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Revista Políticas Públicas & Cidades - 2359-1552

Artigo

O espaço público a partir do conflito


Patrícia Cioffi de Mattos
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo
Horizonte, Minas Gerais – Brasil. E-mail: patriciacioffi@gmail.com

Resumo

Esse artigo aborda o espaço público a partir das ideias de Henri Lefebvre sobre a produção e a política do espaço.
Dessa forma, considera-se o espaço –público– não como um dado a priori, mas a partir de processos, relações e
disputas que o configuram. Utilizando o conceito de político proposto por Chantal Mouffe, na qual o antagonismo e,
portanto, o conflito, é constitutivo das sociedades humanas, pretende-se discutir o caráter político e conflituoso do
espaço público, bem como revelar algumas de suas contradições. Para isso, por meio do método dialético, é
realizada uma dupla crítica: crítica de direita e crítica de esquerda, abordagem utilizada por Lefebvre no segundo
capítulo do livro Espaço e Política (1972) para evidenciar os aspectos políticos – e contraditórios– do espaço e os
“conflitos da crítica”. A crítica de direita se refere ao processo de espetacularização do espaço público e da negação
do conflito, criando espaços pacificados e controlados. A crítica de esquerda considera o conflito como constitutivo
de um espaço democrático, propondo um espaço público agonístico, ou seja, um campo de disputa na qual as
oposições não são erradicadas, mas tratadas legitimamente. Tal relação agonista desenvolvida por Mouffe permite
interpretar o espaço público como possível fomentador de exercícios democráticos mais radicais.

Palavras-chave: Espaço público. Conflito. Política. Antagonismo. Agonismo.

MATTOS. Patrícia, Cioffi de. O espaço público a partir do conflito. Revista Políticas Públicas & Cidades, Belo Horizonte, ano 2019, v. 8, n. 3, 14 dez.
2019. Seção artigos, p. 49-58.

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Introdução
O conceito de espaço público, assim como o próprio espaço – como será argumentado ao longo do texto
– está em disputa. A oposição público/privado já não é tão evidente e nem suficiente para caracterizar e
compreender os espaços das cidades contemporâneas. Nesse sentido, para compreender os espaços
públicos é necessário dar “um passo atrás”. A presente proposta parte da questão fundamental de como
situar e definir o espaço público contemporâneo e qual o seu papel na cidade.
Utilizando as concepções de produção do espaço desenvolvidas pelo filósofo e sociólogo francês Henri
Lefebvre, o espaço público é considerado não como um dado a priori, mas a partir dos processos, relações
e disputas que o configuram. Analisar o espaço público a partir de sua produção é reconhecer seu caráter
político e contraditório. Entende-se como político o conceito elaborado por Chantal Mouffe que se difere
de política e que diz respeito à dimensão antagônica inerente e constitutiva das sociedades humanas.
Dessa forma, evidenciando o aspecto político e dialético do espaço, propõe-se uma dupla crítica – política
– ao apresentar maneiras distintas de conceber o espaço público: uma crítica de direita e uma crítica de
esquerda. Tal abordagem é utilizada por Lefebvre em seu livro “Espaço e Política” e se baseia no método
dialético. Segundo o autor:
A crítica de direita é, grosso modo, uma crítica da burocracia, das intervenções estatistas
na medida em que tais intervenções perturbam a iniciativa “privada”, ou seja, os capitais.
Do mesmo modo, a crítica de esquerda é uma crítica da burocracia e da intervenção
estatista na medida em que essa intervenção não considera, ou considera mal, os
usadores, a prática social, quer dizer, a prática urbana. (LEFEBVRE, 2016, p.62).

A principal diferença é que a crítica de esquerda, diferentemente da crítica de direita, não pretende
encobrir as contradições, inclusive a respeito de sua própria crítica. Trata-se de um movimento dialético
e a crítica de esquerda busca reconhecer essa premissa.
A crítica aqui, se direciona aos espaços públicos contemporâneos e tem como ponto central o conflito. A
crítica de direita considera o conflito como um problema e aposta em erradicá-lo ou escondê-lo, a partir
de uma perspectiva do consenso. É analisado então, o processo de espetacularização do espaço público
que produz imagens pacificadas e vendáveis do espaço e é orientado pelo consumo. Já a crítica de
esquerda, estabelece o conflito como constitutivo do espaço público e não propõe a sua negação, ao
contrário, o considera legítimo. Assim, propõe-se um espaço público agonístico, orientado pelo dissenso
e que busca amenizar o antagonismo sempre presente sem suprimir o ente político.

