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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE

CENTRO DE HUMANIDADES – CH
CURSO DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

JAIR SOARES DE SOUSA

O CONCEITO DE DIMENSÃO ESTÉTICA EM MARCUSE: O potencial crítico da


arte para a luta de libertação

FORTALEZA – CE
2017.1
JAIR SOARES DE SOUSA

O CONCEITO DE DIMENSÃO ESTÉTICA EM MARCUSE: O potencial crítico da arte


para a luta de libertação

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Curso de Graduação em Filosofia do Centro de
Humanidades da Universidade Estadual do Ceará,
como requisito parcial à obtenção do grau de
bacharel em Filosofia

Orientador: Prof. Dr. Alberto Dias Gadanha

FORTALEZA – CE
2017.1
Ao meu mestre e minha grande e eterna
mestra com amor e carinho. Sra.
Francisca, Soares de Sousa (mãe) e o Sr.
Luiz Saraiva da Silva (pai).
AGRADECIMENTOS

A deus por todas as bênçãos concedidas nesta vida.


A minha companheira de vida Joselma Iara pelo amor e o cuidado diário comigo e
meus filhos.
Aos meus filhos Abell, Samuel e Miguel que me fazem ter a razão de viver, criar e
recriar sentidos todos os dias.
Ao professor Dr. Alberto Dias Gadanha pela orientação, materiais de estudo,
paciência e confiança.
Aos amigos e amigas do Grupo de Pesquisa: Atualidade Filosófica no pensamento
de Herbert Marcuse/UECE.
Ao mestre e cenopoeta Ray Lima com quem tenho meus momentos de arte e
criatividade cenopoetica.
A minha mestra Sr.ª Vera Lúcia de Azevedo Dantas pelo seu carinho, cuidado e
amor com as linguagens do cuidado e da arte.
Ao grupo Pintou Melodia na poesia.
Ao Movimento Escambo Popular Livre de Rua.
A Estratégia Cirandas da Vida de educação popular.
Ao espaço EKOBÉ pelos cuidados e a arte.
Aos amigos e amigas do Instituto Nordeste Cidadania-INEC.
A todos(a) cenopoetas do mundo.
“Como pode a arte falar a linguagem de
uma experiência radicalmente diferente,
como pode ela representar a diferença
qualitativa? Como pode a arte invocar
imagens e necessidades de libertação
que penetram na profunda dimensão da
existência humana, como pode ela
articular a experiência não só de uma
classe particular, mas de todos os
oprimidos”? (Herbert Marcuse).
RESUMO

Para Marcuse a arte ou dimensão estética é um componente essencial para o


processo revolucionário da consciência e do comportamento dos indivíduos. É o
libertar do espírito absoluto em linguagem hegeliana. Neste sentido, a arte configura-
se como a fantasia que faz com que o "aparente" possa revelar a essência das
coisas. Essência aqui é compreendida não como um campo metafísico, e sim como
desvelamento de questões incrustadas dentro de uma verdade do “establishment"
na totalidade das relações, que não condiz com o real. Em base dialética seria a arte
em meio às contradições internas e externas, apontando a contraposição com a
representação da forma estética. Marcuse preocupado com as questões estéticas no
século XX, bem como, as teses defendidas pelos estetas marxistas ortodoxos,
confrontou alguns argumentos como: uma relação definida de arte limitada há uma
classe social, o político e o estético fazendo parte da mesma esfera, uma não
distinção em relação aos escritores de literatura com outros gêneros literários, os
escritores de literatura teriam de escrever especificamente para exprimir os
interesses da classe em ascensão, no caso da relação com o modo de produção
capitalista, escreveriam apenas para o proletariado. Em seu livro “A Dimensão
Estética” (1977), vai apresentar sua defesa, afirmando que a “experiência da arte
transcende as relações materiais”. Considera que correntes literárias como o
romantismo alemão são fundamentais para o despertar de consciências e que a
autonomia da arte, a sua independência e liberdade, possuem o imperativo
categórico as "coisas tem de mudar" para além do realismo vigente dos estetas
marxistas ortodoxos. A partir destes pressupostos, pretende–se com este trabalho
apresentar uma visão inicial da relação do filósofo com a arte; expor a crítica de
Marcuse contra à estética marxista de cunho ortodoxo; explicitar um panorama
sobre a dimensão estética e problematizar a importância da função crítica da arte e
da subjetividade para a luta de libertação.

Palavras-chave: Estética marxista. Ortodoxia da arte. Subjetividade. Função crítica


da arte.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................10

2 UM PANORAMA INICIAL SOBRE A ESTÉTICA EM MARCUSE........................15

3 A ARTE PROGRESSISTA RUSSA DO SÉC. XIX E SUAS BASES


ORTODOXAS........................................................................................................26
4 ORTODOXIA E REIFICAÇÃO DA ARTE: A CRÍTICA AOS ESTETAS DO
MARXISMO ORTODOXO......................................................................................34
5 FORMA ESTÉTICA E AUTONOMIA DA ARTE: A FUNÇÃO CRITICA A ARTE
DIANTE DO ESTABLISHMENT............................................................................41

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................51

REFERÊNCIAS......................................................................................................53
10

1 INTRODUÇÃO

As obras de Herbert Marcuse (1898-1979) possuem grande relevância


para a construção de uma teoria crítica da sociedade que se faz efetiva na práxis
cotidiana e política dos indivíduos. O contributo dos seus textos e reflexões foram de
fundamental importância para alavancar processos revolucionários na Europa e
EUA. Destacamos o período de 1968 na França, momento onde a juventude
construiu sua tomada de consciência política e mostrou por meio da práxis política
radical e da arte, que não poderiam ficar sujeitados(as) aos ditames e
arbitrariedades, proferidos pelos governos da época.

Neste momento político, Marcuse foi acusado de ser um dos grandes


idealizadores do movimento. Posteriormente, responde aos jornais e programas de
televisão da época que ele não foi responsável pela atitude política dos jovens,
explicitou que as “forças de rebelião” foram estimuladas pela situação política
vigente, as suas contradições e problemas não tinham como ser suportadas. Neste
sentido as revoluções e revoltas foram o fruto da consciência política e ao mesmo
tempo, do processo de “negação” do que estava estabelecido como verdadeiro
pelas estruturas conservadoras da época.

Portanto, um processo que foi necessário, para que o mundo começasse


a observar os acontecimentos e fatos políticos com perspectivas diferenciadas.
Naquele momento foi percebido a essência que estava no invólucro do aparente
dotado de “razão instrumental” e não “razão crítica”. Foi a possibilidade concreta de
efetividade e afirmação do ser.

Influenciado inicialmente por Hegel e Marx, posteriormente por Freud e


outros pensadores, inclusive os contemporâneos do Instituto de Pesquisa Social
(Escola de Frankfurt), Herbert Marcuse, pensou e propôs caminhos para uma
sociedade que estava sem oposição, que permanecia findada aos ditames do
mundo do establishment.
11

Dentre as diversas obras de Marcuse, pesquisadores e estudiosos,


tendem a expor com mais constância aquelas que tratam sobre os temas como:
política, tecnologia, psicanálise, emancipação e revolução, além do hegelianismo e
marxismo.

Tratando-se de questões estéticas estas sempre foram uma lacuna


aberta para a possibilidade de se estudar e perceber o contributo de seu estatuto
estético. Como afirmou KELLNER (1989, p. 275) “Conforme o leitor atento, logo
descobrirá, que muitos dos melhores artigos de Marcuse sobre arte e estética não
foram publicados, permanecendo relativamente desconhecidos durante sua vida”.

Neste seguimento é que esse trabalho de conclusão de curso, pretende


apresentar uma visão inicial da relação do filósofo com a arte; expor a crítica de
Marcuse contra as seguintes teses da estética marxista ortodoxa: 1.Uma relação
definida entre arte e a base material, entre arte e a totalidade das relações de
produção, 2. Certa conexão definida entre arte e classe social. A única arte
autêntica, verdadeira e progressista, é a arte de uma classe em ascensão, que
exprime a tomada de consciência desta classe, 3. O político e o estético, o conteúdo
revolucionário e a qualidade artística tendem a coincidir, 4. O escritor tem a
obrigação de articular e exprimir os interesses e as necessidades da classe em
ascensão. (No capitalismo, esta seria o proletariado), 5. A classe declinante ou os
seus representantes só podem produzir uma arte ‘decadente”, 6. O realismo (em
vários sentidos) é considerado a forma de arte que corresponde mais
convenientemente ás relações sociais, constituindo assim a forma de arte “correta.
Por fim; Apresentar a importância e a função crítica da arte e da subjetividade para a
luta de libertação.

Marcuse chamou de “estetas marxistas ortodoxos” aqueles que


procuraram fundamentar um pensamento estético pautado nas relações materiais,
nas sociedades de classe e na corrente do realismo socialista. De acordo com
Marcuse, essas teses não contribuíram para a estética marxista. Elas estavam
completamente equivocadas em relação ao pensamento de Marx e Engels e
deixavam a desejar no que se refere aos estudos do materialismo histórico e
dialético.
12

Na visão de Marcuse esses estetas deixaram um hiato no que diz respeito


ao potencial da arte e da estética e sua relação com a subjetividade dos indivíduos.
Este pretende problematizar estas questões no sentido de trazer para o debate
filosófico a importância da estética e da arte para o processo de libertação dos
indivíduos.

A preocupação de Marcuse se dá ao perceber que em dado momento


histórico e político a chamada “realidade” apresentava-se numa perspectiva “infeliz”
onde tudo era pautado nas questões do aparente e do estabelecido, dos processos
de tecnologização e coisificação dos indivíduos, na indústria bélica e no
condicionamento dos corpos e consciências dos indivíduos pelas estruturas da
razão instrumental. Neste ponto de vista, a preocupação com a arte está na
possibilidade que as linguagens e a estética possuem para propiciar as
possibilidades de rompimento com o estabelecido.

Para Marcuse a arte é uma possibilidade para sair da mistificação da


totalidade e negar a razão instrumental do estabelecido, este caminho seria por meio
da fantasia, ficção, imaginação e subjetividade, contidas na experiência estética e na
arte. As teses então levantadas pelos estetas do marxismo ortodoxo na visão de
Marcuse, estariam contribuindo para que esta possibilidade de ruptura e negação do
estabelecido não se efetivasse. Estes estetas limitaram a experiência da arte e da
estética à “totalidade das relações”, tornaram a “subjetividade” como um átomo da
objetividade.

Tal postura ortodoxa negligenciara as possibilidades que a arte teve e


tem de provocar possíveis rupturas. Assim, este trabalho foi produzido na esperança
de trazer novamente o debate acerca da estética marxista e contribuir com as suas
discussões, de buscar levantar “o que é o potencial da estética e da arte para a luta
de libertação”, “compreender as teses dos estetas do marxismo ortodoxo e lançar
alguns questionamentos acerca de suas posturas”.

Para este fim, buscamos levantar alguns problemas com o objetivo de


“não os responder de imediato” mas procurar levantar e aprofundar tais pontos de
partida, no sentido de ampliar o debate entorno da estética e da arte que se faz
13

necessário, dentro dos estudos de filosofia, bem como na experiência da própria


vida. Assim, seguem os problemas a serem levantados.

A arte tem limites? Os limites da arte estão contidos na totalidade das


relações de troca? O que torna a arte revolucionária, mesmo não fazendo parte da
estrutura política? Em que sentido a arte nos possibilitaria a sensação de
experiência, verdade e qualidade em meio ao mundo do “establishment”? Estes
problemas são levantados aqui com o objetivo de abrir um parêntese inicial, no
sentido de contribuir para o potencial da estética e da arte em meio a mistificação
das relações e condicionamentos das sociedades estabelecidas. A finalidade não
seria responder as questões de forma fechada e limitada, mas ampliar o debate em
torno da estética e da arte e sua relação com a dialética.

Para o levantamento destas questões este trabalho foi dividido em quatro


capítulos, distribuídos nas ordens seguintes: 1º capítulo – Um panorama inicial sobre
a dimensão estética em Marcuse. Neste primeiro empreendimento, faço um breve
estudo sobre as bases iniciais e influências de Marcuse sobre à estética e à arte;
destaco a recepção do filósofo com o tema e as obras filosóficas que pesquisou;
procuro enfatizar as influências de Hegel, Schiller, Kant, Marx, Engels, Adorno,
Goethe e outros. Por fim, explicito os estudos de Marcuse com foco na literatura do
século XVIII e XIX.

No 2º capítulo – A arte progressista Russa do século XIX e suas bases


ortodoxas; Faço um levantamento inicial sobre como se estabeleceu a construção e
a recepção do realismo socialista na Rússia; Destaco os problemas que foram
oriundos de uma postura enrijecida em relação a arte e a estética neste período;
Problematizo algumas situações enfrentadas pelos artistas, a negação da idéia de
introspecção e da subjetividade defendida pelo realismo da arte progressista etc.
Será demonstrada a relação entre as teses do realismo socialista em relação a arte,
bem como, a crítica de Marcuse em relação as posturas ortodoxas. Por fim, procuro
localizar os estetas do marxismo ortodoxo que não foram explicitados por Marcuse
em sua obra “A Dimensão Estética” (1977).
14

No 3º capítulo – Ortodoxia e reificação da arte: A crítica de Marcuse aos


estetas do marxismo ortodoxo; Apresento os conceitos que Marcuse expôs acerca
da idéia de “ortodoxia e reificação da arte;” Exponho as seis teses fundamentais na
visão de Marcuse que foram expostas pelos estetas marxistas ortodoxo. Procuro
mostrar a negação de cada tese, tentando fazer um caminho dialético. Talvez a
perspectiva de reificação da arte seja uma das categorias mais fundantes para
compreender a defesa de Marcuse da estética. De acordo com o autor os estetas do
marxismo ortodoxo ao negarem a introspecção e a subjetividade do artista e dos
indivíduos em relação a arte e a criação, acabaram que defendendo a reificação dos
indivíduos, que foi tão combatida pelo marxismo. Para além de determinada classe
social e independente da arte estar limitada a concentricidade das relações materiais
ou das relações de troca e produção, os estetas, na reflexão de Marcuse, precisam
entender que cada indivíduo carrega sua história de criatividade, paixões,
sentimentos e sonhos, isso está fora do alcance de uma postura limitada da
objetividade da vida estabelecida.

