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·· Jean Dieudon:né
AfoRMAçÃo ·
DA MATEMÁTICA
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CONTEMPORÂNEA

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Publicações Dom Quixote, Lda.
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1098 Lisboa Codex - Portugal

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Título original: Pour l'honneur de l'espril humain - Les mathématiques aujourd'hui

1.• edir;:ão: Marr;:o de 1990


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OBJECTOS E MÉTODOS DAS MATEMÁTICAS CLÁSSICAS

de um teorema de Euclides (Livro I, 34), provando a igualdade dos dois


triângulos, ABD e BCD num paralelograma ABCD (fig. 8). Aplica então para
isso um «caso de igualdade de triângulos» (Livro I, 26) fazendo notar que o lado

----
BD é comum aos dois triângulos e que se têm as igualdades de ângulos
ABD = BDC e ADB = DBC por (Livro I, 29).

fig. 8
D

É certo que se pensará muito cedo em «ordenar» através de uma sucessão


de demonstrações os teoremas da geometria, e os comentadores tardios citam
. uns «Elementos» anteriores aos de Euclides, dos quais nada nos chegou. Mas
evidentemente que esta regressão nas «hipóteses» não pode continuar inde-
finidamente e deve ficar-se por hipóteses não demonstradas. É o que se encontra
no início dos Elementos de Euclides, após um determinado número de «de-
finições». É de uso corrente hoje fazer agrupar estas «hipóteses» sob o nome de
axiomas da geometria; isto parece-me um erro, já que não se reportam todas aos
mesmos objectos. Euclides está já consciente disso, pois divide-as em «petições
de princípios» e em «noções comuns». As «petições de princípios» - também
chamados «postulados» - são propriedades da geometria plana, ao passo que as
«noções comuns» - que no fim da Antiguidade se chamarão «axiomas» - dizem
respeito a qualquer espécie de «grandeza» (ver § 5).

4. A geometria, de Euclides a Hilbert

É portanto em Euclides que vemos pela primeira vez desenvolvidas


segundo o método dedutivo as propriedades dos «objectos matemáticos» con-
cebidos no espírito de Platão e de Aristóteles. As suas «definições» dos livros
I a VI enumeram aqueles de entre estes objectos que pertencem à geometria
plana: ponto, recta, ângulo, círculo, polígonos; para além dos triângulos e dos
quadriláteros, apenas os polígonos regulares são estudados com algum por-
menor. Euclides não deixa qualquer dúvida quanto ao facto de estes objectos não
serem acessíveis aos nossos sentidos; as duas primeiras «definições» dizem que

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A FORMAÇÃO DA MATEMÁTICA CONTEMPORÂNEA

«o ponto não tem extensão» e que «a linha não tem espessura» *. O que é mais
característico são os dois «postulados»
1) que se podem juntar dois pontos quaisquer por um segmento de recta; e
2) que se pode prolongar indefinidamente um segmento de recta nos dois
sentidos.
Estas propriedades são constantemente utilizadas, mas seriam absurdas se
se tratasse de «rectas» materiais!
É a partir das suas «definições», «postulados» e «noções comuns» que
Euclides pretende provar a sucessão dos seus teoremas. O que não deixa de
surpreender um pouco é que cada um deles é acompanhado por uma figura.
Poder-se-ia pensar que isso é apenas uma ajuda para seguir a prova mais
facilmente, e já foi dito que a arte da geometria é a de bem raciocinar sobre
figuras falsas. Mas apercebemo-nos imediatamente que algumas destas figura'>
desempenham um papel bem mais essencial, que não está longe daquilo que
a

b a

fig. 10
fig. 9 b
fazem os geómetras mdianos ou chineses, contentando-se em dizer, uma vez a
figura traçada, «vê!», à maneira de demonstração**.
Por exemplo, em várias ocasiões (Livro Ill, 17; livro VI, 13), Euclides
admite que uma recta na qual um ponto é interior a um círculo encontra este
círculo; de modo análogo, se um círculo C tem um ponto interior e um ponto
exterior a um çírculo C', C e C' intersectam-se (Livro I, 1 e 22); nenhuma destas
propriedades resulta dos seus «postulados» O recurso a objectos «visíveis» é
ainda mais nítido em (Livro III, 8), onde Euclides estuda os segme_ntos de recta
que ligam a um ponto do círculo um ponto exterior a um círculo (fig. 11), distin-
guindo no círculo a «circunferência convexa» (em relação a um ponto exterior)

• Não são mais do que «pseudodefinições» inutilizáveis. A definição de uma palavra deve
fazer intervir palavras definida~ anteriormente e serve de abreviação; quando pretendemos utilizá:
la é preciso «substituir sempre mentalmente a~ definições em lugar dos definidos» como o exprime
Pascal, retomando um preceito enunciado por Aristóteles (fOP., VI, 4). Ora nunca vemos Euclides
«substituir,. estas duas «definições» pelas palavras «ponto,. e «linha»; pode considerar--se que em
Euclides estes termos não são definidos.
•• Na figura 9 vemos que (h-c) 2 =h 2 -2hc+c2 , e, na figura 10, que no triângulo
rectângulo de hipotenusa a e catetos, h, e, temos a 2 = (h - e) 2 + 2bc = h 2 + e 2 , de acordo com a
figura 9, o que «prova,. o teorema de Pitágoras.

