Este documento analisa a estrutura semiótica da telenovela brasileira segundo a teoria do semioticista Charles Sanders Peirce. Discorre sobre como a telenovela produz significados através dos signos, considerando a relação entre objeto, signo e interpretante. Explica também que a simplificação desta estrutura semiótica pode levar à banalização das expressões comunicativas da telenovela e à reificação da sociedade brasileira.
Este documento analisa a estrutura semiótica da telenovela brasileira segundo a teoria do semioticista Charles Sanders Peirce. Discorre sobre como a telenovela produz significados através dos signos, considerando a relação entre objeto, signo e interpretante. Explica também que a simplificação desta estrutura semiótica pode levar à banalização das expressões comunicativas da telenovela e à reificação da sociedade brasileira.
Este documento analisa a estrutura semiótica da telenovela brasileira segundo a teoria do semioticista Charles Sanders Peirce. Discorre sobre como a telenovela produz significados através dos signos, considerando a relação entre objeto, signo e interpretante. Explica também que a simplificação desta estrutura semiótica pode levar à banalização das expressões comunicativas da telenovela e à reificação da sociedade brasileira.
Toda telenovela deve ter um vilão... para apimentar a
trama, para tornar as coisas difíceis para o casal de mocinhos, assim é a regra. E este pobre sujeito, de atos e pensamentos sórdidos, invariavelmente maquiavélico, tem que se dar mal no final, no último capítulo. Mas e quanto aos vilões escondidos por detrás de cada último capítulo? O que dizer deles? Quem são? Estas são as perguntas que, por força de se repetirem, culminaram na idealização deste pequeno ensaio. Há uma enorme curiosidade, mesmo naquele telespectador convencional (não afeito ao universo da Teoria da Comunicação), em descobrir o porquê de ser a telenovela tão duramente criticada. Acusam-na de reificadora, chamam-na de o ópio moderno, mas quais os
1 Confeccionado em 1993, este pequeno ensaio foi apresentado ao XVII
ENECOM (Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação), ocorrido em Recife, no mesmo ano. Está aqui integralmente transcrito, sem alterações ou reparos, ainda que hoje possam ser detectadas pequenas incorreções. O raciocínio desenvolvido é especialmente ingênuo e nada tem de original, uma vez que se trate de uma adaptação das ideias do museólogo e comunicólogo José Teixeira Coelho Filho ao contexto das telenovelas. Conta o seu caráter genealógico, além do seu valor afetivo. 3 Alfons Heinrich Altmicks
fundamentos da depreciação? Em que termos se põem os
vilipêndios? Desde já, fiquem aqui registradas as respostas (que talvez frustrem aos que procuravam uma encarnação do Mal, algo assim como uma Odete Roitman2): a tônica deste estudo é a relação semiótica estabelecida entre telespectador e telenovela. Nesta relação, estão fundamentadas as acusações, as depreciações, os vilipêndios. Este apaixonante campeão de audiência não permite maniqueísmos pueris. A telenovela, em princípio, não é boa nem má: tão somente atende às demandas do meio de comunicação em que foi gerada, seguindo à risca a proposta originalmente elaborada para si, qual seja, vender. Como produto mais valorado da televisão brasileira, a telenovela potencializa o break comercial do horário nobre. Assim, contando com um nível de audiência absoluto e com todas as atenções dos críticos voltadas para os seus conteúdos, dificilmente a telenovela se constituiria um produto ideológico raso, óbvio. Então, o escopo deste modesto ensaio é o de analisar a telenovela brasileira, no que tange às estratégias de simplificação da sua estrutura semiótica — o que, evidentemente, banaliza todas as suas expressões comunicativas, sejam estéticas, culturais ou informacionais. Os efeitos mais danosos desta banalização 2 Personagem de Beatriz Segall na telenovela Vale Tudo, escrita por Gilberto Braga e transmitida pela Globo entre 1988 e 1989. Odete Roitman é considerada uma das maiores vilãs de telenovelas de todos os tempos. Voos líquidos 4
são remetidos, previsivelmente, ao horizonte da
reificação3 da sociedade brasileira.
