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·· Jean Dieudon:né
AfoRMAçÃo ·
DA MATEMÁTICA
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CONTEMPORÂNEA
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Publicações Dom Quixote, Lda.
Rua Luciano Cordeiro, 116-2.0
1098 Lisboa Codex - Portugal
© 1987, Hachette
Título original: Pour l'honneur de l'espril humain - Les mathématiques aujourd'hui
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Movillvro - Rua Gomes Leal, 93, Porto
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BD é comum aos dois triângulos e que se têm as igualdades de ângulos
ABD = BDC e ADB = DBC por (Livro I, 29).
fig. 8
D
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«o ponto não tem extensão» e que «a linha não tem espessura» *. O que é mais
característico são os dois «postulados»
1) que se podem juntar dois pontos quaisquer por um segmento de recta; e
2) que se pode prolongar indefinidamente um segmento de recta nos dois
sentidos.
Estas propriedades são constantemente utilizadas, mas seriam absurdas se
se tratasse de «rectas» materiais!
É a partir das suas «definições», «postulados» e «noções comuns» que
Euclides pretende provar a sucessão dos seus teoremas. O que não deixa de
surpreender um pouco é que cada um deles é acompanhado por uma figura.
Poder-se-ia pensar que isso é apenas uma ajuda para seguir a prova mais
facilmente, e já foi dito que a arte da geometria é a de bem raciocinar sobre
figuras falsas. Mas apercebemo-nos imediatamente que algumas destas figura'>
desempenham um papel bem mais essencial, que não está longe daquilo que
a
b a
fig. 10
fig. 9 b
fazem os geómetras mdianos ou chineses, contentando-se em dizer, uma vez a
figura traçada, «vê!», à maneira de demonstração**.
Por exemplo, em várias ocasiões (Livro Ill, 17; livro VI, 13), Euclides
admite que uma recta na qual um ponto é interior a um círculo encontra este
círculo; de modo análogo, se um círculo C tem um ponto interior e um ponto
exterior a um çírculo C', C e C' intersectam-se (Livro I, 1 e 22); nenhuma destas
propriedades resulta dos seus «postulados» O recurso a objectos «visíveis» é
ainda mais nítido em (Livro III, 8), onde Euclides estuda os segme_ntos de recta
que ligam a um ponto do círculo um ponto exterior a um círculo (fig. 11), distin-
guindo no círculo a «circunferência convexa» (em relação a um ponto exterior)
• Não são mais do que «pseudodefinições» inutilizáveis. A definição de uma palavra deve
fazer intervir palavras definida~ anteriormente e serve de abreviação; quando pretendemos utilizá:
la é preciso «substituir sempre mentalmente a~ definições em lugar dos definidos» como o exprime
Pascal, retomando um preceito enunciado por Aristóteles (fOP., VI, 4). Ora nunca vemos Euclides
«substituir,. estas duas «definições» pelas palavras «ponto,. e «linha»; pode considerar--se que em
Euclides estes termos não são definidos.
•• Na figura 9 vemos que (h-c) 2 =h 2 -2hc+c2 , e, na figura 10, que no triângulo
rectângulo de hipotenusa a e catetos, h, e, temos a 2 = (h - e) 2 + 2bc = h 2 + e 2 , de acordo com a
figura 9, o que «prova,. o teorema de Pitágoras.
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OBJECfOS E MÉTODOS DAS MATEMÁTICAS CLÁSSICAS
fig. 11
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viriam a ter. Foi apenas no último terço do século XIX, com o estudo aprofundado
dos números reais, que se conseguiu dar conta do fosso que separa a «intuição
geométrica» dos axiomas pretensamente destinados a fundamentá-la racional-
mente (ver capítulo VD.
Os críticos da construção euclidiana, que se multiplicaram sobretudo no
século XIX, no movimento geral em direcção a um maior «rigor» nas mate-
máticas, ao qual voltaremos (capítulo VI), não visam a correcção das inferências
de Euclides no decurso das suas demonstrações, mas o facto de que elas são
insuficientemente fundamentadas em definições e axiomas explicitados. O sen-
timento geral era o de que, ao completar convenientemente as bases destes
raciocínios, chegar-se-ia a uma exposição inteiramente satisfatória. Foi este tra-
balho que Pasch e Hilbert realizaram no fim do século XIX, ao ·enumerarem
sistemas de axiomas inteiramente explicitados (23 em Hilbert), a partir dos
quais todos os teoremas de Euclides podem finalmente ser provados sem figuras.
