formas que passaram a exercitar de acordo com os
rituais que descobriram em arquivos e bibliotecas.
Devido à crise política que assolava o Reino Unido, as «lojas» que reuniam nas
tabernas Apple Tree em Charles Street, Goose & Giridon, de St. Paul’s Churchyard,
Crown Ale House em Drury Street, Runner & Grapes em Westminster, deliberaram
formar uma federação e aprazaram para o dia de S. João Baptista, 24 de Junho de 1717,
a criação da Grande Loja de Inglaterra. É muito provável que tenham discutido até altas
horas, acesamente de preferência, que daí em diante não discutiriam em loja assuntos de
ordem política ou religiosa e juraram diante de uma Bíblia aberta no Evangelho de S.

133
Marius Lepage, História e Doutrina da Franco-Maçonaria, São Paulo,
Pensamento, 1993.
João. Discutiram e assinaram finalmente uma folha de papel para acabar com
comentários e todos terão saído dali contentes e satisfeitos com isso.
O nascimento desta Ordem Maçónica, iniciática, secreta e tradicional, de carácter
universalista, atraiu imediatamente homens preocupados com o estado da sociedade e a
acção possível, com o pensamento científico, artístico e político, com a necessidade de
criar laços que os unissem muito acima daquilo que os dividia. A popularidade das
reuniões dirigidas de acordo com um ritual muito belo e simples, onde se apelava à paz,
à fraternidade, à liberdade, aumentou muito naturalmente entre amigos, cresceu em
Londres e em toda a Inglaterra, passou à França e ao Mundo. Comerciantes e poetas,
aristocratas e sapateiros, políticos e taberneiros, industriais e artistas, militares e
marinheiros de todas as patentes, monges e padres, todos movidos fraternalmente por
ideais filantrópicos e filosóficos, despojados de todo o panache social, encontravam-se
com regularidade em locais escolhidos muito singelos e preparados para a reunião, feita
diante de meia dúzia de utensílios característicos de pedreiro, seleccionados pelo que
podiam significar para além do seu valor imediato. Passaram a designar-se a si mesmos
«pedreiros-livres» (freemasons, franc-maçons, frei maurerei, libero-muratori, masónes, -
os portugueses parece terem optado definitivamente pelo galicismo maçons) e a esses
locais chamaram «lojas». Hoje é impressionante verificar em qualquer «dicionário
maçónico» as relações desses homens e mulheres com os benefícios que desencadearam
a todos os níveis da acção pública na sociedade mundial.
Em 1723 o professor de filosofia em Oxford de origem francesa de nome Jean-
Théophile Desaguliers e o pastor escocês de nome James Anderson conversaram e
organizaram textos de aparência normativa para ser cumprido só por quem os aceitasse
e os jurasse, a que chamaram constituições. Um jornal londrino descreve e anuncia
solenemente então o nascimento da «Ordem Nobre da Arquitectura».
«Um maçon é obrigado, em virtude do seu estado, a obedecer à Lei moral e, se
entender a Arte, não será jamais um ateu estúpido em um libertino sem religião. Nos
tempos antigos os maçons eram obrigados em todos os países, a professar a religião da
sua pátria ou nação seja ela qual for; mas hoje deixando para si mesmos as opiniões
particulares, acha mais a propósito obrigá-los apenas a seguir a religião, sobre a qual
todos os homens estão de acordo. Ela consiste em ser bons, sinceros, modestos e gente
de honra, por qualquer denominação ou crença que a possa distinguir; daí que a
Maçonaria é o centro de união e o meio de conciliar uma amizade sincera entre pessoas
que sem isso nunca se poderiam tornar familiares entre si»134.
Em 1738 a Igreja católica insurgiu-se contra essas reuniões pacíficas onde
participavam alguns eclesiásticos de espírito aberto voltados para a arte, a ciência e o
pensamento, e o papa Clemente VII fez publicar uma violenta bula através da qual
decretou um lugar certo no Inferno para os maçons e prometeu perseguições na Terra. O
Tribunal do Santo Ofício, Inquisição e seus «familiares», enquanto instrumentos
judiciais e policiais da Igreja e do Estado, ávidos de heranças e benefícios, cumpriram
de bom grado esses desígnios. Depois de Clemente, outros papas agiram de igual modo.
Os maçons foram perseguidos, torturados, mortos e os seus lugares de reunião
desmantelados, saqueados, destruídos.
Em 1974, o Chefe do Estado do Vaticano depois de, no século XX, ter apoiado
entre outros a ascensão de Hitler e a sua acção social e bélica, assegurado o poder
financeiro e político de Mussolini, ter utilizado o pseudo-restauracionismo corporativo

134
M. Van Hoof Ribeiro, Maçonaria. O Conhecimento Iniciático e a Ordem
Maçónica, 2ª ed., Lisboa, s.n., 1984.
de Oliveira Salazar, também perseguidores da Maçonaria, decretou tolerância para com
aquela gente de paz.
Os iniciados maçons sabem que, desde 1220, na Inglaterra se fala nas guildas de
pedreiros, construtores de pontes, monumentos, igrejas, conventos, castelos, nas
associações de companheiros que satisfaziam os interesses dos reis e da Igreja, que a
partir do século XVII eram nítidas as suas iniciativas de intervenção social ao nível da
filantropia, mutualismo e lutuosa135. Mas também que, durante esse período se
formavam os monges-guerreiros que, desde 1118, com Hugo de Payens, se organizaram
para acompanhar Godofredo de Bouillon a defender os lugares santos de Jerusalém,
donde saíam conhecedores de civilizações locais muita mais avançadas em saber
humanista e organização, deparando-se-lhes uma grande curiosidade na Europa pela
Península Ibérica, particularmente com Afonso VI, onde floresciam universidades
árabes que veiculavam o saber helénico, judaico e islâmico num espírito auspicioso de
tolerância.
Essas universidades seriam reproduzidas mais tarde em toda a Europa, depois das
célebres criações de Irnério e Bártolo em Bolonha, como sucedâneos das histórias
catedrais para formar quadros administrativos através do estudo do Direito Romano, a
lex romana o Corpus Juris Civilis e o direito do pretor entre outros instrumentos
jurídicos.
Um título como o da pequena obra de Hippolyto José da Costa suscita alguma
curiosidade a começar pelo facto de o nome de Dionisos surgir ligado à origem da
Maçonaria. Hippolyto estabelece as diferenças estruturais entre a Maçonaria e a Ordem
do Templo de uma forma bastante sintética. «Porquanto os Templários só admitiam à
sua ordem pessoas muito qualificadas em nobreza; os Framaçons recebem pessoas de
todas as classes; os Templários gozavam do emprego da Ordem vitaliciamente, os
Framaçons temporariamente e em muitos casos o período é brevíssimo; os Templários
eram por instituição meramente guerreiros; os Framaçons são pacíficos; o governo dos
Templários era puramente militar, resolvendo-se sempre a mando de uma pessoa, nas
devidas circunstâncias, o governo dos Framaçons é inteiramente civil, dirigindo-se
sempre pela pluralidade de votos nas diferentes corporações a que são encarregados
diferentes negócios»136.
Há todavia uma citação metafórica de Pimandro que conduz o seu pensamento
para uma área específica: «O artífice (ou o arquitecto) fabricava o universo inteiro com
a sua palavra não com as mãos. Tem sempre presente no espírito, agindo sobre tudo…».

O lugar da Tradição

A ideia de felicidade, também ligada ao século XVIII, remonta à Tradição


Cultural Ocidental, terá a ver com a eudaimonia como problema central da filosofia e da
paideia, enquanto representação do bem e do bem estar. Esse ideal está patente na
necessidade de apaziguar a sociedade, os comportamentos e os desejos. Por esta razão,
descobre-se de novo o ideal helénico em toda a extensão geográfica alexandrina.
A decifração dos caracteres incisos na pedra negra de basalto polido por
Champollion, denominada Pedra Roseta, encontrada perto de Alexandria por Boussard
em 1792, significa mais do que o encontro com um simples objecto de estudo. Era a

135
Jorge Ramos, O que é a Maçonaria, 2ª ed., Lisboa, Minerva, 1983.
136
Hippolyto José da Costa, Cartas sobre a Framaçonaria, Carta II, Amsterdam,
s.n., 1833, pp. 10-11.
arte, o conhecimento e a lógica como referências simbólicas para uma forma imediata e
«nova» de existência, relações e comportamentos de modo a satisfazer uma experiência
produtiva de sentimentos, emoções que cortou violentamente com o passado. A
materialidade da palavra encobre por vezes o seu verdadeiro sentido que lhe está
subjacente.
Na historiografia a intenção é um elemento criador fundamental para compreender
não só o erro mas sobretudo o que não foi consumado. Para desvendar esses meandros é
preciso ser poeta, trabalhar as palavras e os seus significados possíveis. É aí que o
historiador se distingue do curioso. Não há «frieza» nem isenção possível onde pulsa a
alma humana. Muitas vezes o registo intencional, efectivo e deliberado de actos não
existentes conduziu a equívocos testemunhais e a absurdos incríveis.
A filosofia é o estudo do conhecimento através da sua materialidade na palavra. A
investigação filológica é da maior importância para chegar ao pensamento e ao acto.
Porém, as etimologias podem conter uma aparência científica, precisa e eficaz, capaz de
iludir a realidade mas a forma poética é o modo de chegar às coisas sem receio de as
iludir pois é ela assumidamente a ilusão criada pelo gesto e pela palavra. O mistério
sagrado é ilusão pura materializado na expressão gráfica de forma poética inscrita no
ritual e essa é a área nobre da consciência. A palavra que contém a ideia de origem é o
próprio substantivo que contém essa palavra. A palavra é a origem, a divinização
daquilo a partir do qual tudo começa. Na altura em que este fenómeno começa a ser
pensado ainda não havia espectáculos de pirotecnia nem explosões de obuses ou
bombas atómicas nos desertos ou sobre as cidades. A designação comum, criada a partir
da banda desenhada, pode dar uma noção muito menos aparatosa e mais singela da
ideia, da coisa, da energia em movimento.
O corte com o imediatamente anterior exigiu actos de liberdade imaginativa que
refez a memória do período clássico e a referência simbólica que o passado distante
podia conferir.
O conjunto de ideias que envolve a referência ao deus Dionisos e aos arquitectos
de Dionisos poderá ter a ver com a celebração de um ciclo de energia contínua da
natureza que, paradoxalmente, tende a precisar a ideia de tempo. A ideia de tempo como
uma simples sucessão tem causado alguns equívocos a começar pela associação da ideia
de história à sucessão de factos no tempo. Na natureza as coisas têm uma duração, um
progresso, uma evolução sob determinadas formas, mas o tempo é um conceito
absoluto, como o espaço e a matéria, que se manifesta por si mesmo na sua
universalidade numa forma específica.
Dionisos, o deus da ressurreição, festejado pelos gregos quando o Sol entrava em
Áries, para anunciar a Primavera, tal como Horus entre os egípcios, Tamuz na
Mesopotâmia, advém de uma potência divina associada a ritos que despertam para a
alegria, para o prazer sexual, para o arrebatamento impulsivo na conjugalidade de corpo
com corpo.
Com efeito, Du’usu (Tamuz) não figura no número dos grandes deuses do panteão
babilónico mas tem um lugar considerável na história da religião. O seu nome significa
«a vergôntea» e é mencionado nas inscrições babilónicas arcaicas como um deus do sol
primaveril que, todos os anos se submete às forças destruidoras que desaparece na terra
no mês de Tamuz, sob o sol de Verão. Desce ao mundo inferior e com ele morre a
Primavera. O império dos mortos recebe-o até que irrompe da morte, abandona o
mundo da trevas e cobre novamente a terra, completando o misterioso ciclo. Tal como o
mito de Ishtar que desce ao inferno, segundo a epopeia de Gilgamesh, quando o amor
selvagem se une ao prazer cruel de destruir o amante, de quem está farta.
Estes deuses eram o oculto da natureza viva que se revelava a quem a sabia
interpretar. Plutarco abordou o tema nessa perspectiva e afirmou que o nome próprio de
Zeus era Amon, palavra que «nós os gregos alteramos pronunciando Ammon». Amoun
ou Amon, além de ter sido o deus único de Tebas, chegou a ser, com a dinastia XVIII o
deus supremo do Egipto, o único que existe por essência, o único que vive em
substância, o único gerador no céu e na terra que não foi gerado, o pai dos pais, a mãe
das mães.
O nome Amon deriva de raiz amm, estar oculto, designa a força da natureza que
opera invisível no oculto. E refere Plutarco que o sacerdote Maneton a creditava que
esse vocábulo significava coisa oculta ou a acção de ocultar. Verificou entre os que
procuraram o conhecimento no Egipto, testemunhado pelos «gregos mais ilustres»
como Sólon, Tales, Platão, Eudoxio, Pitágoras e, segundo alguns, também Licurgo que
foram viver no Egipto e chegaram a gozar da intimidade dos sacerdotes.
Por isso, lembra Plutarco, se diz que Eudoxio escutou as lições de Conufis de
Mênfis, que Sólon ouviu os da seita de Sonchis e que Pitágoras conversava com o
heliopolitano Enufis. Segundo parece este último grego, sobretudo, cheio de admiração
por aqueles homens que também o admiravam a ele e tentou imitar a sua linguagem
simbólica e seus ensinamentos misteriosos envolvendo a sua doutrina de enigmas. Com
efeito, prossegue Plutarco, nenhuma diferença há entre os textos hieroglíficos e a dos
preceitos pitagóricos, por exemplo: não comer sobre um carro. Não plantar palmeiras.
Não avivar o fogo com a espada.
Confirma Diodoro de Sicília que os sacerdotes egípcios asseguram, apoiando-se
no testemunho de livros sagrados, que entre eles viveu Orfeu, Museu, Melampos,
Dédalo, também o poeta Homero, Licurgo de Esparta, Sólon de Atenas, Platão,
Pitágoras de Samos, Eudoxio, o matemático, Democrito de Abdera e Oenopidas de
Quios.
O mesmo Diodoro de Sicília, que fornece sobre Osíris a etimologia que nos é
proporcionada por Plutarco, refere que o nome de Osíris deve significar a potência de
Ra ou a força do Sol, que se renova e desenrola por períodos137.
Hermes é o deus Thot, o inventor da escrita e pai da história ou, segundo
Jamblico, «o deus que comanda a palavra»138. O aliado de Osíris é Horus. Procura ao
Sol a vitória contra os inimigos, as trevas, dando à sua palavra o poder de construir a
verdade, quer dizer, a virtude criadora. Finalmente põe paz entre Horus e Set, entre o
Sol e a Treva, fixando os limites de cada um deles. Com efeito é um deus mediador e
regulador, é caso com Má, a regra e a rectidão, que está associado à Lua por causa da
regularidade das fases deste planeta. Como inventor da escrita é senhor dos escritos
divinos. É o deus das letras, das ciências e da História.
Se alguma vez foi pintado como Anubis, com a forma de cão, era porque se
considerava como porteiro e guardião dos céus. Este deus presidia ao começo dos
tempos e dos anos e o primeiro ano do calendário egípcio era-lhe consagrado..