O processo de significação
A abordagem semiótica da telenovela, em princípio,
não exige uma análise do seu discurso, tampouco uma investigação sobre os seus aspectos subliminares. Sequer caberia um estudo sobre os seus meios de distribuição de mensagens. Na verdade, conteúdos, mensagens e características técnicas são quase irrelevantes, quando se pretende inferir sobre a maneira como a telenovela produz e opera os seus significados, ou sobre como acontecem os seus processos de significação. Neste particular, e de modo a introduzir o assunto, recorre-se a um dos mais expressivos teóricos da Semiótica Moderna, Charles Sanders Peirce4, cujas ideias, aqui brevemente desenvolvidas, fornecem os subsídios para a compreensão 3 O termo provém do verbo “Reificar”, cuja origem etimológica é o latim – Lt. “res”, coisa. Reificação seria a “coisificação” do homem e das suas produções subjetivas, no que se refere a certo esvaziamento dos valores antropológicos mais básicos. 4 Formado em Química, Física e Filosofia, Peirce é considerado um
dos maiores pensadores do Século XX. Junto com John Dewey e
William James, fundou o movimento filosófico do Pragmatismo, com imensas contribuições ao campo da Semiótica. 5 Alfons Heinrich Altmicks
do signo e do seu comportamento na estrutura da
telenovela brasileira, bem como para a análise dos seus efeitos nos telespectadores. Em Peirce, o processo de significação se caracteriza na relação de mediação exercida pelo signo (entidade representante, por excelência) entre o objeto (entidade representada) e o interpretante (conceito do objeto, formulado na mente do indivíduo que recebe o signo). À guisa de exemplo, tome-se a palavra “ÁRVORE”, que aponta para um objeto real: uma árvore, criando na mente de quem a escuta ou a lê uma definição racional do que seja uma árvore, acrescida das nuanças psicológicas e emocionais que esta pessoa previamente possui sobre o tema (ideia de paz, bucolismo, ecologia, etc.). O processo de significação se dá na medida em que o signo emitido (a palavra “ÁRVORE”) se apresenta no lugar do objeto (a árvore em si), para que seja decodificada pelo receptor, criando por fim o interpretante (a imagem mental da árvore). Nesta cadeia semiótica, é importante notar que o objeto apresenta uma natureza tendente à imutabilidade, posto que dele dependem a configuração do signo e a consequente elaboração do interpretante. Isto equivale a afirmar que, uma vez assumidas transformações no objeto original, os signos e interpretantes dele decorrentes serão modificados, originando outros diversos. Por outro lado, em franca oposição à natureza fixa do objeto, o interpretante possui um caráter absolutamente variável, Voos líquidos 6
em função da vivência do receptor do signo e do tipo
sígnico a este apresentado. A vivência do receptor interfere no interpretante, porque cada pessoa tende a se apropriar dos objetos de maneira muito particular, de acordo com a sua cultura, com a sua formação, com o seu estado emocional, etc. Por exemplo, ao ser proferida a palavra “ÁRVORE”, uma pessoa pode imaginar uma bela e frondosa mangueira, ensejando sombra em tudo ao seu redor; outra pode se lembrar das palmeiras da sua terra natal; uma terceira pessoa pode ainda pensar num antigo e majestoso jacarandá, e assim por diante. Quanto ao tipo sígnico, o seu grau de indução na mente do receptor é o que vai determinar a variação do interpretante. Explica-se: os signos não se apresentam todos sob a mesma forma, nem possuem estruturas idênticas. De um único objeto, pode-se absorver várias manifestações semióticas, tais como uma denominação, uma fotografia, uma pintura, outra pintura em ângulo diferente... Cada uma delas tende a provocar reação mental específica no receptor. Uma pessoa exposta à palavra “ÁRVORE” gera um interpretante totalmente diferente daquele obtido por outra pessoa que recebeu uma fotografia da árvore como signo. Isto ocorre, porque o grau de indução da palavra é menor do que o existente na imagem. Ao ouvir ou ler a palavra “ÁRVORE”, o indivíduo se depara com um sem número de possibilidades de interpretá-la — ele pode imaginar uma árvore grande ou pequena, retorcida ou 7 Alfons Heinrich Altmicks