Por fim, no 4º capítulo levanto os seguintes questionamentos: A arte tem


limites? Os limites da arte estão contidos na totalidade das relações e nas relações
de troca? O que torna a arte revolucionária ela sendo apolítica? Ou seja, não
fazendo parte da estrutura da práxis política radical? Em que sentido a arte nos
possibilitaria a sensação de experiência, verdade e qualidade em meio ao mundo do
estabelecido?

Exponho a necessidade da arte e da estética como negação do mundo


estabelecido; apresento em contraposição ao ortodoxismo de alguns estetas
marxistas, outras possibilidades existentes na arte que contribuem para os
processos de autonomia e liberdade contra as estruturas do estado de coisas, das
relações mistificadas da racionalidade instrumental e da totalidade das relações de
produção. Exponho que o potencial da arte é possível enquanto arte pela arte, de
acordo com as reflexões desenvolvidas por Marcuse. A arte produz as suas forças
de acusação ao estabelecido a partir do momento em que ela permanece indiferente
à práxis política. Arte pela arte para Marcuse, não quer dizer qualquer arte.1

1
Ver prefácio: MARCUSE, Herbert. A dimensão Estética, (The Aesthetic Dimension), tradução: Maria
Elisabete Costa, edições 70- 2016.
15

2 UM PANORAMA INICIAL SOBRE A ESTÉTICA EM MARCUSE

Em 2007 é lançada a coletânea de artigos Herbert Marcuse, publicada a


partir dos estudos empreendidos em 1989 por Douglas Kellner2. A pesquisa foi
produzida a partir dos arquivos Marcuse na cidade de Frankfurt. Esta Coletânea foi
constituída de seis volumes divididos nos seguintes temas: Tecnologia, Guerra e
Fascismo, Projeto Frankfurtiano de uma Teoria Crítica da Sociedade, A New Left nos
anos 60 e 70, Filosofia, Psicanálise e Emancipação, além dos textos relacionados ao
estatuto estético de Marcuse.

Este último que consta no quarto volume da Collected Papers of Herbert


Marcuse: Art and Liberation e a obra intitulada A Dimensão Estética de 1977,
compõe inicialmente as fontes principais deste estudo. O motivo e a razão para a
exposição deste trabalho de conclusão de curso, está situada na contribuição do
pensamento estético de Marcuse para a luta de libertação da subjetividade e ao
mesmo tempo da objetividade angustiante da vida material. Pela possibilidade da
dimensão estética, fazer com que a “arte” crie uma linha de tensão necessária em
contraposição as sociedades existentes (establishment). A relação do pensamento
estético de Marcuse com a conjuntura histórica, os seus estudos sobre teoria crítica
da sociedade, a política radical das forças de rebelião onde a arte se faz presente
enquanto dimensão acusadora, “enquanto arte pela arte”, motiva-nos a perceber e
compreender toda a amplitude de seu estatuto estético e a sua contribuição com a
filosofia e a arte.

Para Marcuse (1898–1979) arte ou estética são componentes essenciais


para o processo revolucionário quer da consciência, quer do comportamento dos
indivíduos. Suas teses sobre questões estéticas estão presentes na maioria dos
seus escritos, não por acaso, estuda o momento literário, artístico, filosófico e
político do romantismo alemão. Pesquisa também as obras do dramaturgo Schiller,
bem como o sistema de Hegel3, que compreende como espírito absoluto a
experiência da arte, religião e da filosofia.

2
A respeito da importância dos materiais encontrados nos arquivos Herbert Marcuse ver KELLNER,
1994.
3
Em relação ao termo “sistema de Hegel” empregado no texto, este foi referendado também pelo
filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz na tradução do prefácio, introdução e capítulos I e II da obra
Fenomenologia do Espírito.
16

A arte é para Hegel o primeiro momento de afirmação do “espírito


absoluto”, ela possui a função de possibilitar a consciência de si. Neste sentido,
Hegel expõe o espirito absoluto, dividindo-o na seguinte estrutura triádica: primeiro o
espírito subjetivo, onde situa-se a sua “fenomenologia do espírito”, segundo o
espírito objetivo, onde consta a “filosofia do direito” e o terceiro como espírito
absoluto onde constam as experiências da arte, religião e filosofia.

Mas para pensar esse movimento é preciso pensar a unidade dos diferentes
momentos, cada um dos quais é a negação do precedente, pensar a
unidade e a identidade da origem e do fim. Tal é o sentido e a função dessa
categoria espírito: o espírito não permanece em si, pura abstração
indeterminada; faz-se outro, num movimento de alienação pelo qual dá a si
o seu mundo, realizando o que é e, com isto, tomando plena consciência do
que é efetivamente, sabendo-se realmente em suas realizações. Produz a
partir de si mesmo o mundo em que é efetivo, em que é livre porque não se
relaciona senão consigo mesmo (BRÁS, 1981, p. 20).

Esta noção é tomada por Hegel num sentido absoluto, que ultrapassa,
portanto, os limites de uma consciência individual. Se ela encontra uma
expressão na representação religiosa do cristianismo, não se deixa reduzir
ao tema de um deus pessoal, que transcende o mundo. Ao contrário, o
espírito torna-se o que é ao se realizar efetivamente no mundo. Não é um
infinito separado do finito: nesse caso, seria um infinito limitado, o que é
absurdo. É, portanto, o infinito que engloba o finito, que se realiza no finito.
É o absoluto, e o absoluto é resultado, resultado de si próprio: é a unidade
do processo em cujo curso se torna efetivamente o que é em si. É, portanto,
liberdade, concebida não como exercício de um livre-arbítrio, mas como
realização do racional (BRAS, 1989, p.12).

Destaca–se a influência do pensamento estético e dialético de Hegel


4
como uma das bases iniciais do pensamento de Marcuse, considerando-se que
este, produz também uma vasta pesquisa sobre arte e literatura em outros autores,
quer da área filosófica, quer da área literária. A arte para Hegel tem a função de
possibilitar a consciência de si. Tal reflexão vai de acordo com as proposições de
Marcuse ao elevar a arte a sua dimensão qualitativa. Marcuse ao criticar os estetas
marxistas ortodoxos, deixa claro que estes, limitaram a experiência da arte em
simples “aparência” contida na sociedade de classe e na totalidade das relações, no
realismo. A experiência da arte na compreensão de Marcuse, possibilita a

Ver também: HOSLE, Vittorio. O Sistema de Hegel: O idealismo da subjetividade e o problema da


intersubjetividade. SP; Loyola, 2007.
4
O Hegel de Marcuse é um pensador dialético crítico, o qual ele tenta absolver da responsabilidade
pelos estados totalitários com os quais Hegel foi a frequentemente associado como progenitor
espiritual (KELNER, 1966, p, 13).
17

consciência de si a partir do momento em que produz uma outra imagem, para além
da totalidade do estabelecido.

Esse processo pelo qual um ser sai de si, torna-se para si, é próprio do que
Hegel chama de sujeito e opõe a substância, categoria metafísica que
designa, ao contrário, a imutabilidade eterna (BRÁS, 1981, p. 20).

Marcuse enquanto aluno da Universidade de Berlim, escreveu sua


primeira publicação tratando do tema “arte e estética” a partir de uma revisão
bibliográfica do dramaturgo e poeta alemão Friedrich von Schiller. As obras
dramáticas, filosóficas e estéticas de Schiller para Marcuse, sempre foram marcadas
pela defesa da liberdade, tema este indissociável de seu pensamento. Uma segunda
observação é que Schiller produziu obras que ressaltavam a rebeldia social e
política de seus personagens, dramaturgia que retratava a saga de heróis que
faziam oposição às sociedades vigentes, corruptas e corruptoras dos valores
humanos e dos ideais como fraternidade e esperança.

As cartas sobre a educação estética do homem de Schiller (1975), escritas


em grande parte sobre o impacto da crítica do juízo, visam à reconstrução
da civilização em virtude da força libertadora da função estética, sendo que
esta função foi considerada como contendo a possibilidade de um novo
princípio de realidade (MARCUSE, 1955, p.161).

Importante frisar que "arte e estética" para Marcuse estão intrinsecamente


interligadas. Neste sentido a estética em Marcuse não é apenas uma concepção da
estética enquanto ciência das sensações em relação ao conhecimento e ao belo,
mas também um caminho dialético que possibilita os indivíduos transcenderem a
experiência do mundo existente. Marcuse interessou-se particularmente pela
literatura de origem alemã sem deixar de referendar outras correntes que trataram
sobre as artes como é o caso das vanguardas russas e francesas.

Algumas observações preliminares: embora este ensaio fale da arte em


geral, a minha discussão foca essencialmente a literatura e sobretudo a
literatura dos séculos XVIII e XIX. Não me sinto habilitado para falar da
música e das artes visuais, embora esteja convicto de que o que se aplica a
literatura, mutatis mutandis, também se pode aplicar a estas artes
(MARCUSE, 1977, p.12).

A tese de doutoramento de Marcuse intitulada: Der Deutsche


Künsterroman (O romance do artista alemão) apresentada em 1922 na Universidade
de Freiburg é a segunda experiência sistemática sobre arte que Marcuse vai ocupar-
se. Nesta tese, separa a experiência da arte e do artista da totalidade das relações.
18

Marcuse pondera: “Na obra do artista romântico, o autor considera


impossível vislumbrar qualquer satisfação potencial dentro do quadro das
condições dadas”. E acrescenta: Ele foge então para outro plano, para uma
terra dos sonhos idealizada, e constrói lá seu mundo poetizado de
realização” (BRETAS, 2007, p.275-276).

Consoante com Marcuse a experiência do artista não é a mesma dos


homens que o cercam. Outra obra em que a estética vai se fazer presente é no
clássico Eros e Civilização (1955). No capítulo nove, refere-se a dimensão estética,
apresentando as seguintes teses: A Estética como Ciência da Sensualidade,
Reconciliação entre Prazer e Liberdade, Instinto e Moralidade, as Teorias Estéticas
de Baumgarten, Kant e Schiller, Elementos de uma Cultura não Repressiva e, por
fim, Transformação do Trabalho como Atividade Lúdica.

O que se procura é a solução de um problema “político:” A libertação do


homem das condições inumanas. Schiller afirma que a fim de solucionar o
problema político, “tem de se passar através da estética, visto ser a beleza
o caminho que conduz à liberdade. O impulso lúdico é o veículo dessa
libertação. O impulso não tem por alvo “com” alguma coisa; antes, é o jogo
da própria vida - para além de carências e compulsões externas - a
manifestação de uma existência sem medo nem ansiedade, e assim, a
manifestação da própria liberdade (MARCUSE, 1955, p. 166).

Na obra O homem unidimensional5: A ideologia da Sociedade Industrial


Avançada (1964) a arte é refletida em contraposição a sociedade e o pensamento
unidimensional. A arte poderia trazer à tona formas bidimensionais de superação e
emancipação humana.

Na reflexão de Marcuse o homem unidimensional não conhece suas


verdadeiras necessidades, porque suas necessidades não são suas próprias. Elas
passam a ser administradas, sobrepostas e heterônomas; não é capaz de resistir à
dominação, nem de agir autonomamente, pois se identifica com o comportamento
público, imita e submete-se aos poderes existentes. Marcuse propõe o pensamento
negativo, categoria central levantada por Hegel em contraposição ao estado
estabelecido de coisas, a experiência da arte poderia ser também essa possibilidade
de negação.

5
MARCUSE, Herbert. O homem Unidimensional: Estudos da Ideologia da Sociedade Industrial
Avançada, tradução de Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva.
São Paulo: EDIPRO, 2015.
19

Tal posição crítica requer desenvolver o que Marcuse denomina de


“pensamento negativo”, que “nega” as formas existentes de pensamento e
realidade da perspectiva de suas possibilidades superiores. Essa prática
pressupõe a habilidade de fazer a distinção entre existência e essência, fato
e potencialidade, aparência e realidade (KELLNER, 1966, p. 12).

Assim, a proposição da arte seria um caminho de retomada da


autonomia, pois a experiência da arte, constitui a possibilidade de outras imagens de
libertação, fantasia e acusação do status quo. A arte possui também o seu potencial
de negação, enquanto fantasia e imaginação em contraposição a sociedade
unidimensional.

Assim, proponho interpretar “unidimensional” como conformidade ao


pensamento e comportamento existentes e ausência de uma dimensão
crítica e de uma dimensão de potencialidades que transcendem a
sociedade existente. No uso de Marcuse, o objetivo “unidimensional”
descreve práticas que se conformam a estruturas preexistentes, normas e
comportamentos, em contraste com o discurso multidimensional, que
focaliza possibilidades e transcendem o estado de coisas estabelecido.
Essa distinção epistemológica pressupõe antagonismo entre sujeito e objeto
de tal modo que o sujeito é livre para perceber possibilidades no mundo que
ainda não existem, porém que podem ser realizadas (KELNER, 1966, p.
21).

