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Voos líquidos 2

UMA ANÁLISE DA ESTRUTURA SEMIÓTICA


DA TELENOVELA BRASILEIRA 1

Toda telenovela deve ter um vilão... para apimentar a


trama, para tornar as coisas difíceis para o casal de
mocinhos, assim é a regra. E este pobre sujeito, de atos e
pensamentos sórdidos, invariavelmente maquiavélico,
tem que se dar mal no final, no último capítulo. Mas e
quanto aos vilões escondidos por detrás de cada último
capítulo? O que dizer deles? Quem são? Estas são as
perguntas que, por força de se repetirem, culminaram na
idealização deste pequeno ensaio.
Há uma enorme curiosidade, mesmo naquele
telespectador convencional (não afeito ao universo da
Teoria da Comunicação), em descobrir o porquê de ser a
telenovela tão duramente criticada. Acusam-na de
reificadora, chamam-na de o ópio moderno, mas quais os

1 Confeccionado em 1993, este pequeno ensaio foi apresentado ao XVII


ENECOM (Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação),
ocorrido em Recife, no mesmo ano. Está aqui integralmente transcrito,
sem alterações ou reparos, ainda que hoje possam ser detectadas
pequenas incorreções. O raciocínio desenvolvido é especialmente
ingênuo e nada tem de original, uma vez que se trate de uma
adaptação das ideias do museólogo e comunicólogo José Teixeira
Coelho Filho ao contexto das telenovelas. Conta o seu caráter
genealógico, além do seu valor afetivo.
3 Alfons Heinrich Altmicks

fundamentos da depreciação? Em que termos se põem os


vilipêndios? Desde já, fiquem aqui registradas as respostas
(que talvez frustrem aos que procuravam uma encarnação
do Mal, algo assim como uma Odete Roitman2): a tônica
deste estudo é a relação semiótica estabelecida entre
telespectador e telenovela. Nesta relação, estão
fundamentadas as acusações, as depreciações, os
vilipêndios.
Este apaixonante campeão de audiência não permite
maniqueísmos pueris. A telenovela, em princípio, não é
boa nem má: tão somente atende às demandas do meio de
comunicação em que foi gerada, seguindo à risca a
proposta originalmente elaborada para si, qual seja,
vender. Como produto mais valorado da televisão
brasileira, a telenovela potencializa o break comercial do
horário nobre. Assim, contando com um nível de
audiência absoluto e com todas as atenções dos críticos
voltadas para os seus conteúdos, dificilmente a telenovela
se constituiria um produto ideológico raso, óbvio.
Então, o escopo deste modesto ensaio é o de analisar a
telenovela brasileira, no que tange às estratégias de
simplificação da sua estrutura semiótica — o que,
evidentemente, banaliza todas as suas expressões
comunicativas, sejam estéticas, culturais ou
informacionais. Os efeitos mais danosos desta banalização
2 Personagem de Beatriz Segall na telenovela Vale Tudo, escrita por
Gilberto Braga e transmitida pela Globo entre 1988 e 1989. Odete
Roitman é considerada uma das maiores vilãs de telenovelas de todos
os tempos.
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são remetidos, previsivelmente, ao horizonte da


reificação3 da sociedade brasileira.

O processo de significação

A abordagem semiótica da telenovela, em princípio,


não exige uma análise do seu discurso, tampouco uma
investigação sobre os seus aspectos subliminares. Sequer
caberia um estudo sobre os seus meios de distribuição de
mensagens. Na verdade, conteúdos, mensagens e
características técnicas são quase irrelevantes, quando se
pretende inferir sobre a maneira como a telenovela produz
e opera os seus significados, ou sobre como acontecem os
seus processos de significação. Neste particular, e de
modo a introduzir o assunto, recorre-se a um dos mais
expressivos teóricos da Semiótica Moderna, Charles
Sanders Peirce4, cujas ideias, aqui brevemente
desenvolvidas, fornecem os subsídios para a compreensão
3
O termo provém do verbo “Reificar”, cuja origem etimológica é o
latim – Lt. “res”, coisa. Reificação seria a “coisificação” do homem e
das suas produções subjetivas, no que se refere a certo esvaziamento
dos valores antropológicos mais básicos.
4 Formado em Química, Física e Filosofia, Peirce é considerado um