137
O Sol tem o mesmo radical em latim, grego, indiano, germânico, lituano, galês,
irlandez, avéstico. Segundo Pierre Levêque, só no Irão adquiriu uma importância maior
do que a que teve entre latinos, bálticos ou indianos. Na Grécia o culto de Apolo
desenvolveu-se por aproximação às doutrinas orientais e desempenhou um papel muito
grande no simbolismo. Cf. Pierre Levêque, As Primeiras Civilizações, vol. II, Os Indo-
Europeus e os Semitas, Lisboa, Edições 70, 1990, pp.79-80.
138
Jamblicus, Les Mystères des Egyptiens, des Chaldéens e des Assyriens, Paris,
Dervy, 1948, p. 19.
Mas há um aspecto não negligenciável que Diodoro de Sicília sublinha. Osíris fez
perder aos homens o hábito de se comerem uns aos outros, assim que Ísis descobriu o
trigo e a cevada, que cresciam anteriormente sem serem cultivados e confundidos com
outras plantas. Osíris incentivou o cultivo da fruta e explicou o seu benefício. Só uma
alimentação agradável podia fazer abandonar os hábitos de antropofagia.
Eleusis que alcançou um lugar distinto entre os santuários gregos festejava
Perséfona. Essa pequena cidade eclesiástica foi absorvida no século VII por Atenas e os
atenienses apressaram-se a fazer dela um santuário do Estado. Alguns autores são
levados a cerceá-la pela campânula diáfana da moralidade, considerando o culto a
Dionisos como «um culto de actividades obscenas» , ou de «devassidão», «indecente
entre cristãos» e outras qualificações marcadas pela reconhecida secular hipocrisia.
Não é possível esconder que nas festividades, que absorviam toda a população da
polis, nas Grandes Dionisíacas e Pequenas Dionisíacas, em procissões que inauguravam
a vida e exigiam grande poder de organização, nas quais se exibiam enormes falos, se
ostentavam falos pendentes em varas e se vendiam recordações com as figuras
monstruosas do calvo Príapo, nas quais o falo tinha a dimensão do corpo inteiro.
O culto do membro viril não é um exclusivo das festas de Dionisos. Se transitou
para Roma como Baco, ele vinha do Egipto, onde o touro Ápis era apresentado às
mulheres que publicamente se despiam por completo perante a sua figura, como relata
Diodoro da Sicília. Príapo ou Priapis tem na sua origem a marca etimológica do
princípio da fecundação.
Clemente cita uma descrição de Estrabão onde este descreve as relações públicas
de mulheres com insaciáveis bezerros no Nomo Mendesino, onde também adoravam o
bode. De facto era uma festa de apologia ao masculino, ao macho, ao prazer e à
sensualidade que eram atributos do homem e que só certas mulheres de coração
palpitante podiam fruir, as efervescentes ménades, que a arte revelou pela sobriedade,
contenção e prudência. As ménades não eram bacantes, sempre possuídas
indiferentemente pelo sexo deles ou delas.
Se a aparência destas festividades gerou a moralidade e as leis que as cercearam
até ao aniquilamento, nem por isso se limitou ou eliminou o desejo, que vai estar
presente na pintura das catedrais e dos palácios, não para o revelar ou denunciar mas
para o suscitar ou despoletar.
De facto tudo faz sentido quando se procura. Se as leis romanas contra o «culto de
Baco» se tornaram célebres por serem contra o desbragamento e a perversão do sentido
das coisas, a explicação originária é bastante mais clara. A repressão dos grupos
masculinos sobre as mulheres apenas tende a esconder o real e efectivo poder delas. A
«igualdade» é uma redução de valores da natureza, onde a mulher é o elemento de
equilíbrio, a sublime meta do desejo e a expressão da beleza. Com efeito, a única parte
do corpo de Osíris que Isis não pode encontrar foi o membro viril. E como Isis não pode
encontrar as partes sexuais de Osíris fez construir uma imagem de barro para uso nos
templos e atribuiu-lhe um culto especial nas cerimónias e sacrifícios que se efectuam
em honra deste deus. Por isso os gregos, que tomaram dos egípcios o sentido misterioso
das orgias e festas dionisíacas, sentem grande veneração pelo culto do falo nos mistérios
e iniciações.
As «monstruosidades» sempre tiveram essa insofismável vertente de mistério. O
feio Príapo, descendente de Dionisos, que para os egípcios antigos será Horus, o deus
sol a ressurgir na Primavera. Para Jâmblico, que estudou os mistérios na terra que
jorrava de vida pela Primavera, o membro masculino era adorado sob a forma saltitante
de Sátiro para despertar as mulheres e sagrado como «poder gerador». Em nenhum dos
casos esse poder é bestializado ou eivado de qualquer sentido de devassidão. Era apenas
a vida viva na consagração do mistério da força vital da renovação de si mesma sob as
formas mais directas.
Por essa ordem de razões, as faleforias eram procissões em honra de Dionisos, que
se celebravam na Grécia para honrar este deus fecundador. O Falo era levado com
grande pompa como símbolo da potência geradora e actividade fecunda de Baco. É
Heródoto quem assinala no Egipto em honra de Osiris um costume semelhante a este.
O sentido de tradição indica que foi da necessidade de organização do espectáculo
que adveio o teatro e que, da necessidade de escrita do ritual, resultou a tragédia
clássica.
O que sabemos de mais seguro é que não havia, a bem dizer, «sabedoria»
propriamente eleusiana e que os mistérios não davam nenhum ensino dogmático.
Aristóteles dizia já que os iniciados só recebiam impressões e eram levados a uma certa
disposição de espírito. Utilizavam todos os meios cénicos para acentuar os efeitos da
narrativa. Não faltava nem música, nem dança, nem a luz dos archotes para despertar os
espectadores e para os tornar mais impressionáveis.
Desde Sócrates – e foram muito poucos aqueles que acederam realmente à
compreensão da sua convivência e isso é o que faz a diferença entre Platão e Xenofonte
- que a questão do conhecimento se coloca como consciência. Perante quem o destruiu,
Sócrates afirma que não ganhou nada com a sua predestinação à sabedoria e confessa
com um argumento pueril, débil e derradeiro: «e disponho de um testemunho bastante,
sem dúvida incontroverso, do que afirmo: a minha pobreza»139.

O lugar da organização política

As circunstâncias em que se move Hippolyto José da Costa pode ser vista por uma
perspectiva mais chã, corrosiva e demolidora, donde é preciso emergir e respirar. O
Brasil é uma ilusão tão extraordinária como o mundo hipostasiado por Tomás More. A
necessidade de superar a situação real evidencia-se num espírito surpreendente gerado
pelo ambiente da luta pela independência face à corte portuguesa instalada no Rio de
Janeiro. « O despotismo da administração portuguesa não podia matar de todo a flor da
colónia, nas oligarquias rurais e nos grandes núcleos povoados (…) Os costumes
desavergonhados da própria corte e dos fidalgos que para aqui vinham restaurar fortunas
perdidas, a decadência moral do clero secular e regular e a prosperidade dos
energúmenos e aventureiros, que afrontaram a travessia oceânica, iam de compasso com
a rica fidalguia indígena, os novos ricos das minas e a mestiçagem triunfante pela
ousadia do ganho(…) Os homens públicos em Lisboa formaram partidos pelos ingleses
e pelos franceses, defendendo a estes o duque de Lafões, Correia da Serra e Seabra,
aspirando vantagens para Portugal e a corte, D. Rodrigo, Ponte de Lima e o futuro
conde das Galveias estavam pelos ingleses (…) A corte, os ministros, as autoridades, a
alta nobreza não esmoreceram no encaixotamento dos papeis de estado, dos valores, dos
livros, baixelas, jóias, quadros, moveis, carruagens, ornamentos religiosos, prelos e
tipos, mapas, estampas, roupas e móveis imprestáveis, afora o que enfardelava o
«enxame de parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades
e freiras, monsenhores e castrados». Tirante os que, na pressa do embarque, seguiram
com a roupa do corpo. E corriam para bordo, chapinhando na lama, debaixo dos
aguaceiros que detinham o avanço de Junot, numa promiscuidade revoltante,
desbordantes em oito naus, quatro fragatas, três brigues, uma escuna e dezenas de
charruas e navios mercantes, sem cómodos para cerca de quinze mil pessoas, ora aos

139
Platão, Apologia de Sócrates, Lisboa, Guimarães Editores, 1988.
apupos, ora ao pranto da multidão que ficara bestializada, sem rei, sem lei e sem amparo
e a nação humilhada e na miséria! (…) Uma revista, O Correio Braziliense, que um
brasileiro publicava em Londres, Hipólito da Costa, largamente lida na colónia, fazia a
crítica tenaz das medidas, das leis e regulamentos impostos à colónia e ia esclarecendo
esta»140.
Hippolyto José da Costa procura culturas e civilizações que, implicando pastores
de ovelhas, camponeses esforçados, criadores de vacas, pacientes pescadores de rio,
vendedores de leite, curtidores de peles, atinge o cerne de uma questão fundamental. A
riqueza do homem está na partilha do esforço e dos resultados, não na exploração
recíproca, onde o papel do Estado se tornou contrário ao desenvolvimento da
consciência. A questão está em saber que tipo de organização social pode acompanhar
aquilo que o desenvolvimento material contradiz.
A par das operações diárias básicas, as mais das vezes omitidas pelos biógrafos,
emerge da humildade e atenção pelas tarefas primárias uma forma e um interesse por
trabalhar a pedra. M.I. Finley recorda que, entre os gregos, a escravatura era uma
instituição universal, baseava-se em premissas fundamentais da desigualdade humana,
dos limites da autoridade e do aviltamento, da ausência de direitos. Ficaram
conservados os relatos sobre a fase final da construção do Erecteu na Acrópole entre
409 e 404, que exigia trabalhos mais delicados, de entalhe de pedra, de madeira e
pintura decorativa. Conhece-se o estatuto dos oitenta e seis operários que lá
trabalharam: 20 escravos, 24 cidadãos, 42 metecos. Eram todos operários
especializados. Na maior parte dos casos os proprietários trabalhavam ao lado dos
escravos. E as perguntas surgem: «Qual era, então, a psicologia de Falacro, cidadão de
Atenas, quando ele e os seus três escravos, todos pedreiros, eram encarregados pelo
Estado de fazer esse trabalho e que, nesse aspecto, eram iguais aos olhos do Estado, mas
em mais nenhum? (…) Qual a psicologia dos escravos?»141.
A divinização do poder gerou o carácter religioso da obediência. Quando as
monarquias se tornavam impérios pela conquista de outras nações, não raro os povos
submetidos mantinham os seus deuses e as suas crenças, a religião e os costumes.
Impunham-se-lhes os tributos, homens para as tropas, o culto pelo poder real dos
conquistadores. O tributo era um sinal de servidão, como na monarquia divina de cariz
imperial tomada de Dario e institucionalizada pelo helenismo com Alexandre Magno.
Existe uma reciprocidade entre poder e saber, que é uma característica do
pensamento mágico. A um maior conhecimento corresponde um maior saber. O
contributo egípcio para o hermetismo, repensado pelos gregos, corresponde a um
momento de conjunção de correntes, desencadeou o aparecimento de associações,
confrarias, onde se juntam gregos e bárbaros em torno de um mesmo deus ou de um
mesmo herói. Graças a inúmeras inscrições, conhece-se bem a vida destas instituições
com um papel cada vez mais relevante na vida quotidiana142.

