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O LEGADO DE SÓCRATES

1. POR QUE RAZÃO SÓCRATES FOI CONDENADO? (cap. 1 da obra Problemas


da Filosofia, de James Rachels)

1.1 Sócrates, caracterís�cas �sicas e maneira de filosofar

- No Museu Britânico há uma estátua de Sócrates que pode ter sido esculpida
em 330 a. C., apenas sessenta e nove anos após a sua morte. Sócrates é retra-
tado como um homem baixo, musculoso e careca, com barba e um nariz largo
e achatado. Estes detalhes são compa�veis com aquilo que Platão nos diz
sobre a sua aparência.
- Sócrates nada escreveu, pelo que quase tudo o que sabemos a seu respeito
provém de Platão, que era seu discípulo. Nos diálogos de Platão, encontramos
Sócrates nos lugares públicos de Atenas a discutir as grandes questões da ver-
dade e da justiça com os jovens da cidade.

1.2 Duas acusações

- Os atenienses eram democratas, orgulhosos dos seus feitos e liberdade inte-


lectuais. Por que haveriam de condenar um filósofo à morte por causa daquilo
que ele ensinava? De acordo com Platão, Sócrates foi acusado de “corromper
a juventude” e de “impiedade para com os deuses”.
-- A primeira acusação é vaga e não nos são dados detalhes. O próprio Sócra-
tes sugeriu, talvez de forma enganadora, que estava a ser acusado apenas de
ensinar os jovens a colocar questões.
-- A segunda acusação também parece forçada. Sócrates não era an�rreligio-
so, e no seu julgamento alegou ser fiel nas suas prá�cas religiosas. Porém, apa-
rentemente �nha opiniões que não eram ortodoxas.
- O estudioso clássico Gregory Vlastos sugere que, embora ter ideias não con-
vencionais sobre os deuses não fosse suficiente para conduzir a problemas
com a jus�ça, “empurrá-las para as ruas de Atenas”, como Sócrates sem dúvida
fizera, poderia levá-lo facilmente a meter-se em dificuldades.

1.3 Sócrates não era popular na sua época

- Sócrates, embora tenha sido venerado pelas gerações posteriores, não era
uma figura popular na sua época. Ele próprio sugere que as acusações resulta-

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ram do fato de as pessoas não gostarem de si.


- O Oráculo de Delfos dissera-lhe que ele era o mais sábio dos homens, e Só-
crates aceitou o elogio, mas com uma qualificação peculiar. Disse que era sábio
porque tinha compreendido como era ignorante. Esta afirmação parece agra-
davelmente modesta.

1.4 Dois mo�vos que contribuíram para a condenação

- O problema foi Sócrates ter considerado que a sua missão divina era mostrar
aos outros que também eles eram ignorantes. Numa �pica conversa socrá�ca,
Sócrates mostrava aos seus interlocutores, para manifesto desagrado destes,
que todas as suas opiniões eram erradas. Isto pode ter contribuído para que
as pessoas �vessem vontade de o ver em apuros, mesmo que não jus�fique a
sua condenação à morte.
- A polí�ca também pode ter contribuído. Os atenienses �nham orgulho das
suas ins�tuições democrá�cas, mas Sócrates não par�lhava esse sen�mento.
Segundo Platão, Sócrates era o crí�co mais feroz da democracia. A democra-
cia colocava os homens em posição de autoridade não por causa da sua sabe-
doria ou do seu talento para governar, mas devido à sua capacidade de
influenciar as massas com retórica vazia. Numa democracia, aquilo que inte-
ressava não era a verdade, mas as relações públicas.