dos maiores pensadores do Século XX. Junto com John Dewey e


William James, fundou o movimento filosófico do Pragmatismo, com
imensas contribuições ao campo da Semiótica.
5 Alfons Heinrich Altmicks

do signo e do seu comportamento na estrutura da


telenovela brasileira, bem como para a análise dos seus
efeitos nos telespectadores.
Em Peirce, o processo de significação se caracteriza na
relação de mediação exercida pelo signo (entidade
representante, por excelência) entre o objeto (entidade
representada) e o interpretante (conceito do objeto,
formulado na mente do indivíduo que recebe o signo). À
guisa de exemplo, tome-se a palavra “ÁRVORE”, que
aponta para um objeto real: uma árvore, criando na mente
de quem a escuta ou a lê uma definição racional do que
seja uma árvore, acrescida das nuanças psicológicas e
emocionais que esta pessoa previamente possui sobre o
tema (ideia de paz, bucolismo, ecologia, etc.). O processo
de significação se dá na medida em que o signo emitido (a
palavra “ÁRVORE”) se apresenta no lugar do objeto (a
árvore em si), para que seja decodificada pelo receptor,
criando por fim o interpretante (a imagem mental da
árvore).
Nesta cadeia semiótica, é importante notar que o
objeto apresenta uma natureza tendente à imutabilidade,
posto que dele dependem a configuração do signo e a
consequente elaboração do interpretante. Isto equivale a
afirmar que, uma vez assumidas transformações no objeto
original, os signos e interpretantes dele decorrentes serão
modificados, originando outros diversos. Por outro lado,
em franca oposição à natureza fixa do objeto, o
interpretante possui um caráter absolutamente variável,
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em função da vivência do receptor do signo e do tipo


sígnico a este apresentado.
A vivência do receptor interfere no interpretante,
porque cada pessoa tende a se apropriar dos objetos de
maneira muito particular, de acordo com a sua cultura,
com a sua formação, com o seu estado emocional, etc. Por
exemplo, ao ser proferida a palavra “ÁRVORE”, uma
pessoa pode imaginar uma bela e frondosa mangueira,
ensejando sombra em tudo ao seu redor; outra pode se
lembrar das palmeiras da sua terra natal; uma terceira
pessoa pode ainda pensar num antigo e majestoso
jacarandá, e assim por diante.
Quanto ao tipo sígnico, o seu grau de indução na
mente do receptor é o que vai determinar a variação do
interpretante. Explica-se: os signos não se apresentam
todos sob a mesma forma, nem possuem estruturas
idênticas. De um único objeto, pode-se absorver várias
manifestações semióticas, tais como uma denominação,
uma fotografia, uma pintura, outra pintura em ângulo
diferente... Cada uma delas tende a provocar reação
mental específica no receptor. Uma pessoa exposta à
palavra “ÁRVORE” gera um interpretante totalmente
diferente daquele obtido por outra pessoa que recebeu
uma fotografia da árvore como signo.
Isto ocorre, porque o grau de indução da palavra é
menor do que o existente na imagem. Ao ouvir ou ler a
palavra “ÁRVORE”, o indivíduo se depara com um sem
número de possibilidades de interpretá-la — ele pode
imaginar uma árvore grande ou pequena, retorcida ou
7 Alfons Heinrich Altmicks