140
Austricliano de Carvalho, Brasil Colónia e Brasil Império, 2 vols. Rio de
Janeiro, Jornal do Comércio, 1927, vol. II, pp. 477-517.
141
M.I. Finley., Os Gregos Antigos, Lisboa, Edições 70, 1983, p. 127-128.
142
Pierre Levêque enuncia :«os tiascos de tecnitas (artistas) dionisíacos são
companhias de actores, muitas vezes encarregados pelos soberanos de organizarem
representações, festas, procissões: os mais famosos são o dos “artistas do Istmo e da
Nemeia” em Corinto e o dos “artistas sob a invocação de Dioniso na Jónia e no
Helesponto” que exercem a sua actividade em toda a Anatólia e ao qual os Atálidas
concedem a sua protecção» Pierre Levêque, O Mundo Helenístico, p. 159.
Os participantes são irmãos, que se reúnem para rezar, para cumprir liturgias, ou
fazerem banquetes e que não são separados pela morte, visto que a associação tem
muitas vezes o seu próprio cemitério. Estão unidos porque escolheram o mesmo deus. A
união dos corações é fortificada pela participação nas mesmas cerimónias, pela mesma
iniciação, que é muitas vezes um baptismo de água ou de sangue, pelos mesmos jejuns,
pelos mesmos ritos, que, tal como a catabasis (descida à terra), simbolizam a esperança
numa outra vida depois da morte, sobretudo pela mesma mensagem de salvação. Como
é dito excelentemente pelo Revº Festugière, basta mudar o nome do deus na famosa
frase da Epístola aos Gálatas (3,28) para se ter a definição de todas estas comunidades:
«De agora em diante já não há nem judeu nem grego. Já não há nem escravo nem
homem livre. Já não há nem homem nem mulher. Sois todos um só em Jesus Cristo”
(…) É também neste mundo que irá nascer uma outra religião oriental, também ela
religião de mistérios e religião de salvação, que lentamente se irá impor: o
cristianismo»143.
A pedra tornou-se o material de trabalho para marcar o espaço da vida e da morte
enquanto matéria prima do pensamento. Nas línguas semitas conhecidas o uso e o
sentido são a mesma coisa. As pedras eram usadas como tábuas para nelas serem incisos
os caracteres que definiam a lei, o nome, o número. Em bruto ou lavrada ou esculpida, a
pedra adquire uma grandeza instrumental e significativa única. Desbastar a pedra bruta
até encontrar nela a escultura que a imaginação via no seu interior, ou que já lá estava
como queria Miguel Ângelo, é uma alegoria eficaz que pode explicar de sobremaneira
um percurso de reflexão.
Numa altura em que a transmissão do saber se faz por via da palavra dita, a pedra,
o trabalho da pedra, a monumentalidade da expressão plástica na pedra, marca o ritmo e
o sentido ao pensamento. Hoje o fragmento de um possível texto filosófico tornou-se
tão importante como as esquírolas para refazer a pedra bruta desbastada pelos
caçadores que habitavam o interior das grutas.
Curiosamente, para os historiadores esses sistemas de relações sociais que
geraram civilizações e culturas são tratadas como impérios, tais foram as repercussões
do seu poder de organização, expressa em termos de lei, de acção militar e sobretudo de
estrutura social, nem sempre visível, sob a forma de mistérios ou rituais sagrados.
A investigação científica, mercê da sua metodologia, a partir do século XIX,
chegou a conclusões concretas sobre o desenvolvimento da sociedade humana. A
relação da cultura com a evolução da economia permitiu estabelecer os padrões do
desenvolvimento e escorar o estudo em bases concretas. Faltavam no entanto as
constantes, que a expressão «natureza humana» procurou colmatar e que estão em
relação directa e determinante com os valores impressos no seu desenvolvimento.
De facto é no desenvolvimento mais íntimo dessas sociedades que encontramos as
bases da Tradição Cultural Ocidental, que teve o seu centro geopolítico no mar
Mediterrâneo e que, com a evolução dos sistemas e meios de comunicação marítima,
postos em prática após a Revolução Norte Americana e a Revolução Francesa, com a
expansão comercial do império britânico e, no domínio do pensamento político, a
consolidação da «doutrina Monroe», anunciada por Thomas Jefferson durante a
formação dos Estados Unidos da América, possui indubitavelmente uma componente
atlântica.
Ser revolucionário, neste período conturbado do século XVIII, onde a distância
entre o bem (ou o bom) e o mal (ou o mau) implicava sobretudo encontrar as raízes de
uma expressão coerente que desse os fundamentos à luta para superar as relações

143
Idem, ibidem, pp.159-160.
«feudais», significava conhecer a origem, o fundamento e a razão dos poderes, a sua
concentração, o seu desenvolvimento e os desvios (heresias). O fundamento das
perturbações reflectiu-se sempre na procura de elementos de estabilidade que estão na
base de um produção cultural particular.
Os pintores, escultores e arquitectos semearam por toda a parte referências
evidentes à arte greco-romana, a organização social não o descurou os seus
fundamentos. A recuperação de valores sociais e estéticos originários para os tornar
originais só pode ser compreendida com esse sentido prático que as descobertas
«históricas» trouxeram à luz no rasto do exército francês e na rebelião norte-americana.
A tradição institucional europeia assenta na existência de um rei que, nas diversas
etimologias indo-europeias indica aquele que diz o que é recto, não é um comandante
militar mas alguém que determina a regularidade, a rectidão, a exactidão ritual, a regra
jurídica. «Aquilo que é possível reconstituir da realeza primitiva comum desemboca na
imagem de um poder simbólico, muito limitado nas suas possibilidades de acção, mas
necessário ao bom andamento da sociedade»144.
Durante a vigência da realeza, o predomínio do religioso é notório em todas as
épocas pelas funções constritivas sobre a obediência da massa populacional constituída
pelos produtores. Desde as sociedades mais arcaicas, as classes sacerdotais produziam
entre si os soberanos ou reis. A primeira função da teologia é a soberania, o poder
mágico-religioso, o pensamento. A segunda é a da força física, muscular exercida
fundamentalmente na guerra. A terceira está na fecundidade, na agricultura, na
reprodução. Levêque salienta que só no mundo indo-europeu (e nunca fora dele) se
encontram tríades divinas correspondentes às três funções145.
A importância testemunhal da obra de Hippolyto José da Costa, advém do facto de
ter sido elaborada neste período em que estala o confronto entre o «sistema
continental» e o «sistema americano», que marcou as formas de organização política
após a partilha dos poderes na Europa em 1815, sob a presidência de Metternich em
Viena de Áustria e vai permitir a Hegel encontrar a síntese dialéctica que abre as
perspectivas de uma nova era para o pensamento, que se procurava desde os sofistas,
para justificar o lugar do indivíduo face ao poder universal do poder absoluto do estado
à escala planetária.
A filosofia alemã surge como um bálsamo para o pensamento. A necessidade de
edificação do império britânico, cuja ciência, tecnologia e organização social
sintetizadas por Adam Smith são as mais avançadas do mundo, prepara a sua própria
implosão. A expansão da teoria política francesa a partir do ideário saído da revolução
deve-se à síntese efectuada por Proudhon.
Como trabalho de oratória, a pequena obra de Hippolyto José da Costa tem pois,
por objecto uma concepção do mundo que visa unir e consolidar laços fundamentais à
estruturação da sociedade humana num ambiente em profunda transformação. Essa
estrutura complexa, só acessível a iniciados, as mais das vezes não é visível nem
perceptível do exterior.
Os factos narrados de uma forma tão sumária remontam a um período pré-
histórico e atravessa os tempos, mais precisamente desde o século XX a. C. até ao
século XIX da nossa era. As obras compulsadas para estribar a síntese, de algum modo
poderosa, fazem do trabalho de Hippolyto uma pesquisa que suscita mais do que
simples curiosidade. O termo mais exacto para a qualificar seria o de surpreendente.

144
Pierre Levêque, op. cit., pp. 48-55.
145
Idem, ibidem, p. 83-90.
O seu autor vive e deixa, nesta e noutras obras, a marca, de sobremaneira
veemente, acerca de um período bastante convulso da sociedade europeia (com a sua
extensão americana) e será sempre, por essa razão, uma pedra angular na construção de
uma cultura europeia de feição atlântica face a uma civilização «europeia-africana-
oriental», que deu forma e serviu de ponto de partida à cultura europeia de índole greco-
latina ou judaico-cristã, abreviadamente, mediterrânica.
Tal como há trinta séculos, surge uma coincidência entre a prática pitagórica e a
introdução da moeda na prática comercial. Assim é que, no século XXI, volta a ser
necessário revisitar aquilo que a Revolução Norte-Americana e a Revolução Francesa,
sob o efeito das mesmas constrições e projectos, tiveram de recuperar da antiguidade
sob a forma de pensamento e acção, agora e simultaneamente ao som do piano nos
salões e da artilharia estratégica em zonas de pastagem ou mesmo dos campos
cultivados de aldeias que ganharam fama devido ao sangue ali derramado.
É possível que a percepção do pensamento pitagórico, relacionado com uma classe
sufocada pela «sociedade de escravos» permita compreender a política de Sólon. Ambos
eram iniciados nos sagrados mistérios egípcios, ambos manifestaram as mesmas
preocupações democráticas e se apoiavam socialmente no movimento popular, na
tentativa, aliás frustrada, para assegurar na Grécia a federação de cidades-estado
independentes.
No século XVIII a inovação do pensamento retoma o ideário grego e romano mas
vai às bases e fundamentos deste para «descobrir» os ritos egípcios expressos na
literatura e arte – que na época eram apenas a expressão literária ou o relato de um ritual
no qual participavam todos os elementos do corpo social em conformidade com o seu
lugar na hierarquia da estrutura.
Os «Iluminados» no século XVIII, os românticos, assumiram e transformaram a
noção de Tradição Cultural Ocidental, no seu fundamento, para organizar as tendências
conspirativas de um movimento revolucionário para a conquista do mundo exactamente
por reviver a antiguidade clássica como tradição iniciática vertida na sociedade146.
Assim seria se Nietzsche não tivesse denunciado os historiadores a quem falta «o
espírito histórico» ou, mais precisamente, a «inteligência do passado», visto que têm
«uma maneira de pensar essencialmente anti-histórica»147. No século XX d.C. alguém
se interrogava com a perplexidade natural de quem assiste ao desmoronamento de
estruturas sociais eternitárias, apenas observando que os acontecimentos já ocorrem sem
que apareçam sinais no céu nem avisos oportunos como no tempo da morte de César.
O século XX foi particularmente rico no desenvolvimento da tecnologia, a
robotização na industria com a produção computadorizada, a expansão da energia

146
Os Iluminados da Baviera, cujos fins se tornaram conhecidos graças a uma
detenção e à investigação policial, tinham como projecto por termo à Monarquia,
combater a igreja e instaurar uma ditadura universal. O movimento foi fundado em 1 de
Maio de 1778 por Adam Weishaupt, um jovem professor jesuíta com vinte e seis anos,
que leccionava Direito Canónico em Ingolstadt, não muito longe de Munique que, na
época, tinha cerca de quarenta mil habitantes. Os propósitos dos Iluminados que,
segundo Gérard de Nerval, foram os primeiros socialistas muito revolucionários e
pouco iniciáticos, eram orientados no sentido de abolir a Monarquia ou qualquer outra
forma de governo, abolir a propriedade privada dos direitos sucessórios, abolir o
patriotismo e o nacionalismo, abolir a família e o casamento instituindo um sistema de
educação colectiva para os filhos, abolir as religiões.
147
Frederico Nietzsche, Genealogia da Moral, Lisboa, Guimarães Editores, 1980.
p. 18.
atómica, o acesso às estrelas, o cinema, a televisão, pela consciência que permitiu
alargar em face da universalização da informação. O século XX, ao qual ficam
associados momentos sociais da maior violência, foi o momento da consciência de
comunidade humana, da identificação (ou perplexidade) do homem face ao seu
isolamento no universo e, sobretudo, da necessidade de reencontrar elementos
estruturantes de uma sociedade que, por via do seu desenvolvimento, entrou num
período de desagregação irreversível.
A disciplina da fábrica, que durante quatro séculos se estendeu à família, criou a
nação, estabeleceu fronteiras e incrementou distinções, diferenças, submissões, em
guerras imparáveis e sanguinolentas, sofreu um forte revés com as novas tecnologias148.
O capitalismo ainda não esgotou as suas potencialidades. Porém a energia humana
tornou-se a mais cara e por isso dispensável. Os homens estão a ser afastados das
estruturas que constituíram a base da sociedade que os «religou» nos séculos XVII.
XVIII, XIX e XX e que estão patentes apenas onde menos esperavam aqueles que se
tornaram os senhores da riqueza do mundo mas não da palavra: nas regiões mais
humildes, onde só a tecnologia militar contrasta com o modo como se vive há dois mil
anos ou mais.
Assim é que as interrogações acerca da conduta dos cidadãos perante a lei, onde o
exemplo de Moisés, de Pitágoras, de Sócrates, de Jesus Cristo, de Confúcio continuam a
brilhar para leituras sempre renovadas, permanecem com a mesma intensidade face à
perplexidade igualmente renovada nos momentos de crise.
O martírio de certos indivíduos está ligado à necessidade de apreender e
compreender a subtileza e a brutalidade da dominação, obviamente desencadeada à
sombra dos princípios mais elevados, quando se torna necessário alterar as relações
sociais face a novos sistemas de acção e de pensamento.
Só existe uma via estruturante para a sociedade humana e que sobreviveu a todas
as convulsões. Qualquer via estruturante passa pelo despertar da consciência, o que
significa também que passa essencialmente pela necessidade de organização do
pensamento.
Há porém forças que impõem o modo de se pensar as coisas. Essas forças estão
estreitamente relacionadas com a necessidade, mãe dos impulsos que geram os actos
singulares ou colectivos, pacíficos ou violentos, afectuosos ou perversos, visíveis ou
ocultos. Se se atribuir um nome a cada uma destas palavras, cuja explicação é sempre
insuficiente e por isso sistematicamente renovada, pode descobrir-se o que há de
comum na natureza humana e as dificuldades para a suster representadas em ícones e
palavras simbólicas que os rituais consagraram.

