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Uma Leitura Brasileira

do Legado de Pierre Bourdieu

Amurabi Oliveira*
http://dx.doi.org/10.1590/0103-7307201507813

Catani, Afrânio Mendes. (2013). rótulo de “reprodutivista” e, como indica


Origem e destino: pensando a sociologia o cuidadoso levantamento realizado por
reflexiva de Bourdieu (116 pp.). Catani, Catani e Pereira (2001), mostra-se
Campinas, SP: Mercado de Letras. recorrente a existência de uma apropria-
ção incidental do autor, na qual se reali-

P
ierre Bourdieu (1930-2002) é, zam rápidas referências a seus trabalhos,
inegavelmente, uma referência especialmente por meio da obra A repro-
incontestável no campo da Socio- dução, publicada originalmente em 1970.
logia, de forma ampla, e da Sociologia No conjunto de autores que têm não
da Educação, em particular (Oliveira, apenas realizado uma ampla revisão
2013), o que se relaciona também com a do pensamento do sociólogo francês
influência da produção acadêmica fran- no Brasil, como também se utilizado de
cesa nas pesquisas em Sociologia da seu arcabouço teórico para o desenvol-
Educação no Brasil (Costa & Silva, 2003; vimento de suas próprias pesquisas,
Weber, 2011), porém o impacto de sua destaca-se Afrânio Mendes Catani, dou-
produção ultrapassa os campos discipli- tor em Sociologia e professor titular da
nares, pois, como nos indica o balanço Faculdade de Educação da Universidade
realizado por Catani e Faria Filho (2002) de São Paulo (USP), atuante no Progra-
no GT de História da Educação da As- ma de Pós-Graduação em Integração da
sociação Nacional de Pós-Graduação e América Latina. Em Origem e destino, o
Pesquisa em Educação – ANPED –, ele é autor nos presenteia com um conjunto
o autor mais citado nos trabalhos, ultra- de textos publicados ao longo de uma
passando as referências a historiadores
consagrados, como Chartier. * Centro de Filosofia e
No Brasil, sua recepção, desde os Ciências Humanas (CFH),
Universidade Federal de Santa Catarina –
anos de 1970, tem ocorrido não sem con- UFSC, Florianópolis, SC, Brasil.
trovérsias, em muitos casos reduzida ao amurabi_cs@hotmail.com

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década (2002-2012), mas só agora orga- fora realizado por outros comentadores,
nizados como uma coletânea, possibili- Catani se volta para um entrelaçamento
tando o acesso a uma visão mais abran- entre a obra do autor e sua própria for-
gente de sua reflexão sobre a Sociologia mação intelectual, indicando como suas
de Bourdieu. leituras passaram a ser integradas na
Apesar de se tratar de uma obra elaboração de seu trabalho. É-nos apre-
bastante sintética, ela assume um fio sentada a trajetória de Catani, que nos
condutor interessante para pensarmos indica sua formação familiar e escolar,
a leitura de Bourdieu no Brasil: a ideia além de seus primeiros contatos com
de que seria possível realizar um exercí- a obra de Bourdieu, ainda nos anos de
cio de utilização do arcabouço teórico e 1970, através de Sergio Miceli. Aparente-
metodológico do sociólogo francês em mente, há muitos pontos de convergên-
outras realidades empíricas, desde que cia nas biografias de Catani e Bourdieu,
realizado um esforço de desenvolvimen- considerando que ambos se originam de
to de um trabalho homólogo ao feito por famílias modestas e conseguem romper
ele. Ou seja, Catani nega a possibilida- com o que seria o “destino escolar”, em
de de transposição automática de cate- princípio reservado a ambos.
gorias teóricas de uma realidade para É por meio da obra de Bourdieu, com
outra. Essa discussão ainda está insufi- destaque para seus primeiros escritos
cientemente desenvolvida no Brasil, no elaborados em parceria com Passeron,
que diz respeito não apenas às ideias Os herdeiros (2013 [1964]) e A reprodu-
de Bourdieu, mas a uma ampla gama de ção (2008 [1970]), que Catani passa a
teorias desenvolvidas em outros contex- compreender o lugar da escola no pro-
tos históricos e sociais. E, nesse senti- cesso de conservação social, o que pos-
do, a contribuição de Origem e destino sibilita ao sociólogo brasileiro entender
é fundamental para o desenvolvimento melhor sua própria história escolar. A
das discussões da Sociologia da Educa- forma de operar dessa instituição, se-
ção no Brasil. gundo a análise bourdieusiana, se daria
“A Sociologia de Pierre Bourdieu (ou do seguinte modo: “A escola, ao ignorar
como um autor se torna indispensável desigualdades culturais entre crianças
ao nosso regime de leituras)” abre o li- de diferentes classes sociais ao transmi-
vro, deixando claro o caráter afirmativo tir os conteúdos que opera, bem como
da coletânea. Mas, longe de procurar seus métodos e técnicas e os critérios de
reconstituir a obra de Bourdieu, o que já avaliação que utiliza, favorece os mais

