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O LEGADO DE SÓCRATES
- No Museu Britânico há uma estátua de Sócrates que pode ter sido esculpida
em 330 a. C., apenas sessenta e nove anos após a sua morte. Sócrates é retra-
tado como um homem baixo, musculoso e careca, com barba e um nariz largo
e achatado. Estes detalhes são compa�veis com aquilo que Platão nos diz
sobre a sua aparência.
- Sócrates nada escreveu, pelo que quase tudo o que sabemos a seu respeito
provém de Platão, que era seu discípulo. Nos diálogos de Platão, encontramos
Sócrates nos lugares públicos de Atenas a discutir as grandes questões da ver-
dade e da justiça com os jovens da cidade.
- Sócrates, embora tenha sido venerado pelas gerações posteriores, não era
uma figura popular na sua época. Ele próprio sugere que as acusações resulta-
- O problema foi Sócrates ter considerado que a sua missão divina era mostrar
aos outros que também eles eram ignorantes. Numa �pica conversa socrá�ca,
Sócrates mostrava aos seus interlocutores, para manifesto desagrado destes,
que todas as suas opiniões eram erradas. Isto pode ter contribuído para que
as pessoas �vessem vontade de o ver em apuros, mesmo que não jus�fique a
sua condenação à morte.
- A polí�ca também pode ter contribuído. Os atenienses �nham orgulho das
suas ins�tuições democrá�cas, mas Sócrates não par�lhava esse sen�mento.
Segundo Platão, Sócrates era o crí�co mais feroz da democracia. A democra-
cia colocava os homens em posição de autoridade não por causa da sua sabe-
doria ou do seu talento para governar, mas devido à sua capacidade de
influenciar as massas com retórica vazia. Numa democracia, aquilo que inte-
ressava não era a verdade, mas as relações públicas.
1.6 Por que razão os mais de quinhentos jurados votaram como votaram?
- Platão não ajuda: apresenta-nos o discurso de Sócrates, mas não o dos acusa-
dores.
- Seja como for, Sócrates foi julgado, considerado culpado e condenado à
morte. A sentença parece excessiva, mas em certa medida Sócrates foi respon-
sável por ela. Depois de ter sido considerado culpado, permi�ram-lhe, em con-
formidade com as regras do tribunal, que propusesse o seu próprio cas�go.
Em vez de sugerir algo razoável, propôs que lhe dessem uma pensão vitalícia
pelos serviços prestados ao Estado (os serviços eram as a�vidades pelas quais
acabara de ser condenado).
- Aquilo que colocou Sócrates em destaque foi o seu método, e não tanto as
suas doutrinas. Sócrates baseava-se na argumentação, insis�ndo que só se
descobre a verdade pelo uso da razão. O seu legado reside sobretudo na sua
convicção inabalável de que mesmo as questões mais abstratas admitem uma
análise racional. O que é a justiça? Será que a alma é imortal? Poderá alguma
vez ser certo maltratar alguém? Será possível saber o que é certo fazer e, ainda
assim, proceder de outro modo?
- Sócrates pensava que estes problemas não eram meras questões de opinião.
Existem respostas verdadeiras para eles, que podemos descobrir se pensarmos
de uma forma suficientemente profunda. Era também isto que incomodava os
acusadores de Sócrates, os quais, segundo o relato de Platão, desconfiavam da
razão e preferiam basear-se na opinião popular, no costume e na autoridade
religiosa.
- Sócrates acreditava que alguns argumentos eram tão fortes que o compeliam
a permanecer em Atenas e a aceitar a morte. Poderá isto ser verdade? Que
argumentos poderiam ser assim tão poderosos? A questão essencial, disse a
Críton, era a de saber se �nha a obrigação de obedecer às leis de Atenas. As
leis �nham-lhe feito uma exigência. Teria de lhes obedecer? A sua discussão
foi a primeira inves�gação filosófica sobre a natureza da obrigação polí�ca.
- Sócrates julgava que três argumentos o compeliam a beber a cicuta.