No livro Contra–Revolução e revolta (1972), com o texto “Arte e


revolução”, expõe a necessidade de uma linguagem que possa transcender a
experiência ordinária da arte (arte enquanto cultura afirmativa) e do mundo, a
negação de uma experiência que faz com que os indivíduos percebam o existente
como verdadeiro.

A comunicação dos novos objetivos históricos, radicalmente não


conformistas da revolução, exige uma linguagem igualmente não–
conformista (na mais lata acepção), uma linguagem que atinja uma
população que introjetou as necessidades e valores dos seus amos e
gerentes e os tornou seus, assim reproduzindo o sistema estabelecido em
seus espíritos, suas consciências, seus sentidos e instintos (MARCUSE,
1972, p. 81).

A reflexão que Marcuse expõe a partir da citação nos faz pensar sobre a
necessidade da arte em meio uma sociedade unidimensional que por uma situação
de condicionamento, defende os interesses opostos a possibilidade de libertação e
emancipação humana. Neste sentido, a arte segundo Marcuse ainda propicia uma
recusa do status quo. É por meio das linguagens da arte, e não somente, que ainda
é possível atingir a população que conserva condicionalmente os ditames de seus
amos.
20

Por fim, escreve o ensaio intitulado A dimensão estética (1977) na


perspectiva inicial de contribuir com a “estética marxista”, ou seja, uma estética que
considera o tratamento da arte como ideologia e ênfase no caráter de classe da arte
e das relações de produção. Todavia, Marcuse levanta a necessidade de um
reexame sobre o conceito de uma estética verdadeiramente marxista.

A estética marxista pressupõe que toda a arte é de alguma forma


condicionada pelas relações de produção, pela posição de classe, e assim
por diante. A sua primeira tarefa (mas, apenas a primeira) é a análise
específica deste de alguma forma, isto é, dos limites e formas deste
condicionamento. A questão de saber se há qualidade de arte que
transcendam as condições sociais específicas e de como estas qualidades
estão relacionadas com as condições sociais específicas continua em
aberto. A estética marxista deve ainda perguntar: Quais são as qualidades
da arte que transcendem o conteúdo e a forma social específica e dão a
arte a sua universalidade? (MARCUSE, 1977, p. 26-27).

Segundo Marcuse os estetas do marxismo ortodoxo cometeram erros


graves em relação a compreensão do pensamento de Marx e Engels, no que tange
a dialética e ao materialismo histórico e dialético. Estes elencaram esses erros a
uma compreensão limitada da estética marxista. Em detrimento de determinadas
“ideologias” de cunho ortodoxo, deixaram a desejar em relação a interpretação e o
potencial da arte e da estética. Daí sua preocupação e reexame em relação ao
estatuto da estética marxista.

O motivo de escrever sobre questões estéticas nessa obra, foi a crítica a


uma compreensão vulgar por parte dos estetas do marxismo ortodoxo em relação a
verdadeira estética marxista. Compreendendo que para Marcuse uma estética
verdadeiramente marxista não poderá negar o sujeito ou a capacidade subjetiva dos
indivíduos, como negou as teses dos estetas ortodoxos.

Marcuse “não nomeia” especificamente na obra esses estetas, porém é


possível levantar com certa precisão uma base centrada no marxismo–leninista–
maoísta, tendo como referência nomes como: Plekhanov, Mehring, Bukhárin,
Eisenstein, Gorki, Zhdanov, Caudwell, Kosik e outros.

Para Marcuse é clara a aproximação da arte no contexto das relações


sociais, a arte é também uma forma criativa da consciência dentro de um percurso
histórico da vida e da sensibilidade dos indivíduos.
21

Todavia, a experiência da arte não é intrinsecamente ligada a vida


cotidiana, pois o mundo da arte e do artista é um outro mundo. A razão é uma
insistência num descontentamento entre arte e vida. Neste sentido, esse
descontentamento, aparece como: fantasia, subjetividade e criatividade ambas
fazendo parte da experiência da arte, a própria sociedade identifica o artista e a arte
como tipos sociais distintos.

O esforço desesperado do artista para fazer da arte uma expressão direta


6
da vida pode vencer a separação da arte da vida. Wellershoff aponta o fato
decisivo: “existem diferenças sociais intransponíveis entre a fábrica de
conservas e o estúdio do artista: a fábrica de Warho; entre o ato de pintar e
a verdadeira vida que gira à sua volta (MARCUSE, 1977, p. 58).

Conforme Marcuse (1977, p.32), “A arte não pode abolir a divisão social
do trabalho que conduz seu caráter esotérico, mas também não se pode popularizar
sem atenuar o seu impacto emancipatório”. Não obstante, “limitar a arte as questões
de base superestrutura” como conceituaram os estetas do marxismo ortodoxo, seria
um tanto perigoso, pois tal proposição, negligenciaria o próprio pensamento de Marx
e Engels, partindo do pressuposto que Marx não nega totalmente a “consciência”,
tão defendida no pensamento hegeliano, muito menos a dialética. Inverter o
movimento da dialética de Hegel não quer dizer despreza-la, negar por negar. Para
a dialética tal proposição seria um absurdo.

Há quase trinta anos, numa época em que ela ainda estava na moda,
critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana. Quando eu elaborava o
7
primeiro volume de O capital, epígonos aborrecidos, arrogantes e
medíocres que agora pontificam na Alemanha culta, se permitiam tratar
Hegel como o bravo Moses Mendelssonhn tratou Espinosa na época de
Lessing, ou seja, como um “cachorro morto”. Por isso, confessei-me
abertamente discípulo daquele grande pensador e, no capítulo sobre o
valor, até andei namorando aqui e acolá os seus modos peculiares de
expressão. A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não
impede, de modo algum, que ele tenha sido o primeiro a expor as suas
formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. (MARX, 1873,
p.21).

Marx não reconhece a existência de nenhum aspecto da realidade humana


situado acima da história ou fora dela; mas admite que determinados

6
Dieter Wellershoff (1925-2016) – Nascido em 1925 em Nauss, escreve romances, contos e ensaios,
roteiros e peças de rádio. Prêmio Heinrich Boll 1988. As fontes de pesquisa para estas informações
encontram-se na obra: Das Gluck, der Tod und der “Augenblick: Realismus und Utopie im Werk
DieterWellershoffs/ Ulrich Tschierske, - Tubingen: Niemeyer, 1990. Books.google.com.br – acesso:
08/01/2017 ás 15:52.
7
“Epígonos” refere-se aqueles que nasceram depois (discípulos), Marx lança sua crítica aos filósofos
burgueses alemães: Ludwig Buchner (1824-1899), Friedrich Albert Lange (1828-1875), Karl Eugen
Duhring (1833-1921), Gustav Theodor Fechner (1801-1887).
22

aspectos da realidade humana perduram na história. Exatamente porque o


movimento da história é marcado por superações dialéticas, em todas as
grandes mudanças há negação, mas ao mesmo tempo uma preservação (e
uma elevação superior) daquilo que tinha sido estabelecido antes
(KONDER, 1981, p. 53-54).

Percebemos a categoria “preservação” na citação de Leandro Konder


fazendo parte do termo alemão Aufgehoben que na dialética de Hegel é esclarecido
como o movimento de “superar conservando”. Encontramos o sentido deste conceito
na tradução da obra fenomenologia do espírito, feita pelo filósofo Henrique de Lima
Vaz8.

Partindo para a compreensão da estética marxista ortodoxa, esta


interpretou o pensamento de Marx como se a arte findasse apenas na objetivação
(relações sociais e de produção), esta afirmação é perigosa a partir da defesa de
que "tudo aquilo que é criado externamente ao ser, existe independentemente dele",
como um quadro, uma música ou o próprio trabalho.

Porém o campo da “subjetividade” então negada pelos estetas do


marxismo ortodoxo é o oposto. A subjetividade está ligada a tudo que diz respeito ao
ser no campo individual. Neste seguimento, há de se considerar que os indivíduos
possuem sentimentos, percepções e ideias. São responsáveis pela criação e ao
mesmo tempo negação do que está no mundo por meio da arte. A experiência da
arte busca por uma outra imagem possível de libertação, isto é, o dever ser.

Este desenvolvimento foi intensificado pela interpretação da subjetividade


como uma noção “burguesa”. Do ponto de vista histórico, isto é duvidoso.
Mas, mesmo na sociedade burguesa, a insistência na verdade e no direito
de interioridade não é realmente um valor burguês. Com a afirmação da
interioridade da subjetividade, o indivíduo emerge do emaranhado das
relações de troca e dos valores de troca, retira-se da realidade da
sociedade burguesa e entra noutra dimensão de existência
(MARCUSE,1977, p, 18).

Para os estetas do marxismo ortodoxo essa compreensão levantada por


Marx segundo Marcuse, ficou como uma estrutura limitada e enrijecida apenas no
contexto das relações materiais existentes. Para Marcuse as virtudes das formas
estéticas são autônomas em relação aos processos de produção material, pelo fato
da arte contestar e transcender estas relações. Não há como negar a experiência

8
Ver: HEGEL, G.W.F. A fenomenologia do espírito. Coleção pensadores, Tradução; Henrique
Cláudio de Lima Vaz, editora: abril S. A. cultural e industrial, São Paulo, 1974.
23

transcendente da arte, a sua irracionalidade racional, a fantasia e a representação


que não se comportam nas relações dos indivíduos na esfera política.

A tese que defendo é a seguinte: as qualidades radicais da arte, ou seja, a


sua acusação da realidade estabelecida e a sua invocação da bela imagem
(schonerschein) da libertação baseiam-se precisamente nas dimensões em
que a arte transcende a sua determinação social e se emancipa a partir do
universo real do discurso e do comportamento, preservando, no entanto, a
sua presença esmagadora. Assim, a arte cria o mundo em que a subversão
da experiência própria da arte se torna possível: O mundo formado pela arte
é reconhecido como uma realidade suprimida e distorcida na realidade
existente (MARCUSE, 1977, p, 20).

A reflexão de Marcuse mostra que mesmo algumas expressões de arte


que estão elencadas há uma dimensão mais clássica da arte, ou seja, aquela que
sobressai a partir de uma arte produzida por uma burguesia situada no século XVIII,
ainda assim, não é correto afirmar que esta expressão não tenha seu caráter de
acusação da realidade.

Neste sentido, concordo com Marcuse quando ele afirma que: “O fato de
uma obra representar verdadeiramente os interesses ou a visão do proletariado ou
da burguesia não faz dela uma verdadeira obra de arte”. Conforme MARCUSE,
(1977, p.27-28) “Esta qualidade material pode facilitar o seu acolhimento, pode
torna-la concreta, mas de nenhum modo é constitutiva. ”

Limitar a experiência e a função "negadora" da arte junto a esfera das


relações de produção e de posição de classe, seria destruir a própria consciência e
a subjetividade criativa dos indivíduos. De acordo com MARCUSE, (1977, p. 28) “A
universalidade da arte não pode radicar no mundo e na imagem do mundo de uma
determinada classe”.

É com a possibilidade da liberdade ideal dada pela arte ao artista, que


através de sua manifestação, consegue escapar de uma realidade opressora e
constrói a possibilidade de "romper", com automatismos e subjugações do fazer,
alcançando assim a ativa condição de sujeito pensante sujeito de si.
24

A separação da arte do processo da produção material deu–lhe a


possibilidade de desmistificar a realidade reproduzida neste processo. A
arte desafia o monopólio da realidade estabelecida em determinar o que é
real e fá-lo criando um mundo fictício que, no entanto, é mais real que a
própria realidade (MARCUSE, 1977, p. 33).

A arte é transcendente a partir do momento em que não participa da


“estrutura política”, ou seja, a arte por si, constitui–se como esfera transcendente. A
partir do momento em que relacionam a arte em uma “estrutura política”, ela passa a
não fazer sua recusa, pois na base política ela findaria apenas como um aparato
dentro das estruturas dominantes do status quo.

Para comprovar tal reflexão, lembramos aqui a utilização da arte


enquanto instrumento de comunicação, sendo apropriada como uma ferramenta de
alienação e manipulação das consciências nas campanhas publicitárias e
comunicacionais do Nazismo e do fascismo. Utilizada dentro de uma ótica da razão
instrumental, alicerçada na estrutura política do estado, como forma de dominação
dos indivíduos, de aniquilação e destruição total da consciência e não como
libertação.

Não obstante, a arte e sua dimensão estética possuem também


possibilidades para um avanço qualitativo do ser humano. Segundo MARCUSE
(1977, p. 81), “No centro desta discussão, está a ideia de uma arte autónoma em
confronto com a indústria de arte capitalista por um lado, e a parte da propaganda
radical, por outro.”

Contudo a arte para além das experiências e relações sociais limitadas,


ela enquanto tal, é produto da subjetividade, da criatividade e da transcendência,
portanto, limitar a experiência da arte a base material, como fizeram os estetas do
marxismo ortodoxo, seria destruir as possibilidades de transformação com o
elemento da arte.

Marcuse defende na dimensão estética, a revitalização da arte enquanto


subversão da percepção dos indivíduos em meio a realidade estabelecida. O mundo
concreto das relações sociais, conduzido por meio de uma razão instrumental
alicerçada no desenvolvimento das sociedades industriais avançadas, regem a vida
25

social, fazendo com que os indivíduos, inclusive os intelectuais permaneçam


obedecendo as ordens do estado de coisas.

