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The quiet Minotaur: Rubens and the dialogue with antiquity and other traditions
Como citar:
TAVARES, D.A. O Minotauro tranquilo: Rubens e o diálogo com a
antiguidade e outras tradições. MODOS. Revista de História da Arte.
Campinas, v. 4, n.2, p.232-248, mai. 2020. Disponível
em:˂https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/mod/article/vie
w/4571˃. DOI: https://doi.org/10.24978/mod.v4i2.4571.
The quiet Minotaur: Rubens and the dialogue with antiquity and other
traditions
Resumo
Este artigo apresenta reflexões acerca do esboço Dédalo e o Minotauro, concebido por Peter Paul Rubens,
em 1636, para uma série encomendada pelo rei espanhol Felipe IV. Nesta obra, ao representar um Minotauro
mais humano, numa situação peculiar, o pintor dialoga com uma longa tradição, que vai da antiguidade
clássica ao século XVII, da qual ele tanto se aproxima quanto se afasta. Para tanto, tomamos como
balizadores a literatura e a iconografia antiga sobre o mito do monstro de Creta, bem como as representações
posteriores, que diferem da forma canônica. Consideramos igualmente os estudos acerca da série executada
para o rei e do referido esboço, especialmente em Díez-Platas (2005) e Alpers (1971).
Palavras-chave
Minotauro. Rubens. Iconografia. Mito. Releitura.
Abstract
This article discusses the sketch Daedalus and the Minotaur, conceived by Peter Paul Rubens, in 1636, for
the series commissioned by the Spanish king Philip IV. In this work, Rubens represents a more human
Minotaur, in a peculiar situation, establishing a dialogue with a long tradition, which goes from classical
antiquity to the 17th century, from which he both approaches and moves away. For our analysis, we take, as
guidelines, literature and ancient iconography about the myth of the Cretan monster, as well as later
representations, which differ from the canonical form. We also take into consideration some studies about the
series commissioned by the king and the aforementioned draft, especially in Díez-Platas (2005) and Alpers
(1971).
Keywords
Minotaur. Rubens. Iconography. Myth. Reframing.
MODOS revista de história da arte – volume 4 | número 2 | maio – agosto de 2020 | ISSN: 2526-2963
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(...) o homem metade touro e o touro metade homem1 (...)
(Ovídio, Ars II: 24, tradução nossa).
Introdução2
O Minotauro, criatura com cabeça de touro e corpo de homem, é um dos monstros mais famosos da
tradição literária e iconográfica greco-romana. Seu comportamento, origem e morada igualmente
assustadoras, também forneceram elementos para ressignificações que não cessaram de ocorrer,
mesmo na contemporaneidade. No entanto, a iconografia do Minotauro não foi a mesma ao longo dos
séculos, especialmente no vasto período que vai da Idade Média ao século XVIII, quando a
redescoberta das obras de arte greco-romanas (Díez-Platas, 2005: 141) recuperou a imagem que hoje
nos é tão familiar.
No século XVII, o pintor barroco Peter Paul Rubens (1577-1640) recriou o monstro de Creta a partir de
referências literárias e imagéticas que circulavam em seu tempo, mas nem por isto o Minotauro
rubeniano repete integralmente o que o artista conhece, pois sua inclinação a humanizar os
personagens míticos (Alpers, 1971: 146) se estende ao prisioneiro do labirinto. Deste modo, ao dialogar
com a literatura greco-romana e com a tradição que deu ao Minotauro uma aparência similar aos
Centauros (homens até a cintura, com o resto do corpo equino), o mestre flamengo acrescentou ao
monstro um semblante gentil, que sugere um comportamento igualmente singular.
A fim de discorrer sobre a coexistência de diversas tradições na recriação de Rubens, partiremos dos
estudos de Alpers (1971) e Díez-Platas (2005), bem como das fontes literárias associadas ao trabalho
deste artista, que, como poucos, tornou deuses e monstros tão próximos dos homens.