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OBJECfOS E MÉTODOS DAS MATEMÁTICAS CLÁSSICAS

da «circunferência côncava», noções que seriam bem difíceis de definir para as


«figuras absolutas» de Platão. E que dizer das definições dadas no Livro XI
sobre a geometria no espaço, em que se trata de «superfícies descritas» por uma
recta ou um semicírculo, que «giram» em volta de uma recta «imóvel»? Poder-
se-iam multiplicar estes exemplos; eles mostram as dificuldades que teria sido
necessário vencer para criar um vocabulário adaptado à natureza de objectos
«visíveis apenas para o pensamento» e expor as suas propriedades conforme-
mente a esta natureza, quer dizer, sem figuras.

fig. 11

No entanto, Euclides só se serve do recurso a uma «evidência» baseada no


exame de um desenho num conjunto restrito de casos, em virtude do número
pequeno de «figuras» às quais se limita. Os seus sucessores na Antiguidade,
como iremos ver adiante (§ 8), vão enriquecer o domínio da geometria, desco-
brindo e estudando novas curvas e superfícies, preparando assim a irrupção das
matemáticas depois do Renascimento. Mas, se examinarmos com cuidado,
veremos que esses progressos são acompanhados, muito mais do que em
Euclides, pelo recurso a uma quantidade de propriedades não formuladas,
apenas sugeridas por um desenho mais ou menos fiel.
Todavia, é apenas o nosso treino nas exigências da axiomática moderna
que nos faz notar estas imperfeições. Sein contar com a espinhosa questão do
postulado das paralelas - 5.º dos «postulados» de Euclides, ao qual voltaremos
(capítulo VI)-, não parece que tenham sido feitas muitas criticas desta natureza
ao texto de Euclides ou aos trabalhos dos seus sucessores antes do século XVI.
Uma longa habituação parece ter enfraquecido nos geómetras a consciência da
coragem que representa a passagem do mundo dos objectos sensíveis ao dos
inteligíveis. Enquanto esta consciência é muito visível em Platão e Aristóteles,
ficamos surpreendidos por ver pensadores tão profundos como Descartes e
Pascal - esses que não hesitam em atacar de frente a escolástica - proclamar vi-
gorosamente a «verdade evidente» dos axiomas da geometria. Mais não expri-
mem do que um estado de espírito comum a todos os matemáticos do seu tempo,
que se acentuará no século seguinte, já que se vê ainda Gauss e Cauchy elogiar
o «o rigor geométrico» como um modelo para as outras partes das matemáticas.
Talvez que esta confiança excessiva numa perfeita harmonia entre os objectos
geométricos e as suas imagens visíveis tivesse tido necessária para permitir a
concepção de modelos matemáticos da mecânica e da física, que tanto sucesso

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A FORMAÇÃO DA MATEMÁTICA CONTEMPORÃNEA

viriam a ter. Foi apenas no último terço do século XIX, com o estudo aprofundado
dos números reais, que se conseguiu dar conta do fosso que separa a «intuição
geométrica» dos axiomas pretensamente destinados a fundamentá-la racional-
mente (ver capítulo VD.
Os críticos da construção euclidiana, que se multiplicaram sobretudo no
século XIX, no movimento geral em direcção a um maior «rigor» nas mate-
máticas, ao qual voltaremos (capítulo VI), não visam a correcção das inferências
de Euclides no decurso das suas demonstrações, mas o facto de que elas são
insuficientemente fundamentadas em definições e axiomas explicitados. O sen-
timento geral era o de que, ao completar convenientemente as bases destes
raciocínios, chegar-se-ia a uma exposição inteiramente satisfatória. Foi este tra-
balho que Pasch e Hilbert realizaram no fim do século XIX, ao ·enumerarem
sistemas de axiomas inteiramente explicitados (23 em Hilbert), a partir dos
quais todos os teoremas de Euclides podem finalmente ser provados sem figuras.
Tal como Euclides, Hilbert parte de noções não definidas, mas enumera-
-as de modo exaustivo. Há três espécies de «objectos primitivos»: pontos, rectas
e planos; três «relações primitivas»: pertença (para um ponto a uma recta ou a
um plano, por exemplo), estar «situado entre» (para um ponto em relação a dois
outros, pertencendo os três a uma mesma recta), e serem «congruentes» (para
dois segmentos, ou dois ângulos *).
Pergunta-se imediatamente como raciocinar correctamente evitando defi-
nir as coisas de que falamos, e escapar assim a uma regressão indefinida nas
definições? A resposta é muito simples: basta limitarmo-nos a nunca enunciar
sobre os objectos da geometria e sobre as suas relações nenhuma proposição que
não seja uma consequência lógica do sistema de axiomas que os rege (eles
também enumerados exaustivamente). Como Poincaré escreveu [10], pode
dizer-se que estes axiomas constituem «definições disfarçadas» dos objectos e
das relações que lá figuram; estas últimas desapareceram, por assim dizer,
substituídas pelo feixe das suas propriedades «axiomáticas».
Hilbert, depois de Pasch, indicou um meio de evitar as conclusões que a
intuição geométrica poderia sugerir, mas que não derivam de axiomas: tratar-se-
-ia de mudar os nomes usuais e dos objectos de geometria e suas relações.
Hilbert propunha dizer «mesa», «cadeira» e «caneca» para «ponto»; «recta» e
«plano»**.

• Os segmentos e os ângulos são noções «derivadas», isto é, palavras cuja definição faz
intervir certos axiomas e noções e relações primitivas, ou noções derivadas anteriormente definidas:
o segmento AB é formado pelos pontos «entre» A e B sobre a recta única ó à qual pertencem A e B;
a semi-recta que tem origem em A passando por B é formada pelos pontos do segmento AB e pelos
pontos C de ó tais que B esteja «entre» A e C; um ângulo {D 1, D,} é um par de semi-rectas com a
mesma origem.
•• A possibilidade de escolher arbitrariamente uma palavra para definir um objecto, quer
dizer, resumir o enunciado das propriedades que o caracterizam, já tinha sido notada por Platão
(Carta VII, 343 b); esta observação é retomada por d'Alembert, que declara na Encyclopédie que
nada o poderia impedir de chamar «triângulo» ao que normalmente se designa por «círculo».