Numa situação em que a infeliz realidade só pode modificar–se através da


práxis política radical, a preocupação com a estética exige uma justificação.
Seria inútil negar o elemento de desespero inerente a esta preocupação: a
evasão para um mundo de ficção onde as condições existentes só se
alteram e se suplantam no mundo da imaginação (MARCUSE, 1977, p. 15).

Esta é uma das questões que levam Marcuse a preocupar-se com a


defesa das faculdades mentais, bem como, da própria arte. Por isso eleva a arte
como componente essencial para o pensar negativo, a arte enquanto negadora de
um mundo que contradiz a si mesmo, e que ao mesmo tempo que se contradiz, é
nele, que se construirá as possibilidades com a arte. É na forma estética que é
possível surgir a oposição diante da realidade estabelecida, através da catarse
reconciliadora da arte.

Isso pode soar romântico, e muitas vezes me censuro por ser talvez
demasiado romântico, em avaliar o poder radical, libertador da arte.
Recordo a observação usual, expressa há muito tempo, acerca da futilidade
e talvez mesmo da culpabilidade da arte: o Parthenon não valia o sangue e
as lágrimas de um só escravo grego. Igualmente leviana é a afirmação
contrária de que somente o Parthenon justificou a sociedade escravocrata.
Bem, qual das duas afirmações é a correta? Se observo a sociedade e a
cultura ocidentais de hoje, o massacre e a brutalidade totais em que ela se
empenha, parece-me que a primeira afirmação é, talvez mais correta que a
segunda. Entretanto, a sobrevivência da arte poder vir a ser o único elo
frágil que hoje conecta o presente com a esperança do futuro (MARCUSE,
1967, p. 1).

Por fim, percebemos que os estudos de Marcuse, sua preocupação com


as questões da arte e da estética, apresentam-se com objetivos concretos, como
possibilidades reais, onde a dialética se faz presente como caminho de superação
das situações reais, porém aparentemente contraditórias. Sua defesa da arte nos faz
perceber a força que as linguagens possuem em contraposição as imagens da
sociedade estabelecida.

Mas essa afirmação tem a sua própria dialética. Não existe obra em que
não evoque, em sua própria estrutura, as palavras, as imagens, a música de
uma outra realidade, de uma outra ordem repelida pela ordem existente e,
entretanto, viva na memória e na antecipação, viva no que acontece aos
homens e mulheres, e na rebelião contra isso (MARCUSE, 1972, p. 93).

3 A ARTE PROGRESSISTA RUSSA DO SÉCULO XIX E SUAS BASES


ORTODOXAS:
26

Um dos pontos de partida de Marcuse no ensaio A dimensão Estética


(1977) foi o debate em torno da estética marxista que segundo o filósofo foi
vulgarizada pelos estetas do marxismo ortodoxo. A preocupação inicial de Marcuse,
trata de uma defesa da estética verdadeiramente marxista, a saber, aquela que não
condena a subjetividade nem a objetividade, aparência e essência, que não
estabelece que a arte e a estética estejam exclusivamente pautadas nas relações
materiais. Que possui seu potencial transcendente em relação a sociedade
existente, e não, as proposições equivocadas e limitadas apenas na objetividade
como foram declaradas pelos estetas do marxismo ortodoxo.

No prefácio da obra fica clara a posição do filósofo em relação a sua


defesa da arte. Conforme MARCUSE (1977, p. 11): “Este ensaio pretende contribuir
para a estética marxista, mediante a impugnação da sua ortodoxia predominante.
Por ortodoxia compreendo a interpretação da qualidade e verdade de uma obra de
arte em termos da totalidade das relações de produção existentes”.

Todavia, na obra não fica explícito quem especificamente, Marcuse está


dirigindo-se. Contudo, é perceptível de compreensão a partir de referências
bibliográficas que esses estetas do marxismo ortodoxo, fazem parte da famosa
escola de pensamento Russo do século XIX, conhecida como o “realismo socialista”.
Faz-se necessário apresentar a distinção entre o “realismo” enquanto escola literária
europeia e o “realismo socialista” enquanto dimensão estética da união soviética no
período estalinista.

O “realismo” enquanto escola literária destaca -se como movimento


artístico e literário que surgiu na Europa em específico na França, com o intuito de
romper com o classicismo do romantismo. Sua característica principal seria
representar os problemas da vida e os costumes que faziam parte do cotidiano das
pessoas. Representar os indivíduos em sua totalidade.

Um dos grandes expoentes desta corrente de pensamento em relação a


literatura foi o francês Gustave Flaubert com a sua obra Madame Bovary de 1857.
27

Obra que foi mal recepcionada na época devido Flaubert trazer em seu romance,
uma crítica aos princípios burgueses, os bons costumes e a moral vigente.

O “realismo Russo” vai desenvolver-se a partir da revolução bolchevique


mais precisamente a partir de 1925. Momento marcado por uma construção estética
especificamente russa. Uma arte literária que se fazia presente na estrutura
educacional tantos dos filhos da classe operária, como para o povo bolchevique. A
chamada arte ou literatura do partido.

O principal conceito que se destacou dentro das áreas artísticas da


URSS do período é, sem dúvida, aquele chamado de “realismo socialista” - uma
espécie de método artístico que defendia uma descrição fiel da realidade num
contexto histórico concreto

A revolução russa foi um grande chamariz para os artistas mais


progressistas dos anos 20 pois acenava com o ideal utópico da junção arte-
vida. Uma nova arte para uma nova sociedade. Mas aqueles que chegaram
a experimentar de perto a vivência sob os imperativos do novo regime,
muitas vezes enfrentaram amargos revezes. Em alguns casos isso
aconteceu no início mesmo da revolução, como com Vassili Kandinsky.
Vimos anteriormente que Kandinsky emigrara para a Alemanha, a fim de
estudar artes e lá permaneceu até saber da revolução (AGRA, 2004, p. 86).

O desenvolvimento de uma estética russa é posterior o processo de


tomada dos bolcheviques e da revolução de 1917, destacamos antes todo o
processo de influência e a recepção do pensamento de Marx por parte de
representantes Russos. Uma fonte importante para tal comprovação é o compêndio
intitulado: História da Filosofia na Rússia (1945), escrita por historiadores do Instituto
de filosofia da academia de ciências da URSS sob a coordenação do professor e
filósofo Russo Andrei Shcheglov9.

O marxismo e sua filosofia, o materialismo dialético, começou a penetrar e a


desenvolver-se na Rússia, no séc. XVIII. Após uma longa e tenaz luta
contra todos os inimigos da teoria revolucionária de Marx, os marxistas
russos defenderam o marxismo, adaptaram-no às condições da Rússia e,
na pessoa de seus maiores representantes, Lenin e Stalin, desenvolveram-
no, enriqueceram-no e elevaram-no a uma altura superior. O primeiro
marxista eminente e destacado propagandista do marxismo na Rússia foi
George Valentinovich Plekhanov (1856-1908). Com seus trabalhos assestou
o primeiro e mais violento golpe ao populismo. Foi fundador da social
democracia russa e o melhor teórico da II Internacional. Mais tarde traiu a

9
SHCHEGLOV. A, V. História da filosofia na Rússia, tradução: David Medeiros Filho, transcrição:
Fernando A. S. Araújo, editorial Vitória, Rio de Janeiro, 1945.
28

classe operária, convertendo-se no chefe e ideólogo do menchevismo, em


social-chauvinista (SHCHEGLOV,1956, cap. XIX).

Nesta obra consta no capítulo IX: A História da filosofia na Rússia, uma


introdução sobre a transição entre o regime feudal-autocrático burguês do século
XIX, bem como as instâncias de poder político vigentes naquela época, em
confronto com o surgimento das tendências do materialismo dialético de Marx.

Importante destacar que qualquer tendência filosófica materialista ou


ateia era suprimida pela estrutura clerical e secular defendida pelo czar Nicolau II.
Assim, a filosofia materialista não teve inicialmente possibilidade de manifestação
nesta época.

Posteriormente é a partir dos representantes bolcheviques, Lenin(1870-


1924) e Stálin(1878-1953) que o materialismo marxista vai solidificar-se na URSS.
Todavia é com o teórico marxista, Georgi Plekhanov(1856-1918) e através de seus
escritos, que o materialismo vai estruturar-se como ideologia política do partido
comunista da URSS. Para Lenin os escritos de Plekhanov sobre o materialismo
foram de grande importância para a educação da classe proletária da URSS. Em
seguida, Plekhanov vai romper com os comunistas.

Em 1883 e 1884 publicou seus livros o socialismo e a luta política e nossas


discrepâncias. Sobre esses trabalhos de Plekhanov, escreveu Lenin
dizendo que neles o autor submetia uma crítica implacável a teoria populista
e marcava a tarefa dos revolucionários Russos: A formação de um partido
operário revolucionário. No curso da nova década do século passado No
curso da nona década do século passado, Plekhanov escreveu uma série
de trabalhos formidáveis, em que continuou sua luta intransigente contra o
populismo e demonstrou a inconsistência de suas teorias sobre a
independência do desenvolvimento da Rússia, sobre a passagem ao
socialismo por meio da comunidade camponesa, evitando o capitalismo,
sobre o papel decisivo do camponês na revolução. Pôs também em relevo a
insolvência da sociologia subjetiva e da teoria populista sobre os "heróis" e
a "multidão". Durante este período, era Plekhanov quem sustentava todo o
peso da luta do marxismo contra o populismo, da defesa e da
fundamentação do marxismo na Rússia (SHCHEGLOV, 1945, p. 57).

Outro ponto para destacar nesta reflexão é que no desenvolvimento do


materialismo dialético na URSS a partir de 1922, constrói-se também uma
preocupação com a experiência estética. As experiências da arte estão alicerçadas
na organização política do partido, destaca-se o foco na “literatura”, porém dirige-se
também ás outras linguagens da arte que se estruturam na mentalidade materialista
29

do regime. Ao estruturar-se o regime, alguns artistas tiveram de aderi-lo, e outros


que foram contra seus princípios, foram exilados, perseguidos e assassinados.

Vimos anteriormente que Kandinsky emigrara para a Alemanha, a fim de


estudar artes e lá permaneceu até saber da revolução. Entusiasmado,
decidiu retornar e ocupar o cargo de presidente da seção de artes do
comissariado para a instrução pública, em 1918. A experiência foi curta: não
houve possibilidade de acordo entre as ideias de forte cunho espiritualista
de Kandinsky e a mentalidade materialista do novo regime. Em um ano, o
pintor resolveu pedir demissão e retornou à Alemanha, indo trabalhar, mais
tarde, na Bauhaus, a convite de Walter Gropius (AGRA, 2004, p. 86).

Neste sentido, a experiência literária segundo Zhdanov (1896-1948)


constituiu-se como força central para o processo de formação espiritual e
educacional da classe proletária, as experiências artísticas também só teriam
sentido e verdade se estivessem alicerçadas no engajamento com a luta
revolucionária. Ou seja, o político e o estético para Zhdanov10 fazem parte da
mesma estrutura objetiva.

Lembrai-vos dos artigos jornalísticos e literários de Dobrolubov que


mostram com tanta força todo o alcance social da literatura. Toda nossa
literatura publicista revolucionário-democrática está impregnada de um ódio
mortal do regime czarista e saturada do desejo generoso de lutar pelos
interesses vitais do povo, pela sua cultura, sua instrução, sua libertação das
cadeias do regime czarista. Para os grandes literatos russos, a literatura e a
arte são meios de combate e de luta pelos supremos ideais do povo
(Zhdanov, 1938, p.46).

Observamos que a Rússia construiu o seu processo revolucionário em


oposição a sociedade vigente do governo czarista. Não se nega a práxis política e
as forças de rebelião que foram responsáveis pelo processo de luta e libertação do
estabelecido por parte da classe proletária Russa. Porém, não se justifica também,
após o processo revolucionário a Rússia cair em contradição e chagar a defender e
agir de acordo com o regime totalitária do czarismo que foi tão combatido pelos
bolcheviques.

Os ideais políticos e revolucionários do partido comunista da URSS


estavam em plena convergência com as expressões estéticas, a arte para os
defensores do materialismo dialético fazia parte estruturante da organização e da
força política revolucionária. Segundo o político e dirigente do Partido Comunista da

10
Ver também: ZHDANOV, Andrei. O Papel da Arte Progressista, Revista princípios, edição 8, Mai,
1984, pag. 46-52, transcrição: Fernando A. S. Araújo.
30

União soviética Andrei Zhdanov (1896-1948), em seu texto O Papel Social da Arte
Progressista, escrito no período pós-guerra deixa explícito que:

...o leninismo assimilou todas as melhores tradições dos revolucionários


democratas russos do século XIX e que nossa cultura soviética nasceu,
desenvolveu-se e desabrochou graças a sua herança cultural do passado,
sujeita à uma crítica aprofundada. No domínio da literatura nosso partido
reconheceu, mais uma vez, através das palavras de Lenin e Stálin, o
importantíssimo papel dos grandes escritores e críticos revolucionários
democratas Belinski, Dobrolubov, Tchernychevsky (ZHADANOV, 1938, p.
45).

A reflexão de Zhdanov faz referência ao campo da literatura não por


acaso, para o membro do partido comunista apenas uma literatura com
características “realistas” enquanto movimento literário e prática objetiva, seriam
condizentes com os ideais da classe proletária. Zhdanov chega a mencionar a
posição de Lenin, sobre a função da literatura dentro da organização do partido.
Uma literatura única e exclusiva do partido comunista. Percebemos que inicialmente
há um equívoco no que se refere a limitação e o enrijecimento da literatura.