O político como antagonismo


A filósofa belga Chantall Mouffe (2015) diferencia conceitualmente “a política” e “o político”. Para ela, o
político situa-se no nível ontológico e trata-se do antagonismo como constitutivo das relações sociais. Já
a política, no âmbito da ciência política, corresponde às práticas e instituições para se estabelecer uma
ordem, articulação esta, sempre temporária e precária. Toda definição de ordem é política, sendo assim,
“as práticas articulatórias, por meio das quais uma certa ordem é estabelecida, e os significados das
instituições sociais estão fixados, são ‘práticas hegemônicas’” (MOUFFE, 2005, p.186).
Estabelecendo a política no sentido hegemônico, não existe “para além da hegemonia” no pensamento
de Chantal Mouffe. A hegemonia dominante pode sim ser desafiada e substituída por uma hegemonia
diferente num processo democrático, mas será precisamente uma nova ordem sendo estabelecida.
Reconhecendo que toda identidade é relacional, a autora utiliza a noção de “exterioridade constitutiva”
para definir a relação nós/eles, na qual o antagonismo é sempre uma possibilidade. O antagonismo
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enquanto constituinte das sociedades humanas assumido pela autora, nada tem a ver com um
essencialismo, mas simplesmente com a noção de que toda identidade é construída em relação ao outro.
Só é possível existir um “nós” com a existência de um “eles”, e a diferença é, dessa forma, uma condição
para o político e para a formação dos sujeitos políticos.
Na dimensão antagônica, o nós/eles se estabelece como uma relação de amigo/inimigo, o que geralmente
culmina na tentativa de eliminação do oponente. Tal movimento não constitui um caminho para o
pluralismo democrático e deve-se, portanto, considerar um outro tipo de relação, denominada agonismo.
Segundo Mouffe (2015), agonismo é uma relação na qual o nós/eles se veem como adversários e ambos
reconhecem a legitimidade do conflito, não tentando erradicá-lo por meio de uma solução racional ou
consensual.
O desafio do exercício democrático, é, então, criar meios para amenizar o antagonismo potencial do
político a partir do agonismo. É importante destacar que na relação agonística, o conflito continua sendo
seu cerne, o que irá mudar é a maneira na qual será direcionado. Não se pretende com essa abordagem
que as partes opostas entrem em acordo ou encontrem uma solução razoável e racional para as
diferenças, mas que o conflito seja considerado legítimo e possa assim, se expressar. Ademais, o agonismo
não se insere na esfera moral, entre o bem o mal ou o certo e o errado, mas na legitimidade da discordância
e na sua pertinência enquanto projeto rumo à democracia.
Diferentemente da noção de política de outros teóricos, como Hannah Arendt que a considera como
espaço de liberdade e decisões públicas, a política para Mouffe (2005) é um espaço de poder, conflito e
antagonismo. “ Precisamente, questões políticas sempre envolvem decisões que demandam uma escolha
entre alternativas conflitantes.” (MOUFFE, 2005, p.184). Salienta-se que o caráter antagônico aqui
proposto não pressupõe uma relação de binarismo, mas de pluralidade. A democracia pluralista almejada
busca o reconhecimento da especificidade de diferentes posicionamentos e não apenas entre dois pólos.
Além disso, não existe um terreno supostamente neutro e uma solução técnica para problemas políticos.
Apesar disso, a tendência majoritária do pensamento liberal predominante é de cunho racionalista e
individualista e interpreta a pluralidade do mundo social com base no consenso.

Não é à toa que a política constitui seu ponto cego. O liberalismo tem que negar o
antagonismo, uma vez que,ao trazer à tona o inevitável momento de decisão– no sentido
forte de ter que decidir em um terreno indeterminado –, o que o antagonismo revela é o
próprio limite de qualquer consenso racional (MOUFFE, 2005, p.184).