148
Lima de Freitas assinalou a cissiparidade existencial que se agudizou a partir do
século XVIII: «O antigo “Templo”, como organismo vivo onde se estruturavam
harmoniosamente as grandes forças naturais e sobrenaturais, humanas e divinas, físicas
e metafísicas, desapareceu. Em seu lugar, o Ocidentes produziu a “Fábrica”, isto é, uma
amálgama de ciências aplicadas, de tecnologias industriais, de utilitarismos e
contabilidades, que substituíram a unidade dos opostos, da visível como da invisível,
pela estandardização das coisas e que suprimindo nas planificações tudo o que não fosse
ser quantificado, amortizado e consumido, descurou os frémitos crepusculares, os
“demónios” e os “fantasmas” irracionais que vagueiam na alma e na cidade dos
homens; sentindo-se à solta, fora do círculo iluminado da atenção consciente,
desenfreadamente proliferam no nosso tempo», Lima de Freitas, Pintar o Sete. Ensaios
sobre Almada Negreiros, o Pitagorismo e a Geometria Sagrada, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1990, p. 85.
Na natureza humana, como predizia Goethe, tudo se adensa e, perante o que se
torna visível e permite ser sistematizado episodicamente (conhecido) se verifica que fica
muito mais por descobrir (oculto). O que está oculto no homem, na natureza, no cosmo,
exibe leis inexoráveis que têm de ser compreendidas para que as coisas tenham
significado. E se a história, a pretexto de uma definição curiosa, quiçá etnográfica, de
«mestra da vida», tem servido para o exercício, a manutenção e a justificação do poder
discricionário do Estado sobre os cidadãos, também é certo que os cronistas com maior
ou menor estro literário o fizeram a ponto de tornarem inútil o seu modo de utilização
dos elementos de prova de que se serviram para as suas crónicas.
O estudo que nos traz aqui revela de sobremaneira o que significa o acto de
compreender o sentido do que está antes de acontecer e de se tornar visível ou
perceptível e é esse o elemento essencial do seu interesse para a história. É tão
importante sabermos por via semântica que o deus Amon no antigo Egipto era o
significava e a compreensão do oculto a propósito de uma semente que apodrecendo
germina, tal como é o saber que o embaixador dos E.U.A. em Paris, Thomas Jefferson,
em carta ao seu Presidente John Adams, em Julho de 1789, quando ninguém sabia ao
certo o que andava a fazer por entre os tumultos, assaltos e manifestações nas ruas
daquela cidade, nem ninguém tinha, em rigor, a noção global do que ali presenciava e
vivia, ele disse apenas que estava a acontecer uma revolução.
Os «despojos» sociais da Revolução Francesa, depois da derrota militar de
Napoleão em Waterloo e do Tratado de Fontainebleau, estavam sediados onde os
princípios que a anunciaram haviam sido postos em movimento. A conjuração de
bonapartistas, organizada em torno da figura tutelar de José Bonaparte nos Estados
Unidos da América, onde se refugiara, com o projecto remoto da salvar o imperador do
presídio de Santa Helena, nestas circunstâncias não é um exemplo acessório. José
Bonaparte, grão-mestre da Maçonaria francesa durante o «império» da Revolução,
como sucessor de Phillipe d’Orleans, aliás Phillipe Égalité, obteria obviamente o apoio
dos estados americanos se o exercício do poder se limitasse a relações lineares e
formais.
A ideia de que os documentos não fazem a história, ao contrário do que parece
afirmar, reduz a história a uma simples fonte de conhecimentos de secretaria. Está fora
de dúvida que a história, enquanto conhecimento, só pode ser feita com base na
autenticidade dos documentos que a sustentam. Por mais de uma vez o conhecimento
histórico se identifica substantivamente com o método para atingir o conhecimento. O
conhecimento resulta da necessidade de responder a questões essenciais da vida, do ser
e da consciência do instante que resulta do tempo que o gerou.
A primeira tentação é recusar o «documento» quando referido a uma folha de
papel carimbada em qualquer notário ou até numa «tabuinha» de argila com seis mil
anos de idade e tendo incisa uma gravação «ilegível». A história não se resume ao
escasso instante em que os testemunhos denunciam acima de tudo a capacidade de
manipulação da consciência. Os hoje chamados caçadores-recolectores podiam estudar
história no pó das colinas esbarrondadas onde descobriram o material fóssil, como
seriam eles alguns séculos adiante. Por isso cada instrumento racional se transformou
num símbolo capaz de dar outro significado para além do que é imediatamente
apreensível.

O valor dos documentos

O maior documento da história do homem é o próprio homem na sua perpétua


actualidade. A seu lado há os instrumentos que criou como extensão da mão, muitos dos
quais, em tempos remotos, foram deixados a seu lado tanto em túmulos sumptuosos
como em acidentes geográficos naturais ou artificiais ou até ao acaso, no chão liso ou
entre árvores, quando ali nem a semente delas existia.
O homem é não só o seu mais fecundo instrumento como o mais enérgico dos
utensílios alguma vez criado na Natureza. Um antigo aforismo, que se tornaria título de
uma grande obra de arqueologia, foi «o homem faz-se a si próprio».
O objectivo do «uso» do corpo material na acção física e intelectual, do
empenhamento na organização social, no desenvolvimento das técnicas, no
aperfeiçoamento da comunicação, é a consciência gerada pela construção de si mesmo e
capaz de intervir em novas transformações.
Adam Smith acreditava que a divisão do trabalho era a chave da riqueza das
nações. Aqueles que melhor aproveitaram da sua descoberta acabaram por concluir que
a divisão do trabalho influi não só na economia mas também em todas as esferas da vida
social.
No século XIX eram nítidos os aspectos desumanos que o capitalismo gerou para
se afirmar. Muitos homens e mulheres sem infância nem grande esperança de vida
foram presos, torturados, degredados, banidos, mortos por terem acreditado numa
mudança e se terem manifestado contra essas diferenças sociais medonhas, onde
pontuava um pequeno grupo ostensivamente rico e um multidão de «porcos operários»
e camponeses sem direitos149.
A manufactura e depois a fábrica desumanizaram quem nelas entrava ainda
criança como força motriz. Mas se as fábricas, as minas, retiravam qualquer valor à vida
humana foram elas que, desde o início, forneceram o modo de organização da luta a
quem esgotava a sua vida a produzir tecidos coloridos nas tinturarias ou lingotes de
ferro em brasa.
As grandes guerras do século XX, tão generosamente qualificadas de «mundiais»
pelos cronistas, com o seu rasto de sacrifícios e de crimes não passaram de guerras civis
fratricidas, revelaram esse mundo hostil e destruidor. Há trinta ou quarenta séculos um
«hierogramatista» egípcio escreveu uma «História Mundial do Egipto» porque o mundo
material não ultrapassa o que o horizonte lhe delimitava.
As transformações que se verificaram ao nível do conhecimento das coisas
arrastou consigo um maior isolamento individual. Mais conhecedores sobretudo daquilo
que menos falta lhes fazia, na realidade as organizações que pudessem reflectir a
consciência da irracionalidade do sistema foram sendo desmanteladas e a actividade de
produção e direcção concentrada em grandes impérios financeiros.
No século XIX, os «porcos operários» passaram a ser a «classe operária»
encenada, para sua remissão, pelo corporativismo, pelo nazismo, pelo socialismo com o
formulário pequeno-burguês engalanado com figuras talhadas em traços rectilíneos e
olhar determinado pela pedra ou pelo betão. Engendrou-se entre os seus sucessores uma
mentalidade onde o reconhecimento público dependia da posse de bens materiais que se
tornam retrógrados, obsoletos, antiquados logo que são adquiridos.
O querer estar e viver situações que lhes são mostradas em imagens belíssimas,
espectaculares, criou um processo mental desfasado, cujos efeitos ao nível individual e
social estão longe de ser devidamente avaliados. Já ninguém consegue estar a par da
profusão de coisas inúteis que preenchem o dia a dia, desde o que é passível de ser

149
«A vontade da verdade, uma vez que seja consciente de si mesma, será a morte
do mal: é o espectáculo grandioso reservado aos dois próximos séculos da história
europeia; espectáculo terrível entre os terríveis, mas talvez fecundo de magníficas
esperanças», Nietzsche, op. cit., p. 154.
possuído até àquilo que é apenas dito ou mostrado em imagens gratuitas destinadas a
fazer o controle da consciência. Cada um sabe apenas o que lhe é dito ou mostrado de
certa maneira. Ao isolar o indivíduo abriu-se um fosso vazio e esmagador entre o ser e a
história.
Os benefícios que se obtiveram após lutas sociais sangrentas hoje são obtidos pelo
uso de um simples cartão de plástico por indivíduos escolhidos, seleccionados,
beneficiários de um sistema que, apesar das concessões que teve de fazer, continua tão
irracional como há cem ou duzentos anos. A vida do indivíduo é vigiada, agora com
maior eficácia. O conhecimento acessível não passa de meras curiosidades. O ensino
muito longe dos modelos que a solércia administrativa impõe. É injusto falar de
progresso onde apenas se verifica uma adequação do mesmo sistema de relações de
sujeito e objecto.
A História entra no processo de conhecimento que gera a consciência. A História e
o método histórico atravessam todas as disciplinas e matérias a partir do momento que
são pensadas como processo. Contudo a História deixou de ser a «mestra da vida» para
ser também mais uma curiosidade escondida num envelope num concurso televisivo.
A distinção entre os conceitos de história-crónica e história-ciência entrou com um
grande impacto na abordagem deste problema. A confusão do conceito de história com
a descrição conjugada de ocorrências socialmente possíveis e cronologicamente
determinadas com a narração crítica das possibilidades face ao seu resultado, enriqueceu
em rigor os dois conceitos.
A simples enumeração dos factos, a ilusão cronológica de que as ocorrências
visíveis ou presumidas como credíveis constituem uma verdade possível de transmitir,
criou uma vertente historiográfica muito importante. Porém a narração científica dos
mesmos factos exige um outro tipo de postura, um compromisso com o pensamento
contemporâneo as mais das vezes intuído, nem sempre consciencializado, que se
identifica com uma maneira de estar no mundo e no empenhamento pela sua
transformação.
Fazer de um significante tão ambíguo como o termo documento a base para uma
construção científica criou um determinado número de equívocos que as chamadas
ciências auxiliares da História, mormente a paleografia e a diplomática, acabaram em
grande parte por colocar em algumas linhas de acção. E hoje o termo documento passa
por ter um significado muito mais preciso com o desenvolvimento das técnicas
inicialmente postas ao serviço da arqueologia, como é o caso da química e da física, que
já tinham servido como base de apoio à medicina.
Mas a História, como ciência tão exacta como as demais e nelas interiorizada
geneticamente, exige outro tipo de perspectiva. O desenvolvimento da Física e da
Astronomia no século XX reduziu a noção de tempo a uma relação de ordem de
acontecimentos que, por sua vez, sendo objecto de intervenção humana pode ser
reduzida a uma criação, um dado imaginário, uma «ficção». O método histórico nasce
da ausência de simultaneidade absoluta ou relativa. Se é possível, num efeito
fotoeléctrico, admitir o fotão sem massa e a massa desencadeada pelo impacto do seu
movimento, determinado pela sucessão de instantes, é óbvio indagar-se como se chegou
a essa dimensão do conhecimento. Quando se fala de História trata-se de avaliar o
desenvolvimento da sociedade e do homem nos seus conflitos mais profundos, de um
movimento no domínio etiológico da ontologia e do saber, do passado e do futuro, da
prática e dos conceitos adquiridos.
A dificuldade cada vez maior em qualificar a área específica da História e a ideia
de que só atomizando os saberes é possível obviar as dificuldades sem se confinar a
questões exclusivas de metodologia, encontra a explicação mais próxima na necessidade
do debate e da prova acerca de questões as mais das vezes improváveis mas nem por
isso menos verdadeiras.
E aqui está um termo que nenhum cientista e muito menos o historiador utiliza
como meta ou ponto de partida, sobretudo quando se deparam um conjunto de soluções
complexas para as quais não tem resposta. A noção de verdade passa antes de mais pela
componente interrogativa das questões que são colocadas. O historiador, como o artista,
não procura, encontra. A historiografia faz-se do encontro de uma pergunta com uma
possibilidade de acesso a uma dúvida histórica que, por mais transitória que seja, tem de
ser fundamentalmente concreta e verdadeira.
A consciência da possibilidade de erro não constitui um impedimento nem uma
maneira de atemorizar o investigador sob pena de estabelecer limites inaceitáveis à sua
obra.
São pois os documentos a matéria de trabalho para construir a crónica de um
tempo.
Só muito recentemente se reconheceu que «as obras de arte» que justificavam as
pilhagens dos túmulos e dos templos nunca foram «obras de arte» mas sim ferramentas
rituais com finalidades práticas muito específicas. Se tal acepção de obra de arte
conduziu a alguns equívocos o certo é que se tornou possível admitir a necessidade da
representação simbólica dos mitos agregadores da sociedade e do seu poder
estruturante. A representação de valores profundos comuns com a função estruturante
contradiz a produção de artefactos designados por «obras de arte».
Como Werner Jaeger regista, na sua análise da «cultura total» grega transmitida
pela instrução, a Paideia150, existe um o esforço para transpor o conteúdo ideológico da
epopeia para a realidade e tornar a poesia não só intérprete mas também um guia directo
da vida, pois é pelo exercício que mito conserva a sua importância como fonte
inesgotável de criação poética.
Essa percepção ética da literatura e da arte como directriz da vida, tal como a
história será a «mestre da vida», coloca-nos perante um aspecto muito simples e
elementar acerca do significado do poder e do seu exercício. Aquilo que hoje se designa
por arte Clássica ou Pré-Clássica fazia parte dos instrumentos de estruturação do
quotidiano, congregando a memória, a inteligência, o saber, o afecto, tal como a
preparação militar organizada, a escola, o comércio, a produção agrícola, a indústria.
Nesse campo o fantástico estudo de Hippolyto José da Costa parece muito
151
claro . Se a «história» se limitou aos documentos escritos por cronistas a soldo de
militares ou eclesiásticos, senhores de terras mais ou menos poderosos, ou hereges que
contra eles se revoltaram, isso significa que os valores sociais veiculados por outras vias
menos acessíveis ou não reveladas mas efectivamente determinantes para a
compreensão das mentalidades, da cultura e das relações sociais foram subestimadas.

150
Werner Jaeger, Paideia, Lisboa, Aster, 1978, p. 268.
151
«Neste trabalho Hipólito tenta demonstrar que a Maçonaria é originária nas
associações filosóficas e religiosas da Grécia Antiga e que os arquitectos dionisíacos
foram os verdadeiros fundadores da maçonaria moderna. Para corroborar esta opinião
cita autores antigos tais como Plotino., Heródoto, Platão, Simplício, Ficino, Apuleio,
Jâmblico, Plutarco, etc. Este panfleto é extremamente importante para a história da
Maçonaria. O único exemplar conhecido pertence à Biblioteca da Grande Loja de Iowa,
em Cedar Rapids. Este precioso exemplar contém uma dedicatória autógrafa: «To Sir
William Bettham with the Authors compliments», Rubens Borba de Morais II vol. p.
59.
O grupo que constituía o coro do teatro ensaiava diariamente para que a tragédia
fosse apresentada em devido tempo com toda a sua força catártica, integrada num
conjunto de actividades lúdicas de acordo com um critério significativo. A necessidade
de coesão social, como defesa, exigia meios de persuasão poderosos sob pena de se
desagregar. Os exemplos indicam que é assim que acontece, porém nesse período o que
se verifica é a existência de um conjunto vasto de actividades para que essa destruição
não ocorra.