1.5 Sofistas e os Trinta Tiranos

- Já exis�am especialistas nessa área em Atenas. Os professores mais influen-


tes da altura eram os sofistas, que ensinavam a arte da persuasão e eram aber-
tamente cé�cos quanto à “verdade”. Se a democracia ateniense fosse estável,
a hos�lidade de Sócrates poderia ter sido ignorada, do mesmo modo que hoje
as democracias ocidentais toleram a crí�ca. Mas essa democracia não era
estável; �nha sofrido uma série de ataques traumá�cos.
- O úl�mo deles ocorrera apenas cinco anos antes do julgamento de Sócrates,
quando um grupo conhecido por “Trinta Tiranos” – liderado por Crí�as, que
fora um dos discípulos de Sócrates – organizou um golpe sangrento. No seu jul-
gamento, que ocorreu depois de a democracia ter sido restaurada, Sócrates
censurou vivamente os Trinta Tiranos, chamando-lhes perversos. Ainda assim,
é fácil imaginar que os líderes de Atenas pudessem sen�r-se mais confortáveis

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com Sócrates fora do horizonte.

1.6 Por que razão os mais de quinhentos jurados votaram como votaram?

- Platão não ajuda: apresenta-nos o discurso de Sócrates, mas não o dos acusa-
dores.
- Seja como for, Sócrates foi julgado, considerado culpado e condenado à
morte. A sentença parece excessiva, mas em certa medida Sócrates foi respon-
sável por ela. Depois de ter sido considerado culpado, permi�ram-lhe, em con-
formidade com as regras do tribunal, que propusesse o seu próprio cas�go.
Em vez de sugerir algo razoável, propôs que lhe dessem uma pensão vitalícia
pelos serviços prestados ao Estado (os serviços eram as a�vidades pelas quais
acabara de ser condenado).

1.7 Por que Sócrates não fugiu?

- Enquanto aguardava a execução, deram-lhe meios para fugir. Várias cidades


estavam dispostas a recebê-lo e chegaram emissários com dinheiro.
- Platão faz-nos perceber que ninguém teria impedido Sócrates de fugir. Os
seus inimigos queriam forçá-lo a par�r e os seus amigos estavam prontos para
se despedir de si. Mas Sócrates não par�u. Em vez disso, começou a examinar
as razões para fugir e para não o fazer.
- Defendera sempre que a nossa conduta se deve guiar pela razão. Em qual-
quer situação, afirmou, devemos fazer aquilo que tem as melhores razões do
seu lado. Aqui estava, então, o teste decisivo ao seu compromisso com essa
ideia. Enquanto a carruagem aguardava, disse a Críton que par�ria se os me-
lhores argumentos fossem para par�r, mas que ficaria se os melhores argu-
mentos fossem para ficar.
- Depois, tendo examinado a questão de todas as perspec�vas, Sócrates con-
cluiu que não poderia jus�ficar a desobediência à ordem do tribunal. Por isso
ficou, bebeu a cicuta – o veneno prescrito pelo tribunal - e morreu. Talvez
pressen�sse que o seu ato torná-lo-ia uma figura memorável para as gerações
futuras. Avisou os atenienses de que não era a sua reputação, mas a deles, que
ficaria manchada pela sua morte.

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2. POR QUE RAZÃO SÓCRATES ACREDITOU QUE TINHA DE MORRER? (cap. 1


da obra Problemas da Filosofia, de James Rachels)

- Aquilo que colocou Sócrates em destaque foi o seu método, e não tanto as
suas doutrinas. Sócrates baseava-se na argumentação, insis�ndo que só se
descobre a verdade pelo uso da razão. O seu legado reside sobretudo na sua
convicção inabalável de que mesmo as questões mais abstratas admitem uma
análise racional. O que é a justiça? Será que a alma é imortal? Poderá alguma
vez ser certo maltratar alguém? Será possível saber o que é certo fazer e, ainda
assim, proceder de outro modo?
- Sócrates pensava que estes problemas não eram meras questões de opinião.
Existem respostas verdadeiras para eles, que podemos descobrir se pensarmos
de uma forma suficientemente profunda. Era também isto que incomodava os
acusadores de Sócrates, os quais, segundo o relato de Platão, desconfiavam da
razão e preferiam basear-se na opinião popular, no costume e na autoridade
religiosa.
- Sócrates acreditava que alguns argumentos eram tão fortes que o compeliam
a permanecer em Atenas e a aceitar a morte. Poderá isto ser verdade? Que
argumentos poderiam ser assim tão poderosos? A questão essencial, disse a
Críton, era a de saber se �nha a obrigação de obedecer às leis de Atenas. As
leis �nham-lhe feito uma exigência. Teria de lhes obedecer? A sua discussão
foi a primeira inves�gação filosófica sobre a natureza da obrigação polí�ca.
- Sócrates julgava que três argumentos o compeliam a beber a cicuta.