Mouffe também aponta a dimensão afetiva como força motriz da política. As pessoas precisam se
identificar e mobilizar suas paixões para agir politicamente. Talvez por isso a política pareça um campo
tão desinteressante para muitas pessoas, principalmente no contexto atual, afinal, o pensamento
consensual só do lugar a racionalidade, ignorando o aspecto passional nas formas de identificação
coletivas.
Em vez de conceber a política como um lugar onde devemos nos reunir todos e tentar
encontrar a solução racional – essa não é absolutamente a função da política –, a política
deve falar às pessoas sobre suas próprias paixões para mobilizá-las em direção aos
projetos democráticos. (MOUFFE, In RIBEIRO, 2012).
De maneira geral, o antagonismo é o ponto central do pensamento político de Mouffe, no qual, sem a
pretensão de apaziguar os conflitos existentes ou transformá-los em momentos meramente deliberativos,

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os coloca como condição necessária para se alcançar uma democracia radical. Tal abordagem se revela
bastante pertinente e produtiva para se pensar a relação do espaço com o político.

O espaço como político


O espaço não é um objeto científico descartado pela ideologia ou pela política; ele sempre
foi político e estratégico (LEFEBVRE, 2016, p.60).

Ao analisar o espaço a partir de sua produção – em seu sentido mais amplo – Henri Lefebvre
consegue abarcar a complexidade das relações e práticas sociais e trazê-las para dentro de uma discussão
espacial. Lefebvre ultrapassa a concepção tradicional do espaço e o analisa criticamente como além de
um simples espelho das interações sociais ou mero receptáculo material, interpretando-o como político,
estratégico, ideológico e dialético. Mais do que uma forma neutra, o espaço é “lugar e meio da prática
social na sociedade neocapitalista (isto é, da reprodução das relações de produção) [...]” (Lefebvre, 2016,
p.52). Nessa perspectiva, o espaço (social) é um produto e produtor das práticas sociais, isto é, um
resultado de práticas do cotidiano, do ambiente construído, das diversas maneiras de uso e apropriação,
mas também uma influência para essas ações e relações.
Segundo Lefebvre (1976) a sobrevivência do modo de produção capitalista não é “natural” e se realiza por
meio da reprodução das relações sociais de produção e pela produção de espaço de acordo com sua
própria lógica, além da capacidade de acomodar suas contradições internas em si mesmo. O espaço
possui, mais do que nunca, um papel estruturador no processo de acumulação capitalista
contemporâneo. Por ser relativo à sociedade capitalista existente, com seu conteúdo prático e social, o
espaço apresenta suas contradições, mesmo que encobertas.
Se esse espaço tem um aspecto neutro, indiferente em relação ao conteúdo, portanto,
“puramente” formal, abstrato de uma abstração racional, é precisamente porque ele já
está ocupado, ordenado, já foi objeto de estratégias antigas, das quais nem sempre se
encontram vestígios. O espaço foi formado, modelado a partir de elementos históricos ou
naturais, mas politicamente (LEFEBVRE, 2016, p.60).

As contradições no espaço se expressam justamente devido ao seu caráter político, “tomado ora como
modelo, ora como instrumento, ora como mediação” (LEFEBVRE, 2016, p.54). É abstrato e concreto,
homogêneo e fragmentado, global e pulverizado, mediato e imediato. Daí justifica-se o método dialético
utilizado por Lefebvre para investigar a totalidade do espaço, em seu processo de produção.
Nesse contexto, busca-se analisar o espaço público como espaço político, produto e possível produtor de
relações sociais no qual, a partir do conflito, possibilita a criação de espaços mais democráticos. Mas o
que afinal, caracteriza o espaço público?

O espaço público contemporâneo


De acordo com Chantal Mouffe (2005), existem dois significados distintos para caracterizar “o público”,
podendo se referir à “coisa pública”, na palavra alemã, Öffentlichkeit, e à audiência ou Publikum. Será
tratado neste artigo o público como “coisa pública” que geralmente se opõe ao privado, mas pode
apresentar significados diferentes dependendo do contexto:
Podemos, de modo geral, distinguir três contextos principais que podem ser
especificados com base nessa oposição:
1 - público – como o que é comum, geral, oposto ao privado como o que é particular e
individual;
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2 - público – no sentido de publicidade, como o que é visível e manifesto, oposto ao


privado como o que é secreto;
3 - público – como acessível e aberto, oposto ao privado como fechado (MOUFFE, 2005,
p.182).