Foi Lenin quem primeiro exprimiu com a maior nitidez o ponto de vista do
pensamento social progressista sobre a literatura e a arte. Quero lembrar-
vos o célebre artigo de Lenin: “A organização do partido e a literatura de
partido”, escrito em fins de 1905, onde ele mostrou, com vigor que lhe é
próprio, que a literatura não podia deixar de ter partido, que devia ser um
fator importante na luta do proletário. Nesse artigo ele apresentou todos os
princípios que constituem a base do desenvolvimento de nossa literatura
soviética. Lenin escreve que: “A literatura deve tornar-se a obra do partido.
Contra os costumes burgueses, a imprensa burguesa do comércio e da
empresa, contra o carreirismo e o individualismo literários burgueses, a
anarquia senhorial e a caça dos lucros, o proletariado socialista deve
apresentar o princípio de uma literatura de partido, desenvolver esse
princípio e lhe dar vida de maneira mais completa. (ZHDANOV, 1938, p.
45).

Para Marcuse existe uma problemática a ser destacada em relação a


experiência da literatura para a luta de libertação. Segundo o mesmo a visão dos
estetas do marxismo ortodoxo, interpretaram a experiência literária da seguinte
forma: A produção literária que não fosse pautada no “realismo social” estava
condenada como literatura burguesa.

Seguindo esta tendência cairia no idealismo tão criticado pelo


materialismo. A produção literária estava pautada apenas as ordens do partido,
31

assim, o escritor tinha a obrigação de exprimir em seus textos os interesses e as


necessidades da classe proletária.

Por mais bela que seja a forma externa das obras dos escritores burgueses
atuais da Europa ocidental da américa, dos empresários cinematográficos
ou dramáticos, eles não saberão salvar ou reerguer sua cultura burguesa,
pois que esta está a serviço da propriedade privilegiada burguesa
(ZHDANOV, 1938, p. 49).

No olhar crítico de Marcuse o primeiro equívoco desta ortodoxia parte do


pressuposto que outras tendências literárias possuem seu potencial de acusação do
estabelecido, dependente de “classe”. A experiência literária como manifestação
estética faz parte de uma outra esfera, necessariamente ela não está limitada a
totalidade das relações de produção.

Colocar a literatura dentro de uma estrutura fechada seria destruir o


potencial libertário de sua experiência estética. Considerando o movimento da
dialética, esta defesa seria errônea, pois a literatura mesmo fazendo parte de uma
possível estrutura burguesa, poderia denunciar ou acusar mais do que uma
produção literária estabelecida dentro de uma classe proletária. Uma literatura
engajada.

Este exemplo é referendado por Marcuse quando critica a postura dos


estetas do marxismo ortodoxo ao afirmarem que o “romantismo alemão” por meio de
seu direito de interioridade, defendiam a classe da burguesia, que os escritores
ficavam em sua introspecção literária e esta não contribuiria para o mundo material
das relações sociais.

A crítica literária marxista revela, muitas vezes, desprezo pela


“interioridade”, pela dissecação da alma na literatura burguesa um desprezo
que Brecht interpretou como um sinal de consciência revolucionária. Mas,
esta atitude não está muito longe do desprezo dos capitalistas por uma
dimensão de vida não lucrativa. Se a subjetividade é uma “realização” da
era burguesa, é pelo menos uma força antagónica a sociedade capitalista
(MARCUSE, 1977, p. 47).

Para Marcuse a estética marxista ortodoxa precisa explicar como


expressões literárias que foram produzidas em momentos históricos de opressão, de
classes e sociedades excludentes, ainda são exemplos para se pensar novos
processos de acusação da sociedade estabelecida (establishment).
32

Num escrito de 1857, Marx lembrou o caso da arte grega do século V a. C.


que refletia as condições sociais de Atenas, naquele momento, e, no
entanto, continuava a ter algo a dizer a seres humanos que viviam em
outros países, em outros tempos, com outro nível de desenvolvimento das
forças produtivas, outras relações de produção, vinte e quatro séculos mais
tarde. O exemplo da epopeia e da tragédia dos antigos gregos mostrava
que a dimensão histórica de certas criações humanas não as impede de
perdurar e nem as reduz a uma eficácia momentânea, limitada (KONDER,
1981, p. 54-55).

A reflexão na citação de Konder, juntamente com a questão apresentada


por Marcuse nos possibilita perceber que a “verdade” e a “qualidade” da obra de arte
não estão limitadas em determinadas classes da arte ou em uma sociedade
específica.

A estética marxista deve explicar por que razão a tragédia grega e a


epopeia medieval, por exemplo, ainda hoje nos dão a sensação de serem
literatura “autêntica, ” “grande, ” embora pertençam a velha sociedade da
escravatura e do feudalismo, respectivamente. A observação de Marx, no
fim da Introdução à crítica da Economia Política, é pouco persuasiva; não é
possível explicar a atração que a arte grega exerce hoje sobre nós como a
alegria do desabrochar da infância social da humanidade (MARCUSE,
1977, p. 27).

A mesma vitalidade demonstrada pela arte grega, aliás, pode ser


encontrada em certas ideias e observações de Aristóteles, em alguns dos
conceitos criados por ele: as criações mais significativas do espírito humano
e da atividade prática do homem se incorporam ao processo da história da
humanidade e são capazes, por assim dizer, de continuar “vivas” mudam as
condições históricas, muda a nossa maneira de avalia-las, mas são elas – e
não outras criações do passado – que permanecem presentes no nosso
horizonte (KONDER, 1981, p. 55).

Por fim, não é possível limitar uma experiência onde a arte se faz
necessária, enclausurando-a dentro de um sistema político e enrijecido como foi o
momento histórico de acessão do stalinismo na Rússia. Marcuse deixa claro que as
possibilidades de transformação com a experiência da arte só serão possíveis se ela
enquanto tal, estiver em total confronto com a totalidade das relações políticas, a
verdadeira arte está em constante oposição.

A experiência política e revolucionária faz parte de uma outra esfera, ela


não cabe na experiência da arte. A armas utilizadas pela arte na luta de rebelião são
outras, perfazendo outra dimensão. As dimensões da ilusão, fantasia e alienação
estão mais próximas do potencial subversivo da arte. Percebemos que estas três
categorias não são em vão, cada uma possui o seu potencial libertador na arte.
33

Na visão de Marcuse o fundamentalismo da arte realista do socialismo


Russo, eliminou as possibilidades que a arte tinha de denunciar e acusar as
atrocidades que o czarismo tanto cometeu, a arte tornou-se apenas a propaganda
do partido comunista russo.

Categorias como ilusão, fantasia e alienação tão presentes na arte, em


sua forma estética, foram interpretadas pelo governo do realismo socialista como
sendo de conotação burguesa. Assim, diversos artistas foram exilados, perseguidos
e até assassinados pelo governo stalinista.

A exaltação de Zhdanov sobre a necessidade de uma literatura para o


povo chega a ser totalmente contraditória tendo em vista o ocorrido com os artistas e
aqueles representantes do povo que se colocaram contra os ditames do comitê
central do partido.

Camaradas, nossa literatura soviética vive, e deve viver, pelos interesses do


povo e da pátria. A literatura diz respeito ao povo. Eis porque o povo
considera cada sucesso vosso, cada uma das vossas obras de valor como
vitória suas. Eis porque se pode comparar cada obra vitoriosa com um
combate ganho, ou com uma grande vitória na frente econômica. Pelo
contrário, cada fracasso na literatura soviética é profunda e amargamente
sentida pelo povo, pelo partido, pelo estado. É precisamente o que visa a
resolução do comitê central, e que está extremamente inquieto com a
situação dos escritores de Leningrado (ZHDANOV, 1938, p. 49).

De acordo com Marcuse (1977, p.63) “A revolução existe por amor à vida,
não a morte”.

Aqui se situa o talvez mais profundo parentesco entre a arte e a revolução.


A resolução de Lenin de não ouvir as sonatas de Beethoven, que tanto
admirava, atesta a verdade da arte. O próprio Lenin o sabia e rejeitava este
conhecimento (MARCUSE, 1977, p. 63).

... muitas vezes não consigo ouvir música. Age sobre os meus nervos. Uma
pessoa gostaria de dizer tolices, de acariciar as cabeças da gente, que vive
num inferno de sujidade e que, no entanto, pode criar tal beleza. Mas, hoje
em dia, não se pode acariciar a cabeça de ninguém - a nossa mão seria
mordida. Devemos bater nas cabeças, bater impiedosamente – embora
idealmente sejamos contra toda a violência. (LENIN, apud MARCUSE,
1977, p. 63-64).

A arte não se fez potente dentro do regime do realismo socialista, foi


utilizada como apêndice para o processo de revolução. Percebemos agora a
reflexão que Marcuse levantava em relação a arte não fazer parte das estruturas da
34

práxis política radical. Ela só possui contribuição se estiver apartada desta


experiência. A experiência da arte em consonância com a práxis política é
inexoravelmente frustrante, temos como exemplo a experiência soviética.

Podemos perceber que a experiência da arte e da estética do realismo


soviético foi intensamente frustrante, os ideais de progresso ou de uma arte
progressista, tornaram-se a sua própria negação. Neste sentido, Marcuse defende
que este exemplo de arte vai de contra os princípios das relações sociais, não
constitui uma forma de arte correta e autentica e sim uma arte decadente a serviço
da aniquilação, destruição dos indivíduos e da própria arte.

É preciso separar estas duas experiências, de um lado a arte e a estética,


do outro, o processo político radical, que por sua vez, não é representando pelas
bandeiras de morte e destruição do outro. A preocupação é que a arte e a estética
possam trazer a imagem da emancipação e dos ideais de humanidade, tão
esquecidos nos regimes totalitários que ocorreram, na Alemanha, Rússia, China e
outros diversos países da Europa.

4 ORTODOXIA E REIFICAÇÃO DA ARTE: A CRÍTICA AOS ESTETAS DO


MARXISMO ORTODOXO.

Nos estudos de Marcuse em relação a estética, categorias como: “base


ortodoxa ou ortodoxia”11 sempre foram problemas centrais em relação as
compreensões de autores que tentaram elencar as bases da dialética ao campo da
estética marxista. Segundo Marcuse algumas noções levantadas por Hegel, Marx e
Engels sempre foram expostas equivocadamente em relação ao campo da estética
marxista, inclusive por autores que se colocaram como grandes estudiosos de uma
estética verdadeiramente marxista.

Uma das críticas de Marcuse é a reflexão limitada por parte de uma


ortodoxia da arte que petrifica a experiência da arte as relações de classe ou da vida
material. Ou no fato de não inserir as compreensões da estética marxista, levando

A categoria ortodoxia vai estar presente em grande parte das obras de Marcuse, ver também a
11

obra Contra- Revolução e Revolta (1972), p. 41. Ortodoxia também está relacionada as limitações em
relação a qualidade, verdade e autenticidade da obra de arte segundo Marcuse.
35

em consideração que a dialética, desenvolve-se em movimento, portanto, não é de


forma alguma estática. A dialética é tensão, é o eterno movimento do princípio de
“conhecimento, autoconhecimento e razão”, “afirmação, negação e negação da
negação”. Esta reflexão em momento algum invalida o potencial transcendente da
arte, mesmo dentro de uma reflexão dialética. O que os estetas do marxismo
ortodoxo fizeram em relação a arte e a estética, foram considerar a dimensão
“material e real” que Marx levantou brilhantemente, sem reconhecer o movimento
dialético exposto inicialmente por Hegel.

Vale ressaltar que em grande parte de suas obras esta categoria


“ortodoxia” é sempre colocada em questão. Para Marcuse uma postura enrijecida e
fechada sobre o pensamento de Marx e Engels e sua relação com a estética, seria
necessário de revisão para que a estética marxista não ficasse a mercê de
determinadas concepções, que na visão de Marcuse, deturpariam o verdadeiro
pensamento marxista e suas contribuições em relação as questões estéticas.

Com a reflexão crítica sobre uma postura ortodoxa em relação a estética


marxista, faz-se necessário levantar um momento histórico que possui grande
relevância para a crítica de Marcuse. Momento marcado pelos regimes totalitários do
século XX como o nazismo, fascismo e o stalinismo na Rússia.

Este especificamente interessa, para que se possa perceber a influência


da arte no momento do Stalinismo na Rússia, como fora explicitado no capítulo
anterior. A Arte e os artistas eram condicionados a estrutura ortodoxa do realismo
soviético. Importante frisar que correntes artísticas e literárias como: romantismo,
surrealismo, cubismo e expressionismo não podiam fazer parte da estrutura política
da época. Assim, faz-se necessário a reflexão: Sob que medida a arte e o artista
poderiam se fazer livres para construírem uma outra possibilidade de transformação
com arte?

Tanto o artista quanto as linguagens, seguiam as determinações do


realismo russo, pautado vulgarmente nos ideais marxistas. Segundo
36

BERTOLUCCI12, (2008, p. 95) em sua obra “A arte dos regimes totalitários do século
XX”:

…a literatura passou a ser controlada rigidamente, sendo obrigada a


abordar temas como o sucesso da coletivização das terras, as melhorias no
setor industrial, as maravilhas da siderurgia e metalurgia, a bravura dos
líderes proletários, a alegria dos camponeses durante a colheita, e assim
por diante (BERTOLUCCI, 2008, p. 95).

Mais à frente percebemos outra passagem que expressa uma arte que se
enrijecia dentro de um modelo fechado, de características ortodoxas.

