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04/02/2023 10:32 Correio APPOA

Topologia e tempo na pandemia

307 - março de 2021

Temática
O errante e a estalagem do imaginário
Marcos Antônio Ribeiro Moraes

[1] Ricardo Brito. Estalagens e Tavernas Peculiares

Só porque erro, encontro o que não se procura

só porque erro invento o labirinto,

a busca, a coisa, a causa da procura.

(Orides Fontela)

A questão dos lugares ocupados pelo analista e analisando, no contexto de uma análise, é um assunto ao qual vale sempre retornar, considerando que esse é o campo onde circula a força
motora do percurso analítico. Acredito que é especialmente disso que Lacan (1958) trata em seu texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Parece que, nesse texto, a sua
preocupação é, sobretudo, que tais posições não sejam acomodadas no registro imaginário. Ao lermos o referido texto, um possível entendimento seria afirmar que a condução de uma
análise supõe um movimento de deslocamento, do registro do imaginário ao simbólico, de uma estalagem a outra. Mas o desejo – esse errante – tenderia a se instalar apenas nos registros
do Imaginário e do Simbólico? Vale lembrar que o Real também é parte desse percurso que articula três registros enodados, constitutivos da realidade de cada sujeito.

Na verdade, essa questão nos remete, mais uma vez, à teoria do nó Borromeu, como uma das possíveis referências na condução de uma análise. A esse respeito, em psicanalise,
encontramos diferentes posições teóricas. Freud mesmo nos deixou como possibilidade de leitura do sintoma, importantes conceitos, tais como o de narcisismo, fixação e regressão da
pulsão e, sobretudo, o entendimento da travessia do Édipo e a herança que decorre dessa, para as diferentes posições subjetivas de cada ser falante. Lacan, com base em tais construções
freudianas e nos referenciais da etologia, da óptica, da linguística, e mais tarde, da matemática e da topologia, irá nos propor diferentes conceitos para a leitura clínica. Começando pelo
estágio do espelho, passando pelas estruturas clínicas, chega, por fim, ao nó de três e até mesmo a se valer de um quarto nó.

Ainda em seu escrito A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan (1958) nos adverte que há uma diferença entre dirigir o tratamento e dirigir o sujeito. Isso fará ainda mais
sentindo quando, mais tarde ele se referirá ao sujeito do desejo, como aquele que terá que se haver com um desejo errante. Com base no que ensina Lacan (1957-1958), no Seminário As
formações do inconsciente, essa errância não teria um entendimento negativo ou pejorativo, mas o entendimento de que não existiria um termo ou ponto de chegada para os ordenamentos
do desejo humano. De toda forma, o errante sempre incomodará a ordem estabelecida por consensos, que são sobretudo sustentados no registro imaginário e pela pretensão de controle
do eu e suas formas de identificação.

Sendo assim, o que pretendemos com uma análise? Correção e aprimoramento de etapas do desenvolvimento do eu, ou as melhores condições para que o sujeito possa se haver com seu
desejo, posicionado em relação ao outro, num campo discursivo? Sabemos que é essa a questão colocada por Lacan (1958) aos psicanalistas pós freudianos de seu tempo, como uma
inquietação que marca toda a trajetória de seu ensino. Ele mesmo, do início ao fim, em sua viajem de retorno a Freud, vai se dirigindo sem se acomodar, às estalagens do imaginário,
simbólico e real. Seu esforço constante nesse percurso é demonstrar que Freud mesmo já nos havia advertido dos perigos dos engodos do eu, das identificações no campo do imaginário.
É verdade que a teoria freudiana tem grande foco sobre o eu, mas não para propor que seja exaltado ou fortalecido como meta de uma análise. Mas isso não é algo fácil de entender na
leitura dos textos de Freud, talvez seja nesse entendimento que se localiza a importância singular de Lacan, para que possamos – como ele mesmo nos propôs – sermos freudianos. O que
equivale a pensarmos a análise como uma experiência do Outro, tesouro do inconsciente, que comanda a errância do sujeito do desejo.

A partir de então, com base na teoria dos três registros, não seria válido pensar o trabalho clínico como uma investigação acerca do desejo errante e suas diferentes formas de alojamento?
Pois esse, muitas vezes, pode estar na cômoda e repousante estalagem do imaginário, rica de sentidos maciços. Outras vezes, circulando entre as complexas riquezas dos refúgios
simbólicos. Ou ainda estar desabrigado e exposto à angústia, decorrente dos retornos do real. Essa metáfora alusiva ao desejo em condição de repouso, em deslocamento ou desabrigado,
nos remete à ideia dessa errância do desejo, por estalagens, onde a moeda corrente pode ser da ordem do gozo, do saber ou da impossibilidade da verdade. Portanto, pensar a clínica a
partir dos três registros, de algum modo nos ajuda a entender que tais registros são todos importantes, no ato da constituição psíquica e ao longo da circulação dinâmica do sujeito no laço
social. No manejo clínico esses três registros não são referidos como etapas a serem superadas evolutivamente ou cronologicamente, mas sim, a serem correlacionados, em diferentes
idas e vindas, com a queixa do sujeito.

Entendemos que o Imaginário é o lugar privilegiado da constituição do eu. Isso por si já nos dá o entendimento da sua relevância, mas é também o lugar da alienação. O trabalho clínico
supõe que olhemos para esse registro, tomando-o nessas duas dimensões. Isso supõe entender, na escuta clínica, se estamos diante de uma constituição de Eu esperada, no sentido de
dar ao sujeito o suporte na errância de seu desejo. Se estamos lidando com uma condição de sujeito em estágio de acomodação, na estalagem do imaginário, insistindo em viver de forma
adaptada à realidade, em detrimento da sua condição de sujeito desejante. Ou numa condição de fascínio e angústia provocada por algo que retorna do real. Esse é sobretudo o contexto
mais verificado em situações de crise, vale considerar como exemplo disso, o que passou a predominar como demanda de atendimento clínico, no atual contexto da pandemia do
Coronavírus.