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OBJECI'OS E MÉTODOS DAS MATEMÁTICAS CLÁSSICAS

Por exemplo, os dois primeiros axiomas da lista de Hilbert:


1) «Dois pontos distintos pertencem a uma e apenas a uma recta».
2) «Há pelo menos dois pontos distintos pertencentes a uma mesma
recta», tomar-se-iam:
l) «Duas mesas distintas pertencem a uma mesma cadeira e a uma só».
2) Há pelo menos duas mesas distintas pertencentes a uma mesma
cadeira».
É claro que não nos arriscamos a errar involuntariamente em relação a tais
enunciados desprovidos de sentido na linguagem corrente.
Isto pode parecer uma brincadeira; de facto, esta dissociação do sentido e
do nome concretiza, para a geometria elementar, o processo fundamental que
libertou a matemática das amarras qua a ligavam excessivamente ao real;
permitiu todas as conquistas inesperadas realizadas desde há um século e as suas
surpreendentes aplicações à física. Ai voltaremos em pormenor no capítulo V.

5. Números e grandezas

Enquanto as matemáticas gregas nas escolas filosóficas se elaboravam


num sistema «hipotético-dedutivo» *, as necessidades da vida de todos os dias
nas cidades gregas implicava aí, como nas outras civilizações, a existência de
uma classe de «calculadores» profissionais. Destes «logísticos», como eram
chamados **, apenas conhecemos a existência e o desprezo que Platão por eles
testemunha na República (Vill, 525), já que eles calculavam sobre fracções
explícitas, ao passo que o matemático, segundo Platão, deve apenas tratar das
propriedades dos números inteiros
«que não são acessíveis senão à inteligência e que não podem ser
manejados de outro modo».
Sem dúvida que pretende designar por estas palavras a admirável série de
teoremas gerais relativos a inteiros arbitrários que se encontra no Livro VIlI dos
Elemento~ de Euclides***, em que se expõe a teoria elementar da divisibilidade
dos inteiros, dos números primos e da decomposição de um inteiro em factores
primos.
Esta tradição «logística» do cálculo numérico vem à superfície apenas
com Diofanto (por volta do século IV da nossa era). As suas técnicas prolongam
visivelmente as das placas babilónicas; destinam-se a encontrar um ou
vários números «desconhecidos», soluções de um sistema de equações que
escreveríamos sob forma de igualdade entre polinómios cujos coeficientes estão

• A expressão é de Picri (1899).


•• A palavra grega que nós traduzimos por «logística,. significa a prática das operações
numéricas.
*** Euclides.designa os números inteiros por letras e representa-os por segmentos de recta.

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A FORMAÇÃO DA MATEMÁTICA CONTEMPORÂNEA

todas as estruturas da espécie estudada. É claro que esta ideia deve ser precisada,
o que pode ser feito de diversas maneiras; por exemplo, num conjunto infinito,
podem considerar-se como «conjuntos pequenos» as partes finitas; num con-
junto munido de uma «medida», os conjuntos de medida nula são «pequenos»,
etc.

5. As matemáticas actuais

A. Um panorama das matemáticas

Oassificar os inúmeros trabalhos que se publicam todos os anos sobre


matemáticas é uma tarefa sobre-humana, em virtude do entrançar cada vez mais
apertado e quase inextricável dos laços que unem diversas teorias, e que são os
principais motores do seu progresso. A enumeração que se segue não deve,
portanto, de modo algum ser considerada como algo diferente de uma indicação
muito aproximativa das diversas direcções que podem tomar as investigações
matemáticas, a propósito de problemas que muitas vezes não parecem estar
orientados nessas direcções.
1) LÕGICA FORMAL E IBORIA DOS CONJUNTOS

Se bem que Leibniz (em escritos que permaneceram muito tempo inéditos)
possa aparecer como um precursor, estes assuntos só começaram a ser abordados
pelos matemáticos por volta de meados do século XIX. Voltaremos, no capítulo
VI, a propósito dos problemas dos «fundamentos», à sua origem, ao seu
desenvolvimento considerável no século xx e ao seu lugar actual em relação às
outras partes das matemáticas. É preciso notar que a lógica formal encontrou
recentemente um campo de aplicação completamente inesperado com os com-
putadores, os «autómatos» de diversas naturezas e tudo aquilo que se agrupa sob
o vocábulo de «informática».
II) COMBINATÓRIA

Inicialmente, poderá dizer-se que aquilo que se designa por este nome era
uma parte da teoria dos conjuntos, a saber: a teoria dos conjuntos finitos, e os
problemas de avaliação do número de elementos de tais conjuntos construídos
segundo diversos processos; alguns destes problemas remontam à Antiguidade,
por exemplo, o cálculo do número de pares de dois elementos de um conjunto
de n elementos, igual a n(n - 1)/2; encontrámos um outro exemplo com o
cálculo do número n! das permutações de um conjunto de n elementos(§ 1, D).
Os métodos que a ele se ligam foram um pouco desdenhados durante muito
tempo por muitos matemáticos, que os arrumavam de bom grado naquilo a que
se chama «recreações matemáticas», das quais são ávidos muitos leitores das
publicações de vulgarização científica. Mas, desde há algumas dezenas. de anos,
a situação mudou muito; apercebemo-nos que os métodos «combinatórios» po-

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NOVOS OBJECTOS E NOVOS MÉTODOS

diam ter aplicações importantes em partes absolutamente «respeitáveis» das


matemáticas, tais como a teoria dos grupos, a teoria das álgebras de Lie,
a geometria algébrica e a topologia algébrica; também foram utilizados com
sucesso em diversas aplicações das matemáticas, entre as quais a «informática».
III) CATllGORIAS E FUNCfORES

Trata-se de uma das partes mais recentes das matemáticas, nascida em


1943 com as reflexões de Eilenberg e MacLane sobre a topologia algébrica. Não
é possível falar aqui daquilo que pode ser considerado como uma abstracção
«em segundo grau», em que os conjuntos munidos de estruturas e as aplicações
entre estes conjuntos desaparecem, ou antes, são «sublimados» em «objectos»
e «flechas» desprovidos de qualquer conexão com as noções correntes de
«colecção» e de «lei». Esta teoria foi inicialmente muito utilizada em topologia
algébrica, tendo-se tomado depois fundamental em geometria algébrica; con-
quistou muitas coutras partes das matemáticas e acabou por constituir o objecto
de um desenvolvimento autónomo.
IV) ÁLGEBRA