Ela também sugere que, uma vez que os textos ovidianos eram populares na Europa cristã, funcionaram
como fontes para a iconografia medieval e renascentista, que modificaram a imagem tradicional do
Minotauro. Já Virgílio (70 a.C.-19 a.C.) diz que o Minotauro é o biforme mestiço de Pasífae (Aen., VI:
20-28), enquanto Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), cita brevemente, em sua Fedra, o “ambíguo filho” da rainha
(Phaedr., 687-691). Por sua vez, o cronista Plutarco afirma apenas que este híbrido é fruto da natureza
do homem e do touro (Thes., XV), enquanto Pausânias (Desc. Gr., I, 24.1) é ainda mais vago, pois ao
referir-se ao “touro de Minos”, alterna entre defini-lo como homem e “besta da natureza”.
Fig. 1. Teseu e o Minotauro: stamnos policromado de origem siciliana (circa século VII a.C.) – Museu do Louvre (Paris).
Fontes: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Theseus_Minotaur_Louvre_CA3837.jpg>;
<http://cartelfr.louvre.fr/cartelfr/visite?srv=car_not_frame&idNotice=5838>.
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Apesar das eventuais descrições literárias imprecisas, como a do grego Pausânias (circa 115-180 d.C.)
ou dos autores romanos, a forma do Minotauro continuou estável no decorrer da Antiguidade, conforme
temos em sua iconografia, que também demonstra quem foi este personagem, por meio de esculturas,
pinturas ou mosaicos.
Seja nas obras de arte gregas dos períodos mais remotos, ou mesmo na arte romana do século IV d.C.,
nota-se que a forma do Minotauro, bem como seu destino é o mesmo, afinal ele é o homem-touro,
amaldiçoado por uma concepção considerada criminosa, que vive uma existência condenada à prisão
no labirinto e à morte pelas mãos de Teseu, como temos na cerâmica siciliana do século VII a.C. [fig.1].
O mesmo se repete na figura ática a seguir, que mantém a forma tradicional do “touro de Minos” e
amplia sua monstruosidade [fig. 2].
Fig. 2. Teseu e o Minotauro: cerâmica ática com pintura no estilo “figura negra” (circa século VI a.C.), Coleções Estatais de
Antiguidades (Munique). Fonte: <http://www.perseus.tufts.edu/hopper/artifact?name=Toledo%201958.70&object=Vase>.
Fig.3. Teseu e o Minotauro: mosaico policromado de origem africana (circa século IV d.C.) - Museu Nacional do Bardo
(Túnis). Fonte: <http://www.limc-france.fr/objet/1599>.
Fig. 4. Teseu e o Minotauro no labirinto: mosaico policromado (circa século I d.C.) – Villa de la via Cadolini (Cremona).
Fonte: <http://www.theoi.com/Gallery/Z45.2.html>.
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No entanto, há também momentos em que o prisioneiro do labirinto é colocado no limiar da prisão, a
fim de que Teseu exiba ao mundo a sua vitória. Assim, tanto no afresco pompeiano do século I d.C. [fig.
5], quanto na cerâmica ática do longínquo século V a.C. [fig. 6], o Minotauro não desfruta a visão do
mundo fora do labirinto, pois este é um privilégio impensável a um monstro antropófago.
Fig. 5. Teseu vitorioso: afresco de Pompeia (circa século I d.C.), Museu Arqueológico Nacional (Nápoles).
Fonte: <http://www.theoi.com/Gallery/F45.1.html>.
Fig. 6.1Copa de Aison: cerâmica ática com pintura do estilo de “figura vermelha” (circa século V a.C.), Museu Arqueológico
Nacional (Madrid).Fonte: ˂http://www.man.es/man/coleccion/catalogo-cronologico/grecia/aison.html>.
Segundo Díez-Platas (2005: 147, tradução nossa), a constante representação da criatura no labirinto
obedece ao caráter moralizante de sua narrativa, pois é preciso ocultar o fruto do adultério da rainha de
modo exemplar:
Como veremos a seguir, a obra de Rubens rompe não apenas com a forma conhecida do Minotauro,
mas também com sua relação com o labirinto. Sendo este personagem um ser cuja natureza está no
limiar entre o homem e a fera, o mestre flamengo também o posiciona numa fronteira, embora de modo
Fig. 7. Dédalo e o Minotauro: Peter Paul Rubens (1636), esboço a óleo. Museu de Belas Artes de La Coruña (La Coruña).