. Proposta da obra:
- Entre os numerosos diálogos de Platão, a Apologia (cerca de 389 a. C.) ocupa
um lugar bem par�cular, para não dizer único: primeiro, porque seu conteúdo
teórico é mínimo; depois, porque ela se apresenta não como um diálogo pro-
priamente dito, mas como uma espécie de autobiografia intelectual de Sócra-
tes. Portanto, longe de reduzir-se a um testemunho histórico, Platão, na Apo-
logia, coloca em cena a figura de Sócrates e, através dele, uma certa ideia da
filosofia.
- Pode-se então ler a Apologia em dois sen�dos:
-- 1°) Platão retoma explicitamente “o discurso de defesa” que Sócrates, em
399 a.C., pronunciou diante de seus juízes, por ocasião do processo no qual ele
foi condenado à morte;
-- 2°) e, implicitamente, ele faz nele o “elogio” de Sócrates e, através dele, da
exigência filosófica de verdade e de probidade.
. Problemá�ca:
- De que a filosofia é culpada aos olhos dos atenienses? Acusa-se o ensina-
mento de Sócrates por dois mo�vos essenciais: sua impiedade e a corrupção
da juventude ateniense.
- Em sen�do mais amplo, o processo coloca em evidência um conflito entre o
filósofo e a cidade ateniense. Se quisermos proibir ao filósofo o direito de cida-
dania, é que ele representa muito mais um perigo para o sistema de valores
estabelecido pela democracia ateniense do que para os deuses e a juventude.
Sócrates vai defender sua inocência explicando o que ele é realmente como
filósofo.
. Sabedoria:
- Sophia designa tanto um saber como uma prá�ca. Na época, os sofistas (pro-
veniente de sophos: “sábio” ou “sensato”) pretendem poder ensinar a virtude
e, portanto, a sabedoria. Ora, filosofar, para Sócrates, não é, como para o
sofista, aprender uma simples técnica, mas colocar-se a si mesmo em questão.
O objeto do saber ou da sabedoria não é aquilo de que se fala, mas aquele que
fala. Neste sen�do, o sofista representa uma falsa sabedoria. A palavra filoso-
fia confirma o sen�do da sabedoria socrá�ca: amar (philos) a sabedoria (so-
phia) sem acreditar possuí-la, porque só o filósofo sabe que ele não sabe tudo,
ao contrário do sofista que acredita que sabe tudo e assim prescinde de toda
verdadeira inves�gação.
. Virtude:
- Equivalente ao grego ethos que quer dizer “maneira de ser habitual”. Antes
de qualificar uma disposição exclusivamente moral e humana, virtude designa
a “qualidade de um ser ou de uma coisa”, a excelência (aretê) na função. Por
exemplo, a virtude de uma espada é cortar bem, a da terra é ser fér�l, a de um
corredor é ser rápido. Mas será que o ser humano tem uma função tão clara-
mente definível? Aí está todo o problema da virtude moral e Sócrates é seu ini-
ciador.
. Proposta da obra:
- O Críton (cerca de 389 a. C.) é a segunda prancheta de uma trilogia centrada
no processo, na condenação e morte de Sócrates. A situação dramá�ca que é
representada sucede à Apologia e precede o Fédon. A cena se situa após a sen-
tença pronunciada na Apologia. Críton, um amigo de Sócrates, vai à prisão
onde Sócrates se encontra, a fim de fazer-lhe a proposta de salvá-lo; ele
dispõe de dinheiro e dos apoios necessários para uma eventual fuga. Sócra-
tes recusa a proposta de Críton e, com ela, recusa salvar sua vida. A maior
parte do diálogo visa jus�ficar esta posição, de uma aparente insensatez.
. Problemá�ca:
- Cada um dos dois personagens parece movido pelo dever: ao dever de salvar
seu amigo (ao qual se soma o medo de ser condenado pela opinião pública)
opõe-se o dever de obediência às leis, priorizado por Sócrates. Portanto, o
texto trata antes de tudo da questão do dever, mais precisamente do proble-
ma do conflito entre deveres: o que devo fazer? A que obrigação obedecer?