retilínea, com ou sem folhas. No caso da fotografia, não há


dúvidas sobre a árvore exibida: é aquela fotografada. O
imediatismo da imagem restringe as possibilidades de
interpretação do signo aos fatores psicológicos do receptor
(ou seja, ao que aquela foto vai fazê-lo sentir, pensar ou
lembrar).
A necessidade de diferenciar os tipos de signos levou
Peirce a classifica-los em três categorias distintas: 1)
Categoria dos signos icônicos, ou ícones; 2) Categoria dos
signos indiciais, ou índices; e 3) Categoria dos signos
simbólicos, ou símbolos. São chamados ícones os signos
que guardam analogia imediata com o objeto
representado. É este o caso das pinturas, dos desenhos,
das esculturas, das imagens do cinema ou da televisão. A
fotografia da árvore, citada no exemplo anterior, encaixa-
se nesta categoria.
Índices são signos que se referem ao objeto, sem,
contudo, a ele serem imediatos — muito embora estejam
intimamente relacionados como possibilidade real. Por
exemplo, folhas espalhadas no chão significam (ou
indicam) que é possível haver uma árvore por perto. Ao
contrário do ícone, que mantém o seu significado mesmo
distanciado do objeto, ou mesmo que este não mais exista
(como no caso de uma árvore que tenha sido cortada logo
depois de o fotógrafo tê-la registrado), o índice depende
em tudo da existência do seu objeto. Esta ausência de
autonomia de existência lhe denuncia o caráter efêmero.
Que sentido haveria nas folhas espalhadas pelo chão, se a
árvore não estivesse por perto?
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Símbolos são signos arbitrários, provindos de uma


convenção entre os indivíduos em sociedade. O exemplo
mais característico dos símbolos é a palavra, pronunciada
ou escrita. Por contingência histórica, o termo “ÁRVORE”
passou a designar certo tipo de vegetal, de proporções
determinadas, com raízes, tronco, copa, etc. Mas em seu
lugar poderia ter sido usada qualquer outra palavra:
“ÁGAPE”, “BORBOLETA”, “FAROL”...
É importante observar que dificilmente se encontra
um tipo de signo em estado puro. Com frequência, um
ícone é também um índice, assim como um índice pode
ser simbólico, e o símbolo apresentar-se icônico. No
entanto, apenas um deles dominará a relação semiótica,
impondo as suas dinâmicas de interpretação sobre os
demais. A mente humana é naturalmente preparada para
reconhecer e decodificar o tipo semiótico dominante,
segundo as suas características.
Existem curiosas relações entre estes três tipos
especiais de signos. Já se disse que o ícone mantém o seu
significado mesmo distanciado do objeto, ou mesmo que
este não mais exista. Assim, pode-se facilmente deduzir
que conhecer o ícone é, de certa maneira, conhecer o
objeto representado. Uma pessoa observando a fotografia
de uma árvore passa a conhecer, de antemão, o objeto
desta relação semiótica: a árvore real. No entanto, o acesso
ao índice não pressupõe o conhecimento do objeto, visto
que o primeiro não sobrevive sem o segundo.
No que diz respeito ao símbolo, o fato de ser ele um
signo artificial torna-o mais independente do seu objeto
9 Alfons Heinrich Altmicks

do que os demais. Desta forma, o símbolo não exige o


conhecimento prévio do objeto. Uma pessoa que nunca
tenha visto uma árvore pode perfeitamente saber do que
se trata, apenas por ser submetida ao conceito contido na
palavra. Por outro lado, o conhecimento da palavra
“ÁRVORE” não implica a experiência da árvore em si.
Tais características são extremamente relevantes,
sobretudo quando se leva em conta o processo de
formação das consciências semióticas, geradas no processo
de interpretação dos signos.

A formação das consciências semióticas

Em sociedade, é virtualmente impossível escapar ao


bombardeio maciço das mensagens semióticas.
Diariamente, é possível entrar em contato com milhares de
signos, num processo tão espontâneo que chega a passar
despercebido. Esta constante exposição aos signos
condiciona os indivíduos a se comportarem mentalmente
de acordo com padrões específicos, aos quais nomina-se
consciências semióticas. Estes padrões variam de acordo
com o modus operandi de interpretação exigido por cada
tipo de signo.
Há signos que pressupõem um raciocínio mais
elaborado, outros são bastante acessíveis. Alguns
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mostram-se efêmeros e superficiais; outros, profundos e