As noções gerais sobre as estruturas algébricas de base - grupos, anéis,


corpos, módulos - fazem agora parte do ensino da álgebra ao nível dos primeiros
anos da universidade. A maioria das investigações actuais em álgebra está
centrada em estruturas algébricas mais particulares, inicialmente consideradas
como simples exemplos pouco desenvolvidos, mas em que os métodos e os
resultados cresceram de tal modo que o estudo de cada uma se tomou uma
grande teoria que deve ser considerada separadamente; são aquelas que estão
enumeradas a seguir nas rubricas V) a Vill). Podem deixar-se ficar na rubrica
geral «álgebra» as investigações sobre aquilo a que se chama «álgebra univer-
sal», em que as leis de composição não estão submetidas a axiomas tão
restritivos como aqueles que definem as estruturas de grupo ou de anel.
Quanto à álgebra «clássica», isto é, essencialmente o estudo dos sistemas
de equações algébricas, ela faz agora parte da álgebra comutativa (rubrica
VII).
V) GRUPOS «ABSJRACTOS»

É uma teoria que, a partir do Traité de Jordan (1870), adquiriu os seus


métodos e problemas próprios e se tomou gigantesca É também, sem dúvida,
aquela que tem mais utilizações em todas as partes das matemáticas; ao ponto
de se dizer que, quando não se compreendem bem as propriedades de novos
objectos matemáticos, é preciso tentar colocar lá uma estrutura de grupo; o que
tem ar de ser uma graça, mas, de facto, teve êxito mais de uma vez. As partes das
matemáticas mais próximas dos grupos «abstractos» são os grupos de Lie,
a geometria algébrica, a topologia algébrica e diferencial e a teoria dos números;
por seu intermédio, a teoria dos grupos gera ainda outras questões nas matemáti-
cas e nas suas aplicações à física.

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A FORMAÇÃO DA MATEMÁTICA CONTEMPORÂNEA

VI) ÁLGEBRA ASSOCIATIVA NÃO COMUTATIVA E ÁLGEBRA NÃO ASSOCIATIVA

São teorias que remontam a meados do século XIX. Estudam os anéis


associativos não comutativos (como o corpo dos quatemiões (§ 2, D)) ou os
anéis não associativos (onde a multiplicação já não é associativa, mas perma-
nece distributiva à direita e à esquerda em relação à adição). Procuram
classificá-las, a maior parte das veres impondo-lhes axiomas suplementares.
Intervêm em teoria dos grupos «abstractos», em teoria dos grupos de Lie, em
topologia algébrica e em análise funcional.
VII) ÁLGEBRA COMUTATIVA

É o estudo dos anéis e corpos comutativos, que começou cerc~ de 1860 e


se tomou um ramo separado da álgebra; tem igualmente os seus problemas e os
seus métodos, e sobretudo encontra-se agora em íntima simbiose com a geo-
metria algébrica. Fornece-lhe as suas ferramentas técnicas, as propriedades dos
anéis comutativos; mas, recentemente, pôde por sua vez beneficiar das intuições
que se associam naturalmente aos problemas da geometria algébrica, já que se
podem agora traduzir os problemas de álgebra comutativa em termos geométri-
cos naquilo a que se chama teoria dos esquemas de Grothendieck, generalização
última das noções de curva algébrica e de superfície algébrica.
VIlI) ÁLGEBRA HOMOLÓOICA

Trata-se de construções de functores que associam a objectos de todas as


espécies de categorias objectos que são na maior parte das veres grupos
comutativos. É uma teoria que teve a sua origem por volta de 1943, ao mesmo
tempo que a das categorias e dos functores (rubrica Ili), e a propósito de
topologia algébrica. Mas o seu campo de aplicação alargou-se progressivamente
a quase toda a matemática. É infelizmente impossível dizer mais alguma coisa
sobre isso aqui, em virtude do carácter extremamente abstracto das noções que
aí intervêm.
IX) TOPOLOGIA GERAL

Pode situar-se o início desta parte das matemáticas em 1906 com a


definição dos espaços métricos (§ 3, E). Como em álgebra, os axiomas e as
propriedades gerais das estruturas topológicas mais utilizadas (espaços metri-
záveis e suas generalizações mais simples) são agora matérias de ensino nos
primeiros anos da universidade. Também aí as grandes teorias de topologia
algébrica e diferencial (rubrica X) e dos espaços funcionais (rubrica XII) se di-
ferenciaram rapidamente destas considerações gerais. Prosseguem as investi-
gações sobre as estruturas topológicas que não são de modo algum utilizadas nas
outras partes das matemáticas.
X) TOPOLOGIA ALGá!RICA E DIH'.RENCIAL

Classificar todas as estruturas topológicas a menos de isomorfismo é um


empreendimento quimérico. Restringimo-nos rapidamente aos espaços mais

168
NOVOS OBJECTOS E NOVOS MÉTODOS

próximos da nossa intuição geométrica, como as superfícies e as «variedades de


dimensão finita» que as generalizam e são indispensáveis em análise funcional
(rubricas XIII a XVI) e as suas aplicações em física e em mecânica *; em seguida
pôde alargar-se este domínio através de diversas construções de natureza
geométrica. Para todos estes espaços, podemos, como dissemos acima (rubrica
VIII), definir functores que associem a um espaço uma estrutura algébrica,
sendo a topologia algébrica e diferencial o estudo destes functores. Criada em
1900, desenvolveu-se de modo explosivo desde há 50 anos. É talvez a parte das
matemáticas onde apareceu o maior número de ideias completamente novas, das
quais muitas se repercutiram de modo imprevisto em teorias aparentemente
muito afastadas. Forma um imponente edifício, em perpétua renovação, e de
uma tal complexidade que muito poucos especialistas são capazes de a abarcar
no seu todo.
XI) ANÁLISE a.ÁSSICA