Na música, compositores como Dimitri Shostakovich (1906-1976) e Sergei


Prekofiev (1891-1953) foram duramente perseguidos. Shostanovich, autor
de catorze grandes sinfonias, trabalhou oficialmente como compositor da
URSS, mas acabou relegado ao ostracismo no período stalinista. Sua
Quinta Sinfonia compareceu a uma audiência do partido especialmente
criada para a ocasião, foi obrigado a incluir o subtítulo “Resposta de um
compositor soviético a uma crítica justa” àquela obra (BERTOLUCCI, 2008,
p. 95).

O problema da ortodoxia em relação a estética marxista é levanta por


Marcuse tanto no prefácio da obra A dimensão Estética (1977) como no segundo
parágrafo do primeiro capítulo da mesma obra, a começar pela compreensão que o
autor levanta sobre o conceito de ortodoxia estética. Conforme Marcuse (1977, p.11)
“Por ortodoxia compreendo a interpretação da qualidade e verdade de uma obra de
arte em termos da totalidade das relações de produção existente. ”

Percebemos que é necessário deixar claro algumas questões em relação


ao fato da experiência da arte ou da sua forma estética estarem intrinsecamente
relacionadas a totalidade das relações. Marcuse não nega sua relação com a
totalidade e Marx também conceitua com grande precisão quando fala sobre o
conceito de sociedade histórica em sua obra A Ideologia Alemã.

Já é evidente, portanto, que essa sociedade civil é a verdadeira sede, o


verdadeiro palco de toda a história e vemos a que ponto a concepção
passada da história era um absurdo que omitia as relações reais e se
limitava aos grandes e retumbantes acontecimentos históricos e políticos. A

BERTOLUCCI, Vanessa Beatriz. A arte dos regimes totalitários do século XX: Rússia e Alemanha-
12

São Paulo, Annablume, Fafesp, 2008. História e arqueologia em Movimento.


37

sociedade civil compreende o conjunto das relações materiais dos


indivíduos dentro de um estágio determinado de desenvolvimento das
forças produtivas (MARX, 1846, p. 33).

Porém é importante frisar que mesmo a experiência da arte fazendo parte


do mundo das relações materiais e dos sujeitos reais, ela enquanto tal, possui seu
potencial qualitativo e por isso, transcende a experiência das relações materiais dos
indivíduos. A arte produz outras possibilidades que necessariamente não podem
estar limitadas dentro de alguma totalidade. Outro ponto importante é que o próprio
Marx, reconhece na arte a separação entre aparência e essência.

Esta tese que Marcuse apresenta, vai de contra as posturas mais


ortodoxas em relação a arte que foi imposta pelo realismo socialista. Quando
Marcuse questiona sobre as compreensões equivocadas dos estetas do marxismo
ortodoxo em relação ao materialismo histórico e dialético e as questões estéticas,
ele nos faz compreender que o materialismo não se fecha no reconhecimento de
que o desenvolvimento da consciência reconhece inicialmente as relações sociais e
os sujeitos reais.

O ponto de partida de Marx é reconhecido por Marcuse. Todavia,


Marcuse também complementa em suas reflexões que a arte e a estética possuem
outras perspectivas. Para os estetas do marxismo ortodoxo a verdadeira arte
revolucionária era aquela que obedecia a lei das relações materiais.

A componente determinista da teoria marxista não reside no seu conceito


de relação entre existencial social e consciência, mas no conteúdo
reducionista de consciência que põe entre parênteses o conteúdo específico
da consciência individual e, com ele, o potencial subjetivo para a revolução
(MARCUSE, 1977, p.18).

Cancelar a consciência individual, subjetividade e criatividade dos


indivíduos seria destruir a própria humanidade. Para os estetas ortodoxos essas
categorias que fazem parte da existência dos indivíduos faziam parte de uma noção
do idealismo burguês, portanto, são desnecessárias e por sua vez, precisavam ser
eliminadas das concepções mais revolucionarias do realismo.

Mesmo nos seus representantes mais notáveis, a estética marxista


preconizou a desvalorização da subjetividade. Daí a preferência pelo
realismo como modelo da arte progressista; a difamação do romantismo
como simplesmente reacionário; a denúncia da arte “decadente” - em geral,
o seu embaraço quando confrontados com a tarefa de avaliar as qualidades
38

estéticas de uma obra em termos diferentes dos das ideologias de classe


(MARCUSE, 1977, p. 19).

Para Marcuse a ortodoxia não contribuiria para o avanço dos processos


qualitativos e humanitários em meio as contradições do mundo. Expõe que a
ortodoxia dos estetas marxistas deixaria o homem cair na própria "reificação"13 que
foi tão combatida pelo materialismo histórico dialético. Ou seja, tornar ou reduzir os
indivíduos há objetos ou coisas. A reificação traz consigo a concepção do indivíduo
como objeto ou coisa, o homem permanece apagado, é mantido a sombra, não é
sujeito de sua consciência nem de sua ação no mundo.

A categoria reificação ou coisificação são expostas por Marcuse quando o


filósofo vai fazer a crítica as reflexões estéticas ortodoxas, Marcuse deixa claro que
a estética marxista ortodoxa pensou a “subjetividade e a consciência” dos indivíduos
como produtos ou simplesmente coisas.

Ou seja, as ideias não passam de coisas dentro da totalidade das


relações de produção. Neste sentido, Marcuse expõe outra contradição que os
estetas defendem, ou seja, tratam a arte de maneira a “reificar” a obra de arte e o
artista. Esta categoria foi criticada por Marx, pois a compreensão de reificação faz
com que os indivíduos não tenham autonomia e criatividade para saírem da dura
realidade da vida material.

A reificação da estética marxista deprecia e distorce a verdade expressa


neste universo minimiza a função cognitiva da arte como ideologia. Pois o
potencial radical da arte reside precisamente no seu caráter ideológico, na
sua relação transcendente com a base. A ideologia nem sempre é ideologia
falsa consciência (MARCUSE, 1977, p. 25).

O processo de reificação da arte faz com que a possibilidade que os


indivíduos possuem de liberar suas paixões, imaginações, consciência e
inconsciência, perca-se na dura sociedade de classe, da labuta e das relações de
exploração. A imaginação possibilita os indivíduos saírem do mundo pautado nos
valores de troca e da exploração individual e coletiva.

A categoria reificação expressa o sentido de que "tudo está no valor de troca (não há
13

equivalentes), inclusive o indivíduo", os indivíduos deixam de ser sujeitos. Em vias marxistas é


chamada de coisificação, o indivíduo não pensa seu processo de trabalho e sua potencialidade
enquanto aquele que possuem a força de trabalho, no modo de produção capitalista o indivíduo é
levado a ser apenas objeto ou coisa.
39

Libertar a subjetividade faz parte da história íntima dos indivíduos – da sua


própria história, que não é idêntica a sua existência social. E a história
particular dos seus encontros, paixões, alegrias e tristezas – experiências
que não se baseiam necessariamente na sua situação de classe e que nem
sequer são compreensíveis a partir dessa perspectiva (MARCUSE, 1977, p.
19).

Com esta definição de ortodoxia em relação à arte, não há pensamento


negativo nas relações objetivas, apenas a aceitação do existente. Uma paralisia da
crítica, uma sociedade sem oposição, seguindo a aparente forma estética
dominante, alicerçada na base superestrutura (estrutura económica da sociedade, o
conjunto das relações de produção de uma determinada sociedade).

Assim tal ortodoxia compreendia a arte dentro do mundo das relações


materiais de produção, destruindo assim, o potencial da criatividade e da
subjetividade humana. Neste seguimento, é evidente a limitação da arte apenas
como um aparato dentro das relações de produção. Verifica–se com esta reflexão
um problema central para Marcuse, partindo do pressuposto que nesta perspectiva a
arte estaria atrelada a uma função política, percebe – se que o termo “função e
potencial político” precisa ser revisto.

Marcuse expõe que a experiência da arte “por si” ou na “forma estética”


conduz um potencial político. O potencial político é a capacidade negadora que arte
tem de transcender a experiência do verdadeiro com o fictício, confrontar a realidade
com a fantasia ou com a mimeses14 (distanciamento/imitação) para que possa
aparecer uma outra imagem para além do que é aceito como verdadeiro.

O conceito de “verdadeiro” é compreendido como “o que está aí”, mas


não é ainda efetividade. O que “está” possui contradições que precisam ser
evidenciadas com a arte através da estética. Para que a partir deste movimento
possa surgir por meio da consciência uma outra imagem. A imagem de libertação.

A arte tem a sua própria linguagem e ilumina a realidade através desta outra
linguagem. Além disso, a arte tem a sua própria dimensão de afirmação e
negação, uma dimensão que não se pode coordenar com o processo social
de produção (MARCUSE, 1977, p. 33).

Para Marcuse a mimese é a representação através do distanciamento, a subversão da consciência.


14

A experiência é intensificada até ao ponto de ruptura; o mundo aparece do mesmo modo que a Lear
e António, a Berenice, a Michael Kohlhaas, a Woyzeck e aos amantes de todos os tempos
(MARCUSE, 1977: 53).
40

Para tanto é necessário perceber o que nos diz Marcuse sobre as teses
da estética marxista ortodoxa, partindo primeiramente da mera compreensão da arte
alicerçada na base material, vinculada a totalidade das relações de produção.

Esses estetas concebem a arte da seguinte forma: 1 – a arte possui uma


relação definida com a classe social, 2 - o político e o estético fazem parte da
mesma esfera não havendo distinção, em relação aos escritores de literatura ou
outro gênero, teriam de escrever especificamente para exprimir os interesses da
classe em ascensão, 4 - no caso do modo de produção capitalista, escreveria
apenas em prol do proletariado. No cerne da literatura apenas o realismo seria mais
conveniente com as relações sociais e a luta revolucionária, sendo a forma de arte
correta para os estetas.

Esta discussão é orientada para as seguintes teses da estética marxista:

1. Existe uma relação definida entre arte e a base material, entre arte e
a totalidade das relações de produção. Com a modificação das relações de
produção, a própria arte transforma-se como parte da superestrutura,
embora, tal como outras ideologias, possa ficar para trás ou antecipar a
mudança social.
2. Há uma conexão definida entre arte e classe social. A única arte
autêntica, verdadeira e progressista, é a arte de uma classe em ascensão,
que exprime a tomada de consciência desta classe.
3. Consequentemente, o político e o estético, o conteúdo revolucionário
e a qualidade artística tendem a coincidir.
4. O escritor tem a obrigação de articular e exprimir os interesses e as
necessidades da classe em ascensão. (No capitalismo, esta seria o
proletariado).
5. A classe declinante ou os seus representantes só podem produzir
uma arte ‘decadente”.
6. O realismo (em vários sentidos) é considerado a forma de arte que
corresponde mais convenientemente ás relações sociais, constituindo assim
a forma de arte “correta”

Cada uma destas teses implica que as relações sociais de produção devem
estar representadas na obra literária – não impostas exteriormente à obra,
mas fazendo parte de sua lógica interna e da lógica do material
(MARCUSE, 1977, p. 16).

Esta proposição nos leva a perceber que a arte ou a sua dimensão


estética estava condenada a uma base ideológica do materialismo histórico vulgar,
deixando o movimento da consciência e da subjetividade como se fossem
contingentes, neste caso, se o materialismo não é capaz de revitalizar a
subjetividade, cairia em uma tese vulgar do materialismo histórico e dialético. A
consciência e a subjetividade dos indivíduos são “necessárias” e não contingentes.
41

Em contraste com as formulações mais dialéticas de Marx e Engels, a


concepção tornou–se um esquema rígido, uma esquematização que teve
consequências devastadoras para a estética. O esquema implica uma
noção normativa da base material como a verdadeira realidade e uma
desvalorização política de forças não materiais, particularmente da
consciência individual (MARCUSE, 1977, p. 16-17).

A reivindicação de Marcuse contra este ortodoxismo da arte consiste em


não deixar morrer o pensamento negativo e a subjetividade criadora em meio ao
mundo simplista das relações sociais. Os indivíduos precisam sair da experiência
real rumo a invalidação do que está posto. Neste sentido é na experiência da arte e
na sua forma estética15 que é levantada essa possibilidade de confrontar a realidade
com a verdade sobre a realidade.

5 FORMA ESTÉTICA E AUTONOMIA DA ARTE: A FUNÇÃO CRÍTICA DA ARTE


DIANTE DO ESTABLISHMENT

A arte tem limites? Os limites da arte estão contidos na totalidade das


relações de troca? O que torna a arte revolucionária, mesmo não fazendo parte da
estrutura política? Em que sentido a arte nos possibilitaria a sensação de
experiência, verdade e qualidade em meio ao mundo do “establishment”? Estes
problemas são levantados aqui com o objetivo de abrir um parêntese inicial, no
sentido de contribuir para o potencial da estética e da arte em meio a mistificação
das relações e condicionamentos das sociedades estabelecidas. A finalidade não
seria responder as questões de forma fechada e limitada, mas ampliar o debate em
torno da estética e da arte e sua relação com a dialética.

Estes problemas são levantados com o objetivo de abrir um parêntese


inicial, no sentido de contribuir para o potencial da estética e da arte em meio a
mistificação das relações e condicionamentos das sociedades estabelecidas, a
finalidade não seria responder as questões de forma fechada e limitada, mas ampliar
o debate em torno da estética e da arte e sua relação com a dialética.