2.1 O argumento da destruição do Estado

- O primeiro argumento era o de que estaria a destruir o Estado se desobede-


cesse à lei. Sócrates explica-nos que o Estado não pode exis�r se as pessoas
não obedecerem às suas leis. Sócrates diz que, depois de ter-se beneficiado
tanto das Leis e da Cons�tuição, retribuir com um mal revelaria uma grande
ingra�dão.
- É surpreendente que Sócrates es�vesse disposto a fazer a sua vida depender
destes pensamentos. Será que este é um argumento sólido? Um problema
óbvio é o de que não é realista pensar que o ato de desobediência de Sócrates
�vesse efe�vamente as consequências prejudiciais que descreve. Caso fosse
para o exílio, Atenas não seria derrubada. Atenas con�nuaria a subsis�r quase

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como antes. Como é óbvio, se as pessoas ignorarem habitualmente a lei, resul-


taria daí o caos; mas se elas desobedecerem apenas ocasionalmente, em cir-
cunstâncias extremas, o Estado não será prejudicado. No entanto, o argumen-
to nos mostra que temos uma obrigação ampla, mas não ilimitada, de obede-
cer à lei. Podemos então apresentar o argumento nesta forma modificada,
mas mais defensável:
-- 1°) Se, regra geral, não obedecermos à lei (admi�ndo apenas raras excep-
ções), o Estado não pode existir;
-- 2°) Seria desastroso se o Estado não existisse, já que neste caso ficaríamos
todos numa situação muito pior;
-- 3°) Logo, regra geral, devemos obedecer à lei (admi�ndo apenas raras exce-
ções).
- O raciocínio original de Sócrates, embora seja fraco, sugere este argumento
modificado, que é melhor. Contudo, deste argumento modificado não se
segue que Sócrates �vesse de ficar e beber cicuta. Afinal, esta poderia ser a
“rara exceção” que jus�fica a desobediência.

2.2 A analogia entre o Estado e os pais

- O segundo argumento de Sócrates envolve uma comparação entre a nossa


relação com o Estado e a nossa relação com os nossos pais. Os nossos pais
tornaram possível a nossa vida – conceberam-nos, criaram-nos e educaram-
-nos. Temos, portanto, a obrigação de os respeitar e de lhes obedecer. O
Estado também torna possível a nossa vida, proporcionando um ambiente
social que nos cria e sustenta. Por isso, temos uma obrigação similar de res-
peitar e de obedecer ao Estado.
- Este é um exemplo de um argumento por analogia. Estes argumentos por
vezes são sólidos e por vezes não o são. Será que este é sólido? O problema é
que a nossa obrigação de obedecer à lei não pode ser como a nossa obrigação
de obedecer aos nossos pais, já que, enquanto adultos, não temos a obrigação
de obedecer aos nossos pais. Temos de obedecer aos nossos pais quando
somos muito novos, porque nessa altura não temos discernimento. À medida
que amadurecemos, no entanto, aprendemos a pensar por nós próprios e a
nossa relação com eles muda. Embora possamos con�nuar a dever gra�dão e
respeito aos nossos pais, já não lhes devemos obediência. Um adulto que
ainda obedece aos seus pais como se �vesse doze anos é um caso triste. Por

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isso, este argumento também é fraco.