graves. Há inclusive aqueles absolutamente herméticos,
impossíveis. O caminho para se atingir os seus
significados passa pelo desenvolvimento de mecanismos
psíquicos específicos, exigidos para a sua interpretação. É
importante observar que tais padrões estão
fundamentalmente ligados às características dos tipos
semióticos de Peirce. Desta forma, há igualmente três
categorias de consciências semióticas: a icônica, a indicial
e a simbólica.
Motivada pelo ícone, a consciência icônica constitui
um padrão de interpretação que trabalha basicamente com
a intuição e com o sentimento, sem se prender aos
processos de síntese/análise ou aos procedimentos da
racionalidade objetiva. É o tipo de consciência formado na
experiência estética, na subjetividade da vida anímica, no
sentimento de religiosidade. A consciência icônica supõe a
fronteira entre o onírico e o consciente, desvelando a
realidade por via de uma poderosa empatia.
Para José Teixeira Coelho Filho:

O que se pretende dizer com consciência icônica é


que se trata de uma consciência que procede com seu
objeto [...] isto é: procede por analogia. Fornece à
pessoa uma imagem do assunto, uma visão que não
se baseia em nenhuma convenção, nenhuma
conclusão lógica, mas num esquema tão próximo
desse assunto como uma foto é próxima da pessoa
retratada (1991, p. 59).
11 Alfons Heinrich Altmicks

A consciência indicial exige um esforço maior do


indivíduo, na medida em que implica o desprendimento
de alguma energia (mental ou física) para acessar o
entendimento do seu signo original, o índice. O seu
padrão de interpretação se fundamenta na constatação, o
que pressupõe a capacidade de estabelecer relações
imediatas entre o signo e o seu objeto. José Teiceira Coelho
Filho afirma: “Assim como a consciência icônica é, num
certo sentido, contemplativa, a indicial é operativa” (1991,
p. 60). Enquanto a consciência icônica pode propor algo
inteiramente original, visto que embasada na
sensibilidade, a consciência indicial apenas pode constatar
algo que já foi antes constatado.
A consciência simbólica representa um padrão de
interpretação lógico-dedutivo. É o tipo de consciência que
busca o entendimento pleno, os quês e os porquês das
coisas, transcendendo a simples intuição e a pura
constatação. Visa a explicação. É a consciência que
compreende as regras e as convenções, mas também
fomenta a criticidade e o espírito investigativo. É
geralmente desenvolvida por aqueles que possuem certo
gosto pelo exercício intelectual.
Estas considerações sobre a Semiótica surgem da
necessidade de compreensão da fisiologia íntima da
comunicação, de onde brota a telenovela brasileira. A dita
Indústria Cultural opera basicamente signos, não apenas
nos seus discursos, mas no seu imo. O manuseio semiótico
tem determinado, numa perspectiva histórica, o nível de
reificação dos seus produtos.
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A Semiótica na estrutura da telenovela.

Poder-se-ia inferir, ao se levar em conta os


argumentos supramencionados, que a telenovela é exímia
geradora de ícones, uma vez que as suas imagens
procedam por analogia, forçando a absorção empática do
seu objeto. Naturalmente, desta perspectiva, a conclusão
óbvia seria tratar-se a telenovela de um suporte de
formação da consciência icônica, posto que contribua para
a sensibilização da sociedade. Por outro lado, seria
igualmente possível afirmar que a telenovela é uma
excelente criadora de símbolos, pois possui uma proposta
de dramaturgia engajada, espelhando a realidade social e
política do país. Deste prisma, a telenovela fomentaria a
consciência simbólica, na medida em que contém, no
interior seu discurso, símbolos capazes de acrescentar ao
intelecto dos telespectadores.
Ainda que aparentemente evidentes, são conclusões
equivocadas. A telenovela opera, sim, ícones e símbolos,
mas não forma, em nenhuma hipótese, consciências
icônicas e simbólicas. O manuseio de ícones e símbolos na
sua estrutura ocorre de forma absolutamente indicial. Dito
de outra forma, a disposição dos seus elementos
semióticos segue uma lógica efêmera, puramente
constatadora, o que torna a telenovela um suporte gerador
de consciência indicial.
13 Alfons Heinrich Altmicks

