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E o mesmo poderia ser dito a respeito de outra série de questões. Imaginar, por
exemplo, que o desenvolvimento do capitalismo poderia favorecer aqui a criação de
economias nacionais autônomas, é tão ilusório quanto pensar que esse mesmo
desenvolvimento é capaz de suprimir as especificidades de cada formação nacional, com
seus ritmos históricos particulares e suas constelações de contradições também particulares.
De forma que não há nada de surpreendente no fato de que ao mesmo tempo que a América
Latina seguiu um processo de acelerada imbricação de suas economias na nova fase do
desenvolvimento do capitalismo mundial, experimentou igualmente um processo de
desenvolvimento desigual de cada entidade nacional: casos de completa estagnação de
economias como a argentina, uruguaia e peruana; casos de desenvolvimento acelerado como
o da economia brasileira, equatoriana, dominicana e venezuelana, por exemplo.
Assim, se por um lado existe uma economia capitalista mundial da qual sem dúvidas
somos parte, por outro lado não existe uma formação econômica e social capitalista mundial,
mas sim uma “cadeia” composta de múltiplas entidades nacionais.
II
Não se pode separar das reflexões precedentes, ainda assim, a conclusão de que o
desenvolvimento do capitalismo na América Latina ocorre de maneira exatamente idêntica ao
dos países imperialistas. As condições históricas, tanto internas como externas, são
naturalmente diferentes, e elas determinaram e seguem determinando modalidades
específicas de desenvolvimento do modo de produção capitalista na América Latina, que são
precisamente as que nos interessa colocar em relevo. Porém, ao fazê-lo, devemos ter muito
cuidado em não confundir o que em rigor constitui um problema teórico e o que é
propriamente um problema histórico. Como escreve Lenin a propósito da teoria da realização
e da questão do mercado externo:
Contudo, essas “condições concretas” a que se refere Lenin são as que, ao constituir
uma historicidade comum dos países latino-americanos, permitem que nos localizemos em
um certo nível de abstração no qual podemos captar a especificidade do desenvolvimento
latino-americano. Não se trata do nível universal, regido, como se disse anteriormente, pelas
leis gerais do modo de produção capitalista, nem do nível do singular, que compreende as
determinações já mais peculiares de cada formação nacional; trata-se sim de um nível
intermediário, do particular, em que aquela historicidade comum se converte em uma
problemática da mesma forma comum, que define a fisionomia própria da região dentro da
grande “cadeia” capitalista imperialista mundial.
III
b. Os violentos e contínuos “reajustes” que teve e tem que sofrer essa matriz em função
de sua inserção subalterna no sistema capitalista imperialista mundial, fato que ao mesmo
tempo força e “deforma” a lógica interna de desenvolvimento das nossas sociedades. Por
“deformação” temos que entender, nesse caso, uma acentuação muito marcada da lei do
desenvolvimento desigual do capitalismo, que chega a configurar verdadeiros pontos de
“atrofia” e “hipertrofia” simultâneas no aparato produtivo latino-americano.
A articulação de vários modos de produção, por exemplo, por mais que a partir do
último terço do século XIX comece a caracterizar-se por um predomínio cada vez maior do
modo de produção capitalista, não deve ser concebida como uma simples “refuncionalização”
do pré-capitalismo pelo capitalismo. O que se dá na realidade é uma trama particular de
determinações recíprocas que em última instância configuram uma modalidade específica de
desenvolvimento do capitalismo.
O mesmo poderia ser dito a respeito do problema da inserção das nossas sociedades no
sistema capitalista imperialista mundial. Subordinadas, estas sociedades possuem perfis e
ritmos básicos próprios (de suas lutas de classes, principalmente) que geram toda uma série
de “descontinuidades” e “conflitos” (contradições, em suma) naquele processo de inserção.
As várias determinações que aqui intervêm configuram também modalidades específicas no
seio de uma relação mais geral, que é a dos países imperialistas com os países submetidos à
sua dominação.
É sob essa ótica que analisaremos, portanto, o assunto que agora nos interessa
diretamente: o do desenvolvimento e da natureza do Estado na América Latina.
IV
Chegando a esse ponto, convém nos determos a formular duas precisões de ordem
geral referentes ao problema do Estado e às formas de dominação no sistema capitalista.
Em tais condições, não é casual que nossos Estados tenham adotado em geral uma
forma “autoritária” ou que tenham aparecido como uma verdadeira “protuberância” política,
desmesuradamente importante perante à “sociedade civil”. Frente à debilidade de outras
“trincheiras e fortificações” da classe dominante, o aparato estatal em geral e sua
ramificação militar, particularmente, acabaram por converter-se não apenas na última
fortaleza do sistema, mas também sua primeira. Por isso, em nossos dias, assim como há
um século, o chamado “Estado de exceção” segue sendo a regra.
VI
Não creio ser necessário insistir aqui em algo que é conhecido de todos: a diversidade e
crescente amplitude das lutas sociais na década de 60 e começo de 70, em resposta às quais
foi se acentuando o caráter repressivo do Estado latino-americano. Insistirei, no lugar, no
outro aspecto da questão, ou seja, no papel que o Estado foi adquirindo como “remodelador”
de toda a sociedade.