2.3 O argumento do contrato social

- O terceiro argumento de Sócrates é o mais importante. Enquanto reflete


sobre a sua obrigação de obedecer à lei, a ideia de contrato social, posterior-
mente colocada em destaque por figuras como Hobbes e Rousseau, surge pela
primeira vez. A ideia central do contrato social é a de que a sociedade assenta
num acordo implícito que os seus membros estabelecem entre si. A vida em
sociedade é um empreendimento coopera�vo no qual cada um de nós
obtém enormes bene�cios, e em troca concordamos apoiar as ins�tuições e
as prá�cas que tornam possíveis esses bene�cios.
- Quais são ao certo os bene�cios da vida em sociedade? Se trabalharmos
juntos para manter uma ordem social estável, podemos ter indústria, educa-
ção, artes, comércio, agricultura, medicina e muito mais. Podemos viver em
paz, ter amigos, ir a jogos de futebol e a concertos. Os bene�cios são infindá-
veis. Mas essas coisas boas só poderão exis�r se as pessoas cooperarem na
preservação do sistema que as produz. Se não o fizerem, tudo se desintegrará
e, como Hobbes disse, a vida será “solitária, pobre, sórdida, rude e curta”. Só-
crates invoca o contrato social quando sustenta que, ao aceitar os bene�cios
da cidadania ateniense, prometeu obedecer às suas leis. Sócrates diz que tem
de respeitar o seu acordo, mesmo que isso implique a sua própria morte.
- Será que este argumento é sólido? O contrato social é a explicação não reli-
giosa da obrigação polí�ca mais influente que alguma vez se concebeu. Toda-
via, os crí�cos colocaram-lhe diversas objeções. A acusação principal é a de
que o contrato não passa de uma ficção. Poucos de nós começam a fazer parte
da organização social através de um acordo. Os imigrantes, que juram respei-
tar a lei quando obtêm a cidadania, são a exceção. Todos os outros pura e sim-
plesmente nascem dentro do sistema. Dado que nunca pedimos para fazer
parte dele, podemos muito bem interrogar-nos acerca da natureza do
“acordo” que Sócrates tanto enfa�za. O que se pode dizer em resposta? Para
se defender a ideia de contrato social, precisamos da ideia de uma promessa
implícita – uma promessa que não é proferida, mas que ainda assim decorre
da nossa conduta.
- O argumento de Sócrates invoca este �po de promessa implícita. Assumi-
mos as obrigações de cidadania, diz-nos, não ao fazer um juramento, mas ao

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aceitar voluntariamente os seus bene�cios e ao usar o sistema social para os


nossos fins.
- Porém, existe outro problema. Como fizemos em conexão com o argumento
da destruição do Estado, qual é o alcance da obrigação que este argumento
apoia? Será que o apelo ao contrato social apoia a conclusão de que temos de
obedecer sempre à lei, ou apoia apenas a ideia de que geralmente devemos
obedecer-lhe? Suponha-se que uma pessoa inocente foi condenada à morte e
que, enquanto aguarda a execução, tem a hipótese de fugir. Será que agirá
erradamente se aproveitar a oportunidade? O erro de Sócrates foi não ter dis-
�nguido: a) a ideia de que geralmente devemos obedecer à lei; b) da ideia de
que temos de obedecer sempre à lei. Os seus argumentos apoiam a primeira
ideia, mas Sócrates julgou erradamente que apoiavam a segunda. Há uma
razão para Sócrates não ter estabelecido esta dis�nção ou, pelo menos, para
não a ter levado a sério. Tinha uma concepção da sua relação com Atenas e as
suas leis que era profundamente diferente daquilo que podemos sen�r ser a
nossa relação com “o governo”. À semelhança de outros gregos, Sócrates sen-
�a-se profundamente ligado à sua cidade: não conseguia imaginar-se fora
dela. A ideia de violar a sua relação com Atenas deve ter-lhe parecido impen-
sável. No Críton ficamos a saber que ao longo dos seus setenta anos, excluindo
algumas campanhas militares, Sócrates nunca saiu da cidade. Era ateniense de
uma forma tão profunda como São Paulo foi cristão. Quanto à morte, Sócrates
não a temia. Acreditava que, após a morte do seu corpo, a sua alma par�ria
para outro mundo em que as suas questões encontrariam por fim uma respos-
ta. Muitas pessoas acreditam no Paraíso, mas têm relutância em ir para lá. Só-
crates não era uma dessas pessoas. Como Alcibíades diz no Banquete: “Ele é
absolutamente único; não existe mais ninguém como ele, e não creio que
tenha exis�do”.