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favorecidos e desfavorece os mais des- bilidades existentes na articulação entre
favorecidos” (p. 29). as contribuições teóricas e metodológi-
A partir desse ponto, ele passa a ex- cas dos clássicos para a apreensão do
por algumas das questões centrais tra- real. No caso de Bourdieu, esse aspecto
zidas por Bourdieu para a compreensão se vincula a uma tentativa de superação
do sistema de ensino, como a relação de falsos antagonismos, nas teorias so-
com o saber; a análise sobre o julgamen- ciais, das teorias abstratas e de grandes
to professoral, que se assenta principal- generalizações. O relevante seria
mente em elementos externos, como so-
taque, postura, etc.; o desenvolvimento que Bourdieu, ao trabalhar com Dur-
e a utilização da categoria habitus, que kheim, Weber e Marx consegue, a partir
aparece pela primeira vez em A reprodu- deles e com sua mirada, situar-se no lu-
ção e é desenvolvida em trabalhos pos- gar geométrico das diferentes perspec-
teriores. E seria a partir desse conjunto tivas – o que não deixa de ser extrema-
de elementos que Bourdieu constrói mente inovador no quadro da teoria e da
uma Sociologia engajada, como um “es- prática sociológica de hoje [ênfase no
porte de combate”. original] (p. 55).
No segundo capítulo, “Um convite
aos clássicos: o trabalho sociológico de “As possibilidades analíticas da no-
Pierre Bourdieu”, Catani se volta para a ção de campo social”, terceiro capítulo
utilização criativa e fértil que Bourdieu da obra, se volta para um conceito cen-
fez dos clássicos da Sociologia (Marx, tral na teoria bourdieusiana, que teria
Durkheim e Weber) e utiliza, em sua ar- surgido para evitar um erro de “curto-
gumentação, “a forma de apropriação -circuito” existente nas teorias sociais
que o sociólogo brasileiro Florestan Fer- (Bourdieu, 2004). Catani nos alerta para
nandes também realizou dos mesmos a indissociabilidade entre pesquisa teó-
autores, com a finalidade de mostrar rica e empírica, presente na Sociologia
caso semelhante ocorrido na periferia, de Bourdieu, bem como para o fato de
em um campo acadêmico com autono- que “as noções de campo, habitus e ca-
mia reduzida” (p. 41). pital não podem ser definidas isolada-
O dito ecletismo presente na obra mente, mas apenas no interior do siste-
de Bourdieu foi alvo de críticas. Porém, ma teórico que constituem” (p. 60).
ao trazer à tona o exemplo de Florestan A noção de campo viria a substituir
Fernandes, o autor aponta para as possi- a de sociedade, pois esta seria com-