Em nível estrutural, a indicialização se faz notar na


velocidade com que as ações narrativas se sucedem no
interior da trama telenovelística. As sequencias, os
diálogos, os plots5, a música, tudo é rápido, superficial e
simplista. Ondina Fachel Leal (1986) estima que 80% das
sequencias de cada capítulo de telenovela possuam algo
entre 20 e 80 segundos de duração. Aquelas sequencias
mais longas, de um minuto a um minuto e meio, são
deliberadamente divididas e intercaladas por outras
sequencias, para que o telespectador não se canse (e,
consequentemente, não disperse a sua atenção). A
telenovela é composta por uma miríade de fragmentos de
informações visuais e auditivas, que incessantemente
bombardeia o telespectador.
E isto não é tudo: se os ícones (fotogramas, planos,
sequencias) são tratados com a transitoriedade dos
índices; os símbolos (diálogos, personagens,
representações ideológicas), presentes ao argumento da
telenovela, perdem a sua profundidade conceitual para
adquirir o simplismo, fragmentado e fragmentário, dos
trechos múltiplos de informação, como prova do
tratamento indicial a que foram submetidos. Ciro
Marcondes Filho alerta para o que chamou de “[...] uma
rejeição consciente do prolongamento dialogal, em si
5 Núcleos narrativos que se repetem nas tramas das telenovelas. São,
por assim dizer, historias de arquitetura pré-estabelecida, que podem
ser recicladas a cada nova telenovela. Desta forma, há sempre o plot da
menina pobre que se apaixona pelo rapaz rico (plot Cinderela), o plot
da dupla identidade, o plot do rico infeliz, etc.
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enriquecedor, mas para a lógica da telenovela


antieconômico e dispersivo” (1991, p. 68). Isto é, a
informação extraída da telenovela se apresenta reduzida,
simplificada e dividida, com vistas ao atendimento à sua
estrutura narrativa indicial.
Assim, de uma perpectiva semiótica, a telenovela se
apresenta como um grande Videolip volátil, que retém a
atenção do telespectador, deixando-o qual criança
extasiada frente a uma vitrine de promissoras luzes
coloridas. A relativização de ícones e símbolos na trama
da telenovela interfere negativamente na intepretação
realizada pelo público, na medida exata em que o impede
de atingir a plenitude das dimensões sensível e inteligível,
oferecendo apenas aquilo que é constatável. Neste
processo, o teslespectador se vê incapacitado de penetrar a
natureza do objeto, seja intuitivamente, seja
racionalmente.

Reificação e fraude na telenovela

Todo este processo de manuseio semiótico tem um


propósito bem definido: segurar o telespectador até o
momento do intervalo, mesmo que para tanto tenha que
se enganá-lo. A telenovela trabalha sob a égide do Capital
e no sentido deste. Como bem de consumo típico da
15 Alfons Heinrich Altmicks

Indústria Cultural6 (e na qualidade de produto de alto


poder de venda na televisão), a telenovela usa a sua
imensa audiência para agregar valor ao break comercial da
emissora. Assim, a busca incessante pelo aumento
audiência justifica o uso de quaisquer dispositivos de que
se possa lançar mão, ainda que fraudulentos.
Intui-se que haja a fraude, mas onde exatamente está
localizada? Que seja registrado: a mais danosa fraude
reside no manuseio semiótico dos elementos constitutivos
da telenovela. Ícones e símbolos são relativizados e
tratados indicialmente. As implicações disto são terríveis,
porquanto se recorde a característica mais marcante do
signo indicial, qual seja, a de não se deter no objeto, mas
tão somente nas qualidades indicativas do seu signo.
Desta maneira, o telespectador contempla o signo (a
telenovela em si) e se esquece do seu objeto (a própria
realidade), o que abre espaço para a reificação.
Eis a grande fraude, urdida pela Indústria Cultural: a
substituição da realidade pela representação da realidade,
sob os aplausos de uma grande massa de telespectadores,
que crê estar recebendo cultura e informação (ícones e
símbolos), tradutores das tendências estéticas e
intelectuais do seu tempo. É assustador imaginar que a
realidade cotidiana pode ser substituída pela realidade do
vídeo. No mínimo, esta é uma afirmação bastante
controversa, mas justifica-se a sua causa num simples