Fonte: <http://museobelasartescoruna.xunta.gal/index.php?id=412&idc=4093>.
Entre estas telas, estava uma, atualmente desaparecida, que trazia o Minotauro a contemplar o labirinto
do lado de fora, ao lado do arquiteto Dédalo. Supomos como ela era por conta do seu esboço de 1636,
hoje no Museu de Belas Artes de La Coruña, na Espanha [fig. 7].
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Conforme apontamos, este é um Minotauro que difere do modelo literário e iconográfico da Antiguidade,
mas que é similar ao retratado pela arte medieval, Renascença e Barroco. No entanto, apesar de diferir
do modelo greco-romano por sua forma e localização fora do labirinto, ele mantém o alinhamento com
os elementos constitutivos deste personagem8: é um monstro parte touro e parte homem, tendo sido
condenado a uma prisão construída por Dédalo que, por sua vez, é posto em cena com seus
instrumentos de trabalho.
De fato, todas as tradições citadas convergem para esta criação de Rubens, cuja obra foi empenhada
em humanizar os personagens míticos, conforme temos em Alpers (1971: 146). Desta forma, antes de
visitarmos as criações pós-Antiguidade que influenciam o Minotauro destinado ao rei espanhol, é
preciso conhecer a forma como o próprio artista costumava lidar com os temas da mitologia.
Tendo recebido uma formação que compreendia o aprendizado do latim e o conhecimento da cultura
clássica, especialmente a latina, Rubens retratou figuras católicas, pagãs e da sua contemporaneidade
com a mesma dramaticidade, tendo sido chamado de “Homero dos Pintores” por Delacroix (Alpers,
1971: 173). Seu contato com a poesia de Ovídio, bem como com as ilustrações para esta obra, muito
populares desde a Idade Média, inspirou criações como o Banquete de Aqueloo, que Alpers (1971: 93)
localiza na juventude do artista. Esta autora afirma ainda que metade das obras relacionadas às
Metamorfoses, destinadas ao rei Felipe IV, provém de gravações para este poema romano,
principalmente uma francesa e outra alemã, do século XVI, e do trabalho do gravador italiano Antonio
Tempesta (1555-1630).
Fig. 8. O Casamento de Peleu e Tétis: Peter Paul Rubens (1636), esboço a óleo – Instituto de Artes de Chicago (Chicago).
Fonte:<http://www.artic.edu/aic/collections/artwork/59956?search_no=1&index=6>.
No entanto, as ressignificações para a série da Torre de la Parada iam além do flerte com a comédia,
lidando também com a ternura e o prosaico, como em Dédalo e o Minotauro e no esboço do Nascimento
de Vênus12 (a Afrodite grega). Nele, Rubens faz com que a deusa aparente estar mais aborrecida com
seus cabelos encharcados, do que com a glória que recebe, ao sair do mar [fig. 9].
Fig. 9. O Nascimento de Vênus: Peter Paul Rubens (1636-1637), esboço a óleo – Museus Reais de Belas Artes da Bélgica
(Bruxelas). Fonte: Alpers (1971: 21).
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Desta forma, como em Dédalo e o Minotauro, o pintor aproxima a figura mítica da natureza humana,
algo raramente presente nos textos clássicos, e adia o final trágico do monstro, colocando-o numa
temporária liberdade.
Assim como em Ovídio, é evidente que o Minotauro é um monstro, já que parte dele é de um touro e
parte de um homem. No entanto, seu lado humano não está no corpo e seu corpo não é mais
comandado por uma mente de animal. Nem mesmo a sua expressão é agressiva, como na iconografia
greco-romana. Mesmo posicionado de lado, seu rosto, amadurecido por uma grande barba, é sereno e
atento a Dédalo, o qual pode ser compreendido pela criatura. Talvez sua cabeça também articule a
linguagem, algo que o aproximaria do arquiteto ateniense, e este ponto é caro a Rubens, pois está em
acordo com a ênfase sobre emoções e relações humanas entre as figuras mitológicas (Díez-Platas
[s.d.]: 19) e vale para todas as figuras por ele representadas, sejam elas deuses, monstros, heróis ou
homens comuns, como Dédalo. Em suas ações, elas variam entre o “(...) ciúme, orgulho, raiva, tristeza
e tantas disposições de ânimo e variações do amor14” (Alpers, 1971: 146, tradução nossa).