3. TRILOGIA DO PROCESSO, CONDENAÇÃO E MORTE DE SÓCRATES: APOLO-


GIA, CRÍTON E FÉDON (excertos dos caps. 2, 10 e 85 da obra 100 obras-chave
de Filosofia)

3.1 O discurso de defesa na Apologia de Sócrates, de Platão

. Proposta da obra:
- Entre os numerosos diálogos de Platão, a Apologia (cerca de 389 a. C.) ocupa

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um lugar bem par�cular, para não dizer único: primeiro, porque seu conteúdo
teórico é mínimo; depois, porque ela se apresenta não como um diálogo pro-
priamente dito, mas como uma espécie de autobiografia intelectual de Sócra-
tes. Portanto, longe de reduzir-se a um testemunho histórico, Platão, na Apo-
logia, coloca em cena a figura de Sócrates e, através dele, uma certa ideia da
filosofia.
- Pode-se então ler a Apologia em dois sen�dos:
-- 1°) Platão retoma explicitamente “o discurso de defesa” que Sócrates, em
399 a.C., pronunciou diante de seus juízes, por ocasião do processo no qual ele
foi condenado à morte;
-- 2°) e, implicitamente, ele faz nele o “elogio” de Sócrates e, através dele, da
exigência filosófica de verdade e de probidade.

. Problemá�ca:
- De que a filosofia é culpada aos olhos dos atenienses? Acusa-se o ensina-
mento de Sócrates por dois mo�vos essenciais: sua impiedade e a corrupção
da juventude ateniense.
- Em sen�do mais amplo, o processo coloca em evidência um conflito entre o
filósofo e a cidade ateniense. Se quisermos proibir ao filósofo o direito de cida-
dania, é que ele representa muito mais um perigo para o sistema de valores
estabelecido pela democracia ateniense do que para os deuses e a juventude.
Sócrates vai defender sua inocência explicando o que ele é realmente como
filósofo.

. Sócrates é o “mais sábio dos homens”:


- Sócrates explica que ele angariou muitos inimigos no dia em que o Oráculo de
Delfos declarou que ele era “mais sábio dos homens”. Surpreendido com esta
sentença, ele decidiu avaliar sua pretensa sabedoria junto daqueles que são
considerados sábios (sofistas, homens polí�cos, poetas, artesãos...). Interro-
gando-os em profundidade, ele percebeu que eram incapazes de explicar seu
saber e que, portanto, eles não eram verdadeiramente sábios, mas apenas
acreditavam que eram. A sabedoria socrática se baseia na diferença essencial
entre “supor que se sabe” e “saber que não se sabe”. Ao contrário daqueles
que ele interroga, Sócrates sabe que não sabe, portanto ele tem consciência
de sua ignorância: tal é o sen�do do oráculo. Sócrates é o mais sábio e isto
explica a hos�lidade de que é ví�ma e o processo que é acionado contra ele.

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. Filosofar é aprender a tornar-se virtuoso:


- A interrogação do filósofo não tem nada a ver com o fato de acumular conhe-
cimentos técnicos porque, não sabendo avaliar o que se sabe, nossos conheci-
mentos não têm sen�do nem valor. Deve-se ter em vista a equação socrática:
saber = valor = virtude e, por extensão, fazer existir esses valores é aprender a
tornar-se virtuoso. A ideia profunda e nova, introduzida por Sócrates, consiste
em admi�r que os valores têm um “ser” que não está nem nas assembleias
nem nos belos discursos, mas no “cuidado de si mesmo", e é nesta condição
que eles se tornam valores morais.

. Ter medo da morte é acreditar que se sabe o que não se sabe:


- Sócrates sabe que corre o risco de morte, mas será que por isso deve temê-
-la? Temendo a morte, os seres humanos confundem a certeza de ser mortal
com o saber o que é a morte: eles acreditam que sabem o que na realidade
não sabem. Confusão prejudicial porque ela poderia ter levado Sócrates a
rever seu discurso e preferir a vida. Sua integridade vai consistir em agir de
conformidade com o que ele sabe e não com o que ele não sabe. Presume-se,
além da ignorância socrá�ca, o verdadeiro saber de Sócrates: fazer o bem.