Tal como Euclides, Hilbert parte de noções não definidas, mas enumera-
-as de modo exaustivo. Há três espécies de «objectos primitivos»: pontos, rectas
e planos; três «relações primitivas»: pertença (para um ponto a uma recta ou a
um plano, por exemplo), estar «situado entre» (para um ponto em relação a dois
outros, pertencendo os três a uma mesma recta), e serem «congruentes» (para
dois segmentos, ou dois ângulos *).
Pergunta-se imediatamente como raciocinar correctamente evitando defi-
nir as coisas de que falamos, e escapar assim a uma regressão indefinida nas
definições? A resposta é muito simples: basta limitarmo-nos a nunca enunciar
sobre os objectos da geometria e sobre as suas relações nenhuma proposição que
não seja uma consequência lógica do sistema de axiomas que os rege (eles
também enumerados exaustivamente). Como Poincaré escreveu [10], pode
dizer-se que estes axiomas constituem «definições disfarçadas» dos objectos e
das relações que lá figuram; estas últimas desapareceram, por assim dizer,
substituídas pelo feixe das suas propriedades «axiomáticas».
Hilbert, depois de Pasch, indicou um meio de evitar as conclusões que a
intuição geométrica poderia sugerir, mas que não derivam de axiomas: tratar-se-
-ia de mudar os nomes usuais e dos objectos de geometria e suas relações.
Hilbert propunha dizer «mesa», «cadeira» e «caneca» para «ponto»; «recta» e
«plano»**.
• Os segmentos e os ângulos são noções «derivadas», isto é, palavras cuja definição faz
intervir certos axiomas e noções e relações primitivas, ou noções derivadas anteriormente definidas:
o segmento AB é formado pelos pontos «entre» A e B sobre a recta única ó à qual pertencem A e B;
a semi-recta que tem origem em A passando por B é formada pelos pontos do segmento AB e pelos
pontos C de ó tais que B esteja «entre» A e C; um ângulo {D 1, D,} é um par de semi-rectas com a
mesma origem.
•• A possibilidade de escolher arbitrariamente uma palavra para definir um objecto, quer
dizer, resumir o enunciado das propriedades que o caracterizam, já tinha sido notada por Platão
(Carta VII, 343 b); esta observação é retomada por d'Alembert, que declara na Encyclopédie que
nada o poderia impedir de chamar «triângulo» ao que normalmente se designa por «círculo».
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5. Números e grandezas
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todas as estruturas da espécie estudada. É claro que esta ideia deve ser precisada,
o que pode ser feito de diversas maneiras; por exemplo, num conjunto infinito,
podem considerar-se como «conjuntos pequenos» as partes finitas; num con-
junto munido de uma «medida», os conjuntos de medida nula são «pequenos»,
etc.
5. As matemáticas actuais
Se bem que Leibniz (em escritos que permaneceram muito tempo inéditos)
possa aparecer como um precursor, estes assuntos só começaram a ser abordados
pelos matemáticos por volta de meados do século XIX. Voltaremos, no capítulo
VI, a propósito dos problemas dos «fundamentos», à sua origem, ao seu
desenvolvimento considerável no século xx e ao seu lugar actual em relação às
outras partes das matemáticas. É preciso notar que a lógica formal encontrou
recentemente um campo de aplicação completamente inesperado com os com-
putadores, os «autómatos» de diversas naturezas e tudo aquilo que se agrupa sob
o vocábulo de «informática».
II) COMBINATÓRIA
Inicialmente, poderá dizer-se que aquilo que se designa por este nome era
uma parte da teoria dos conjuntos, a saber: a teoria dos conjuntos finitos, e os
problemas de avaliação do número de elementos de tais conjuntos construídos
segundo diversos processos; alguns destes problemas remontam à Antiguidade,
por exemplo, o cálculo do número de pares de dois elementos de um conjunto
de n elementos, igual a n(n - 1)/2; encontrámos um outro exemplo com o
cálculo do número n! das permutações de um conjunto de n elementos(§ 1, D).