Apesar de o Minotauro rubeninano diferir de sua imagem mais corrente, observamos que, segundo
Díez-Platas ([s.d.]: 20-21), o conhecimento da iconografia greco-romana era limitado no século XVII.
Com isso, apenas a partir do século XVIII, graças à descoberta arqueológica das fontes visuais antigas,
seria retomada a figura do homem com cabeça de touro (Díez-Platas, 2005: 141). Já do ponto de vista
literário, circulavam naquele tempo textos, em sua maioria latinos, que, segundo mencionamos, não
eram precisos quanto à forma do monstro. Por isso, qualificações ambíguas, como híbrido, mestiço,
biforme, ser metade touro e metade homem, percorreram a Idade Média e a Renascença, permitindo
que a imaginação trabalhasse com diversas possibilidades de representação e, dessa maneira, a
releitura concebida por Rubens, apesar de estranha a nós e à Antiguidade Clássica, estava alinhada ao
seu contexto, assim como aos séculos que o precederam (Díez-Platas, [s.d.]: 14-18).
De acordo com Díez-Platas ([s.d.]: 14), o mundo medieval, que desconhecia a iconografia pagã, passou
a utilizar a figura do Centauro, claramente descrita pela literatura, como modelo para o Minotauro.
Portanto, no Liber Floridus (ou Livro das Flores), do século XII, ele vive num labirinto, é touro da cintura
para baixo e homem com chifres daí para cima.
Na Renascença, figuram duas tradições na imagem do monstro de Creta. Uma delas é a das
Emblemata15, cujas ilustrações são associadas a um mote e um texto breve, sendo essas composições
principalmente, de cunho moral ou religioso; a outra é a das ilustrações para as Metamorfoses (Díez-
Platas, [s.d.]: 16).
Popular entre os séculos XVI e XVII, as Emblemata derivam do trabalho de Andrea Alciato (1492-1550),
que publicou o primeiro livro deste gênero, no qual estava o “Emblema XII”, associado ao Minotauro.
Este era intitulado Non vulganda consilia (“Segredos não devem ser divulgados”) e trazia a inscrição:
A falange Romana leva para a batalha uma cena pintada do monstro aprisionado por
Dédalo no labirinto de Cnossos, com sua entrada oculta, sombria escuridão e sinais de
arrogância que brilham do touro meio humano, o Minotauro. Isto nos aconselha de que as
deliberações secretas dos líderes devem permanecer em segredo. Descoberto, um
estratagema prejudica seu autor16 (Alciati, XII, tradução nossa).
Em conjunto com este epigrama, muitas gravações do Minotauro foram utilizadas e trazem releituras
que o aproximam dos Centauros [figs. 11 e 12], dos Sátiros, [fig. 13], ou mesmo revelam um touro com
rosto humano [fig. 14], mas não se assemelham à sua forma antiga.
Já as ilustrações para as Metamorfoses, onde figura uma imagem semelhante aos Centauros,
alcançaram Rubens, que conheceu o trabalho de Bernard Salomon (1506-1561) e Virgil de Solis (1514-
1562), ambos gravadores das Emblemata e do poema de Ovídio (Díez-Platas, [s.d.]:5, 16). Segundo
Alpers (1971: 80-86) as gravações de Salomon para a edição de Lyon das Metamorfoses, em 1557,
foram de importância fundamental para a iconografia ovidiana nos séculos XVI e XVII. Isto inclui a obra
de Solis (ver fig. 14), que copiou as imagens de Salomon para a edição de Frankfurt, do referido texto.
No entanto, em seu diálogo com estas gravações, Rubens não as copia, mas modifica-as, refinando-as
(Alpers, 1971: 82).