. Sabedoria:
- Sophia designa tanto um saber como uma prá�ca. Na época, os sofistas (pro-
veniente de sophos: “sábio” ou “sensato”) pretendem poder ensinar a virtude
e, portanto, a sabedoria. Ora, filosofar, para Sócrates, não é, como para o
sofista, aprender uma simples técnica, mas colocar-se a si mesmo em questão.
O objeto do saber ou da sabedoria não é aquilo de que se fala, mas aquele que
fala. Neste sen�do, o sofista representa uma falsa sabedoria. A palavra filoso-
fia confirma o sen�do da sabedoria socrá�ca: amar (philos) a sabedoria (so-
phia) sem acreditar possuí-la, porque só o filósofo sabe que ele não sabe tudo,
ao contrário do sofista que acredita que sabe tudo e assim prescinde de toda
verdadeira inves�gação.

. Virtude:
- Equivalente ao grego ethos que quer dizer “maneira de ser habitual”. Antes
de qualificar uma disposição exclusivamente moral e humana, virtude designa
a “qualidade de um ser ou de uma coisa”, a excelência (aretê) na função. Por
exemplo, a virtude de uma espada é cortar bem, a da terra é ser fér�l, a de um

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corredor é ser rápido. Mas será que o ser humano tem uma função tão clara-
mente definível? Aí está todo o problema da virtude moral e Sócrates é seu ini-
ciador.

3.2 A obediência às leis em Críton, de Platão

. Proposta da obra:
- O Críton (cerca de 389 a. C.) é a segunda prancheta de uma trilogia centrada
no processo, na condenação e morte de Sócrates. A situação dramá�ca que é
representada sucede à Apologia e precede o Fédon. A cena se situa após a sen-
tença pronunciada na Apologia. Críton, um amigo de Sócrates, vai à prisão
onde Sócrates se encontra, a fim de fazer-lhe a proposta de salvá-lo; ele
dispõe de dinheiro e dos apoios necessários para uma eventual fuga. Sócra-
tes recusa a proposta de Críton e, com ela, recusa salvar sua vida. A maior
parte do diálogo visa jus�ficar esta posição, de uma aparente insensatez.

. Problemá�ca:
- Cada um dos dois personagens parece movido pelo dever: ao dever de salvar
seu amigo (ao qual se soma o medo de ser condenado pela opinião pública)
opõe-se o dever de obediência às leis, priorizado por Sócrates. Portanto, o
texto trata antes de tudo da questão do dever, mais precisamente do proble-
ma do conflito entre deveres: o que devo fazer? A que obrigação obedecer?
- Em par�cular, Platão examina a natureza de nossos deveres em relação às leis
da cidade: deve-se obedecer a qualquer preço, mesmo diante de uma sentença
injusta? No fundo, o exame de nossos deveres é a ocasião de uma reflexão
sobre a jus�ça: a que, a quem é justo obedecer? É preciso que Sócrates res-
ponda à injus�ça que sofre por uma transgressão da lei, ou seja, por uma outra
injus�ça? Deve-se retribuir o mal pelo mal?

. Não é preciso conformar-se à opinião pública para saber o que se deve fazer:
- Críton cede na realidade à pressão do que vão dizer quando deixa prevalecer
seu medo de ser desonrado. Diante disto, Sócrates opõe a opinião da mul�-
dão, que só tem a seu favor o peso do número, à re�dão do juízo racional. Só
a razão, em mim, constitui uma autoridade legítima para examinar as regras
de conduta às quais devo obedecer. Quem pode então exercer a função de
perito em matéria de conduta justa? As leis da cidade.