6 Expressão cunhada por Theodor Adorno, em 1931, para se referir aos


processos serializados de produção cultural, engendrados pelo
sistema Capitalista.
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diálogo fictício, idealizado por Pedrinho Alcides


Guareschi: “Hoje, não trabalho, pois haverá greve de
ônibus”. “Como assim? Não deu nada sobre greve de
ônibus na televisão!” (1989, p. 23). Simples assim: se não
deu na TV, não existe. E a realidade quotidiana é
subjugada e substituída, com toda a naturalidade, pela
verdade do vídeo.
Uma derradeira consideração deve ainda ser feita em
relação à escala de todo este processo: a televisão alcança
99,1% do território brasileiro e quase 85,5% das pessoas
que nele habitam7. É indubitavelmente o mais poderoso
meio de comunicação de massa do país. A telenovela,
como seu bem de consumo tradicional, herda estes
mesmos números, atingindo diariamente milhões de lares
por todo o Brasil. Num país em que a população tem
pouco acesso à informação e à cultura, e onde os meios de
comunicação de massa fazem as vezes da família e da
escola, o uso irresponsável dos recursos semióticos pode
ter efeitos devastadores para a formação dos indivíduos.
Potencialmente, a telenovela, através dos seus backgrounds,
pode tanto criar modas para incentivar o consumo de
determinados produtos quanto legitimar toda uma
ideologia.
De uma perspectiva teórica, esse é o poder da
telenovela. Trata-se de uma realidade que não pode ser
ignorada. Assim, a coisa mais acertada a se fazer é
procurar minimizar as suas ações negativas. E qualquer

7 Dados de 1993, época em que o ensaio foi redigido.


17 Alfons Heinrich Altmicks

passo nesse sentido leva, fatalmente, a uma estada na terra


da Semiótica.

Conclusão

Foi constatado o poder da telenovela para moldar a


realidade e reificar (coisificar) o ser humano. Este poder
provém da manipulação dos seus recursos semióticos.
Trabalhando em prol de uma superficialização do
pensamento coletivo, a telenovela, tal como hoje é
constituída, promove na sociedade a consciência indicial,
condicionando as pessoas a apenas constatar, sem intuir,
argumentar ou avaliar. Isto responde às perguntas
realizadas na introdução deste pequeno ensaio: a
telenovela é nociva, sim, porque distorce a visão do
mundo (e de si mesmo) formulada pelo indivíduo.
Embota o seu senso crítico. O método usado para tanto é o
do desvio semiótico (considerado o crime perfeito, já que
não pode ser facilmente percebido).
Qualquer tentativa de refrear os aspectos negativos da
telenovela passa necessariamente pelo questionamento da
sua dimensão Semiótica. E como se poderia fazer isso?
Basicamente, identificando-se os mecanismos da
indicialização, de maneira que se possa fazer pressão
sobre os veículos de comunicação, para obriga-los a
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equilibrar os elementos semióticos presentes na


telenovela. Ícones, índices e Símbolos devem possuir o
mesmo peso, para não criar tendenciosidade na teleficção
brasileira. Na prática, isso implica uma redução do ritmo
frenético dos programas, a valorização estética das
imagens e o aprofundamento do discurso televisivo.
Parte-se do entendimento de que a telenovela pode ser
modificada na sua estrutura semiótica, tornando-a capaz
de interagir com a sociedade, modificando-a e sendo por
ela modificada. A telenovela deve encontrar uma solução
para se tornar um veículo de expressão social, portador da
vontade da sociedade à qual pertence.

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