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Fig.11. Emblematum libri II: Alciato (1556), gravação de Bernard Salomon (Lyon). Fonte:
<http://www.emblems.arts.gla.ac.uk/alciato/picturae.php?id=A56a008>
Fig.12. Emblematum liber: Alciato (1531), gravação atribuída a Hans Schäufelein e baseada em Jörg Breu (Augsburgo).
Fonte: <http://www.emblems.arts.gla.ac.uk/alciato/emblem.php?id=A31b008>.
Fig. 13. Emblemata: Alciato (1621), gravador não identificado (Pádua).
Fonte: <http://www.emblems.arts.gla.ac.uk/alciato/picturae.php?id=A21a012>.
Fig. 14. Teseu, Ariadne e o Minotauro: Virgil Solis (1563), reprodução de xilogravura – Metamorphoses Illustratae.
Fonte: <http://ovid.lib.virginia.edu/spreng/OVIM220.html>.
Fig. 15. Teseu e o Minotauro: Antonio Tempesta (século XVII), xilogravura – Museu de Belas Artes (São Francisco). Fonte:
<https://art.famsf.org/antonio-tempesta/minotaurum-theseus-vincit-theseus-and-minotaur-pl-74-series-ovid%E2%80%99s-
metamorphoses>.
Como sabemos, esta hostilidade não está no esboço rubeniano. Ao desfrutar seu momento com Dédalo,
o Minotauro observa a nova morada, o que é bastante singular, pois é dada a ele a capacidade da
contemplar, uma aptidão própria da natureza humana. Além disso, como mencionado acima, ele
possivelmente entende a linguagem do arquiteto, talvez consiga também se comunicar e, certamente
tem, pela primeira vez, um amigo.
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Diferente da literatura clássica e das ilustrações de Ovídio, o Minotauro não está em confronto com
Teseu, como ocorre nas figuras 14 e 15. Na verdade, o pintor flamengo sequer coloca o personagem
ao lado de um herói17 (Dédalo não possui armas, apenas instrumentos de trabalho), mas do criador da
falsa vaca e, por isto, também criador do Minotauro (Díez-Platas, [s.d.]: 7-8).
Apesar do Minotauro rubeniano parecer estar tão distante daquele estabelecido pela Antiguidade,
também traz certos aspectos tradicionais, sobretudo os citados por Ovídio: ele é um híbrido, parte
humano e parte touro, sua prisão foi concebida por Dédalo e presume-se que há um motivo para seu
aprisionamento. Ironicamente, Dédalo executa seu trabalho sob as ordens do rei (Ovídio, Met. VIII: 159-
168), assim como Rubens trabalha para o prazer de um rei.
Em consonância com as narrativas verbais e visuais mais antigas, o prisioneiro e seu cárcere estão
ligados como irmãos, cujo encontro Rubens concebe como iminente. De modo ainda mais próximo,
estão Dédalo e sua criatura: seus traços e barba são semelhantes e a expressão de ambos é serena.
Curiosamente, assim como o labirinto é parcialmente mostrado, nada aparece em sua totalidade: o
Minotauro está de costas, a exibir despreocupadamente o traseiro, Dédalo de lado e sua criação
arquitetônica aparece nos espaços entre ele e o monstro.
Certamente Rubens tinha e pleiteava junto ao rei uma liberdade maior para criar, o que é comprovado
através das correspondências trocadas com o monarca espanhol, que apreciava o destaque às
paisagens (Alpers, 1971: 35-36, 99); já Rubens preferiu destacar, na série da Torre, os personagens e
não o fundo, conforme apontam Georgievska-Shine e Silver (2014: 2), ao lado de Alpers (1971: 96, 99).
Esta “exceção iconográfica” (Díez-Platas, [s.d.]: 9), para a qual convergem séculos de textos verbais e
representações iconográficas, põe em cena, no lugar de uma aparência e comportamento furiosos, a
contemplação do próprio destino e nela tudo parece estar levemente deslocado de suas fontes. Sobre
a criatura rubeniana, sabe-se que ela está prestes a se despedir da liberdade e da luz do dia, mas neste
limiar de tempo, congelado pelo mestre flamengo, ele ainda se mostra afável e atento ao que lhe diz
Dédalo. Uma vez prisioneiro no labirinto, talvez ceda à violência e se torne o antropófago brutal,
fechando assim o conjunto de elementos constitutivos que caracterizam o personagem.