As distintas definições de público se correlacionam, mas não se coincidem, pois dependem do contexto
em que estão inseridas. Seus sentidos podem ser associados em alguns momentos e em outros não, de
acordo com determinada situação.
Cabe destacar que nas três dimensões de público tratadas por Mouffe, entendo o primeiro deles – oposto
ao privado enquanto particular e individual – mais no sentido de coletivo do que propriamente de comum,
considerando o conceito de comum de acordo com Dardot e Laval (2015) como um princípio e não como
coisa ou qualidade (TONUCCI, 2017, p.99). Feita essa ressalva, percebe-se que tais definições se ancoram
nos sentidos do público baseadas no uso. O público como coletivo, como visível e como acessível,
podendo transitar entre essas categorias.
Além disso, as formas de articulação entre os três sentidos têm variado historicamente
desde o tempo da polis grega, em que o comum, o visível e o aberto estavam unidos na
constituição do significado de ‘o público’ para o estabelecimento, por meio da
construção do Estado, de um novo tipo de separação entre o público e o privado – uma
separação cada vez mais prejudicada pela invasão do mercado na esfera pública
(MOUFFE, 2005, p.182).

É possível perceber o papel do Estado como norteador para novas divisões entre o público e o privado.
Com a expansão da racionalidade neoliberal e consequente associação do Estado com o mercado, esses
limites se tornam cada vez mais difusos. Não é tão fácil discernir se um espaço é público ou privado, e
principalmente, qual é o significado do conceito de público nos espaços. Complementarmente, a definição
romana de público:
[...]admite aqui dois sentidos: de um lado, a propriedade pública tout court,
correspondente ao domínio público (ager publicus), ao patrimônio do Estado ou da
Cidade, que dele podem se dispor livremente para distribuir ou mesmo vender; de outro,
os espaços de uso público, inapropriáveis pelo Estado ou pela Cidade, de acesso livre a
todos os cidadãos, tais quais as praças, teatros, pórticos, ruas, rios, arqueodutos,
templos, lugares sagrados, etc (TONUCCI, 2017, p.64).

Aqui, adiciona-se o significado de público em relação à propriedade, como uma propriedade do Estado,
em oposição ao público em relação ao uso. Na atualidade a propriedade estatal se estendeu também aos
espaços de uso público, denotando a soberania do Estado sobre o espaço. Todos os espaços públicos são
hoje apropriáveis pelo Estado, passíveis de serem distribuídos ou vendidos – prioridade à venda
progressiva para a iniciativa privada.
De maneira geral, percebe-se que o público tem como princípio “o outro” e a diferença. Assim como o
político, possui uma oposição constitutiva que o caracteriza. O encontro com o diferente contudo, não
necessita – nem se almeja – que seja idealizado e harmônico.
Considera-se nesse trabalho o espaço público como lugar da diferença, sem, no entanto, apostar no ideal
moderno de convívio civilizado. Dessa forma, elimina-se qualquer pensamento nostálgico em relação aos
espaços públicos, como locais da diversidade e igualdade absoluta. No contexto das cidades brasileiras é
ainda mais difícil falar em nostalgia dos ideais nos espaços públicos, porque muitos deles não se
consolidaram.

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[...] o espaço público não pode, nem deve ser, idealizado como um local de convívio
próximo e profundo da diversidade. A sua concepção moderna colocava-o como um
possibilitador de encontros impessoais e civilizados que obedeciam e respeitavam a
lógica do próprio sistema, assumidamente desigual, pois lembremos que, entre as
transformações da Modernidade, está o desenvolvimento do sistema capitalista, que se
fundamenta na desigualdade (SOBARZO, 2005, p.95).

O conflito é uma dimensão sempre presente que pode seguir por três vias: ser erradicado e pacificado
através do pensamento consensual, se expressar por meio do dissenso de forma antagônica ou ser
legitimado numa confrontação agonística. A terceira via parece avançar mais na possibilidade de um
pluralismo democrático.