Os métodos que a ele se ligam foram um pouco desdenhados durante muito
tempo por muitos matemáticos, que os arrumavam de bom grado naquilo a que
se chama «recreações matemáticas», das quais são ávidos muitos leitores das
publicações de vulgarização científica. Mas, desde há algumas dezenas. de anos,
a situação mudou muito; apercebemo-nos que os métodos «combinatórios» po-
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Já vünos (cap. III, § 9) que no século xvn tinha sido definida a integral
num intervalo de uma função real contínua de uma variável real. No século xvm,
definiu-se do mesmo modo a integral dupla de uma função real /(x, y) de
duas variáveis reais, definida numa parte D de R2; se /(x, y) ~ O, a integral
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• Seguindo a sua concepção do que seria uma tal probabilidade, vários autores podiam
atribuir valores diferentes à probabilidade de um mesmo acontecimento.
•• A medida do conjunto inteiro deve ser igual a 1; a do conjunto vazio, a O.
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• Liouville pôde provar que as soluções de equações tais corno ry' = e", em que apenas
figuram funções «elementares», não são elas própria, funções «elementares».
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F(x, y) = O
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B. Especialistas e generalistas
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podem dar conta do modo de pensar dos membros da comunidade dos matemáti-
cos numa determinada época, e não apenas o dos génios que dominam essa
época; quase invariavelmente o seu pensamento projecta-se muito mais além,
prefigurando aquilo que se tomará comummente admitido na geração seguinte.
Actualmente, as teorias matemáticas são expostas através de uma classificação
por junto, como fizemos acima, seguindo as estruturas que aí intervêm. Mas isto
só se passa assim desde há uns cinquenta anos, ao passo que, historicamente, a
concepção destas estruturas e as suas utilizações remontam ao século XIX e ao
primeiro terço do século xx, como tentámos mostrar.
Se as matemáticas não deixaram assim de progredir cada vez maic;
rapidamente desde o século XVI, foi antes do mais graças ao afluxo ininterrupto
dos problemas que se colocaram aos matemáticos: «Um ramo da ciência», diz
Hilbert, «está vivo enquanto oferecer uma multidão de problemas. A falta de
problemas significa a sua morte ou o fim do seu desenvolvimento».
Na maior parte da rubricas enumeradas na secção A), esta fonte indis-
pensável nunca se esgotou desde que a teoria existe, quer se trate de problemas
colocados pelas aplicações das matemáticas ou de uma evolução «interna»
como as que exemplificámos no capítulo IV.
Há, todavia, algumas excepções. Assinalámos no ínicio deste capítulo o
curioso hiato 1785-1795 no progresso da análise, causado talvez pelo sen-
timento de impotência em tratar dos problemas da física da época, por falta de
invenção de novos métodos.
Um outro exemplo do brilhante florescimento seguido de um declínio é a
teoria dos invariantes, na fronteira da álgebra e da geometria analítica. Depois
de ter sido objecto de uma multidão de trabalhos durante meio século
(1840-1890), os problemas mais importantes que levanta foram todos resolvidos
por Hilbert, e quase logo a seguir, à falta de novos problemas, a teoria ador-
meceu durante 50 anos. Foi só recentemente que um retomar da actividade aí se
manifestou, em virtude dos seus laços com a teoria dos grupos de Lie (rubrica
XIX) e com a teoria dos «módulos» de Riemann em geometria algébrica(§ 4, C).
Sublinhámos muitas vezes os progressos que podem resultar da con-
vergência num mesmo problema de teorias aparentemente muito diferentes.
Mas produzem-se também fenómenos de divergência. Por exemplo,- dissemos
que a topologia geral (rubrica IX) tinha nascido para fornecer estruturas que
permitissem tratar .com mais eficácia os problemas de análise funcional.
É possível, como Hamilton ( § 2, D), fazer variar os axiomas destas estruturas e
estudar as propriedades das novas estruturas que assim são obtidas. Mas, salvo
casos excepcionais, não encontram mais utilização no estudo dos operadores ou
das equações funcionais, se bem que se chegue a duas partes das matemáticas
que já não têm nenhum contacto. O mesmo fenómeno produz-se em álgebra,
onde as teorias «consumidoras» são sobretudo a geometria algébrica, a teoria
dos grupos de Lle e a teoria dos números; muitos estudos pertencentes às
rubricas VI e VII têm tendência para se afastar, atingindo uma separação quase
completa. Nem toda a gente tem a sorte (póstuma) de Hamilton.
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