retilínea, com ou sem folhas. No caso da fotografia, não há
dúvidas sobre a árvore exibida: é aquela fotografada. O imediatismo da imagem restringe as possibilidades de interpretação do signo aos fatores psicológicos do receptor (ou seja, ao que aquela foto vai fazê-lo sentir, pensar ou lembrar). A necessidade de diferenciar os tipos de signos levou Peirce a classifica-los em três categorias distintas: 1) Categoria dos signos icônicos, ou ícones; 2) Categoria dos signos indiciais, ou índices; e 3) Categoria dos signos simbólicos, ou símbolos. São chamados ícones os signos que guardam analogia imediata com o objeto representado. É este o caso das pinturas, dos desenhos, das esculturas, das imagens do cinema ou da televisão. A fotografia da árvore, citada no exemplo anterior, encaixa- se nesta categoria. Índices são signos que se referem ao objeto, sem, contudo, a ele serem imediatos — muito embora estejam intimamente relacionados como possibilidade real. Por exemplo, folhas espalhadas no chão significam (ou indicam) que é possível haver uma árvore por perto. Ao contrário do ícone, que mantém o seu significado mesmo distanciado do objeto, ou mesmo que este não mais exista (como no caso de uma árvore que tenha sido cortada logo depois de o fotógrafo tê-la registrado), o índice depende em tudo da existência do seu objeto. Esta ausência de autonomia de existência lhe denuncia o caráter efêmero. Que sentido haveria nas folhas espalhadas pelo chão, se a árvore não estivesse por perto? Voos líquidos 8
Símbolos são signos arbitrários, provindos de uma
convenção entre os indivíduos em sociedade. O exemplo mais característico dos símbolos é a palavra, pronunciada ou escrita. Por contingência histórica, o termo “ÁRVORE” passou a designar certo tipo de vegetal, de proporções determinadas, com raízes, tronco, copa, etc. Mas em seu lugar poderia ter sido usada qualquer outra palavra: “ÁGAPE”, “BORBOLETA”, “FAROL”... É importante observar que dificilmente se encontra um tipo de signo em estado puro. Com frequência, um ícone é também um índice, assim como um índice pode ser simbólico, e o símbolo apresentar-se icônico. No entanto, apenas um deles dominará a relação semiótica, impondo as suas dinâmicas de interpretação sobre os demais. A mente humana é naturalmente preparada para reconhecer e decodificar o tipo semiótico dominante, segundo as suas características. Existem curiosas relações entre estes três tipos especiais de signos. Já se disse que o ícone mantém o seu significado mesmo distanciado do objeto, ou mesmo que este não mais exista. Assim, pode-se facilmente deduzir que conhecer o ícone é, de certa maneira, conhecer o objeto representado. Uma pessoa observando a fotografia de uma árvore passa a conhecer, de antemão, o objeto desta relação semiótica: a árvore real. No entanto, o acesso ao índice não pressupõe o conhecimento do objeto, visto que o primeiro não sobrevive sem o segundo. No que diz respeito ao símbolo, o fato de ser ele um signo artificial torna-o mais independente do seu objeto 9 Alfons Heinrich Altmicks
do que os demais. Desta forma, o símbolo não exige o
conhecimento prévio do objeto. Uma pessoa que nunca tenha visto uma árvore pode perfeitamente saber do que se trata, apenas por ser submetida ao conceito contido na palavra. Por outro lado, o conhecimento da palavra “ÁRVORE” não implica a experiência da árvore em si. Tais características são extremamente relevantes, sobretudo quando se leva em conta o processo de formação das consciências semióticas, geradas no processo de interpretação dos signos.