- Em par�cular, Platão examina a natureza de nossos deveres em relação às leis
da cidade: deve-se obedecer a qualquer preço, mesmo diante de uma sentença
injusta? No fundo, o exame de nossos deveres é a ocasião de uma reflexão
sobre a jus�ça: a que, a quem é justo obedecer? É preciso que Sócrates res-
ponda à injus�ça que sofre por uma transgressão da lei, ou seja, por uma outra
injus�ça? Deve-se retribuir o mal pelo mal?
. Não é preciso conformar-se à opinião pública para saber o que se deve fazer:
- Críton cede na realidade à pressão do que vão dizer quando deixa prevalecer
seu medo de ser desonrado. Diante disto, Sócrates opõe a opinião da mul�-
dão, que só tem a seu favor o peso do número, à re�dão do juízo racional. Só
a razão, em mim, constitui uma autoridade legítima para examinar as regras
de conduta às quais devo obedecer. Quem pode então exercer a função de
perito em matéria de conduta justa? As leis da cidade.
. As leis são como pais, a elas devemos nossa existência e nossa educação:
- Também a dívida que nos obriga a respeito das leis é imensa: o simples fato
de crescer e de viver sob sua égide basta para engajar-nos por elas. Nós lhes
devemos obediência e respeito. Sócrates não pode, portanto, optar pela fuga,
a desafiar o princípio legal que exige a aplicação de uma sentença de jus�ça.
Aos que gostariam de �rar par�do da injus�ça das leis para jus�ficar sua deso-
bediência, convém responder em dois tempos. Primeiro, deve-se discernir a
injus�ça eventual das leis e a dos homens para não imputar às primeiras o a
que caberia às segundas. Depois, se a lei se comprova efe�vamente imperfei-
ta, é meu dever buscar melhorá-la. O respeito devido às leis pode, portanto,
tomar duas formas, obediência ou aperfeiçoamento; mas corresponde
sempre a uma obrigação moral.
. Dever:
- Conceito indissociável da reflexão socrá�ca sobre a virtude moral, cuja peça-
-chave está num dever de jus�ça. Se o primeiro dever de Sócrates encarcerado
é fazer jus�ça a Atenas e a suas leis obedecendo-lhes, ele se apoia em um prin-
cípio inicial da mais alta importância: jamais desobedecer a uma regra de con-
duta, e, portanto, reconhecê-la como dever, sem que ela seja validada por um
exame racional. Desta forma somos reconduzidos à forma mais fundamental
do dever, enunciada na Apologia de Sócrates: cuidar de sua alma.
. Lei:
- Trata-se aqui das leis civis reconhecidas pelo Estado ateniense. Se devemos
tomar o cuidado de dis�nguir a lei da aplicação que os seres humanos fazem
dela, é preciso reconhecer-lhes uma autoridade indiscu�vel: Sócrates lhes atri-
bui indiretamente o estatuto de perito em saber moral. Comparável aos pais,
a dívida em relação à lei não poderia ter fim; somos, portanto, seus devedores.
Mas a obrigação contraída a seu respeito pode tomar duas formas dis�ntas:
dever de obediência antes de tudo, ela se transforma em dever de melhorá-la,
se a lei se revela injusta.
. Proposta da obra:
- Platão nos conta no Fédon (cerca de 383 a. C.) o úl�mo dia de Sócrates e sua
morte heroica. Na prisão, cercado de discípulos, ele começa a demonstrar-
-lhes que a morte não deve ser temida pelo filósofo. Encarnando perfeitamen-
te a figura do sábio, ele se recusa a toda efusão de sen�mento e consagra suas
úl�mas horas a convencê-los da imortalidade da alma. Se filosofar é aprender
a morrer, então seria ridículo que aquele que consagrou toda a sua vida à filo-
sofia temesse esta úl�ma viagem.
. Problemá�ca:
- De fato, com a ironia que lhe e costumeira, Sócrates vai sustentar a tese
segundo a qual filosofar é uma a�vidade em tudo análoga ao processo da
morte. O que é a morte? Nada mais do que a separação da alma e do corpo.