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. As leis são como pais, a elas devemos nossa existência e nossa educação:
- Também a dívida que nos obriga a respeito das leis é imensa: o simples fato
de crescer e de viver sob sua égide basta para engajar-nos por elas. Nós lhes
devemos obediência e respeito. Sócrates não pode, portanto, optar pela fuga,
a desafiar o princípio legal que exige a aplicação de uma sentença de jus�ça.
Aos que gostariam de �rar par�do da injus�ça das leis para jus�ficar sua deso-
bediência, convém responder em dois tempos. Primeiro, deve-se discernir a
injus�ça eventual das leis e a dos homens para não imputar às primeiras o a
que caberia às segundas. Depois, se a lei se comprova efe�vamente imperfei-
ta, é meu dever buscar melhorá-la. O respeito devido às leis pode, portanto,
tomar duas formas, obediência ou aperfeiçoamento; mas corresponde
sempre a uma obrigação moral.

. A injus�ça sempre é má:


- Nenhuma injus�ça sofrida jus�fica que se responda com outra injus�ça. “O
essencial não é viver, mas viver bem”. Sócrates retoma sobre este ponto uma
das teses formuladas na Apologia. A morte não é, como se supõe, a pena capi-
tal. É preciso saber preferi-la a um mal muito maior, a injus�ça. A morte não é
o maior dos males, porque viver graças a uma injustiça, sem poder continuar a
filosofar, não vale a pena.

. Dever:
- Conceito indissociável da reflexão socrá�ca sobre a virtude moral, cuja peça-
-chave está num dever de jus�ça. Se o primeiro dever de Sócrates encarcerado
é fazer jus�ça a Atenas e a suas leis obedecendo-lhes, ele se apoia em um prin-
cípio inicial da mais alta importância: jamais desobedecer a uma regra de con-
duta, e, portanto, reconhecê-la como dever, sem que ela seja validada por um
exame racional. Desta forma somos reconduzidos à forma mais fundamental
do dever, enunciada na Apologia de Sócrates: cuidar de sua alma.

. Lei:
- Trata-se aqui das leis civis reconhecidas pelo Estado ateniense. Se devemos
tomar o cuidado de dis�nguir a lei da aplicação que os seres humanos fazem
dela, é preciso reconhecer-lhes uma autoridade indiscu�vel: Sócrates lhes atri-
bui indiretamente o estatuto de perito em saber moral. Comparável aos pais,
a dívida em relação à lei não poderia ter fim; somos, portanto, seus devedores.

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O LEGADO DE SÓCRATES

Mas a obrigação contraída a seu respeito pode tomar duas formas dis�ntas:
dever de obediência antes de tudo, ela se transforma em dever de melhorá-la,
se a lei se revela injusta.

3.3 O úl�mo dia de Sócrates e sua morte heroica em Fédon, de Platão

. Proposta da obra:
- Platão nos conta no Fédon (cerca de 383 a. C.) o úl�mo dia de Sócrates e sua
morte heroica. Na prisão, cercado de discípulos, ele começa a demonstrar-
-lhes que a morte não deve ser temida pelo filósofo. Encarnando perfeitamen-
te a figura do sábio, ele se recusa a toda efusão de sen�mento e consagra suas
úl�mas horas a convencê-los da imortalidade da alma. Se filosofar é aprender
a morrer, então seria ridículo que aquele que consagrou toda a sua vida à filo-
sofia temesse esta úl�ma viagem.

. Problemá�ca:
- De fato, com a ironia que lhe e costumeira, Sócrates vai sustentar a tese
segundo a qual filosofar é uma a�vidade em tudo análoga ao processo da
morte. O que é a morte? Nada mais do que a separação da alma e do corpo.
Um desligamento do que é imortal do que é mortal. Ora, a filosofia é o esforço
constante para chegar a libertar o pensamento das percepções do corpo, a fim
de voltá-lo para a visão do que é verdadeiramente, a saber, as formas do belo,
do bem, do justo. Por conseguinte, aquele que filosofa não faz mais do que
esforçar-se para concentrar sua alma em si mesma para evadir-se do corpo,
isto é, neste sentido preciso, morrer. A grande preocupação socrá�ca era o au-
toconhecimento que poderia ser ob�do por meio da ironia e da maiêu�ca,
métodos que consis�am em fazer indagação, fingindo ignorância, para desper-
tar no interlocutor o conhecimento latente.