Um mundo em transformação

A tragédia ática atravessa um século, define esse século com a sua hegemonia
indiscutível, a seu modo coincidente cronológica e espiritualmente com o crescimento,
apogeu e decadência da estrutura do poder civil. Ao glorificar os valores éticos
satisfaziam necessidades sociais. Se o faziam em honra de um deus isso pode significar
apenas que a linguagem simbólica tem uma função mais eficaz no que concerne à
consolidação da estrutura social.
A procura de soluções, particularmente no momento em que a sociedade feudal é
desmantelada e o capitalismo se afirma como poder, desde a Revolução Norte-
Americana e Francesa (século XVIII) até à Revolução Russa e Chinesa (século XX),
passou pelo ressurgimento dos estudos clássicos e pré-clássicos, fenómeno que já tinha
ocorrido em Alexandria no século III e depois com a expansão islâmica a partir do
século VII.
Essas soluções fornecem sínteses importantes com as quais se construiu a história
da filosofia até Hegel, as mais das vezes são conclusivas e, sobretudo, anacrónicas, para
se tornarem práticas ou serem utilizadas na prática corrente, pois não é possível
compreender os estudos dos aristotélicos e dos neo-platónicos sem o fundamento
«científico» essencialmente «histórico»que credibilizava a mística medieval.
Esse estilo conclusivo dos apologistas, dos convertidos, edifica sem dúvida uma
mentalidade nova, adaptada e coerente.
O processo de Orestes, o assassino dos pais, que se apresenta perante o Areópago,
como o de qualquer das tragédias com problemas envolvendo deuses e famílias reais,
podiam servir apenas de fonte histórica para o conhecimento do direito ático. Mas o que
nele se procura é a justificação da norma jurídica ou o «direito do pretor» com que o
império romano se estruturou e ao qual o código napoleónico e todo o direito moderno
foi buscar os seus fundamentos.
Ao darem forma plástica ao que não passava dum nome, de um sentimento ou de
uma ideia, instilaram no mito aquela forma que lhe dava estrutura interna. Os homens
acatam as determinações do poder e cumprem porque o homem é portador do destino. O
destino é o que engendra o problema da acção plástica, judicial ou militar. Por isso se
procura o conhecimento onde há apenas dor e sofrimento. A ideia do destino está
compreendida na tensão entre a sua fé na justiça inviolável da ordem do mundo e a
emoção resultante da crueldade demoníaca e da perfídia. E desde Delfos que se está
perante a consciência dos limites do humano para que possam ser eternamente
superados. A tragédia de Orestes, onde o mal se remete para o apodrecimento da alma,
para a corrupção das relações mais íntimas, para a degenerescência do corpo,
desabrocha como condição do bem possível, desperta como consciência lúcida
compartilhada.
Em qualquer tragédia vive este percurso iniciático elêusico fundado nos mistérios
da «filosofia agrícola» referida por Platão, indubitavelmente assumido como tradição
ritual, onde o pressuposto essencial é a consecução ou o cumprimento de uma acção
colectiva gerada e condicionada por uma acção simbólica.
A relação do homem com a natureza perdeu-se em hostilidades bem visíveis no
progresso social, o que arrastou sempre uma intervenção violenta sobre o
desenvolvimento natural. Destruindo para sobreviver acabou por se deter perante a
perplexidade advinda do conhecimento da genética e do universo. Desde os século
XVIII que a intervenção na genética se tornou uma ciência vulgarizada sob a
designação de «filosofia natural», um seja um misto de empiro-positivismo e reflexão
conciliar (legislativa) ou de praça pública (vulgar). Lavoisier legou uma síntese muito
explícita sobre a unidade na Natureza. Depois disso, o esforço e a capacidade de elevar
o pensamento para compreender e conceptualizar apenas confirmam que nada existe
fora da matéria.
Perdeu-se em parte a própria noção do nome ou do seu significado. O nome é a
materialidade da coisa, aquilo que contém a essência da coisa que nele se reconhece.
Não são o mesmo. As coisas existem mesmo quando ignoradas. Nada é que não tenha
nome. Entre o nome e a coisa há contudo um processo de aquisição de conhecimento e
de consciência. Escrever o nome das coisas conhecidas num sinal gráfico manual,
desenho ou número, é uma descoberta revolucionária um tanto recente. Gerou a
possibilidade de ver uma coisa na sua representação152. Nada é que não tenha nome e
esse é, como foi escrito, uma maneira de designar o princípio.
O desenvolvimento da percepção, do conhecimento e da própria consciência deu
acesso às coisas e ao dizível. Comunicar ou mais ainda a capacidade de dizer e designar
cada vez mais coisas, como o enuncia a história da Filosofia, criou outras realidades.
Muito provavelmente afastou a consciência da realidade mais elementar, que será a
consciência de si em comunidade numa estrutura assegurada pelo rito. Aqueles que
crêem que as religiões foram o factor determinante da mundivivência antiga e
desempenharam um papel importante na solução de problemas importantes omitem
pura e simplesmente que o testemunho que ficou no registo documental foi esse e
apenas esse e no entanto haverá outros. Escrito ficaram apenas os factos relatados por
aqueles que tinham acesso à escrita e ao escrito. A relação do indivíduo com a
sociedade e o alinhamento de ambos com a natureza e o universo implicam respostas.
Essas respostas passam pela distinção entre o que concerne às personalidades»
evidenciadas pelas crónicas compradas aos historiadores e os substantivos colectivos
que referem aqueles que não têm o nome nos textos e instituições, organizações,
associações por eles criadas. Os livros que constituem vulgarmente as fontes de
conhecimento, de facto, omitiram o essencial em nome da valorização do singular,
embora se proclame que o seu objectivo era o «homem».
A religião, que no século XIX seria guindada à sublime metáfora quando
qualificada como «o ópio do povo», teve o maior inimigo em si mesma quando esse
«ópio» (heroína, morfina, mas também cannabis sativa, peyotl, haxixe, marijuana,
liamba, fumo, erva, maconha), então só acessível a indivíduos abastados, se
democratizou no Ocidente sob outras formas indianas, africanas ou sul-americanas, com
a necessária quebra de fronteiras e a expansão da indústria à escala mundial no século
XX. Na prática tratava-se de formas de refúgio ou de resistência individual às renovadas
formas de servidão à empresa ou ao Estado ou, mais ainda, ao monstruoso engodo do
conhecimento que fundamenta, entre outros, um ensino escolar equívoco e
desconcertante.

152
Filolau, discípulo de Pitágoras, escreveu: «o número ensina-nos tudo o que era
desconhecido e incompreensível», cf. Lima de Freitas, op. cit. pp. P1-92.
O controle da vontade de saber passa não só pelo ensino escolar mas por toda a
informação pública, determinado por uma «comunicação social» dirigida ao controle
quando não à própria destruição da consciência.
A tagarelice na informação pública afasta rotundamente os interlocutores do nome
das coisas. O uso das palavras adaptadas à força de outras línguas, por ignorância das
potencialidades da própria, por vezes com um significado diverso ou contrário a outra já
existente, criou uma «dislexia» social perturbadora e destruidora. Nessas condições, os
substantivos perderam a substância, o poder significativo real e a lógica do seu
desenvolvimento. A facilidade da informação torna os cidadãos do século XXI ainda
mais distantes do conhecimento das coisas, de si mesmos e do seu lugar, deu azo a
«crimes de consciência» impunes perante a eficácia dos resultados, porque afastam
cidadãos da vida corrente, os isolam e liquidam na angústia, no silêncio e na impotência
da degradação física e mental cada vez mais assinaláveis.
Sólon, que era poeta e foi indicado como arconte pelos cidadãos de Atenas para
que governasse com moderação e equidade, escreveu, em palavras transcritas por
Demóstenes: «Iníquos são os corações dos governantes do povo, que um dia padecerão
de muitos sofrimentos, por seu enorme orgulho (hybris); pois não sabem conter os seus
excessos… Enriquecem com acções injustas, roubam para si a torto e a direito, sem
respeitar a propriedade sagrada ou pública»153.
Se, há dois mil ou três mil anos, os cidadãos tomavam parte na representação,
agora poupam-lhes esse esforço com a ilusão de participar. A realidade dissimula-se sob
si mesma para oferecer uma ilusão optimista. O que é mal ou bem, verdade ou não, é
visível no próprio instante mas está sempre noutro lado. Pode ser bastante consolador
para quem observa mesmo quando é o operador de câmara quem é atingido por um tiro
e é a sua própria câmara que regista o drama.
E é essa a palavra, drama, que nos traz a chave para compreender a decepção.
Quando o coro se desagregou e os coreutas se sentaram no lugar de espectadores, a
participação física deixou de ter o significado originário, degenerou até o espectador se
tornar um vulgar comprador de bilhetes que lhe dá o direito de ingresso para assistir à
distância.
A consciência da tragédia, que é substantivamente a da condição humana, evoluiu
até se tornar essa vulgaridade construída pela mente imaginativa do escritor, do
dramaturgo ou do argumentista. O grito tornou-se um esgar, o gesto um gesticulado, a
palavra uma papagaiada, a música um logro.
O burguês destruiu definitivamente a tragédia, a catarse ritual, criou modos
artificiosos e eficazes para a «substituir» através do teatro, depois pelo cinema (embora
este exigisse uma componente de sociabilidade) e, mais ainda, quando o espectador
passou a ter o espectáculo «gratuitamente», sem sair de casa, com a expansão da
televisão. Com o auxílio de dados estatísticos e estudos de comportamento, o
equipamento sociológico iludiu esse fenómeno durante todo o século XX, que terminou
com a «guerra em directo», começando pelo Vietnam.
As primeiras guerras do século XXI, que tiveram início no centro da Europa e no
Médio Oriente ainda no século XX, absorveram ou tentaram omitir nos países
ocidentais a génese da violência do Estado à custa de um exibicionismo audiovisual da
tecnologia militar e da insensatez dos mansos comentadores televisivos
«especializados» em conseguir de um público obviamente silenciado por um meio
unidireccional, o «consentimento» para as maiores barbaridades guerreiras e criminosas.

153
Cf. M. L. Finley, Grécia Primitiva. A idade do Bronze e Idade Arcaica, São
Paulo, Livraria Martins Fontes, 1990, p. 132.
Os últimos dois séculos deram a possibilidade de conhecimento de outros meios
de acesso ao justo equilíbrio pelo qual em séculos recuados se bateram homens de
carácter e aqueles que acreditam nos princípios que eles e não outros anunciaram.

Um pequeno testemunho de séculos de história

Recuperar um pequeno texto do século XVIII, de um tempo em que uma nova era
se anunciava, apesar do rosário de genocídios que depois disso escorrem ainda por entre
dedos em sangue, pode significar que é possível elevar o pensamento ao princípio que
ele representa mas, sobretudo, que nada será fácil no percurso das vias traçadas até ao
lugar simbólico que desvenda.
Toda a arte corresponde a um processo de compreensão de um relacionamento
evidenciado ou subjacente, quer dizer «sentido». Sentir as coisas é um impulso para
apreender o essencial nelas contido. O artista apenas desbasta a matéria até encontrar o
que é significativo para si. Pelo caminho fica uma acção da qual apenas se apercebe o
resultado concreto. Por mais disforme que seja esse resultado, o percurso nele implícito
e as circunstâncias que houve que superar marcam indelevelmente esse produto. Esse
produto é um objectivo em si mesmo e para si mesmo, como diziam alguns filósofos do
século XIX. Um esforço apreciável de representação do mundo merece sempre um
mínimo de atenção. Esse é o «diálogo» que nega e refaz a obra e se identifica com a
história.
Os substantivos impessoais, que representavam os valores e a própria substância
das religiões enquanto meios reguladores e estabilizadores de distúrbios mentais e de
desequilíbrios sociais, destruídos por razões de organização da economia bem concretas
e definidas ao longo da luta social, subsistem, mantêm-se no interior das coisas e
curiosamente, por mais artificiosa seja a aparência, no interior dos formalismos
religiosos – alguns dos quais se transformaram em empresas ou empreendimentos,
perdendo o sentido e a noção da própria razão de ser.
No estudo do pensamento e da acção no comportamento social de certos povos do
interior de África mas sobretudo e fundamentalmente de grupos sociais do Médio
Oriente, podem vir a encontrar-se soluções passíveis de auxiliar ou renovar o
pensamento ocidental, sempre reduzido ao que as ortodoxias residuais extraíram da
dinâmica e da criatividade das respectivas heresias.
Atendendo ao que ocorreu no primeiro milénio da nossa era com a transmissão do
helenismo pela vertente monoteísta de tradição islâmica, que tornou a Espanha de
Afonso VI - anterior à existência de Portugal e ainda durante a sua implantação - um
centro de irradiação do conhecimento que foi a Tradição Cultural Ocidental, essa
renovação nem sequer seria novidade.
A Tradição Cultural Ocidental não é produto da fantasia nem o repositório
artificioso de uma expressão deliberadamente executada para ser cultura. O ponto de
partida é uma arte produzida entre outros bens de uso para serviço da comunidade,
imposta por uma necessidade que passa pelo ornamento e serviço de culto,
divertimento, imperativos da vida quotidiana, encontrava-se nos templos, nos
cemitérios, nos teatros. Na Grécia clássica o estado era quase exclusivamente o único
patrono das artes monumentais.
A «cultura» ostensivamente fabricada com objectivos ocasionais, um produto
ilusório para esconder ou afastar do saber real, seja qual for a época em que foi
produzida, sempre foi muito pouco cultural pelos seus objectivos embora seja um
sintoma pelo que escondeu ou omitiu. A Tradição terá mais a ver com o inconsciente
colectivo, como Jung sublinhou, com uma necessidade «inata», profunda, nem sempre
apreensível ou uma determinação da natureza de homens sujeitos a um espaço e a um
tempo, a relações e a pressões sociais com as especificidades próprias, que dividem a
sociedade em estratos característicos sujeitos a um desenvolvimento que fez a história e
a consciência histórica.
Todo o conhecer se transmite pela palavra. As palavras afastam-se infinitamente
do seu pólo originário, tal como as galáxias. Os conceitos convencionais insurgiram-se
contra o pensamento e a sua história. Há uma realidade global que se oculta ou é
ocultada numa profusão cada vez maior de informações cada vez menos
compreensíveis. A história assírio-babilónica da génese humana não dissimulou o caos
que gera o espaço e o tempo. E fá-lo com tanta precisão como o Livro hebraico.
Hegel foi muito claro: «o templo da razão auto-consciente deve, pois, considerar-
se, desde este ponto de vista, o único digno da história da filosofia»154. Quer dizer, da
História.
Se as descobertas no campo da física, da química e da astronomia indiciam hoje
uma mudança radical na percepção e na metodologia, tudo conflui para alterações
profundas ao nível da organização da sociedade, o que implica imediatamente, para que
os danos não sejam tão drásticos, o refazer da ontologia e do conhecimento histórico,
em suma, da linguagem onde se verte.