A categoria forma estética poderá ser encontrada também na obra Contra-revolução e revolta
15

(1972), 3º capítulo, §4, p. 83. Conceituada como: ...o total de qualidades (harmonia, ritmo, contraste)
que faz de uma obra de arte um todo em si, com uma estrutura e uma ordem próprias (estilo) (p.83).
Ver também: MARCUSE, Herbert, Contra-revolução e revolta, Zahar editores, 1973.
42

A distinção entre arte e práxis política é uma questão central para


Marcuse, segundo o mesmo, cada perspectiva possui a sua particularidade. De
acordo com MARCUSE (1977, p. 60) “A qualidade estética e a tendência política
estão inerentemente relacionadas, mas a sua unidade não é imediata”. A arte e o
artista têm sua contribuição com a arte, pois a esfera de atuação no campo político,
fazem parte de outra ordem. De acordo com MARCUSE (1967, p. 8) ... “o resto não
diz respeito ao artista”. “A realização, a mudança real que liberarão homens e
coisas, permanecem como fins da ação política; neste sentido o artista não participa
como artista”.

As decisões políticas não são tomadas pelo artista nem pela arte. Neste
sentido, a “arte possui o seu papel enquanto arte”, isso não significa que ela se torna
inferior, nem muito menos um simples apêndice em relação ao processo de
construção política. Pelo contrário a arte é mais que necessária, tendo em vista seu
potencial de “cindir” com a realidade estabelecida. Segundo MARCUSE (1967, p1)
“Entretanto, a sobrevivência da arte pode vir a ser o único elo frágil que hoje conecta
o presente com a esperança do futuro”.

Lembramos aqui também o motivo pelo qual Hegel divide o seu sistema
de ciências, deixando claro a contribuição de cada ciência para a constituição do
que o filósofo chamou de espírito absoluto. Hegel define o papel de cada categoria,
temos a arte, a religião e a filosofia. De acordo com HEGEL (1974, p. 89)
“Pensamos nós que o conceito de belo e da arte é um pressuposto advindo do
sistema da filosofia”.

O artista em relação a práxis política, não participa como artista, sua


participação seria frustrante. Todavia, a arte transcende as relações materiais e
políticas, mesmo sabendo que ela enquanto tal, possui o seu potencial político,
"unicamente como arte", em sua forma estética e na fantasia, mas "nunca uma mera
fantasia ou ilusão". Fantasia e ilusão possuem significados fortemente necessários
para o processo de desenvolvimento da razão crítica, bem como para o processo de
libertação.

A arte empenha-se na percepção do mundo que aliena os indivíduos da sua


existência e atuação funcionais na sociedade – está comprometida numa
43

emancipação da sensibilidade, da imaginação e da razão em todas as


esferas da subjetividade e da objetividade (MARCUSE, 1977, p. 22).

Quando Marcuse apresenta as categorias imaginação e fantasia em


relação a obra de arte, ele está destacando o potencial que as linguagens da arte
possuem em contraposição o mundo dado, o mundo estabelecido e mistificado nas
suas instituições, relações e questões políticas. Neste sentido é que a arte enquanto
“representação” do conteúdo, poderá mostrar novas imagens “não conformistas”.
Veremos o sentido pelo qual Marcuse deixa claro a distinção entre arte ou estética e
ação política.

Como mundo fictício, como ilusão (Schein), contém mais verdade que a
realidade de todos os dias. Pois esta última é mistificada nas suas
instituições e relações, que fazem da necessidade uma escolha e da
alienação uma auto – realização (MARCUSE, 1977, p. 61).

APARECER (Ersheinem). Esta noção é essencial para compreender o


estatuto ontológico da arte em Hegel. O aparecer não é simples aparência
(Schein). Esta designa o ser que não passa de mera ilusão da consciência,
que toma a imediatez sensível pela essência. Mas uma essência que não
aparece, que não toma forma, não é efetivamente. O aparecer (o fenômeno
(Erscheinung) é, pois, o movimento pelo qual um conteúdo espiritual, uma
essência dá a si mesmo uma forma sensível, toma figura. O aparecer é
então o movimento que pode ser dito de significação, desde que não se
perca de vista que a figura habitada pelo conteúdo espiritual não poderia ser
arbitrária: ela significa, até em seus aspectos aparentemente desacertados
(BRAS, 1970, p. 11-12).

A expressão estética de origem grega (aisthésis) é a compreensão das


percepções, sensações e sensibilidades, apresentadas, representadas ou
produzidas pelos indivíduos. Outro importante pensador que apresenta uma
concepção sobre a estética é Baumgarten que afirma que a estética é a ciência das
sensações. De acordo com LIMA apud BAUMGARTEM (2006, p.28) “para o autor o
esteta não se ocupa das perfeições e imperfeições do conhecimento sensível que se
encontram encobertas e obscuras, porque só pela atividade do entendimento elas
podem ser reveladas e não pela sensibilidade”.

Ao analisarmos a reflexão da estética e o seu potencial que remete


também para o “entendimento” das coisas, podemos fazer uma comparação
utilizando como ponto de partida a obra teatral. Existem espetáculos que poderão
levar os indivíduos apenas para um riso gratuito (falsa consciência) e não perceber o
“entendimento” ou a compreensão da essência contida no aparente.
44

Todavia, dependendo da forma estética, poderá acontecer do riso ou da


comédia, ambas trazerem à tona uma imagem de libertação por meio do
entendimento gerado pela forma estética. Esses exemplos servem também como
afirmação para o mundo estabelecido, assim como foram utilizadas no nazismo,
fascismo e stalinismo, no sentido de que boa parte da arte gráfica, bem como a
linguagem escrita, servira como forma estética, para colocar o medo, manipular e
condicionar os indivíduos para os ditames dos regimes vigentes.

Comparada com o otimismo frequentemente unidimensional da


propaganda, a arte está impregnada de pessimismo, não raro entremeado
com a comédia. O seu riso libertador lembra o perigo e a calamidade que
passou desta vez! Mas, o pessimismo da arte não é contra – revolucionário,
Serve para advertir contra a consciência feliz da práxis radical: como se
tudo o que a arte invoca e denuncia pudesse resolver – se através da luta
de classes (MARCUSE, 1977 p. 26).

A categoria entendimento é fundamental para aprofundar o pensamento


Marcusiano, o filósofo aponta a necessidade da arte de confrontar o universo
estabelecido da ação e do discurso. As reflexões críticas de Marcuse em negação
ao mundo estabelecido fazem parte de sua base principal de pensamento, é a
problematização sobre os ditames e condicionamentos que são impostos aos
indivíduos constantemente, estes condicionamentos fazem com que os indivíduos
acabem introjetando essas leis, como se fossem suas. Marcuse alertava a
necessidade de confrontar a consciência dominante e as práticas de dominação.
Para este fim ele defendia a possibilidade da contribuição da arte e da dialética
como processo de negação do mundo estabelecido.

O mundo do estabelecido contido dentro da concentração econômica,


meios de comunicação de massa, mercado internacional, racionalidade tecnológica,
personalidade tecnológica e razão instrumental, precisam ser percebidos, negados e
elevados ao potencial qualitativo. O homem tem a capacidade de verificar a coisa de
uma outra maneira. A estética e as linguagens da arte podem possibilitar que o
homem possa perceber e verificar que as coisas podem ser diferenciadas. Marcuse
já levantava que a estética e a arte possuem o imperativo categórico “as coisas
precisam mudar”

Marcuse levanta inicialmente duas questões fundantes para


compreendermos a sua proposta estética, crítica e libertadora. Poderíamos aqui
45

trazer também as outras categorias que Marcuse destacou, entretanto, ficaremos


com dois pontos fundamentais o primeiro concebido como a idéia de “forma estética”
e o segundo como “autonomia estética”. Partiremos destes dois pontos de partida
para buscar uma compreensão de sua proposta estética. Importante frisar que várias
categorias estão entrelaçadas, chegam a se repetir com: verdade, autonomia, forma
estética, transformação estética, etc.

Começaremos pela primeira categoria a “forma estética” que para


Marcuse é crucial para entender o sentido de sua proposta. Segundo Marcuse a
idéia de forma estética está relacionada com a subversão da experiência da arte em
relação ao conteúdo estabelecido e a própria arte. A forma estética neste sentido,
transcende a própria linguagem, assim como poderá transcender o dado material,
constituído no estabelecido (estado de coisas). Marcuse deixa claro esta concepção
ainda no prefácio da obra A dimensão estética (1977). A forma estética possibilita
um processo revolucionário na própria arte e posteriormente em sua relação com o
mundo do estabelecido.

A arte pode ser revolucionária em muitos sentidos. Num sentido restrito, a


arte pode ser revolucionária se representa uma mudança radical no estilo e
na técnica. Tal mudança pode ser empreendida por uma verdadeira
vanguarda, antecipando ou refletindo mudanças substanciais na sociedade
em geral (MARCUSE, 1977, p. 13).

A forma estética significa um produto como “aparência” resultante de


uma experiência ou fato que foi transformado (fato histórico, social ou pessoal) de
forma autónoma. A obra é extraída da experiência objetiva e assume um outro
significado, essas formas se apresentam em poema, um espetáculo teatral, um
romance) etc. Percebemos a perspectiva de Marcuse em consonância com a
proposta hegeliana em relação a arte.

“Forma estética” significa o total de qualidades (harmonia, ritmo, contraste)


que faz de uma obra de arte um todo em si, com uma estrutura e uma
ordem próprias (estilo). Em virtude dessas qualidades, a obra de arte
transforma a ordem predominante da realidade. Essa transformação é
“ilusão”, mas uma ilusão que confere ao conteúdo representado um
significado e uma função diferentes daqueles que têm no universo
predominante de discurso. Palavras, sons, imagens, de uma outra
dimensão “enquadram” e invalidam o direito da realidade estabelecida, em
nome de uma reconciliação ainda por vir (MARCUSE, 1972, p. 83).
46

Após a forma estética é levanta a transformação estética, que acontece


após um processo de maturação da experiência objetiva por meio da obra, que faz
com que a linguagem, possa desenvolver um campo de percepções e
compreensões, na perspectiva de revelarem a essência das coisas que até então,
estavam apenas no aparente, o aparente pode torna-se diferente.

De acordo com MARCUSE (1977, p.21). “A obra de arte ré–presenta


assim a realidade, ao mesmo tempo que a denúncia”. A crítica que é proposta a
partir do fenômeno artístico assume sua função de negação e contribuição para a
luta de libertação inicialmente a partir da forma estética.

Forma estética, autonomia e verdade encontram–se interligadas.


Constituem fenômenos sócio–históricos, transcendendo cada um a arena
sócia–histórica. Embora esta última, limite a autonomia da arte, falo sem
invalidar as verdades trans–históricas expressas na obra. A verdade da arte
reside no seu poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida (i. Dos
que a estabeleceram) para definir o que é real. Nesta ruptura, que é a
realização da forma estética, o mundo fictício da arte aparece como a
verdadeira realidade (MARCUSE, 1977, p. 22).

As obras de Brecht16 “criticadas” e ao mesmo tempo “referendadas” por


Marcuse, apontam para várias imagens de rompimento com o monopólio da
realidade estabelecida, cindir com outras formas estéticas, no sentido de "recriar"
outras formas. Nas peças de Brecht o espetáculo é uma possibilidade dos
expectadores, perceberem a essência do que está posto. Assim o dramaturgo chega
a criar uma forma de desconstruir o espetáculo, essa forma ele chamou de
distanciamento17 ou estranhamento.

Brecht desenvolveu uma teoria de técnica dramática conhecida como teatro épico. Ele pretendia
16

evitar que o espectador confundisse arte com a vida real. Por isso, os atores frequentemente
lembravam que o que o público estava vendo era uma peça e não a vida real. Tendo essa
consciência, o público despertaria para a possibilidade de transformar a própria realidade.
"Precisamos de um teatro que não apenas liberte os sentimentos, pensamentos e impulsos possíveis
no âmbito de um determinado ambiente histórico no qual a ação se realiza, mas que utilize e encoraje
esses sentimentos e ideias que ajudam a transformar o próprio ambiente", explicava Brecht. Muitas
características das peças encenadas hoje em dia, como ausência de cenário, lâmpadas à mostra,
cenas curtas, interrupção do texto com comentários sobre a realidade fora do espetáculo, são
herança brechtiana.

Foi em 1936 que Brecht formulou pela primeira vez sua teoria do efeito de distanciamento ou
17

Estranhamento.

“Distanciar” um fato ou caráter é, antes de tudo, simplesmente tirar desse fato ou desse caráter tudo
o que ele tem de natural, conhecido, evidente, e fazer nascer em seu lugar espanto e curiosidade.
Brecht assevera que distanciar é historicizar e, para isso, é preciso que os fatos e as personagens
sejam representados como históricos, na sua efemeridade. Ele desenvolveu a técnica do
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Importante frisar que Marcuse enquanto pensador dialético não anula as


contribuições de Bertold Brecht enquanto dramaturgo e poeta, porém, várias
posturas um tanto contraditórias em relação a sua proposta dramatúrgica e as
questões políticas, fazem com que Marcuse, levante sérias críticas a algumas
posturas proferidas pelo autor. Percebemos abaixo a citação onde Marcuse elogia
as peças de Brecht, logo mais na citação seguinte, deixa claro a sua reflexão crítica
sobre a posturas meio agressiva do autor.

Assim, o Woyzeck de Buchner, as peças de Brecht, mas também os


romances de Kafka e de Beckett são revolucionários em virtude da forma
dada ao conteúdo. Na verdade, o conteúdo (a realidade estabelecida)
apenas alienado e mediatizado. A verdade da arte reside no fato de o
mundo na realidade, ser tal como aparece na obra de arte (MARCUSE,
1977, p. 14).