Crítica de direita: a espetacularização do espaço público


O crescente processo de espetacularização urbana é um dos principais responsáveis pela dominação e
perda da experiência urbana cotidiana nas cidades contemporâneas (Britto; Jacques, 2009). A cidade
produzida como espetáculo cria cenários urbanos monitorados e disciplinados nos quais o espaço público
tem papel central. De acordo com Guy Debord (1997), “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação
que se torna imagem” (Debord, 1997, p.25). A espetacularização urbana diz respeito ao processo de
produção de espaço tornado espetáculo. A cidade é consumida enquanto símbolo e a venda de imagens,
baseada nas aparências, isto é, selecionando o que deve ser mostrado e manipulando o que deve ser
encoberto. Dessa forma, projeta-se uma imagem ideal da cidade, reforçada pelo marketing urbano no
modelo de cidade-empresa – orientado pela lógica neoliberal. Uma das consequências desse processo é
a privatização dos espaços públicos, concebidos sob critérios de segregação, consumo e controle.
O medo, ingrediente fundamental nesse processo, passa a orientar cada vez mais os padrões de
sociabilidade nas cidades contemporâneas. Consequentemente, o medo da rua e, portanto, medo da
diferença, resultado da migração das atividades de lazer para redutos privados voltados para o consumo,
é usado como justificativa para os mecanismos de vigilância utilizados nos espaços. Todavia, a violência
urbana, antes de ser a causa do esvaziamento das ruas é, na verdade, a consequência do processo de
privatizações e consolidação dos “enclaves fortificados” (Caldeira, 1997). Novos produtos imobiliários,
como praças de alimentação, shoppings centers e centros comerciais, surgem como “novos espaços
públicos” – na verdade são “espaços pseudo públicos” – novas opções de lazer e socialização que
aumentam o contraste das desigualdades, evidenciam os processos de segregação sócioespacial e muitas
vezes mascaram o caráter privado e voltado exclusivamente para o consumo que assumem. Com isso, os
espaços públicos passam a ser encarados como ambientes perigosos e violentos, o que os torna cada vez
mais monofuncionais, fechados em si, privatizados e monitorados. “A tendência a retirar-se dos espaços
públicos para refugiar-se em ilhas de “uniformidade” acaba se transformando no maior obstáculo para
viver com a diferença, e, desse modo, enfraquece os diálogos e os pactos.” (Bauman, 2009, p.71).
Ao render – e vender – os espaços públicos à iniciativa privada, assume-se cada vez mais a priorização de
um tipo de espaço orientado exclusivamente pelo valor de troca em detrimento das práticas sócio-
espaciais e experiência urbana cotidiana. O consumo é o fio condutor das relações e interações nos
espaços pseudopúblicos. Evidentemente, espaços comerciais propiciam sociabilidade e não há
necessidade de separar os espaços por atividades, atitude que mais reforçaria a lógica monofuncional do
que contribuiria para o convívio. Entretanto, o que parece problemático é quando o consumo começa a
ser o princípio estruturante para a configuração dos espaços, isto é, o consumo como propósito final.

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A produção de espaços públicos ancorados no consenso, baseia-se no convívio entre diferentes


identidades de maneira pacífica, o que na prática significa excluir alguns desses grupos ou indivíduos. Com
isso, a eliminação do conflito – constitutivo – entre as identidades coletivas só se mostra duradoura no
nível imagético. Nos espaços públicos tornados simulacros, ou seja, simulações de espaços ideais e
pacificados, o conflito continua existindo, mas há um esforço cotidiano para que seja erradicado, ou
mascarado. Cabe dizer que tal “pacificação” do espaço não é garantida sem violência, podendo ser física
ou simbólica. O falso consenso projetado nas imagens dos espaços públicos espetaculares não se
estabelece de forma pacífica, ao contrário do que aparenta.
A regularização e normatização dos comportamentos é feita por meio dos mecanismos de controle e da
ação constante da polícia. E a vigilância é assegurada pela crescente indústria de serviços de segurança
que vão além da simples venda de equipamentos, pois vendem, na verdade, um conceito de segurança
(Soja, 2000). Tal conceito se fundamenta, de maneira geral, no medo do outro, considerado potencial
criminoso e que deve, portanto, permanecer longe. Reforça-se, nessa circunstância, o estabelecimento
entre o nós/eles como amigo/inimigo. É dessa forma que justificam-se as formas de segregação e
ordenamento dos espaços públicos que nada mais são do que maneiras de controlar os corpos. No
entanto, “o espaço público, se reconhecido, por excelência, como locus do conflito, inclui agentes e
mobiliza agenciamentos muito mais diversos e contraditórios do que se desejaria ou se costuma
identificar” (Jacques, 2009, p.339).
É justamente o caráter político e antagônico dos espaços públicos que o processo de espetacularização
tenta negar. Parte-se do pressuposto de que as diferenças não existem, e, se existem, podem coexistir de
maneira “pacífica” e civilizada. Ora, ao considerar o político como intrínseco ao antagonismo e o espaço
público como expressão e articulação desse político, se retirarmos essa premissa por meio do consenso,
os espaços públicos – ou imagem deles – assumem um aspecto apolítico.