Já fiz alusão(§ 1, A) - à falta de melhor - a um dos mais belos emblemas


das matemáticas do século XIX, a grande teoria das funções analíticas de uma
variável complexa, desenvolvida por Cauchy, Riemann e Weierstrass. Continua
ainda a chamar a si numerosos matemáticos e beneficia de técnicas encontradas
na topologia algébrica e na análise funcional.
No último terço do século XIX, na sequência dos trabalhos de Cantor, de-
senvolveu-se também um ramo da análise clássica, onde des_ta vez se verificou
um deliberado afastamento das funções analíticas, procurando no entanto aquilo
que pode ainda ser dito de positivo sobre funções, muito mais «irregulares» (cf.
cap. VI, § 2, B). Trata-se de funções de um número qualquer de variáveis reais,
e estas investigações são agora consideradas em vez disso como relevando da
topologia.
Mais do que qualquer outra parte das ~atemáticas, a análise clássica rami-
ficou-se em numerosos novos ramos, dos quais os mais importantes serão o
objecto das rubricas XII a XIX que se seguem.
XII) INIEGRAÇÃO E CÁLCULO DAS PROBABILIDADES

Já vünos (cap. III, § 9) que no século xvn tinha sido definida a integral
num intervalo de uma função real contínua de uma variável real. No século xvm,
definiu-se do mesmo modo a integral dupla de uma função real /(x, y) de
duas variáveis reais, definida numa parte D de R2; se /(x, y) ~ O, a integral

• Por exemplo, a posição de um corpo sólido no espaço depende de 6 parâmetros e pode


portanto ser assinalado por um «ponto,. de um espaço de dimensão 6. Para o ver, podemos considerar
por exemplo a posição de um cubo no espaço; é preciso antes do mais fixar o seu centro, que é dado
pelas suas 3 coordenadas; uma vez fixado o centro, a perpendicular pelo centro a uma das suas faces
(um «eixo quaternário,. de rotação, cf. Apêndice II, E) depende de 2 parâmetros que podem ser
concretizados pelas coordenada., do ponto cm que este eixo fura uma esfera de raio l tendo como
centro o centro do cubo. Finalmente, urna vez fixado este eixo, pode ainda fu.cr-se girar arbitra-
riamente o cubo à sua volta, o que dá I parâmetro a mais, o ângulo de rotação.

169
A FORMAÇÃO DA MATEMÁTICA CONTEMPORÂNEA

JIo /(x, y) d.x dy é o volume definido pelas relações

(x, y) ED, O~ z ~f(x, y)

em R3 (por exemplo uma semiesfera, se se considerar para D o círculo


x2 + y2 ~ R2 e f(x, y) = ✓R2 - x2 -y2). Se bem que já não se tenha uma imagem
geométrica deste género, foi também possível no século xvm definir «integrais
múltiplas» de uma função real de um número qualquer de variáveis reais.
De 1895 a 1930, a noção de integral foi alargada; pode agora aplicar-se a
funções reais muito gerais definidas num conjunto E que pode ser um conjunto
qualquer, desde que se defina uma medida para certas partes A de ·E, isto é, se
ligue a cada uma destas partes um número µ(A) ~ O, que generaliza as noções
clássicas de comprimento, área e volume, e está submetido a um pequeno
número de axiomas: um deles diz que para uma reunião AuB de dois conjuntos
sem elemento comum - temos µ(AuB) = µ(A) + µ(B) - a medida é aditiva.
Esta possibilidade de definir medidas e integrais em contextos muito mais
vastos do que a análise clássica trouxe consigo enormes progressos, designada-
mente em análise funcional e em teoria dos grupos de Lie. Por outro lado,
permitiu dar um novo impulso ao cálculo das probabilidades. Fundado no século
XVII por Pascal e Fermat, tinha permanecido quase inteiramente confinado à
teoria dos jogos de azar; apesar de notáveis progressos devidos a Jacques
Bernoulli e Laplace, faltavam-lhe bases sólidas, e as tentativas de extensão
àquilo a que chamavam «probabilidades geométricas» não tinham tido muito
sucesso*. Em 1930, Kolmogorov mostrou que se pode fundar a teoria das
probabilidades ligando-a à teoria da medida: basta considerar apenas medidas
cujos valores estão compreendidos entre O e 1 **. Assim incorporado definiti-
vamente nas matemáticas, o cálculo das probabilidades tomou-se uma parte
destas em plena expansão, e as suas inumeráveis aplicações às outras ciências
são suficientemente conhecidas para ter de insistir nisso.
XIII) ESPAÇOS RJNCIONAIS E OPERADORES

Desde o século XVII que os problemas de geometria, de mecamca e de


astronomia (por exemplo a dedução por Newtom das leis de Kepler a partir da
lei da atraccção universal) conduziam a equações «funcionais», isto é, onde as
«incógnitas» já não eram números, mas funções; falaremos mais adiante (rubri-
cas XV e xvn dos mais antigos tipos destas equações, as equações diferenciais
e as equações de derivadas parciais.
No início do século xx, com a ideia de espaço métrico (§ 3, E), habituámo-
-nos a pensar que, do mesmo modo que uma solução de um sistema de equações

• Seguindo a sua concepção do que seria uma tal probabilidade, vários autores podiam
atribuir valores diferentes à probabilidade de um mesmo acontecimento.
•• A medida do conjunto inteiro deve ser igual a 1; a do conjunto vazio, a O.