O analista, de sua parte, também precisa estar atento, pagar com a errância de seu próprio desejo, no caso aquele do saber. Para que não corra o risco de, sem se dar conta, perder a
noção do tempo e do espaço, permanecendo sossegadamente apenas numa dessas estalagens. Pagando assim outros preços, entre os quais, se valer de forma indevida de seu suposto
saber – suposto poder – permanecer aprisionado apenas a um dos significantes que representa a errância do desejo do sujeito. Ou ainda, ser tomado por angústias diante daquilo que
retorna, como fragmentos do real, na cena analítica.

Todavia, a questão da acomodação, sobretudo no registro imaginário, se localiza no campo da resistência em saber. No sentido do entendimento, aquilo é a demanda específica de cada
análise. Em outras palavras, querer saber ou aceder à experiência do inconsciente. Freud (1926) faz questão de nos esclarecer que uma das mais importantes formas de resistência é
atribuída ao Eu, portanto, ao imaginário. É por isso, segundo ele, que o tratamento analítico tem, no campo da linguagem e da fala, o seu lócus privilegiado, ou seja, pedir que o analisando
fale, inclusive, daquilo que o faz silenciar durante a sessão. Supondo que tal silêncio seja atribuído a uma identificação transferencial com o analista, um momento de devaneio com sua
imagem, uma espécie de fantasia alojada no imaginário.

Lacan, de sua parte, nos ajudará a entender que esse trabalho, no campo da fala e linguagem é, algo que se passa muito especialmente no registro simbólico. O tratamento analítico
entendido como intervenção nesse registro, pela via da livre associação, supõe impactos, deslocamentos, errâncias. Tudo isso devido ao deslizamento na cadeia das representações
imaginárias, dos significantes e dos sentidos atribuídos ao impossível do real. Daí o esforço constante de pedir aos analisandos que façam associações, pela via dos significantes, para
além dos significados já atribuídos e muitas vezes como causa do sofrimento. É assim que se pode chegar a efeitos retroativos, a ressignificações do que estava sendo dito, vivido ou
sofrido, mas não significado.

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A questão que nos concerne no trabalho clínico, entre outras, é entender o quanto o sujeito, diante da experiência da castração – experiência essa que inaugura a entrada de um ser no
campo da fala ea sua condição de sujeito de um desejo errante – pode estar tomado no registro imaginário, simbólico ou real.

É importante considerar que o errante, por mais que se esquive, volta ao rochedo da castração, por conta de diferentes acometimentos e mudanças no curso de sua história. Ou seja,
situações de perdas materiais, de vínculos amorosos, fenômenos naturais, como a atual pandemia, viradas em contextos sociais e políticos, empobrecendo a qualidade das condições de
vida e o pacto civilizatório. A partir de todas essas vicissitudes que atentam contra a firmação do desejo, o que recebemos como queixa, são as diferentes formações de sintoma, uma vez
que, pela operação da castração, a representação simbólica desse desejo, fica submetida pela barra da castração, a uma realidade inconsciente. Dessa forma, percebemos a estreita
relação entre expressão do desejo, campo da linguagem e sua predominância simbólica pela via da metáfora e metonímia, onde a errância do desejo se mantém numa circulação entre
existência, consistência, e insistência de sentidos, gozo e saber. Se é verdade que somos advertidos sobre a tentação do repouso no imaginário – esse lugar de descanso, onde podemos
nos perder novamente num contexto de alienação, somos também advertidos de que nem tudo é passível de simbolização e representação simbólica no processo de análise. De toda essa
aventura do errante, sempre sobra um resto de real. Assim, nos resta também entender que esse errante, por vezes, se instala no registro do real. Algo de sua verdade escapa ao campo
da linguagem. Trata-se de um resto que, uma vez fora da linguagem, se constitui causa do desejo e o que move, por si mesmo, a errância do desejo. Sobretudo, na última parte de seu
ensinamento, muito especialmente no seminário O Sinthoma, Lacan (1975-1976) tentara a saída por um nó de quatro, aludindo à possibilidade do manejo clínico também por outra via de
saber, não apenas no campo de um saber dentro de uma perspectiva discursiva, mas de um saber fazer algo com sua errância, que ele denominaria por sinthoma.

Cadeia de quatro elos: R.S.I.+ Sinthoma

O manejo clínico, portanto, pode também ser entendido como uma prática da errância do desejo, sem opor um registro ao outro e sem a pretensão de se chegar à superação de um desses
três registros, como se tratasse de estágios cronológicos a serem superados ao longo do desenvolvimento psíquico. Isso porque pensamos ser o inconsciente, uma estrutura que contém
representações de imagens e palavras, sendo também o lugar do objeto a fragmento do real, resto não simbolizável, causa da errância do desejo.

Referências:

Freud, S. (1926). Inibições, sintomas e ansiedade. Rio de Janeiro: Imago.

Lacan, J. (1957-1958). O Seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lacan, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios do seu poder. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

LACAN, J. (1975-1976). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Marcos Antônio Ribeiro Moraes é Psicanalista, membro da APPOA, Professor da PUC – GO. E-mail:mcomgz@hotmail.com

Autor: Marcos Antônio Ribeiro Moraes

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