. Por que o filósofo não tem medo de morrer?


- Sócrates deve jus�ficar junto de seus discípulos sua resignação e sua impassi-
bilidade diante da morte. É por isso que ele vai mostrar que está preparado
para ela pelo exercício do pensamento. Pelo pensamento, a alma descobre a
possibilidade de libertar-se do corpo e de seus limites. A filosofia é uma aspira-
ção ao que é verdadeiramente e não está sujeito ao nascimento e à corrupção.
Trata-se das formas inteligíveis, acessíveis por definição exclusivamente ao

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O LEGADO DE SÓCRATES

pensamento e não aos sen�dos.

. O que é a morte?
- Platão quer pensar a morte, o que é uma maneira de vencê-la e sobretudo de
vencer o medo da morte. Definindo-a como a separação da alma e do corpo,
ele confirma a analogia da morte com o pensamento. A alma é pensamento e
o corpo sensibilidade. Esses dois elementos cons�tu�vos da experiência
humana estão misturados durante a vida. O pensamento filosófico tem por
principal objeto dis�ngui-los e desligar o pensamento da sensibilidade. É por
isso que o filósofo tende, em toda a sua vida, para um estado bastante próxi-
mo da morte. Portanto, a morte não causa medo senão aquele que se identifi-
ca ao corpo, o que não é o caso do filósofo.

. O pensamento e o corpo:
- Morrer é desligar-se do corpo. O pensamento não faz outra coisa. Quando se
trata de conhecer, o corpo é um obstáculo que nos transmite dados múl�plos
e contraditórios sobre os mesmos objetos que nos aparecem, ora sob um
aspecto, ora sob um outro. O corpo perturba a alma, impedindo-a de possuir
suficientemente aquilo a que ela aspira, a verdade e o pensamento. Portanto,
separar-se do corpo não é um motivo de medo, mas de esperança, a de uma
purificação total das perturbações suscitadas pelo corpo.

. A verdadeira virtude:
- As virtudes comuns são apenas uma simples troca de uma paixão moderada
por uma paixão mais forte. Por exemplo, a coragem não é mais do que o medo
de um mal maior, e a moderação o medo de ser privado de um prazer ao qual
se está apegado. Para Platão, a única virtude autêntica é aquela que está fun-
dada no pensamento, porque só o reconhecimento, pela alma, de seu paren-
tesco com o divino, de sua natureza inteligível, pode conferir a confiança sufi-
ciente para não temer a morte.

. A imortalidade da alma:
- Os discípulos de Sócrates não podem, porém, impedir o temor de que a alma
pereça no mesmo dia em que o ser humano morre e não seja absolutamente
mais nada. É possível demonstrar a imortalidade da alma? Platão faz referên-
cia às crenças religiosas da An�guidade e de modo especial à metempsicose

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14
O LEGADO DE SÓCRATES

(teoria pitagórica segundo a qual a alma de todo ser vivo seria imortal e capaz,
depois da morte do mesmo, de reencarnar-se para fazer nascer um novo ser
vivo). A alma imortal disporia já em si mesma de um saber adquirido num
tempo anterior ao nascimento. Deste modo, o fundamento do saber seria uma
reminiscência (capacidade da alma imortal de tornar a lembrar-se daquilo que
ela conheceu num tempo anterior ao nascimento). A percepção dos objetos
sensíveis é a ocasião que a alma tem de tornar a lembrar-se das formas inteli-
gíveis das quais eles são apenas a cópia. Portanto, a alma existe antes de nosso
nascimento e se assemelha a tudo o que é inteligível. Por isso, ela não está
sujeita à geração, nem à corrupção.

INDICAÇÕES DE LEITURAS

1. Apologia, de Platão
2. Críton, de Platão
3. Fédon, de Platão
4. 100 obras-chave de Filosofia, de Sébas�en Camus e outros
5. Problemas da Filosofia, de James Rachels

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