170
NOVOS OBJECTOS E NOVOS MÉTODOS

algébricas com n incógnitas pode ser considerado como um ponto (ou um


vector) em R", do mesmo modo uma função solução de uma equação funcional
é um ponto num espaço métrico. Para poder utilizar esta linguagem, é necessário
dizer o que é a distância (§ 3, E) de duas funções; acontece que há muitas
maneiras diferentes de definir uma tal noção (Apêndice IV).
Uma vez assim definidos tais «espaços funcionais», é-se levado a conside-
rar aplicações(§ 3, B) de um tal espaço E num espaço F; é aquilo a que muitos
chamam operadores. Do mesmo modo que as funções reais de variáveis reais,
estes compõem-se entre si de diversos modos(§ 1, C) e podem portanto formar
grupos e anéis; podem também definir-se integrais respeitantes a operadores,
etc. Já a. física clássica tinha sabido tirar partido destas teorias «abstractas»
(rubrica XIV); mas a importância acentuou-se com a mecânica quântica, em que
as grandezas físicas (posição, quantidade de movimento, energia, etc.) são
interpretadas como operadores num espaço de Hilbert.
É também necessário mencionar a teoria, em pleno desenvolvimento, do
controlo optimal, forma moderna de cálculo das variações, onde tudo se passa
em espaços funcionais.
XIV) ANÁLISE JIARMÓNICA COMUTATIVA

A origem desta teoria pode ser procurada na descoberta pelos Pitagóricos


da «decomposição» de um som produzido por uma vibração de uma corda em
«harmónicas» de um «som fundamental». A teoria matemática começou no
século XVIII; consiste na decomposição de uma função periódica f (isto é, tal
que fix + 21t) =f (x) para qualquer x E R) em soma de funções periódicas
«simples»

Esta decomposição deve, em geral, comportar uma infinidade de termos, ou dito


de outro modo, é uma série; o seu estudo aprofundado começa com Fourier em
1807, e não deixou desde então de atrair os analistas e de ter inúmeras aplicações
em física (Apêndice V).
Ao lado destac; «séries de Fourier», Fourier tinha alargado o alcance do seu
estudo, criando aquilo a que se chama transformação de Fourier, um dos
primeiros exemplos de operadores (rubrica XIII) faz.endo corresponder a uma
função real definida em R (mas não periódica em geral) uma outra função
definida também em R. Este operador e as suas generalizações revelaram-se
ferramentas de primeira ordem em teoria das equações às derivadas parciais
(rubrica XVI), em física matemática e em cálculo das probabilidades . .M;uito
mais recentemente, foi apercebido o laço estreito entre esta teoria e às teoria dos
grupos metrizáveis comutativos (§ 3, F), e a análise harmónica conquistou a
teoria dos números algébricos (rubrica XXI).

171
A FORMAÇÃO DA MATEMÁTICA CONTEMPORÂNEA

XV) EQUAÇÕES DimRENCIAIS

À parte um pequeno número de casos, conhecidos desde o século XVIII, não


se sabem escrever explicitamente as soluções de uma equação diferencial *.
Além das equações provenientes de problemas suscitados por vibrações de
cordas ou de varas ógidas, a t~oria geral dos sistemas de equações diferenciais
limitou-se durante muito tempo a um estudo local das soluções, segundo a
natureza da equação na vizinhança de um ponto. Foi H. Poincaré que em, a partir
de 1880, pôde em primeiro lugar obter teoremas gerais sobre o andamento
global das soluções, que são muitas vezes chamadas «trajectórias», assimilando
a variável independente ta um «tempo». Assim, esta teoria é hoje chamada teo-
ria dos sistemas dinâmicos, e tem, obviamente, múltiplas aplicações na mecânica
e na astronomia. Desenvolveu-se imenso desde há um século, com relações cada
vez mais íntimas com a topologia algébrica (já utilizada por Poincaré) e a teoria
da medida, nos problemas ditos «ergódicos» provenientes da física
XVI) EQUAÇÕES ÀS DERIVADAS PARCIAIS

As primeiras equações às derivadas parciais apareceram no século XVIII,


em ligação com problemas de geometria diferencial (rubrica XVII) e de física;
mas, à falta de ferramentas matemáticas apropriadas, a sua teoria geral só pôde
ser abordada no século XIX. Acreditou-se, primeiro, que os métodos utilizados
para o estudo das equações diferenciais se generalizariam facilmente com a
passagem de uma a várias variáveis independentes. Mas rapidamente foi ne-
cessário tomar em conta que as analogias entre as duas teorias eram muito
superficiais; os problemas colocados pelas equações às derivadas parciais têm
necessidade de métodos de ataque completamente novos, e o seu estudo
conduziu por vezes a resultados surpreendentes, como a existência de equações
que não têm nenhuma solução, descoberta em 1956. Desde 1950 que as novas
noções retiradas da análise funcional e da transformação de Fourier (rubrica
XN) permitiram um desenvolvimento extraordinário da teoria das equações às
derivadas parciais, actualmente em plena expansão e também sempre intima-
mente ligada às aplicações da física.
XVII) GEOMEIRIA DIIBRENCIAL

Desde o século XVII que os matemáticos aplicam o cálculo diferencial ao


estudo das propriedades locais das curvas planas, tais como a determinação da
tangente num ponto, dos pontos de inflexão, dos pontos múltiplos e da definição
da curvatura Estes resultados foram no século XVIII alargados às curvas oblíquas
e às superfícies. Então Riemann, em 1845, teve a ousadia de conceber «varie-
dades» de dimensão indiscriminada, e de definir para elas noções diferenciais
que generalizam as precedentes, se bem que evidentemente já não possam ter
uma «imagem concreta» como para as curvas ou as superfícies. Os sucessores de

• Liouville pôde provar que as soluções de equações tais corno ry' = e", em que apenas
figuram funções «elementares», não são elas própria, funções «elementares».