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preendida não como um todo integrado Apesar de compreender que os con-
organicamente, mas, sim, como consti- ceitos bourdieusianos são elaborados
tuída por um conjunto de microcosmos para a análise das contradições existen-
sociais “dotados de autonomia relativa, tes na sociedade francesa, Catani enten-
com lógicas e possibilidades próprias, de que é possível se utilizar desse apara-
específicas, com interesses e disputas to epistêmico-prático para trabalhar nas
irredutíveis ao funcionamento de outros investigações envolvendo os campos so-
campos” (p. 61). Isto se insere na tenta- ciais brasileiros, por meio do estabeleci-
tiva de superar a antinomia entre indiví- mento de relações de homologia. Nesse
duo e estrutura, afirmando que o objeto sentido, ele empreende um esforço para
da ciência social se encontra “na relação lançar elementos que tornem possível a
recíproca entre os sistemas de percep- análise do campo universitário brasilei-
ção, apreciação e ação (o habitus) e as ro, o que abarca tanto o “aparato institu-
diferentes estruturas constitutivas do cional assegurado pelo Estado brasileiro
mundo social e das práticas – os diferen- que garante a produção, circulação (e
tes campos” (p. 65). mesmo consumo) de bens simbólicos
A partir desse conceito, Catani se vol- que lhe são inerentes” (p. 75), quanto
ta para a análise do Bourdieu do campo suas transformações, o que é analisado
intelectual – que, como tal, seria dotado por Catani como um campo de disputas
de regras próprias bastante comple- marcado por relações de poder.
xas –, assim como para o universo das No quarto e último capítulo, “No ber-
grandes escolas, que constituiriam um ço é que o destino toma conta dos ho-
conjunto heterogêneo, ligado ao proces- mens?”, Catani, a partir da trajetória de
so de consagração das divisões sociais. Benedito Junqueira Duarte (1910-1995),
Interessante que, ao trazer a análise de Vinicius de Moraes (1913-1980), Octavio
Bourdieu acerca das grandes escolas, Ianni (1926-2004), Florestan Fernandes
ele lança luz sobre questões que emer- (1920-1995) e Pierre Bourdieu (1930-
gem numa leitura rápida de A reprodu- 2002), realiza um exercício de análise da
ção, tendo em vista que o papel do her- relação entre a origem familiar e os des-
deiro seria cada vez mais custoso, em tinos sociais, destacando o lugar que a
termos financeiros, emocionais e viven- escolarização ocupou nesses casos.
ciais, e a inadequação de alguns aponta Nas duas primeiras análises, ainda
para o fato de que a reprodução de clas- que Duarte e Moraes tenham ingressado
ses não é uma conclusão inaceitável. no Ensino Superior, obtendo, ambos, o

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título de bacharel em Direito, o sistema rece que os artigos, nesta obra, são uma
de ensino foi coadjuvante no destino forma particular de mapear Bourdieu,
dos agentes, ao passo que, no caso dos indicando que talvez possam “ajudar
três sociólogos analisados, “ seus desti- a mostrar algumas possibilidades ana-
nos, derrotaram os respectivos berços, líticas que suas reflexões permitem, é
fundamentalmente através da chancela dizer, elaborar um trabalho de natureza
consagradora obtida junto ao sistema homológica, com a finalidade de realizar
de ensino” (p. 82), em que pese o fato a transposição e gerar hipóteses para
de que, segundo o autor, os intelectuais desenvolver pesquisas comparadas em
do segundo grupo permanecem fiéis a outro (s) país (es)” (p. 102).
suas classes de origem, o que poderia Origem e destino é um livro instigan-
ser verificado por meio dos itinerários de te, por trazer uma leitura não ortodoxa
pesquisa desses autores, já que “ os três de Bourdieu, preocupada em fazer uma
sempre procuraram investigar as causas sociologia da Sociologia, seguindo os
das grandes exclusões presentes na so- preceitos abertos pelo pensador fran-
ciedades capitalistas contemporâneas, cês. Destaca-se o fato de buscar romper
os excluídos, os marginalizados e o pro- com leituras aligeiradas realizadas ao
letariado. Além de scholars exemplares, longo destas últimas décadas, que têm
praticaram uma ciência social engajada se limitado a enquadrar Bourdieu como
e militante” (p. 94). Sua preocupação, um autor “reprodutivista”, o que foi re-
portanto, recai sobre a problematização futado por ele próprio, ainda em vida, ao
dos condicionamentos sociais oriundos indicar que as ideias expressas em A re-
da origem familiar e sua relação com o produção apontavam para a escola não
sistema escolar, o que tem sido objeto como reprodutora das desigualdades
de reflexão por parte de outros autores sociais, mas como uma das instituições
que, como Lahire (1997), têm revisitado a sociais que colaborava para esse pro-
obra de Bourdieu. Porém Catani traz uma cesso (Bourdieu, 2012).
contribuição original, ao se voltar para Um dos seus pontos fortes reside no
casos específicos de intelectuais reno- contínuo esforço de indicar as possibili-
mados, cujas trajetórias nos possibilitam dades de uso de um determinado arse-
refletir sobre o peso desses condicio- nal teórico que, embora elaborado com
nantes e do próprio sistema de ensino. base em outra realidade social, mostra-
No posfácio, que, em grande medida, -se passível de ser aplicado em outros
serve de conclusão ao livro, Catani escla- países.