A formação das consciências semióticas
Em sociedade, é virtualmente impossível escapar ao
bombardeio maciço das mensagens semióticas. Diariamente, é possível entrar em contato com milhares de signos, num processo tão espontâneo que chega a passar despercebido. Esta constante exposição aos signos condiciona os indivíduos a se comportarem mentalmente de acordo com padrões específicos, aos quais nomina-se consciências semióticas. Estes padrões variam de acordo com o modus operandi de interpretação exigido por cada tipo de signo. Há signos que pressupõem um raciocínio mais elaborado, outros são bastante acessíveis. Alguns Voos líquidos 10
mostram-se efêmeros e superficiais; outros, profundos e
graves. Há inclusive aqueles absolutamente herméticos, impossíveis. O caminho para se atingir os seus significados passa pelo desenvolvimento de mecanismos psíquicos específicos, exigidos para a sua interpretação. É importante observar que tais padrões estão fundamentalmente ligados às características dos tipos semióticos de Peirce. Desta forma, há igualmente três categorias de consciências semióticas: a icônica, a indicial e a simbólica. Motivada pelo ícone, a consciência icônica constitui um padrão de interpretação que trabalha basicamente com a intuição e com o sentimento, sem se prender aos processos de síntese/análise ou aos procedimentos da racionalidade objetiva. É o tipo de consciência formado na experiência estética, na subjetividade da vida anímica, no sentimento de religiosidade. A consciência icônica supõe a fronteira entre o onírico e o consciente, desvelando a realidade por via de uma poderosa empatia. Para José Teixeira Coelho Filho:
O que se pretende dizer com consciência icônica é
que se trata de uma consciência que procede com seu objeto [...] isto é: procede por analogia. Fornece à pessoa uma imagem do assunto, uma visão que não se baseia em nenhuma convenção, nenhuma conclusão lógica, mas num esquema tão próximo desse assunto como uma foto é próxima da pessoa retratada (1991, p. 59). 11 Alfons Heinrich Altmicks
A consciência indicial exige um esforço maior do
indivíduo, na medida em que implica o desprendimento de alguma energia (mental ou física) para acessar o entendimento do seu signo original, o índice. O seu padrão de interpretação se fundamenta na constatação, o que pressupõe a capacidade de estabelecer relações imediatas entre o signo e o seu objeto. José Teiceira Coelho Filho afirma: “Assim como a consciência icônica é, num certo sentido, contemplativa, a indicial é operativa” (1991, p. 60). Enquanto a consciência icônica pode propor algo inteiramente original, visto que embasada na sensibilidade, a consciência indicial apenas pode constatar algo que já foi antes constatado. A consciência simbólica representa um padrão de interpretação lógico-dedutivo. É o tipo de consciência que busca o entendimento pleno, os quês e os porquês das coisas, transcendendo a simples intuição e a pura constatação. Visa a explicação. É a consciência que compreende as regras e as convenções, mas também fomenta a criticidade e o espírito investigativo. É geralmente desenvolvida por aqueles que possuem certo gosto pelo exercício intelectual. Estas considerações sobre a Semiótica surgem da necessidade de compreensão da fisiologia íntima da comunicação, de onde brota a telenovela brasileira. A dita Indústria Cultural opera basicamente signos, não apenas nos seus discursos, mas no seu imo. O manuseio semiótico tem determinado, numa perspectiva histórica, o nível de reificação dos seus produtos. Voos líquidos 12
A Semiótica na estrutura da telenovela.