O Esboço da História

O interesse no estudo da obra de Hyppolito José da Costa, Esboço da História dos


Arquitectos de Dionisos. Um Fragmento, tem tanto a ver com o conhecimento histórico
do século XIX como com a investigação sobre a Antiguidade que a orienta e muito
claramente dirigida.
A obra de Hyppolito José da Costa tem as características de uma peça destinada a
uma apresentação oral Tudo indica que, na sua origem, esteja mais uma «prancha
maçónica» traçada como trabalho de loja do que uma palestra destinada a um grupo
mais ou menos restrito de ouvintes, posto que provavelmente iniciados, à qual foram
adicionadas profusamente, para publicação em forma de opúsculo, as notas com
citações e alusões a uma vasta diversidade de autores de que Hyppolito José da Costa
terá tido conhecimento directo ou indirecto.
Muitos dos autores nela citados têm as sua obra original em latim ou grego. Pese
embora o facto de existirem no século XIX selectas literárias, crestomatias, antologias,
colectâneas, compilações com textos de autores gregos e latinos, nem todos os autores
citados figuram nelas, como exemplos académicos e particularmente se tivermos em
conta a especificidade do tema.
É o próprio autor quem sublinha o «esquecimento» a que foram votados os
aspectos que o guiam no seu estudo do tema, aquilo que procura e enquadra, para os
quais pesquisa o fundamento testemunhal fora do tempo a que se referem. Assim é que
o estudo Esboço da História dos Arquitectos de Dionisos. Um Fragmento, pode surgir à
primeira vista como uma peça de literatura fantástica, mais como o desejo de provar
uma versão da história do que propriamente o enunciado de uma prova indiscutível.
Numa palavra, pode dizer-se que o objectivo de Hyppolito José da Costa é latu
sensu a defesa da origem dos pedreiros livres na organização que designa por

154
Hegel, Introdução à História da Filosofia, Coimbra, Arménio Amado, 1974, p.
78.
Arquitectos de Dionisos, através de um ensaio de cariz histórico. Não é uma crónica
mas uma sinopse escrita em inglês com objectivos precisos e a profusão dos dados
adicionais nas notas só confirma o propósito da sua opção. Esse objectivo passa pela
compreensão da historicidade do ritual maçónico, tarefa difícil, sobretudo porque não
havendo na Maçonaria qualquer doutrina mas a transmissão de valores éticos e
filosóficos significativos por via iniciática, se trata de uma acção transmitida
unicamente por essa cadeia, tal como lembra Hyppolito José da Costa ao citar a carta de
Alexandre Magno a Aristóteles onde o acusa de violar a relação do Mestre com o
Aprendiz ao publicar uma obra sobre matéria e tema «acroamáticos»155.
À partida e dadas as dificuldades da apresentação de um tema desta natureza que,
por definição, afasta o proselitismo e se apresenta grosso modo como exteriorização de
princípios só conhecidos através da intervenção pública, cívica, cultural, política, dos
seus membros, a obra compõem-se graças às notas e referências. Este aspecto torna
mais claro o «exemplo» de Hyppolito José da Costa e, muito particularmente, a escolha
e a publicação de uma peça historiográfica do maior valor para a compreensão do estado
do conhecimento no seu tempo e da necessidade de expor os fundamentos de uma
organização social expressivamente destinada ao progresso espiritual e cultural, à
filantropia em todas as áreas e à defesa da fraternidade universal.
De acordo com os dados disponíveis é possível estabelecer um quadro sinóptico
da biografia do autor, considerado brasileiro, não só em virtude do seu nascimento, mas
também pela importância que ele teve na «ideologia» que fundamentou a independência
do Brasil, por via dos princípios aglutinadores representados pela Ordem Maçónica
nessa acção e o papel de relevo que ele desempenhou na formação do espírito nacional
brasileiro.

O autor

Hyppolito José da Costa Pereira Furtado Mendonça nasceu na então designada


Colónia de Sacramento, instalada no Rio da Prata (então pertencente ao Brasil) em 13
de Agosto de 1773156. O seu pai foi o alferes de Ordenanças e lavrador em Canguçu,
natural de Saquarema (Rio de Janeiro) Félix da Costa Furtado de Mendonça e sua mãe
Ana Josefa Pereira, natural de Sacramento. Após o tratado de Santo Ildefonso em 1777,
a família mudou-se para Rio Grande de São Pedro.
Iniciou os estudos em Porto Alegre, depois no Rio de Janeiro para onde foi levado
ainda criança. Saiu do Brasil em Setembro de 1792 para frequentar a Universidade de
Coimbra, onde receberia o grande impacto da reforma de Luís António Verney.
Inscreveu-se primeiro em Matemática depois em Filosofia e, no ano seguinte, em
Direito, em que se bacharelou a 5 de Junho de 1798 aos 24 anos.
Em 1797 foi-lhe conferido o brasão de armas de Costa e Pereira. No ano seguinte
recebeu uma incumbência para observação ou talvez espionagem tecnológica quer nos
Estados Unidos quer no México: um precioso insecto, a cochonilha, usado na tinturaria
e também no fabrico de carmim para embelezar o rosto feminino. A cochonilha põe os
ovos numa planta característica, a cochonilha (nopalea cochinelífera) e morre enquanto
os seus ovos se desenvolvem aproveitando a degenerescência do corpo do insecto. O
objectivo era fazê-los chegar a Portugal iludindo a vigilância alfandegária visto que
havia restrições à saída.

155
Cf. Plutarco, Vidas Paralelas. Alexandre, Lsboa, Amigos do Livro, 1978, p. 24.
156
Inocêncio assinala o ano de 1774.
Foi nomeado pelo Ministro da Marinha e do Ultramar, Rodrigo de Sousa Coutinho
e partiu em 16 de Outubro de 1798 nessa missão diplomática como Encarregado de
Negócios para os Estados Unidos da América. Desembarcou a 13 de Dezembro de 1798
em Filadélfia, então a cidade comercial mais importante da nação americana. Aí
permaneceu até Setembro ou Outubro de 1800157.
Em Filadélfia recebeu o impacto do ideário maçónico e terá sido iniciado maçon a
12 de Março de 1799 aos vinte e cinco anos na Loja George Washington, nº 59. No seu
diário, embora apareçam citações e menção a pessoas e acontecimentos ligados à
Maçonaria, não refere essa ocorrência. Um incêndio em 1819 destruiu os arquivos
daquela instituição.
Além do objectivo essencial desta viagem Hyppolito da Costa era obrigado a
estudar o desenvolvimento da agricultura nativa dos Estados Unidos e a possibilidade
da sua aplicação nas terras brasileiras, não só para alimentação humana mas sobretudo
para forragens. Mas também a produção mineira, a pesca da baleia, projectos de
engenharia hidráulica e maquinaria em geral, navegação fluvial e pudessem ser
utilizadas na Europa.
Visitou ainda Montreal no Canadá, os grandes lagos, os estados do Norte,
Vermont, New Hampshire, New York, Massaschussets, Rhode Island, Cannecticut.
Escreveu sobre o bicho da seda, construção de pontes, higiene pública, doenças
endémicas, poder naval norte americano. Conheceu o presidente John Adams e Thomas
Jefferson.
Do trabalho executado conhecem-se três monografias entregues a Rodrigo de
Sousa Coutinho e relatórios da viagem.
O movimento de agricultura, é muito vasto, acontece por toda a Europa e
América, envolve investigadores e cientistas que se agregam em torno de sociedades
científicas nas capitais, que assumiram um espaço decisivo no desenvolvimento
económico dos países quer do Norte quer do Sul do Atlântico. O centro situava-se nas
ilhas do mar das Caraíbas, onde o comércio ilegal e a pirataria, assumiram proporções
assombrosas.
Em 1801 Hyppolito José da Costa estava de novo em Lisboa. Foi nomeado
Deputado Literário para a Junta de Impressão Régia, com oficina no Arco do Cego,
onde desenvolveu uma actividade expressiva, juntamente com o naturalista Fr.
Conceição Veloso, que se dedicou à flora fluminense.
Enquanto teve a cargo a Impressão Régia, Hyppolito José da Costa publicou obras
que escreveu ou traduziu do inglês: Descripção de uma Máquina para tocar a Bomba a
bordo dos navios sem o trabalho de homens, Descripção da arvore assucareira e da
sua utilidade e cultura, História Breve e Autêntica do Banco de Inglaterra com
dissertação sobre os metaes, moeda, e letras de cambio, e a carta de incorporação, de
T. Fortune, autor do Epithome de Fundos, Ensayos políticos, económicos e
philosophicos, de Benjamin, conde de Rumford, Memoria sobre a bronchocele, ou papo

157
«De 1750 a 1790 l’historien a l’impression que la grande force morale qui
dirige les destinées des colons anglais d’Amérique est la Fanc-Maçonnerie (très
puissante et très bien organisée, en même temps quasi modérée), plutôt que les diverses
dénominations chrétiennes. Il est difficile de le prouver, mais cela ressort d’une étude
minutieuse des événements et des hommes, car tous les organisateurs de la Révolution
américaine étaient des maçons haut gradés», Bernard Fay, La Civilization Américaine,
Paris, Sagitaire, 1939, p. 257.
da América Septentrional, de Benjamin Smith Barton, doutor em Medicina, professor
de matéria médica, história natural e botânica, na Universidade de Pensilvânia.
Em 1801 existiam quatro lojas em Lisboa que se preparavam para constituir uma
Grande Loja Nacional. Para tanto era necessário obter a regularização, serem
reconhecidas como tal pelas potências maçónicas que tinham poder para o fazer.
Em Janeiro de 1802, três dos principais responsáveis pelos trabalhos maçónicos e
prováveis membros da Comissão de Expediente, o Director da Junta de Impressão
Régia, Hyppolito José da Costa, o sacerdote e bacharel em leis José Joaquim Monteiro
de Carvalho e Oliveira, prior da freguesia dos Anjos (Lisboa), José Ferrão de Mendonça
e Sousa, avistaram-se com Rodrigo de Sousa Coutinho, ele próprio maçon158, tendo
obtido a promessa de que a Maçonaria não seria perseguida, resposta que foi obtida
depois do pedido feito pelo Secretário de Estado ao Príncipe Regente.
Em Abril de 1802 Hyppolito José da Costa partiu para Londres em missão
diplomática, conforme ordem do ministro Rodrigo de Sousa Coutinho, Conde de
Linhares, a fim de adquirir material tipográfico para a Imprensa Régia.
Além disso tinha a seu cargo apresentar o processo de regularização junto da
Grande Loja de Inglaterra, provavelmente credenciado pelo duque de Sussex.
Os textos britânicos que mencionam este facto referem a existência, em Maio de
1802, de quatro lojas, estruturadas já numa Grande Loja. Tratava-se de uma organização
já existente para a qual ia solicitar o reconhecimento159.
Em todo o processo de organização e regularização da Grande Loja Portuguesa,
parece clara a influência do maçon inglês duque de Sussex160, residente em Portugal
desde 1801, filho do rei Jorge III e viria a ser, de acordo com a tradição britânica, Grão
Mestre da Grande Loja de Inglaterra161.

158
Rodrigo Sousa Coutinho, futuro conde de Linhares, assistira em Turim, à
iniciação do seu compatriota Alexandre de Sousa Holstein, o que indica ter sido
iniciado antes dele. Sousa Holstein criou em Roma, com estudantes bolseiros na maioria
casapianos, uma escola de Belas Artes que tomou o nome de Academia Portuguesa de
Roma, que durou de 1791 até às vésperas da invasão dos Estados Pontifícios pelo
exército de Napoleão Bonaparte. Cf. A. H. Oliveira Marques, História da Maçonaria
em Portugal, Vol. I, Das Origens ao Triunfo, Lisboa, Presença, p. 79.
159
O Espectador Portuguez, 2º semestre, 1816, nº 24, pp. 227-228; Acta Quattuor
Coronatorum. Transations of the Quattuor Coronati Lodge vol XLII, p. 298, cf. Idem,
ibidem, p. 80.
160
«A divisão auxiliar inglesa, que viera defender o reino contra os jacobinos,
espalhara por todo ele as lojas de pedreiros livres. Dentre elas, a mais activa talvez fosse
a Filantrópica de Santarém, fundada sob os auspícios do Duque de Sussex», Rocha
Martins, A Independência do Brasil, Lisboa 1922, p. 46. «Em 1803 já funcionavam no
Rio de Janeiro três lojas: Reunião, Constância, Filantropia. A última quase repetia o
nome da famosa de Santarém. A Inquisição andara farejando estes conciliábulos,
metendo na cadeia, em Lisboa, o judeu e maçon Hipólito da Costa», Gustavo Barroso,
História Secreta do Brasil, pp. 211-213.
161
Saliente-se que, como escreverá Hippolyto José da Costa, «um ilustre príncipe
foi o que concorreu para a fundação do Grande Oriente Lusitano. Foi debaixo dos
auspícios deste grande Príncipe que ele se instalou em Portugal e de acordo com o
Oriente Inglês» , Correio Braziliense, XVII, 103, Dezembro de 1816, p. 771, cf. A. H.
Oliveira Marques, op. cit., p. 80.
De facto «não subsistem dúvidas sobre a natureza dessa missão. Hipólito foi a
Londres expressamente tratar de ligações maçónicas»162.
A Grande Loja de Inglaterra deu apoio à proposta portuguesa, sendo para tanto
redigido e assinado um tratado e passada a respectiva carta patente.
Hyppolito José da Costa fez chegar este tratado a Portugal e dirigiu-se a Paris
onde terá negociado igualmente com o Grande Oriente de França, pois que para tanto
estava credenciado163.
Após o regresso a Lisboa foi detido José Anastácio Lopes Cardoso, corregedor do
crime, conforme instruções do Intendente Pina Manique, em finais de Junho de 1802,
poucos dias depois de desembarcar, tendo-lhe sido apreendida toda a documentação
levada e trazida.
Preso no segredo na cadeia do Limoeiro durante seis meses, transitou depois para
a Inquisição, onde esteve sob a acusação de «crimes de Maçonaria», que era uma
maneira de encobrir a violência do estado contra qualquer acção cultural, cívica ou
política.
Apoiado nas Memórias da Vida de José Liberato Freire de Carvalho, Inocêncio
afirma que a ordem de prisão em finais de Julho de 1802 terá sido dada pelo próprio
Rodrigo Sousa Coutinho. Há muitos motivos e sobretudo lacunas suficientes para se
criarem processos de intenção164.