A primeira tarefa que o Estado cumpriu nesse sentido na maior parte dos países latino-
americanos foi a de cancelar de uma vez por todas o projeto de desenvolvimento nacional
autônomo, implantando em seu lugar um modelo de desenvolvimento “associado”, ou seja,
perfeitamente inserido em uma perspectiva de transnacionalização dos setores chave da
nossa economia. É certo que em alguns países se desenharam conjunturalmente projetos
burgueses que pareciam marcar uma trajetória oposta, de recorte mais nacionalista, mas
nunca é demais lembrar que foram de duração efêmera (casos do Peru, Equador e
Honduras). O movimento geral foi, então, na outra direção, implicando em pelo menos duas
coisas:
VII
Assim definido o caráter de classe desse Estado, somos capazes de compreender melhor
o modelo econômico que busca-se implantar, assim como as tarefas que para isso o Estado
tem de cumprir.
Nessa perspectiva, a primeira coisa que convém esclarecer é que não se trata apenas de
um processo de transnacionalização da propriedade, mas de transnacionalização de toda a
estrutura econômica. Queremos dizer com isso que o desenvolvimento do aparato produtivo
obedece mais do que nunca ao movimento do sistema capitalista em seu conjunto, antes de
exigências estritamente nacionais. Fala-se com razão de uma nova divisão internacional do
trabalho, que transfere importantes setores da produção industrial para áreas dependentes,
em um movimento que não obedece a desígnios arbitrários, mas a novas condições de
valorização do capital que se criaram nessas áreas.
Essas novas condições de valorização são um produto histórico complexo, das quais podemos
assinalar, além de questões secundárias, os seguintes componentes:
A burguesia monopolista nativa sai, ainda assim, beneficiada desse processo; mais
ainda, é através disso que ela se realiza e cumpre com sua “missão” histórica: extrair a
maior quantidade de mais-valor da classe trabalhadora e acelerar a acumulação de capital.
Mesmo assim, a burguesia latino-americana não é um todo homogêneo: o processo de
concentração e centralização de capital, que se desencadeia sob o capital monopolista,
acarreta na ruína de grande parte dos setores não monopolistas, que por um lado não têm a
rigor nenhum projeto próprio a oferecer nessa altura da história, e por outro, o temor às
massas, até pouco tempo atrás enfervescidas, os converte na cauda política do setor
monopolista. Em todo caso, este acaba por impor seu predomínio, reduzindo ao mínimo o
espaço de expressão dos setores “nacionais”. A contradição, no entanto, continua existindo,
condicionada a uma correlação de forças mais geral.
VIII
Como que para abrir um desafio a certas teses, os mencionados mercados exteriores
não são os dos países mais atrasados, ou apenas o são de forma secundária, mas se tratam
em geral dos mercados dos países capitalistas mais avançados, o que introduz contradições
muito particulares no interior do sistema capitalista imperialista em seu conjunto. E é aqui
onde reaparece o aspecto “nacional” do problema, que a transnacionalização parecia ter
abolido completamente. Cada setor burguês reivindica, obviamente, o respaldo de seu
Estado, no mesmo passo em que esse Estado tenta negociar as melhores condições no plano
internacional. As contradições inter-burguesas dão então origem a tensões inter-estatais,
que não chegam a se tornar contradições antagônicas, mas sem deixar de serem
importantes. O grau e a evolução dessas tensões depende, no entanto, de muitos fatores
que vão desde os puramente econômicos até as particularidades da índole propriamente
política.
IX
b. Uma desocupação crescente no seio das camadas médias tradicionais, que, regra
geral, são os responsáveis pelos serviços assistenciais, educativos, etc. Por esse lado há
também uma espécie de redistribuição regressiva da renda.
A exposição até aqui permite compreender por que o Estado latino-americano apresenta
um desenvolvimento histórico particular, na medida em que a acumulação de contradições da
“sociedade civil” determina uma correlacionada acumulação de tarefas “reguladoras” para a
instância política, que em última instância só pode assegurar a reprodução ampliada do
sistema recorrendo a uma dose muito grande de autoritarismo.
Na fase atual, a implementação do capitalismo monopolista de Estado tampouco poderia ser
levada a cabo de maneira democrática, ainda que somente pelo fato de que a reorganização
social que tem de ser operada implica não em uma atenuação das contradições de classe,
mas sim em sua extrema intensificação. Além disso, está claro que a transnacionalização dos
setores de ponta das nossas economias, e portanto sua modernização, não supõe um
processo de homogeneização da sociedade latino-americana, mas ao contrário, a acentuação
de sua heterogeneidade. Por mais que ao longo dessa etapa tenham sido criados alguns elos
relativamente fortes, a área em seu conjunto permanece sendo um elo débil da cadeia
imperialista.
Tudo isso cria para a América Latina uma situação muito particular. Por um lado, baseia
a aparente consistência dos regimes totalitários, que estão longe de consolidar um real apoio
de massas; superado o momento mais duro da repressão, o movimento popular reaparece
com vigor na cena histórica, ainda que com dificuldade de adaptação às novas condições de
luta e aos mesmos perfis da estrutura de classe que o desenvolvimento capitalista, em muito
pontos impetuoso, forjou. Por outro lado, os setores mais “visionários” da classe dominante
tentam “adiantar-se” aos acontecimentos e evitar “o pio”, flexibilizando até onde for possível
as suas estruturas autoritárias de dominação. Mas essas estruturas têm seu limite de
elasticidade, em que uma política como a dos “direitos humanos” de Carter ou um
saudosismo como o social-democrata, de transplantar a doce hegemonia burguesa do
“centro” até a “periferia”, se chocam em geral com a lógica implacável da acumulação de
capital nessas áreas, onde o capitalismo não pode se desenvolver de outra maneira que não
sobre sobre as condições históricas já dadas, impossíveis de modificar da noite para o dia, à
vontade.