Um desligamento do que é imortal do que é mortal. Ora, a filosofia é o esforço
constante para chegar a libertar o pensamento das percepções do corpo, a fim
de voltá-lo para a visão do que é verdadeiramente, a saber, as formas do belo,
do bem, do justo. Por conseguinte, aquele que filosofa não faz mais do que
esforçar-se para concentrar sua alma em si mesma para evadir-se do corpo,
isto é, neste sentido preciso, morrer. A grande preocupação socrá�ca era o au-
toconhecimento que poderia ser ob�do por meio da ironia e da maiêu�ca,
métodos que consis�am em fazer indagação, fingindo ignorância, para desper-
tar no interlocutor o conhecimento latente.
. O que é a morte?
- Platão quer pensar a morte, o que é uma maneira de vencê-la e sobretudo de
vencer o medo da morte. Definindo-a como a separação da alma e do corpo,
ele confirma a analogia da morte com o pensamento. A alma é pensamento e
o corpo sensibilidade. Esses dois elementos cons�tu�vos da experiência
humana estão misturados durante a vida. O pensamento filosófico tem por
principal objeto dis�ngui-los e desligar o pensamento da sensibilidade. É por
isso que o filósofo tende, em toda a sua vida, para um estado bastante próxi-
mo da morte. Portanto, a morte não causa medo senão aquele que se identifi-
ca ao corpo, o que não é o caso do filósofo.
. O pensamento e o corpo:
- Morrer é desligar-se do corpo. O pensamento não faz outra coisa. Quando se
trata de conhecer, o corpo é um obstáculo que nos transmite dados múl�plos
e contraditórios sobre os mesmos objetos que nos aparecem, ora sob um
aspecto, ora sob um outro. O corpo perturba a alma, impedindo-a de possuir
suficientemente aquilo a que ela aspira, a verdade e o pensamento. Portanto,
separar-se do corpo não é um motivo de medo, mas de esperança, a de uma
purificação total das perturbações suscitadas pelo corpo.
. A verdadeira virtude:
- As virtudes comuns são apenas uma simples troca de uma paixão moderada
por uma paixão mais forte. Por exemplo, a coragem não é mais do que o medo
de um mal maior, e a moderação o medo de ser privado de um prazer ao qual
se está apegado. Para Platão, a única virtude autêntica é aquela que está fun-
dada no pensamento, porque só o reconhecimento, pela alma, de seu paren-
tesco com o divino, de sua natureza inteligível, pode conferir a confiança sufi-
ciente para não temer a morte.
. A imortalidade da alma:
- Os discípulos de Sócrates não podem, porém, impedir o temor de que a alma
pereça no mesmo dia em que o ser humano morre e não seja absolutamente
mais nada. É possível demonstrar a imortalidade da alma? Platão faz referên-
cia às crenças religiosas da An�guidade e de modo especial à metempsicose
(teoria pitagórica segundo a qual a alma de todo ser vivo seria imortal e capaz,
depois da morte do mesmo, de reencarnar-se para fazer nascer um novo ser
vivo). A alma imortal disporia já em si mesma de um saber adquirido num
tempo anterior ao nascimento. Deste modo, o fundamento do saber seria uma
reminiscência (capacidade da alma imortal de tornar a lembrar-se daquilo que
ela conheceu num tempo anterior ao nascimento). A percepção dos objetos
sensíveis é a ocasião que a alma tem de tornar a lembrar-se das formas inteli-
gíveis das quais eles são apenas a cópia. Portanto, a alma existe antes de nosso
nascimento e se assemelha a tudo o que é inteligível. Por isso, ela não está
sujeita à geração, nem à corrupção.
INDICAÇÕES DE LEITURAS
1. Apologia, de Platão
2. Críton, de Platão
3. Fédon, de Platão
4. 100 obras-chave de Filosofia, de Sébas�en Camus e outros
5. Problemas da Filosofia, de James Rachels