162
(…) «No ensejo, deve ter-se alistado mesmo na Loja Gran Reunion Americana,
matriz da Lautaro, fundada pelo famoso agitador General Francisco Miranda. Provas
não existem porém», Tenório d’Albuquerque, A Maçonaria e a Grandeza do Brasil, 3ª
ed., s/d, p. 308.
163
A formação do Grande Oriente Lusitano e o seu reconhecimento pela Grande
Loja de Inglaterra mostram a ambiguidade com que nascia a Maçonaria Portuguesa
organizada. Como esclarece A.H. Oliveira Marques, por um lado buscava-se a
protecção britânica, por outro escolhia-se um nome de raiz francesa (Grande Oriente),
claramente influenciado pelo Grande Oriente de França. Era a ambiguidade, que
reflectia a ambiguidade política e diplomática que se vivia no período da regência,
hesitando numa escolha definitiva, que se repercutiria em tempos posteriores, recairia
no julgamento e enforcamento do General Gomes Freire de Andrade, na altura Grão
Mestre do Grande Oriente Lusitano (onde pesou a sua actuação para com o exército
britânico durante a Guerra Peninsular, mormente a retirada súbita com o seu esquadrão
antes do ataque à linhas de defesa de Lisboa, em Torres Vedras, o que favoreceu o
invasor), por ordem do governador britânico de Portugal General William Beresford, ele
próprio maçon, executada por oficiais britânicos, também maçons, em S. Julião da Barra
em 1817. Aliás, a duplicidade do comportamento dos maçons perante a invasão
comandada pelo maçon Andoche Junot, quer na recepção em Sacavém quer no
acompanhamento do seu breve «reinado», com direito a permanência no palácio do
Barão de Quintela e o exibicionismo característico, se deixa dúvidas quanto a
expressões como «virtudes militares», é muito esclarecedora quanto ao afastamento dos
portugueses, particularmente dos maçons portugueses, das reuniões e acordos que
decidiram a sorte de Portugal face às potências ocupantes durante a Guerra Peninsular.
164
«Passam de duas centenas os «processos» sobre Pedreiros Livres hoje
conservados nos Arquivos do Santo Ofício (…) Note-se que grande número de
processos deve ter desaparecido, mormente após a extinção da Inquisição e a
apropriação pelo Estado dos respectivos arquivos. Muitos penitenciados ou famílias
suas terão feito desaparecer processos que lhe diziam respeito (ou a amigos seus) nem
sempre abonatórios de uma integridade moral perfeita (…) Noutros casos, a acusação de
Esteve preso cerca de três anos e conseguiu evadir-se. Ficou escondido em Lisboa
durante alguns meses até passar a fronteira disfarçado de criado de um maçon, Filipe
Ferreira de Araújo e Castro. Em Gibraltar tomou um navio para Londres onde se
juntavam então os refugiados políticos das nações sob tutela britânica. Viveu em
Londres dezoito anos, até morrer em 1823.
Em Londres tornou-se um divulgador dos ideais de Liberdade que congregou uma
elite que viria a apoiar e a alcançar a independência do Brasil. Fundou e dirigiu o
Correio Braziliense ou Armazém Literário a partir de 1807. Há autores que referem a
data de 1808.
Este magazine consta de vinte e oito volumes em formato livro e era lido tanto por
exilados políticos como na corte do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, sediada no
Rio de Janeiro desde 1807165. O próprio Príncipe Regente, que será D. João VI, no
Brasil foi leitor assíduo do Correio Braziliense.
A expansão da Maçonaria no Brasil e os contactos de Hyppolito José da Costa
com os exilados brasileiros assustavam o embaixador português em Londres, D.
Domingos António de Sousa Coutinho, que disso alertava o Secretário dos Negócios
Estrangeiros, conde de Linhares, em Dezembro de 1809166.
Entretanto escreveu e publicou diversas obras de divulgação da Maçonaria e de
natureza autobiográfica, sobre as perseguições de que foi vítima em Lisboa167.
Hyppolito da Costa, a quem nunca passaria pela cabeça ser um homem acossado
uma vítima do horror que é a insegurança, a inquietação, confessa que cedo aprendeu
que a existência da Inquisição na Europa era uma consequência da Ignorância e da
superstição. Não quer acreditar que no século XIX haja ainda um tribunal que possa

pedreiro livre não é a principal do processo (...) Mesmo assim, é ainda nos processos da
Inquisição que se conservam os primeiros originais da Maçonaria portuguesa (…)
Perseguindo uma Maçonaria de raiz católica, não teve aliás dificuldade em fazer
prevalecer a sua autoridade eclesiástica sobre a fidelidade e a fraternidade maçónicas,
conseguindo, pelo menos nos finais do século XVIII, desmantelar a organização da
Maçonaria portuguesa durante algum tempo. Estes factos serão porventura na base,
tanto na adopção de nomes simbólicos por parte dos maçons portugueses, quando da
gradual descristianização ou irreverência religiosa dos futuros iniciados na Ordem». Cf.
A. H. Oliveira Marques, «Os processos da Inquisição contra os pedreiros livres»,
Inquisição, Actas do 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição realizado em
Lisboa de 17 a 20 de Fevereiro de 1987, coord.. Maria Helena Carvalho dos Santos,
vol. II, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, Universitária
Editora, 1989, p. 1123-1132.
165
Por iniciativa de Hyppolito José da Costa os exilados fundaram em 1810 a loja
Lusitana. Devidamente regularizada no quadro da Grande Loja de Inglaterra e que
durou alguns anos, existindo ainda em 1814
166
«A protecção do Duque de Sussex, grão-mestre da maçonaria inglesa, estendia-
se sobre todos os intrigantes, agitadores e corifeus da seita. Graças a ela, por maiores
esforços que envidasse, a embaixada portuguesa não conseguia a expulsão de Hipólito
da Costa, que o intendente da polícia do Brasil, Paulo Fernandes Viana, achara mais
cómodo comprar com metal sonante», cf. Gustavo Barroso, op. cit., pp. 271-272.
167
A publicação das Cartas sobre a Framaçonaria com a indicação «segunda
edição feita sobre o original de Amsterdam…» não passou de um ardil para enganar as
autoridades. Cf. Rubens Morais, Bibliografia Brasileira do Período Colonial, Instituto
de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 1969, p. 241.
prender e processar pessoas por culpas imaginárias e sem qualquer referência na lei
estabelecida.
Por isso se tornou um dever ou um imperativo fazer a narrativa simples e sem
adornos para que o soberano, que reinou durante quase meio século e actue, face a um
tribunal cuja existência é um insulto e humilhante para o género humano. Por isso
recorda os horrores que sofreu para que nele se consuma o triunfo da inocência, para
que o monarca seja reconhecido como aquele que aboliu a escravidão e destruiu a
Inquisição.
O respeito à virtude leva-o não só a fugir ao vício mas a evitar a aparência do
crime. Porque ninguém é insensível à calúnia, se não houver perdido os remorsos e o
desejo de ser estimado. O que se vê diariamente são malvados que aspiram à boa
reputação, tributo honroso que o crime paga à virtude.
Vendo a sua reputação injustamente atacada, por sofrer um tratamento severo em
nome da justiça, culpado por crimes atrozes, decidiu passar à defesa, escrever e publicar
em poucas linhas, dar ao público o testemunho das acusações e perseguições para que se
conheçam os abusos, porque impedir aos oprimidos a publicação das suas queixas seria
fechar a porta ao remédio possível e perpetuar os males.
Após a declaração de independência do Brasil, Hyppolito José da Costa foi
nomeado agente da corte imperial brasileira junto da corte de Londres mas não chegou a
tomar posse168. Morreu em Kensington, Londres, a 11 de Setembro de 1823, antes de
completar cinquenta anos.
Tenório d’Albuquerque afirma «comprovar a natureza da fatídica missão de
Hipólito a Londres»169 e descreve como encontrou em Paris uma 11ª edição da obra de
William Preston Illustrations of Masonry, saída em 1804 que, pouco aludida por
biógrafos e historiadores, tivesse ou não circulado em Portugal, continha os elementos
definitivos para as acusações de Pina Manique. Nessa obra, William Preston, ex-Mestre
da Loja Antiquity, conta que em Maio de 1802, credenciado por quatro lojas maçónicas
portuguesas, «Peter Hipólito Joseph da Costa» solicitara da Grand Lodge of England
autorização para praticar os ritos «under the english banner and protection». Mas ter-
lhe-á sido dito que isso dependia de uma recomendação «given from the Known
Governors of the country where they intende to assemble masons».
Fixando-se em Londres, após a fuga, Hyppolito José da Costa «voltou à prática
maçónica encetada em Filadélfia. Segundo os registos de Freemason’s Hall,
recentemente consultados, entrou em Março de 1808 para a Loja Antiquity. Fundou a
Loja Lusitânia, cujo regulamento foi publicado em 1812170 e foi igualmente um dos
fundadores da Royal Inverness de 1814. Exerceu a Secretaria de Assuntos do Exterior
de Freemason’s Hall e o grão –mestre da província de Rutland.

168
«O Brasil foi um dos factores do dualismo peninsular e não o menos importante.
Não se esqueça um dado que bem merece ser meditado por todos, principalmente agora
que, havendo os portugueses perdido aquela mina, põem as suas esperanças em África.
Débil fundamento. Das colónias africanas, em vez da salvação virá a crise decisiva.
Concluí». D. Gonzalo Reparaz, «El Brasil. Descubrimiento, colonizacion y influencia
en la península», conferencia en 21 de Mayo de 1892, Criterios Históricos, Madrid,
Ateneo de Madrid, 1892, p. 47.
169
Tenório d’Albuquerque, op. cit., p. 308.
170
Regulamento da Loja Lusitana, nº 184 ao Grande Oriente de Londres, Londres,
L. Thomson impresssor, 1 de Junho de 1812, cf. Innocêncio Francisco da Silva,
Dicionário Bibliográfico Português, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859, suplemento 3,
tomo X.
Nas lojas estreitou relações com o General Francisco Miranda da Venezuela e
fundador da Loja Gran Reunión América. Graças à intervenção de Hyppolito da Costa
foi iniciado em Londres o comerciante brasileiro, transitoriamente fixado no Reino
Unido, Domingos José Martins, que teve uma importância decisiva na Revolução de
Pernambuco em 1817 e nas relações do Brasil revolucionário com os Estados Unidos da
América.
Trabalhou com o Conde de Sussex, filho de Jorge III. O Duque de Sussex, que
viria a ser Grão-Mestre da Grande Loja Unida de Inglaterra, unificada depois da derrota
de Napoleão Bonaparte, teve Hyppolito da Costa como seu secretário particular, o que
obviamente colocou o jovem português numa situação de observador do processo de
unificação das grandes lojas britânicas sob os auspícios da coroa em 1813 e participante
na elaboração dos rituais. O duque de Sussex seria também padrinho do casamento de
Hyppolito da Costa com Mary Ann Troughton, de que houve descendência.
Hyppolito da Costa foi iniciado nos graus filosóficos da Ordem Maçónica o que
lhe assegurou os altos cargos que desempenhou como secretário para os Assuntos
Estrangeiros do Freemason’s Hall, presidente do Conselho de Finanças da Grande Loja
e Grão-Mestre Provincial de Ruthland171.
Por muitas razões o estudo biográfico de Hyppolito José da Costa se torna
necessário. Ele personifica uma acção cívica e política que se confunde com outros
contemporâneos que, por motivos nem sempre visíveis, apesar de ambiguidades
evidentes, adquiriram uma importância política mais controversa172.