Entre as muitas interpretações possíveis, essa é uma possibilidade que aventamos e aqui deixamos
aberta, assim como o fizeram o artista flamengo e o ateniense com a entrada do labirinto: é para ela
que Dédalo aponta a mão, seguida pelo olhar sossegado do touro de Minos.
Notas
* Graduada em Comunicação Social pela Universidade Católica do Salvador (UCSal), Mestre e Doutora em Literatura e Cultura pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Professora da Pós-Graduação em Mitologia comparada do Instituto Junguiano da Bahia
(IJBA). E-mail: ˂amaraldaniella@gmail.com˃. ORCID: <https://orcid.org/0000-0002-0604-1132>.
1 (...) Semibovemque virum semivirumque bovem [(...) (Ovídio, Ars II: 24).
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2 Este texto é baseado em nossa pesquisa de doutorado, defendida em 2018 no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia
(UFBA).
3 O cronista Pausânias (Desc. Gr., II, 31.1) e o mitógrafo Apolodoro (Bibl., III,1.4), mencionam o primeiro nome deste personagem,
Asterion, Ἀστερίων, “o estrelado”, (Brandão, 2000a: 131), o mesmo usado pelo antigo rei de Creta, antes da denominação mais comum
do monstro, “touro de Minos” - Minotauro, Μινώταυρος, (Pausanias, Desc. Gr., III, 18.16).
4 A tradução deste fragmento encontra-se no estudo de Ferreira (2008: 29).
5 “(...) deceived by the image of a cow of maple wood, the king of the herd performed with her the act of love, and by the offspring was
quitar de la vista, y Dédalo será el encargado de hacer desaparecer la imagen dentro de una creación arquitectónica tan singular y
maravillosamente monstruosa como el propio inquilino al que le está destinada: el laberinto. Y así, Asterio se convertirá en realidad en
un ser invisible, sensu stricto.” (Díez-Platas,2005: 147).
7 Segundo Alpers (1971: 107) para a série da Torre de la Parada, as pinturas com temas ovidianos proporcionariam ao pavilhão real o
frescor e um ar de “entretenimento licencioso”, tão adequados aos prazeres de uma casa no campo.
8 O terceiro elemento constitutivo deste personagem, a antropofagia, elencado por Siganos (1993: 63), está ausente no esboço de
Rubens.
9 “(...) he viewed man with sympathy and broadmindedness and perceived life as a comedy in the fullest sense of the word rather than
cobiçado pelas deusas Atena, Hera e Afrodite. Nele lia-se “para a mais bela”, o que inflamou a disputa entre as deusas. Por fim, decidiu-
se que o príncipe troiano Páris deveria arbitrar a disputa e, tendo ele concedido o pomo a Afrodite, participaria mais tarde dos
acontecimentos que levaram à Guerra de Tróia (Hyginus, Fab., XCII).
12 A composição final desta obra é de Cornelius de Vos, que trabalhava para o estúdio de Rubens. Atualmente, está no Museu do
apenas um sinônimo para mitológico. Já Georgievska-Shine e Silver (2014: 3) afirmam que Rubens se volta mais para as emoções e
ações de figuras não humanas.
14 “(...) jealousy, pride, anger, sorrow, and many moods and varieties of love” (Alpers, 1971: 146).
15 De origem latina, este é o plural para os livros de emblemas.
16 “The Roman phalanx carries into battle a painted scene of the monster which Dedalus had imprisoned within the labyrinth of Cnossos,
with its hidden entrance and shadowy darkness, and signs of arrogance shine forth from the half-human bull [the Minotaur]. These
advise us that the secret deliberations of the leaders must remain secret; detected, a cunning trick harms its author.” (Alciati, XII).
17 Alpers (1971: 155) afirma que Rubens e Ovídio evitavam abordar as ações heroicas. Para ela, tanto a série da Torre quanto o poema