Poder-se-ia inferir, ao se levar em conta os
argumentos supramencionados, que a telenovela é exímia geradora de ícones, uma vez que as suas imagens procedam por analogia, forçando a absorção empática do seu objeto. Naturalmente, desta perspectiva, a conclusão óbvia seria tratar-se a telenovela de um suporte de formação da consciência icônica, posto que contribua para a sensibilização da sociedade. Por outro lado, seria igualmente possível afirmar que a telenovela é uma excelente criadora de símbolos, pois possui uma proposta de dramaturgia engajada, espelhando a realidade social e política do país. Deste prisma, a telenovela fomentaria a consciência simbólica, na medida em que contém, no interior seu discurso, símbolos capazes de acrescentar ao intelecto dos telespectadores. Ainda que aparentemente evidentes, são conclusões equivocadas. A telenovela opera, sim, ícones e símbolos, mas não forma, em nenhuma hipótese, consciências icônicas e simbólicas. O manuseio de ícones e símbolos na sua estrutura ocorre de forma absolutamente indicial. Dito de outra forma, a disposição dos seus elementos semióticos segue uma lógica efêmera, puramente constatadora, o que torna a telenovela um suporte gerador de consciência indicial. 13 Alfons Heinrich Altmicks
Em nível estrutural, a indicialização se faz notar na
velocidade com que as ações narrativas se sucedem no interior da trama telenovelística. As sequencias, os diálogos, os plots5, a música, tudo é rápido, superficial e simplista. Ondina Fachel Leal (1986) estima que 80% das sequencias de cada capítulo de telenovela possuam algo entre 20 e 80 segundos de duração. Aquelas sequencias mais longas, de um minuto a um minuto e meio, são deliberadamente divididas e intercaladas por outras sequencias, para que o telespectador não se canse (e, consequentemente, não disperse a sua atenção). A telenovela é composta por uma miríade de fragmentos de informações visuais e auditivas, que incessantemente bombardeia o telespectador. E isto não é tudo: se os ícones (fotogramas, planos, sequencias) são tratados com a transitoriedade dos índices; os símbolos (diálogos, personagens, representações ideológicas), presentes ao argumento da telenovela, perdem a sua profundidade conceitual para adquirir o simplismo, fragmentado e fragmentário, dos trechos múltiplos de informação, como prova do tratamento indicial a que foram submetidos. Ciro Marcondes Filho alerta para o que chamou de “[...] uma rejeição consciente do prolongamento dialogal, em si 5 Núcleos narrativos que se repetem nas tramas das telenovelas. São, por assim dizer, historias de arquitetura pré-estabelecida, que podem ser recicladas a cada nova telenovela. Desta forma, há sempre o plot da menina pobre que se apaixona pelo rapaz rico (plot Cinderela), o plot da dupla identidade, o plot do rico infeliz, etc. Voos líquidos 14
enriquecedor, mas para a lógica da telenovela
antieconômico e dispersivo” (1991, p. 68). Isto é, a informação extraída da telenovela se apresenta reduzida, simplificada e dividida, com vistas ao atendimento à sua estrutura narrativa indicial. Assim, de uma perpectiva semiótica, a telenovela se apresenta como um grande Videolip volátil, que retém a atenção do telespectador, deixando-o qual criança extasiada frente a uma vitrine de promissoras luzes coloridas. A relativização de ícones e símbolos na trama da telenovela interfere negativamente na intepretação realizada pelo público, na medida exata em que o impede de atingir a plenitude das dimensões sensível e inteligível, oferecendo apenas aquilo que é constatável. Neste processo, o teslespectador se vê incapacitado de penetrar a natureza do objeto, seja intuitivamente, seja racionalmente.