172
NOVOS OBJECTOS E NOVOS MÉTODOS

Riemann desenvolveram consideravehnente as suas ideias e abordaram


problemas globais, em ligação cada vez mais íntima com a topologia algébrica.
Estes trabalhos, aparentemente muito afastados das ciências da natureza, encon-
tram aí uma aplicação absolutamente imprevista com a teoria da relatividade
geral e as teorias cosmológicas, onde a concepção de espaços de 4 dimensões ou
mais é fundamental.
XVIII) GEOMETRIA ANALtllCA

Quando, nos últimos anos do século XIX, os matemáticos quiseram alargar


às funções analíticas de várias variáveis complexas, os profundos resultados
obtidos por Cauchy, Riemann e Weierstrass sobre as funções de uma única
variável · complexa, depararam com dificuldades inesperadas. Foi apenas por
volta de meados do século xx que elas foram ultrapassadas, em parte graças à
utilização de novas noções saídas da topologia algébrica (a «co-homologia dos
feixes»). A partir desse momento, a teoria tomou também uma feição mais
geométrica que a aproxima da geometria algébrica; tomou-se necessário es-
tudar, ao lado das «variedades algébricas», as «variedades analíticas»: por
exemplo, uma equação

F(x, y) = O

entre duas variáveis complexas, em que F já não é um polinómio, mas uma


função analítica, define uma «curva analítica». Também a teoria das funções de
várias variáveis complexas é hoje chamada geometria anaUtica *.
XIX) GRUPOS DE LIE

Os grupos metrizáveis introduzidos por Lie sob o nome de «grupos


contínuos» ( § 3, F) ocuparam durante muito tempo uma posição marginal no
conjunto das teorias matemáticas. Graças aos trabalhos de E. Cartan e H. Weyl,
entre 1910 e 1930, tomámos consciência da sua importância em geometria
diferencial. Em seguida, o seu campo de utilizações alargou-se progressiva-
mente, ao ponto de cobrir agora toda a matemática, desde a teoria dos grupos
«abstracto.s» e a teoria dos números, até aos modelos matemáticos da física das
«pavfculas elementares»; a teoria das funções automorfas, inaugurada por H.
Poincaré, ocupa aí uma posição central.
XX) GEOMETRIA ALGÉBRICA

· Se bem que os Gregos tenham estudado certas curvas e superfícies


algébricas, o estudo geral destes objectos só pôde começar depois da invenção
do método das coordenadas por Descartes e Fermat. A partir do século XIX,
a introdução de coordenadas de valores complexos e de noções «projectivas»

• A partir do fim do século XVIII, tinha-se chamado «geometria analítica» à aplicação


euclidiana do método das coordenadas. Fora do ensino elementar, esta denominai;:ão já não é
utilizada nos nossos dias.

173
A FORMAÇÃO DA MATEMÁTICA CONTEMPORÂNEA

deu wn novo desenvolvimento a concepções menos dependentes do uso das co-


ordenadas, que obtiveram notáveis sucessos e conferiram à teoria wna grande
popularidade entte os matemáticos. Ao mesmo tempo, Riemann, através dos
seus profundos resultados sobre as funções algébricas, ligava a geometria
algébrica à teoria das funções analíticas de variáveis complexas e à topologia.
Estes laços são mais fecundos do que nunca, mas a partir de cerca de 1930, foi
possível substituir quase completamente as provas que utilizavam a análise por
outras que já só fazem apelo à álgebra comutativa. Isto implicou um grande
incremento da teoria e aproximou-a da teoria dos números, criando sugestões de
problemas tão úteis numa como na outra teoria.
XXI) lEORIA DOS NÚMEROS

É sem dúvida a mais antiga das teorias e para muitos matemáticos


permanece ainda a «rainha das matemáticas», segundo a expressão de Gauss. Os
seus problemas sempre fascinaram os investigadores, pela simplicidade apa-
rente da maior parte dos seus enunciados e as enormes dificuldades que é preciso
ultrapassar para as resolver (ver cap. IV). Nunca deixou de fazer apelo com
sucesso à álgebra, à análise e, presentemente, à topologia. Reputada a mais
«pura» das disciplinas matemáticas, não deixou re.centemente de começar a ter
algumas aplicações.

B. Especialistas e generalistas

Um jovem matemático, tendo adquirido os conhecimentos de base indis-


pensáveis em três ou quatro anos de estudos na universidade, e que queira
orientar os seus trabalhos numa das 21 rubricas enumeradas acima, deve ler
muitos livros e volumosos compêndios para ficar ao corrente das técnicas e dos
problemas do ramo que escolheu. Não é, portanto, de admirar que a maior parte
dos matemáticos se instale durante toda a sua carreira nwna única destas teorias,
ou · até num único destes múltiplos aspectos. Alguns, ao aprofundarem as
técnicas conhecidas para além daquilo que tinham sabido fazer os seus predeces-
sores, chegam a dar-lhes força suficiente para ultrapassar os obstáculos que
tinham feito parar estes últimos; podemos compará-los a comandos.que conquis-
tam pela violência um local fortemente defendido. Mas há também um pequeno
número de espíritos capazes de dominar vários campos aparentemente muito
afastados, e de aperceber aí a possibilidade de utilizar os resultados de um para
resolver os problemas do outro, semelhantes a estrategos que fazem cair quase
sem esforço posições reputadas inexpugnáveis através de hábeis movimentos de
cerco. Um dos exemplos mais recentes é típico a este respeito: utilizando as
propriedades de certas equações de derivadas parciais, saídas directamente da
física das partículas elementares, um jovem matemático inglês, S. Donaldson,
pôde resolver questões respeitantes à topologia das variedades diferenciais de
dimensão 4, onde os especialistas tropeçavam. Estes nunca teriam imaginado
que se pudessem abordar desta maneira.

174
NOVOS OBJECTOS E NOVOS MÉTODOS

Há 40 anos que, quase todos os anos, um recém-chegado consegue assim


desbloquear problemas colocados há décadas. Não há nenhuma razão para
acreditar que esta vaga contínua de talentos esteja destinada a estiolar: nunca as
matemáticas conheceram um florescimento semelhante ao da nossa época.