Crítica de esquerda: o espaço público agonístico


Em contraposição à produção do espaço baseado no consenso, propõe-se que o espaço público se defina
a partir do dissenso, de forma a estabelecer uma relação de agonismo. De acordo com a proposta de
Mouffe (2005) é possível conceber um espaço público agonístico. Nesse sentido, coloca-se o antagonismo,
e, portanto, o conflito como inerentes ao processo democrático – assim como no político. Isso significa
reconhecer que o espaço público assume uma arena de disputa ancorada em oposições que não devem
ser neutralizadas, pois, dessa forma, perder-se-ia o caráter político.
A finalidade não é a eliminação do conflito nos espaços públicos, mas o reconhecimento conflituoso
enquanto legítimo e real, podendo, dessa forma, evitar que se desenvolva de forma violenta. Para a autora,
é exatamente a falta de espaços onde o conflito possa se expressar que leva aos embates violentos e a
visão do outro como um inimigo a ser combatido e eliminado. Explicitar os embates – que sempre
existiram, mas só estavam sendo abafados – no espaço público é desidealizá-lo enquanto local do convívio
harmonioso entre diferentes grupos e percebê-lo enquanto lugar político. O espaço público agonístico
difere do espaço público do ideal moderno de igualdade e civilidade.

A consequência mais importante é que esse modelo desafia a concepção generalizada


que, de formas distintas, entende a maioria das visões concebidas de espaço público
como um terreno em que o consenso pode emergir. Para o modelo agonístico, ao
contrário, o espaço público é um campo de batalha em que diferentes projetos
hegemônicos são confrontados, sem qualquer possibilidade de reconciliação. Tenho
falado tanto de espaço público, mas preciso deixar claro, desde já, que não estamos

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lidando com um único espaço. De acordo com a abordagem agonística, espaços públicos
são sempre plurais, e o confronto agonístico tem lugar na multiplicidade de superfícies
discursivas. (MOUFFE, 2005, p.188)

O objetivo principal “é revelar tudo o que é reprimido pelo consenso dominante" (Mouffe, 2005, p.190). As
tentativas de apaziguamento e estabelecimento de um consenso são necessariamente excludentes, pois
definem quem tem legitimidade e quem não tem. E tal definição é geralmente baseada em critérios
considerados racionais e técnicos, raramente sendo explicitados como políticos.
Outro aspecto importante é que o conceito de espaço público de Mouffe se difere da esfera pública
proposta por Jürgen Habermas e do espaço público político formulado por Hanna Arendt. A autora se
posiciona contrariamente ao consenso como regulador em uma situação de “comunicação ideal” na qual
Habermas se baseia e denomina o espaço público de Arendt como um “agonismo sem antagonismo”,
devido ao fato de Arendt não reconhecer efetivamente a pluralidade como a origem dos conflitos
antagônicos (Ribeiro, 2012).
Para pensar em como o espaço público agonístico deve ser, Mouffe (2005) indica que ele não precisa ser,
necessariamente, um espaço localizado geograficamente. Pode ser um espaço digital, por exemplo. O
mais importante é criar uma pluralidade de espaços para que a dimensão agonística possa se concretizar.
É nessa direção que, para a autora, os esforços devem ser canalizados.
Pode-se dizer que o agonismo suscita a condição necessária para que se expresse o caráter público do
espaço nas três dimensões: como coletivo, visível e acessível, aspectos não compreendidos nos espaços
públicos produtos da espetacularização. A dimensão agonística está comprometida com a ideia de
pluralismo democrático, em seu sentido mais radical, na qual as pessoas possam disputar as práticas
hegemônicas.
O fato de não prever um ponto de chegada, nem uma materialidade específica, faz do espaço público
agonístico um processo em detrimento de um produto ou um modelo a ser seguido. O que está em jogo
são as relações estabelecidas ou a oportunidade de se estabelecer essas relações por um viés do conflito.
Além disso, o espaço público agonístico não coloca em discussão as respostas, mas os meios para alcançá-
las. Nesse sentido, não existe resposta certa, mas a própria disputa e possibilidade de posicionamento já
parece uma escolha mais democrática.