Segundo MARCUSE (1977, p. 51). “Em defesa da forma estética, Brecht


escreve em 1921”:

Observo que começo a tornar-me num clássico. Todos aqueles esforços


extremos do [expressionismo] para vomitar por todos os meios certo
conteúdo (banal, em breve banal)! Acusam-se os clássicos da sua sujeição
a forma e esquecem-se que é a forma que se submete (BRECHT, 1921,
apud MARCUSE 1977).

Conforme MARCUSE (1977, p. 52). “Brecht relaciona a destruição da


forma com a banalização. Na realidade, esta conexão não faz justiça ao
expressionismo18, muito do qual de nenhum é banal. ” Percebemos a negação de

distanciamento na Alemanha, no Theater Am Schiffbauerdamm, tendo como participantes os atores


Helene Weigel, Peter Lorre, Oskar Homolka, Carola Neher e Ernst Buch. Queria o espectador com
postura crítica, com atitude ativa. Uma de suas premissas era: “o desconhecido desenvolve-se
somente a partir do conhecido”.

O Expressionismo surge no final do século XIX com características que ressaltam a subjetividade.
18

Neste movimento, a intenção do artista é de recriar o mundo e não apenas a de absorvê-lo da mesma
forma que é visto. Aqui ele se opõe à objetividade da imagem, destacando, em contrapartida, o
subjetivismo da expressão. Seu marco ocorreu na Alemanha, onde atingiu vários pintores num
momento em que o país atravessava um período de guerra. As obras de arte expressionistas
mostram o estado psicológico e as denúncias sociais de uma sociedade que se considerava doente e
na carência de um mundo melhor. Pode-se dizer que o Expressionismo foi mais que uma forma de
expressão, ele foi uma atitude em prol dos valores humanos num momento em que politicamente isto
era o que menos interessava. O principal precursor deste movimento foi o pintor holandês Vincent
Van Gogh, que, com seu estilo único, já manifestava, através de sua arte, os primeiros sinais do
expressionismo. Ele serviu como fonte de inspiração para os pintores: Érico Heckel, Francisco Marc,
Paulo Klee, George Grosz, Max Beckmann, etc. Há ainda muitos outros pintores, entre eles, Pablo
Picasso, que também foram influenciados por esta manifestação artística. Outro importante pintor
expressionista foi o norueguês Edvard Munch, autor da conhecida obra O Grito.
Ver também: DIAS, Maria H. Martins, A Estética Expressionista, 1ª ed, SP, IBIS, 1999.
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Marcuse, quando reconhece a relevância do expressionismo que foi criticado por


Brecht. A questão central deste ponto de partida é que Marcuse, deixa claro a
importância de cada momento literário para os processos de aumento qualitativo
que ocorreram ao longo do processo histórico. Não podemos negar que em meio as
contradições do mundo, possam surgir possibilidades de efetividade e
transformações. Pensar desta forma seria cancelar a própria razão ou o ser.

No teatro de Brecht a ideia seria tirar o expectador de seu estado passivo,


o rompimento com as formas estéticas seria no sentido do espetáculo, conseguir
recriar outras formas na própria arte, como foi o exemplo do surgimento dos
movimentos de arte de vanguarda19 que nasceram também da necessidade de
romper determinados padrões estéticos mantidos apenas em uma ótica clássica da
arte, que nasce com a arte grega, conserva–se no período medieval até acontecer o
rompimento destas formas com o surgimento da mentalidade moderna de arte.

Mas este rompimento não consiste em negar a arte clássica como um


todo, negar a arte clássica seria um absurdo, por isso Marcuse elogiava as obras
clássicas de Goeth, elas tinham dentro de sua estrutura clássica outras imagens de
libertação como na obra Werther de 1774. Para Marcuse fica claro que não
podemos negar o percurso histórico, não é viável negar o potencial da arte clássica
ela também teve sua contribuição para o desenvolvimento de questões sociais e foi
a possibilidade para surgir novas correntes artísticas.

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Chamamos de vanguardas europeias o conjunto de tendências artísticas vindas de diferentes
países europeus cujo principal objetivo era levar para a arte o sentimento de liberdade criadora, a
subjetividade e até mesmo certo irracionalismo, sobretudo em um contexto em que as correntes
filosóficas de cunho positivista influenciavam toda produção artística da época. Os movimentos de
vanguarda emergiram nas duas primeiras décadas do século XX e provocaram uma ruptura com a
tradição cultural do século XIX, influenciando não apenas as artes plásticas, mas também outras
manifestações artísticas, entre elas a literatura.
Do francês avant-garde, a palavra vanguarda significa “o que marcha na frente”. As correntes de
vanguarda, embora apresentassem propostas específicas, pregavam um mesmo ideal: era preciso
derrubar a tradição por meio de práticas inovadoras, capazes de subverter o senso comum e captar
as tendências do futuro. Essas propostas, incompreendidas à época em virtude, principalmente, do
contexto conservador no qual estavam inseridas, adquiriram importância histórica e influenciaram o
trabalho de vários artistas no mundo. No Brasil, as vanguardas estiveram intrinsecamente
relacionadas com a primeira geração do Modernismo, uma vez que seus representantes (presentes
na literatura, na arquitetura, nas artes plásticas ou na música), contagiados pelo sentimento de
renovação, observaram a necessidade de alinhar o pensamento artístico brasileiro às vanguardas
que surgiram na França no início do século XX.
Ver também: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Europeia e modernismo brasileiro, 1ª ed, SP,
editora: José Olímpio, 2012.
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O fato de o artista pertencer a um grupo privilegiado não nega nem a


verdade nem a qualidade estética de sua obra. O que é verdade para [os
clássicos] também é verdade para os artistas: irrompem através das
limitações de classe da sua família, das suas origens, do seu ambiente
(MARCUSE, 1977, p. 30).

Partiremos agora para a segunda compreensão, a saber, a de “autonomia


estética” que para Marcuse está interligada com o poder cognitivo existente na
percepção da experiência da arte e também do artista. O sentido de autonomia nos
remete a tomada de decisão e consciência em relação as estruturas estabelecidas e
mistificadas.

A autonomia estética chama pela sensualidade tão importante na arte.


Mas também a autonomia estética poderá perder o seu potencial, caso a arte fique
em convergência com as estruturas políticas da práxis política radical, como
ocorrerão no realismo soviético.

A autonomia da arte e o seu potencial político manifesta-se no poder


cognitivo e emancipatório desta sensualidade. Não é portanto,
surpreendente que, historicamente, o ataque à arte autónoma se uma a
denúncia da sensualidade em nome da moralidade e da religião
(MARCUSE, 1977, p.73).

Conforme MARCUSE (1977, p. 45). “A tese básica de que a arte deve ser
um fator de transformação do mundo pode facilmente tornar–se no contrário, se a
tensão entre a arte e a práxis radical diminuir de modo a que a arte perca a sua
própria dimensão de transformação. ”

Percebemos que o conceito de autonomia estética, dá a arte a


possibilidade de transcender o dado concreto, a arte enquanto uma força de
invalidação do estabelecido, o que Marcuse busca é unir a idéia de subjetividade e
objetividade contidos na experiência da arte, estas duas categorias não fazem parte
da visão dos estetas do marxismo ortodoxo.

Libertar a subjetividade faz parte da história íntima dos indivíduos – da sua


própria história, que não é idêntica a sua existência social. E a história
particular dos seus encontros, paixões, alegrias e tristezas – experiências
que não se baseiam necessariamente na sua situação de classe e que nem
sequer são compreensíveis a partir dessa perspectiva (MARCUSE, 1977, p.
19)

Por isso que a dimensão estética por meio de diversas formas estéticas
traz consigo este rompimento com a realidade, ou seja, a totalidade das relações
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sociais, buscando a essência que está intrinsecamente ligada a esta realidade, a


essência também seria a percepção das leis que determinam estas relações no
complexo da causalidade social.

A experiência da arte também nos provoca a perceber o seu potencial de


verdade, ou seja, no potencial existente nas linguagens da arte de romper com a
realidade estabelecida, a categoria verdade da arte aqui exposta, relaciona-se com a
essência que está incutida na aparência. O universo estético da arte para Marcuse
tem a função definitiva de negar a realidade estabelecida.

Conforme afirma MARCUSE (1977, p. 61): “O mundo significado na arte


nunca é de modo algum apenas o mundo concreto da realidade de todos os dias,
mas também não é um mundo de mera fantasia, ilusão, e assim por diante.”

O viver da consciência criativa, autonomia e negatividade da arte que


Marcuse levantou a partir da dimensão estética no final do século XX, constitui–se
no sentido de não decretar por definitivo a morte da arte, morte da subjetividade em
meio ao desenvolvimento do modo de produção capitalista avançado, opressor e
ilusório. Das relações materiais que avançam rumo a barbárie e a depreciação da
vida. É neste momento histórico que a arte ainda constrói a transfiguração das
imagens e modos de vida que são introjetados como real.

Portanto o movimento dialético da arte em meio a antiarte e a não–arte,


reluz como caminho para a afirmação do espírito absoluto que ainda não está
perdido em meio as relações apenas materiais como pensavam os estetas do
marxismo ortodoxo.

Na arte, o ato perceptivo é um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A


arte é um meio de experimentar o devir do objeto: aquilo que ele já é, na
arte é despojado de importância. O processo artístico é assim a “liberação
do objeto do automatismo da percepção” que distorce e restringe o que as
coisas são e o que as coisas podem ser (MARCUSE, 1967, p. 4).
51

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho foi possível perceber as contribuições do


pensamento de Herbert Marcuse em relação a arte e a estética, compreender a
crítica tecida pelo filósofo aos estetas do marxismo ortodoxo e buscar uma
significação com mais propriedade acerca da estética marxista. Assim, este estudo
filosófico nasce como ponto de partida para o aprofundamento da pesquisa filosófica
dentro do campo da estética marxista a ser realizada a posteriore.

As reflexões de Marcuse acerca de um entendimento aprofundado em


relação a arte e a estética, possibilitou a compreensão dos potenciais subjetivos e
ao mesmo tempo objetivos da experiência estética. Da relação entre o que a
experiência estética poderá contribuir com a luta de libertação em contraposição as
sociedades estabelecidas.

Em relação aos estetas do marxismo ortodoxo e sua corrente de


pensamento centrada no realismo socialista, nos remete a entender que não existe a
possibilidade de determinar a experiência da arte e da estética aos ditames de um
regime, seria a mortificação da experiência artista, a aniquilação do seu princípio de
liberdade.

As teses de Marcuse provocaram grandes reflexões no sentido de abrir


uma lacuna para não deixar morrer a experiência da arte em meio a totalidade das
relações, embora saibamos que considerando todo o movimento da dialética, a arte
se faz presente nesta totalidade, mesmo não constituindo uma unidade direta com a
mesma. A arte possui o potencial de cindir com o mundo material, com as relações
de troca.

Mais uma vez o resgate do pensamento de Hegel nos fez perceber a


importância de sua filosofia, de seu estatuto estético e dialético. A consciência não
pode apartar-se do dado concreto, ambas constituem uma mesma unidade, porém a
consciência determina o ser, o sujeito pensante em contraposição ao mundo
estabelecido. Esta relação com a arte e a estética se fazem necessárias, pois as
potencialidades da arte, possibilitam a construção desta outra imagem que se faz no
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sujeito da consciência, o artista não é apenas aquele que produz a obra concreta, o
artista é dotado de consciência, de sensibilidade, criatividade e de politicidade.

Outro ponto a ser destacado é o esclarecimento em relação ao


pensamento de Hegel e Marx no que diz respeito os indivíduos reais de Marx e a
consciência de Hegel. Tratando-se de sua relação com a arte e a estética, estas
duas categorias, tendem a unir-se no pensamento de Marcuse, uma não anula a
outra, a introspecção e a subjetividade em relação a arte e a estética, garantiram o
direito aos indivíduos de emergirem das camadas excludentes da vida material.
Assim, construírem sonhos e imagens possíveis de libertação. Marcuse deixa claro
este pressuposto.

Percebi com este estudo que mesmo a arte e estética estando


relacionada com o mundo do estabelecido, mas apenas fazendo parte, ambas
possuem forças incomensuráveis de transfiguração e construção de novas
possibilidades, de fazer com que os indivíduos busquem sua autonomia, que
percebam que o aparente não condiz com o verdadeiro.

Assim espero que estas reflexões possam contribuir para outros


estudantes, pesquisadores de arte e filosofia, críticos de arte etc. Que se possa
ampliar o debate acerca da estética e das contribuições dos pesquisadores do
Instituto de Pesquisa Social (Escola de Frankfurt) para a organização e construção
de pensamentos mais críticos, dotados de razão e de emancipação política. Da
construção de princípios éticos que possam possibilitar o avanço qualitativo dos
indivíduos, da afirmação do seu ser.

Por fim, este estudo tem por finalidade iniciar um ponto de partida acerca
da descoberta de outros textos sobre o estatuto estético de Herbert Marcuse, como
Douglas Kellner frisou, existem diversos textos de Marcuse sobre o seu estatuto
estético, que não chegaram nas mãos dos estudiosos de teoria crítica social, de arte
e de estética.
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REFERÊNCIAS

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Editora Anhembi Morumbi, 2004.

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publicada em 1972 por Beacon Pres, sob os auspícios da Unitarian Universalist
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SCHILLER, F. V. A educação estética do homem numa série de cartas, 4ª ed,


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TELES, G.; MENDONÇA. Vanguarda Europeia e modernismo brasileiro, 1ª ed,


SP, editora: José Olímpio, 2012.

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