C. A evolução das teorias matemáticas

Sabe-se que, nas ciências da natureza, as observações e as experiências são


organizadas em sistemas explicativos (as «teorias») onde, a partir de um
pequeno número de entidades mais ou menos acessíveis à experiência, e de leis
formuladas como descrição do seu comportamento (por exemplo as leis de
Newton para a mecânica dos «pontos materiais»), deve deduzir-se logicamente
o desenrolar dos fenómenos observados. Estas concordâncias entre teoria e
observações estão sempre maculadas por erros que podem ser atribuídos à
imperfeição dos instrumentos de medida, enquanto esses erros não forem muito
importantes; mas quando estes se tomam tão grandes que a teoria já não os pode
explicar, é mesmo necessário modificá-la, se necessário mexendo nas suas
bases; sabe-se bem que isto já aconteceu diversas vezes nos últimos 80 anos.
Nada de semelhante existe nas matemáticas. Uma vez que a demonstração
de um teorema a partir de um sistema de axiomas foi corn,iderada correcta,
o teorema nunca mais é posto em causa; os teoremas de Euclides são ainda tão
válidos hoje como há 2 300 anos. Quererá isto dizer que não há evolução em
matemática? Tudo o que descrevemos neste capítulo e nos precedentes prova o
contrário. Mas esta evolução não consiste unicamente na acumulação de novos
teoremas. Estes não se limitam a sobrepor-se aos antigos, absorvem-nos trans-
formando-os em «corolários», que acabam muitas vezes por já nem sequer ser
mencionados expiícitamente, a não ser pelos historiadores. A própria formu-
lação dos teoremas pode mudar completamente: por exemplo, a descrição dos
poliedros regulares, ponto culminante da · geometria grega, enuncia-se agora
como descrição dos subgrupos finitos do grupo das deslocações do espaço a 3
dimensões (§ 2, B). Outras transformações podem parecer mais estranhas:
a substituição de um sistema de axiomas por um sistema «equivalente» *, no
qual um enunciado que era um teorema para o antigo sistema se toma um axioma
no novo, ao passo que um dos antigos axiomas se toma um teorema**.
A mudança na concepção das matemáticas, que se produz de uma geração
para a seguinte, é portanto uma reorganização que tem em conta as novas
aquisições e as suas relações com os teoremas mais antigos. Desde Euclides, esta
mudança tem-se concretizado sempre através de obras de exposição: a partir do
início do século XIX, sobretudo através de manuais destinados aos estudantes de
diferentes níveis. É comparando estas obras que os historiadores das ciências
• Dois sistemas de axiomas são equivalentes, se todos os teoremas deduzidos de um dos
sistemas puderem ser deduzidos do outro.
•• Alguns matemáticos de temperamento conservador não deixam de protestar contra tais
práticas.

175
A FORMAÇÃO DA MATEMÁTICA CONTEMPORÂNEA

podem dar conta do modo de pensar dos membros da comunidade dos matemáti-
cos numa determinada época, e não apenas o dos génios que dominam essa
época; quase invariavelmente o seu pensamento projecta-se muito mais além,
prefigurando aquilo que se tomará comummente admitido na geração seguinte.
Actualmente, as teorias matemáticas são expostas através de uma classificação
por junto, como fizemos acima, seguindo as estruturas que aí intervêm. Mas isto
só se passa assim desde há uns cinquenta anos, ao passo que, historicamente, a
concepção destas estruturas e as suas utilizações remontam ao século XIX e ao
primeiro terço do século xx, como tentámos mostrar.
Se as matemáticas não deixaram assim de progredir cada vez maic;
rapidamente desde o século XVI, foi antes do mais graças ao afluxo ininterrupto
dos problemas que se colocaram aos matemáticos: «Um ramo da ciência», diz
Hilbert, «está vivo enquanto oferecer uma multidão de problemas. A falta de
problemas significa a sua morte ou o fim do seu desenvolvimento».
Na maior parte da rubricas enumeradas na secção A), esta fonte indis-
pensável nunca se esgotou desde que a teoria existe, quer se trate de problemas
colocados pelas aplicações das matemáticas ou de uma evolução «interna»
como as que exemplificámos no capítulo IV.
Há, todavia, algumas excepções. Assinalámos no ínicio deste capítulo o
curioso hiato 1785-1795 no progresso da análise, causado talvez pelo sen-
timento de impotência em tratar dos problemas da física da época, por falta de
invenção de novos métodos.
Um outro exemplo do brilhante florescimento seguido de um declínio é a
teoria dos invariantes, na fronteira da álgebra e da geometria analítica. Depois
de ter sido objecto de uma multidão de trabalhos durante meio século
(1840-1890), os problemas mais importantes que levanta foram todos resolvidos
por Hilbert, e quase logo a seguir, à falta de novos problemas, a teoria ador-
meceu durante 50 anos. Foi só recentemente que um retomar da actividade aí se
manifestou, em virtude dos seus laços com a teoria dos grupos de Lie (rubrica
XIX) e com a teoria dos «módulos» de Riemann em geometria algébrica(§ 4, C).
Sublinhámos muitas vezes os progressos que podem resultar da con-
vergência num mesmo problema de teorias aparentemente muito diferentes.
Mas produzem-se também fenómenos de divergência. Por exemplo,- dissemos
que a topologia geral (rubrica IX) tinha nascido para fornecer estruturas que
permitissem tratar .com mais eficácia os problemas de análise funcional.
É possível, como Hamilton ( § 2, D), fazer variar os axiomas destas estruturas e
estudar as propriedades das novas estruturas que assim são obtidas. Mas, salvo
casos excepcionais, não encontram mais utilização no estudo dos operadores ou
das equações funcionais, se bem que se chegue a duas partes das matemáticas
que já não têm nenhum contacto. O mesmo fenómeno produz-se em álgebra,
onde as teorias «consumidoras» são sobretudo a geometria algébrica, a teoria
dos grupos de Lle e a teoria dos números; muitos estudos pertencentes às
rubricas VI e VII têm tendência para se afastar, atingindo uma separação quase
completa. Nem toda a gente tem a sorte (póstuma) de Hamilton.
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