Do conhecimento e da transmissão do conhecimento

A obra em presença é apresentada como tentativa de «traduzir» um espírito


subjacente ao objectivo enunciado pelo autor. Foram mantidas as notas originais da
obra, embora numeradas, com os nomes de autores e títulos de obras das quais, muito
provavelmente, não foram vistas no original mas citadas por algum dos autores
contemporâneos, aliás referenciados. Há um sentido de reticência no que concerne a
essas referências: frases, textos que na altura seriam conhecidos por outros conteúdos e
que, lidos a frio e à distância, perdem um tanto do seu real valor expressivo. As citações
e a versão inglesa nem sempre corresponde à versão portuguesa do texto latino ou
grego. A linguagem claramente oral, nem sempre revista, também oferece algumas
dificuldades, bem como as gralhas de impressão. Não foi possível ver o manuscrito
original nem saber se ele existe ainda e onde.
Existem em Portugal, na Biblioteca Pública de Évora, manuscritos de Hyppolito
José da Costa, que foram consultados, referentes à sua viagem aos Estados Unidos, no
qual figura o nome da personalidade, a quem o autor dedica a obra que consta na
Biblioteca da Grande Loja do Iowa situada em Cedar Rapids (EUA), considerado hoje
ainda o único exemplar impresso existente, embora haja possibilidades de se virem a
encontrar outro ou outros no Reino Unido onde foi editado. Efectivamente, Hyppolito

171
«Hipólito da Costa apelava para a explicação do descontentamento popular,
porque isso lhe convinha como maçon Rosa Cruz que era (…) No retrato de Hipólito
em ponto grande e colorido, que se acha na sala das sessões comuns da Academia
Brasileira de Letras, tirado de gravura da época, se vê, pendente dum fitão, ao pescoço,
a insígnia do grau 18, Cavaleiro Rosa Cruz», Gustavo Barroso, op. cit. P. 220.
172
Cf. António Faria, Concepção de História e Prática Política. O Abade Correia
da Serra (1751-1823), Serpa, Câmara Municipal de Serpa, 2001.
José da Costa esteve com William Bestram (ou Bastram) nos Estados Unidos em casa
de M. Hamilton – que tinha uma estufa própria e se dedicava à investigação botânica - a
2 de Agosto de 1799, onde se discutiu sobre o chá da Geórgia e da Carolina enquanto
fumavam cigarros da Virgínia e assinala isso no diário da visita que fez aos E.U.A..
O tema escolhido por Hyppolito José da Costa é, pelo menos, aliciante e
encantador por nele serem evidenciados fundamentos para uma expressão que os
maçons utilizam para evitar a localização no tempo: a Maçonaria existe desde tempos
imemoriais e, substantivamente, os leva a usar uma calendarização simbólica. Tal
acepção permite também o reconhecimento do valor prático do mito, enquanto elemento
necessário à coesão social na actualidade e ao qual as religiões de massas vão ainda
extrair ensinamentos úteis à adequação do pensamento e da sua linguagem.
O mito é uma matéria residual da parte nobre do pensamento e que outrora foi a
única defesa na relação do indivíduo consigo mesmo, com o seu próximo e com a
natureza, que passou pela descoberta da palavra, que tomou a forma material de letra e
de número, assim como pelo desenvolvimento da metáfora.
Com um grande poder de criação e nobreza, Hyppolito José da Costa procura
demonstrar neste opúsculo que a Maçonaria encontra a sua origem nas associações
filosóficas e religiosas da antiguidade Pré-Clássica e, que aqueles a quem designa como
«arquitectos de Dionisos», sediados em Lebedos, foram os fundadores da Maçonaria.
Para confirmar a existência de assembleias de construtores socorre-se apenas de Aulo
Gélio, que serviu de fundamento a Santo Agostinho e Thomas More. Mas o testemunho
da Bíblia, o Livro «Reis», onde se refere a história de Hiram, enviado como Mestre pelo
rei de Tiro a Salomão para dirigir a edificação e ornamentação do Templo de Jerusalém,
no termo dos quais é morto por três companheiros, é a placa giratória fulcral para a sua
pesquisa. Porque a tradição dos construtores já vem de Lebedos e, antes disso,
manifesta-se nos rituais de iniciação que vai citando173. Para ele a filosofia é a iniciação
nos segredos e nos mistérios sagrados, está na passagem do mito ao logos.
Num campo de estudo tão vasto, não se socorre de uma metodologia crítica mas,
de certo modo, de uma apologética adequada aos objectivos imediatos do seu estudo.
Hyppolito José da Costa procura mais ser atraente e sugestivo do que demonstrar que o
seu objecto de estudo é real, coerente, fundamentado para não o dar como
contemplativo ou fictício.
Para corroborar esta determinação e estimular a leitura, cita assiduamente o
testemunho de filósofos, poetas, filólogos, historiadores, artistas com tendência não só
para a exactidão factual mas também para o mistério e a explicação por alegorias como
Jamblico, Porfírio, Plotino, Salústio, Simplício, Marsilio Ficino, Apuleio, Plutarco,
Homero entre dezenas de autores referenciados. Estas referências, quase todas extra-
texto, significam que constituem, verdadeiramente, não um «passado» mas sim um
itinerário feito de produtos da razão, resultado da procura de uma verdade concreta e
universal acerca da vida no tempo. Cada pedra assente neste trajecto não é uma

173
Na Grécia «abundava uma mão de obra excelente. Os bons artífices
melhoravam constantemente o seu conhecimento de materiais e processos, por vias que
não deixavam rasto nos textos escritos (…) Nem Vitrúvio, que não era filósofo mas
engenheiro e arquitecto activo, revela a mais leve consciência das possibilidades de
progresso tecnológico e o seu tratado De Architectura, escrito em latim, provavelmente
nos princípios da era cristã, mais ou menos contemporâneo de Herão, resumia o
conhecimento técnico grego mais avançado, como se transmitira ao longo dos séculos
nos livros e na prática real», M.I. Finley, Os Gregos Antigos, Lisboa, Edições 70, 1988,
p. 110.
elocubração mística mas consciência desenvolvida. Seria uma resposta antecipada a
Hegel, o pai do idealismo alemão que, num dos seus mais belos oxímoros e de acordo
com o seu sistema dialéctico, se revela materialista.
Escreveu Hegel: «Existe portanto um modo afim de representar um conteúdo geral
por algarismos, linhas, formas geométricas; estas são figurativas; mas não
completamente figurativas como os mitos. Assim pode dizer-se que a eternidade é um
círculo, a serpente que morde a própria cauda; isto é pura imagem, mas o espírito não
necessita de tal símbolo. Há povos que não ultrapassam esta forma de representação,
mas com semelhantes formas não se vai longe. Podem-se, é certo, exprimir desta
maneira as definições mais abstractas, mas basta que procurem ir mais além, logo daí
nascem confusões. Como os membros da maçonaria possuem símbolos a que se atribui
profunda sabedoria – como se diz profundo a um poço que se não vê o fundo -, ao
homem aparece como profundo o que está oculto, como se por detrás houvesse alguma
profundidade. Pode até dar-se o caso de por detrás do que está oculto não haver
absolutamente nada, como sucede com os mações que para alem do que ocultam aos
estranhos e até mesmo a alguns dos iniciados, nada têm de excelente em matéria de
noções ou de ciências, nem de filosofia. O pensamento é precisamente enquanto se
manifesta: esta é a sua natureza, esta é a sua essência: ser claro (…) manifestar-se
constitui o seu próprio ser».174.
O passado desaparece cada vez mais depressa e a percepção dos acontecimentos
que se avolumam diariamente nos noticiários e outras fontes de informação dizem o que
ocorreu sem que alguém só por si possa testemunhar tudo isso. E esse todo é a própria
história global acumulada em séculos que se escoam a uma velocidade infinita. Seja
qual for a designação por que se opte, há um passado e uma memória onde esse
conhecimento entra como produto registado de um dado período. Paradoxalmente o
pensamento recupera e aproxima as distâncias infinitas que fazem parte da própria
estrutura do universo em expansão permanente e desigual - cuja descoberta, no início do
século XX, graças a Albert Einstein e a Edwin Hubble, trouxe uma nova dimensão à
história e ao conhecimento histórico, no que concerne ao espaço-tempo-energia
(movimento), à ausência de um centro de percepção privilegiado, do carácter radial da
expansão, a existência de um ponto de partida onde todos os elementos cósmicos estão
contidos e que qualquer expansão implica a ideia de tempo. Se alguns destes elementos,
nos séculos anteriores, foram objectos de estudo por homens que se dedicaram à
«ciências ocultas», à alquimia, à astrologia, ao hermetismo, à cabala, o certo é que há
neles um conteúdo científico que se revelou por Descartes, Leibniz, Newton, Goethe,
entre outros, que é cada vez mais denso ou mais «oculto» devido ao aumento da
capacidade de investigação sobre uma matéria onde nada está fora de si mesmo.
Sendo o «fragmento» de Hyppolito José da Costa uma súmula da história cultural
da humanidade, é, utilizando uma metáfora expressiva do próprio, uma pedra trabalhada
com a assinatura incisa, como a de muitos pedreiros e canteiros anónimos, destinada a
ser colocada entre tantas outras e com as quais se constrói a catedral do conhecimento
histórico em geral e em particular da história de «uma associação erguida na mais
remota antiguidade e preservada através de inúmeras vicissitudes», de um tempo em
que as leis da natureza eram explicadas através de mistérios destinados ao
«aperfeiçoamento da razão» fixada por Newton e Kant, mas abrindo o espírito a novas
exigências, após a descoberta da energia, do poder do fenómeno eléctrico ou
fotoeléctrico, a partir da crítica de Einstein, Niels Bohr e Maxwell, com que se debatem
conceitos como espaço tempo e energia. O visível e o mensurável existem hoje por via

174
Hegel, op. cit., pp. 139-140.
da invenção tecnológica, do aperfeiçoamento da matemática e da física, «fora» do
alcance directo e imediato dos sentidos. Daí emergiu um espaço novo de informação
onde os sentidos atingem novas conexões causais. O trabalho de Hyppolito José da
Costa remonta ao início de uma percepção e interpretação dos dados «inacessíveis» na
natureza à altura do século XVIII.
A história «recupera» o desenvolvimento do pensamento e do pensar a partir dos
rudimentos de informação mais remotos, olha o fundo da caverna para incorporar no
presente o que é feito e cuja dimensão assim renova. Perante a história pensada em
termos de milhões ou dezenas de milhões de anos, referir o facto conhecido
deliberadamente registado, significa apenas um espaço muito limitado e um «tempo»
muito exíguo. Enquanto a história se resumir a esse lapso tão curto, o «sentido da
história» obriga ainda a falar num presente onde o material e o espiritual mas também
espaço, tempo e memória (informação) se fundem num mesmo conceito.
Ao assumir a «explicação maçónica» de um conteúdo histórico, Hyppolito da
Costa percorre historicamente um conteúdo maçónico (que se presume ritual, portanto
imemorial e «imutável») que se quer em teoria, paradoxalmente, sem história175.

175
Este trabalho só foi acessível através do exemplar conhecido, propriedade da
Biblioteca da Grande Loja do Iowa, Cedar Rapids, Iowa (EUA), que cedeu a cópia para
este estudo. Atendendo à sua riqueza explicativa, mantiveram-se certas características
do texto da impressão inglesa original, tais como as notas, as abreviaturas, os nomes, as
expressões francesas, latinas, gregas, hebraicas. Quanto a algumas dessas
características, por erro de impressão ou transcrição ou outra qualquer razão, foi
impossível corrigir ou confirmar. Todavia foi feito um pequeno glossário de referência
no final.
BIBLIOGRAFIA

Manuscritos

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A Minha Viagem aos Estados Unidos. Diário. Cód. CXVI/1-11, Biblioteca Pública de
Évora

Cod. CXVI/1-12, Biblioteca Pública de Évora

Impressos

COSTA, Hipólito José da


Descripção da árvore assucareira e da sua utilidade e cultura, impresso de ordem
superior, por Hyppolito José da Costa Pereira, bacharel formado em leis, etc.,
actualmente empregado no serviço de S.A.R., Lisboa, Na Typographia Chalcographica e
litteraria do Arco do Cego, MDCCC (1800).

COSTA. Hipólito José da


Descripção de uma Máquina para tocar a Bomba a bordo dos navios sem o trabalho de
homens, offerecido à Real Marinha Portuguesa e impressa de Ordem superior por
Hyppolito José da Costa Pereira, bacharel formado em leis, etc., Actualmente
empregado no serviço de S.A.R., Lisboa, Na Typographia Chalcografica, e litteraria do
Arco do Cego, anno MDCCC (1800).

COSTA, Hipólito José da


Historia breve e autêntica do Banco de Inglaterra, com dissertação sobre os metaes,
moeda, e letras de cambio, e a carta de incorporação; Por T. Fortune author do
Epithome de Fundos, etc. Traduzida da segunda edição de Londres. Impresso por
ordem de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, Nosso Senhor. Por Hyppolito José da
Costa. Lisboa, Na Typographia Chalcographica, e Litteraria do Arco do Cego, Anno
MDCCCI (1801).

COSTA, Hipólito José da


Ensayos políticos, económicos e philosophicos, por Benjamin conde de Rumford
Cavaleiro da Ordem da Águia Branca, e de Santo Estanislao, Camarista, traduzido em
vulgar Hippolito José da Costa Pereira, Lisboa, Na Régia Officina typographica,
MDCCCI (1801).

COSTA, Hipólito José da


Memoria sobre a bronchocele, ou papo da América Septentrional, por Benjamin Smith
Barton, doutor em medicina, professor de matéria medica, historia natural, e botânica,
na Universidade de Pensilvânia, Traduzida do inglez por Hyppolito José da Costa
Pereira. Lisboa, na Typographia Chalcographica, e litteraria do Arco do Cego,
MDCCCI (1801).

COSTA, Hipólito José da


Cartas sobre a Framaçonaria, 2ª ed., Madrid, s.n., 1805.

COSTA, Hipólito José da


Cartas sobre a Framaçonaria, 2ª ed. feita sobre o original de Amsterdam, augmentada
com duas cartas escriptas em 1778 sobre o mesmo assumpto, e correcta, Paris, Officina
de A. Bobbbée, 1821.

COSTA, Hipólito José da


Narrativa da perseguição, de Hyppolito José da Costa Pereira Furtado Mendança,
natural da Colónia de Sacramento, no Rio da Prata. Prezo e procurado em Lisboa pelo
pretenso crime de framaçon ou pedreiro livre. Em dois volumes, Londres: impresso por
W. Lewis, 1811.

COSTA, Hipólito José da


Cartas sobre a Framaçonaria, ed. Feita sobre o original de Amsterdam, correcta e
seguida de vários aditamentos, Rio de Janeiro, s.n., 1833.

COSTA, Hipólito José da


Sketch for History Dionysian Artificers. A Fragment. By Hippolyto Joseph da Costa,
London, Sherwood, Neely& Jones, 1820.

COSTA. Hipólito José da


História de Portugal composta em inglez por uma sociedade de litteratos, trasladada
em vulgar com as notas da edição franceza e do tradutor portuguez, Londres, Oficinas
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