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É procedente o argumento central Referências bibliográficas
do livro, porém há necessidade de pen- Almeida, A. M. F. (2007). A noção de
sar mais profundamente os limites da capital cultural é útil para se pensar o
teoria bourdieusiana – como fazem, em Brasil? In N. Zago, & L. Paixão (Org.),
Sociologia da educação brasileira:
certo grau, Nogueira e Nogueira (2002)
pesquisa e realidade brasileira (1a
no campo educacional – e de algumas ed., pp. 44-59). Petrópolis: Vozes.
de suas categorias, como faz Almeida
Bourdieu, P. (2004). Os usos sociais da
(2007), com relação ao capital cultural. ciência: por uma sociologia clínica do
Parece interessante indagar em que me- campo científico. São Paulo: Editora
dida a busca pela superação da antino- da Unesp.
mia entre indivíduo e sociedade ou, em Bourdieu, P. (2012). Capital cultural,
outros termos, entre agência e estrutura escuela y espacio social. Buenos
Aires: Siglo Veintiuno.
logrou êxito na obra de Bourdieu. Essa
parece uma questão não respondida por Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (2008). A
reprodução. Petrópolis, RJ: Vozes.
Catani, o que implicaria na revisão do
próprio conceito de habitus e do ques- Bourdieu, P., & Passeron, J.-C. (2013).
Os herdeiros: os estudantes e a
tionamento de sua aplicabilidade não
cultura. Florianópolis: EDUFSC.
apenas em outros contextos sociais,
Catani, A. M., Catani, D. B., & Pereira, G.
mas também naquele no qual foi forjado.
R. de M. (2001). As apropriações da
Apesar desses limites, Origem e obra de Pierre Bourdieu no campo
destino já nasce como um livro indis- educacional brasileiro através de
pensável para o exercício interpretati- periódicos da área. Revista Brasileira
de Educação, s.v.(17), 63-85.
vo e avaliativo do legado da Sociologia
bourdieusiana, especialmente no cam- Catani, D. B., & Faria Filho, L. M. de.
(2002). Um lugar de produção e a
po educacional, dentro de um movi-
produção de um lugar: a história e
mento – ainda incipiente no Brasil – de a historiografia divulgadas no GT
problematização da incorporação de sua História da Educação da ANPEd
teoria, tendo em vista a base empírica (1985-2000). Revista Brasileira de
Educação, s.v. (19), 113-128.
analisada, que realiza uma apropriação
não apenas das categorias teóricas de- Costa, M. da, & Silva, G. M. D. (2003).
Amor e desprezo – O velho caso
senvolvidas por Bourdieu, mas também
entre sociologia e educação no
de seu modus operandi na produção do âmbito do GT-14. Revista Brasileira
conhecimento. de Educação, s.v. (22), 101-120.

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Lahire, B. (1997). Sucesso escolar
nos meios populares: as razões do
improvável. São Paulo: Ática.
Nogueira, M. A., & Nogueira, C. M. M.
(2002). A Sociologia da Educação
de Pierre Bourdieu: limites
e contribuições. Educação e
Sociedade, 23(78), 15-36.
Oliveira, A. (2013). Sociologie de
l’éducation au Brésil: tendances
historiques et contemporaines.
Incursions, s.v.(8),75-93.
Weber, S. (2011). Alguns aspectos das
contribuições francesas para o
debate do sistema educacional
brasileiro. Cadernos de Estudos
Sociais, 26, 161-168.

Submetido à avaliação em 2 de janeiro


de 2015; aprovado para publicação em
11 de fevereiro de 2015.

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