Reificação e fraude na telenovela
Todo este processo de manuseio semiótico tem um
propósito bem definido: segurar o telespectador até o momento do intervalo, mesmo que para tanto tenha que se enganá-lo. A telenovela trabalha sob a égide do Capital e no sentido deste. Como bem de consumo típico da 15 Alfons Heinrich Altmicks
Indústria Cultural6 (e na qualidade de produto de alto
poder de venda na televisão), a telenovela usa a sua imensa audiência para agregar valor ao break comercial da emissora. Assim, a busca incessante pelo aumento audiência justifica o uso de quaisquer dispositivos de que se possa lançar mão, ainda que fraudulentos. Intui-se que haja a fraude, mas onde exatamente está localizada? Que seja registrado: a mais danosa fraude reside no manuseio semiótico dos elementos constitutivos da telenovela. Ícones e símbolos são relativizados e tratados indicialmente. As implicações disto são terríveis, porquanto se recorde a característica mais marcante do signo indicial, qual seja, a de não se deter no objeto, mas tão somente nas qualidades indicativas do seu signo. Desta maneira, o telespectador contempla o signo (a telenovela em si) e se esquece do seu objeto (a própria realidade), o que abre espaço para a reificação. Eis a grande fraude, urdida pela Indústria Cultural: a substituição da realidade pela representação da realidade, sob os aplausos de uma grande massa de telespectadores, que crê estar recebendo cultura e informação (ícones e símbolos), tradutores das tendências estéticas e intelectuais do seu tempo. É assustador imaginar que a realidade cotidiana pode ser substituída pela realidade do vídeo. No mínimo, esta é uma afirmação bastante controversa, mas justifica-se a sua causa num simples
6 Expressão cunhada por Theodor Adorno, em 1931, para se referir aos
processos serializados de produção cultural, engendrados pelo sistema Capitalista. Voos líquidos 16
diálogo fictício, idealizado por Pedrinho Alcides
Guareschi: “Hoje, não trabalho, pois haverá greve de ônibus”. “Como assim? Não deu nada sobre greve de ônibus na televisão!” (1989, p. 23). Simples assim: se não deu na TV, não existe. E a realidade quotidiana é subjugada e substituída, com toda a naturalidade, pela verdade do vídeo. Uma derradeira consideração deve ainda ser feita em relação à escala de todo este processo: a televisão alcança 99,1% do território brasileiro e quase 85,5% das pessoas que nele habitam7. É indubitavelmente o mais poderoso meio de comunicação de massa do país. A telenovela, como seu bem de consumo tradicional, herda estes mesmos números, atingindo diariamente milhões de lares por todo o Brasil. Num país em que a população tem pouco acesso à informação e à cultura, e onde os meios de comunicação de massa fazem as vezes da família e da escola, o uso irresponsável dos recursos semióticos pode ter efeitos devastadores para a formação dos indivíduos. Potencialmente, a telenovela, através dos seus backgrounds, pode tanto criar modas para incentivar o consumo de determinados produtos quanto legitimar toda uma ideologia. De uma perspectiva teórica, esse é o poder da telenovela. Trata-se de uma realidade que não pode ser ignorada. Assim, a coisa mais acertada a se fazer é procurar minimizar as suas ações negativas. E qualquer
7 Dados de 1993, época em que o ensaio foi redigido.
17 Alfons Heinrich Altmicks
passo nesse sentido leva, fatalmente, a uma estada na terra
da Semiótica.
Conclusão
Foi constatado o poder da telenovela para moldar a
realidade e reificar (coisificar) o ser humano. Este poder provém da manipulação dos seus recursos semióticos. Trabalhando em prol de uma superficialização do pensamento coletivo, a telenovela, tal como hoje é constituída, promove na sociedade a consciência indicial, condicionando as pessoas a apenas constatar, sem intuir, argumentar ou avaliar. Isto responde às perguntas realizadas na introdução deste pequeno ensaio: a telenovela é nociva, sim, porque distorce a visão do mundo (e de si mesmo) formulada pelo indivíduo. Embota o seu senso crítico. O método usado para tanto é o do desvio semiótico (considerado o crime perfeito, já que não pode ser facilmente percebido). Qualquer tentativa de refrear os aspectos negativos da telenovela passa necessariamente pelo questionamento da sua dimensão Semiótica. E como se poderia fazer isso? Basicamente, identificando-se os mecanismos da indicialização, de maneira que se possa fazer pressão sobre os veículos de comunicação, para obriga-los a Voos líquidos 18
equilibrar os elementos semióticos presentes na
telenovela. Ícones, índices e Símbolos devem possuir o mesmo peso, para não criar tendenciosidade na teleficção brasileira. Na prática, isso implica uma redução do ritmo frenético dos programas, a valorização estética das imagens e o aprofundamento do discurso televisivo. Parte-se do entendimento de que a telenovela pode ser modificada na sua estrutura semiótica, tornando-a capaz de interagir com a sociedade, modificando-a e sendo por ela modificada. A telenovela deve encontrar uma solução para se tornar um veículo de expressão social, portador da vontade da sociedade à qual pertence.
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