Considerações finais
Ao considerar o espaço público enquanto espaço político e do conflito abre-se a possibilidade para uma
práxis urbana mais comprometida com o exercício da democracia. É necessário enfatizar a dimensão
política, ideológica, estética e dialética do espaço público. É produto, mas também possibilitador de
relações e práticas sociais que podem ser mais plurais e inventivas.
O espaço público agonísito, proposto por Chantal Mouffe aparece como uma possível alternativa à
produção hegemônica do espaço público vigente que, orientado exclusivamente pelo valor de troca, reduz
o espaço a simples mercadoria. A insistência na negação do conflito nos espaços públicos, aumenta as
chances do antagonismo inerente ao político se expressar de forma violenta ou opressiva. Na verdade, o
conflito nunca deixa de existir no espaço, ele só é encoberto pelas ideologias. Desse modo, o espaço
público enquanto projeto de veiculação de imagens consensuais está fadado a se submeter aos interesses
do capital e a minar a experiência sócio-espacial urbana cotidiana. Espaços normatizados, segregados,
controlados são o oposto de espaços vividos.

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Reconhecer o caráter conflituoso como pressuposto das relações sociais e do político nos espaços
públicos, é devolver – ou conceber – o “público” ao espaço. O público enquanto uso, apropriação, coletivo,
visível, acessível e quem sabe, comum.

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em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.
Public space from the conflict

This article approaches the public space from Henri Lefebvre's ideas about the production and politics of space. Thus,
the space - public - is considered not as a priori data, but from the processes, relations and disputes that configure it.
Using the concept of politics proposed by Chantal Mouffe, in which antagonism and, therefore, conflict is constitutive of
human societies, we intend to discuss the political and conflicting character of public space, as well as to reveal some of
its contradictions. For this, through the dialectical method, a double critique is made: right critique and left critique,
approach used by Lefebvre in the second chapter of the book Space and Politics (1972) to highlight the political - and
contradictory - aspects of space and the "conflicts of criticism". Right-wing criticism refers to the process of
spectacularizing public space and denying conflict, creating pacified and controlled spaces. Leftist criticism considers
conflict as constitutive of a democratic space, proposing an agonistic public space, that is, a field of dispute in which
oppositions are not eradicated but legitimately treated. This agonist relationship developed by Mouffe allows us to
interpret the public space as a possible promoter of more radical democratic exercises.

Keywords: Public space. Conflict. Politics. Antagonism. Agonism.


Espacio público del conflicto
Este artículo aborda el espacio público a partir de las ideas de Henri Lefebvre sobre la producción y la política del
espacio. Por lo tanto, el espacio, público, se considera no como datos a priori, sino a partir de procesos, relaciones y
disputas que lo configuran. Utilizando el concepto de política propuesto por Chantal Mouffe, en el que el antagonismo
y, por lo tanto, el conflicto, son constitutivos de las sociedades humanas, pretendemos discutir el carácter político y
conflictivo del espacio público, así como revelar algunas de sus contradicciones. Para esto, a través del método
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Revista Políticas Públicas & Cidades - 2359-1552

dialéctico, se hace una doble crítica: crítica derecha y crítica izquierda, enfoque utilizado por Lefebvre en el segundo
capítulo del libro Space and Politics (1972) para resaltar los aspectos políticos y contradictorios del espacio y los
"conflictos de crítica". La crítica de derecha se refiere al proceso de espectacularizar el espacio público y negar el
conflicto, creando espacios pacificados y controlados. La crítica izquierdista considera el conflicto como constitutivo de
un espacio democrático, y propone un espacio público agonista, es decir, un campo de disputa en el que las oposiciones
no se erradican sino que se tratan legítimamente. Esta relación agonista desarrollada por Mouffe nos permite
interpretar el espacio público como un posible promotor de ejercicios democráticos más radicales.

Palabras clave: espacio público. Conflicto Política Antagonismo Agonismo.

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