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Águas turbulentas: Na confluência da ética e da política

Didier Fassin

Qual é a verdadeira relação entre ética e política?

Max Weber, A Política como Vocação, 1919

Por mais de dois mil anos, os filósofos tentaram isolar a essência da ética e da moralidade,
seja em termos de fundamentos ou princípios. Por mais de um século, os cientistas sociais, por sua
vez, também tentaram fazer isso, quer chamassem seu objeto de investigação de códigos morais ou
subjetividades éticas. Esse esforço, de fato, assumiu várias formas, tanto teóricas quanto empíricas,
da ética da virtude de Aristóteles à ética do dever de Immanuel Kant, dos sentimentos morais de
Adam Smith à ética religiosa de Max Weber, do estudo de Edward Westermarck sobre a origem das
ideias morais à análise de Émile Durkheim sobre a determinação dos fatos morais, do improvável
experimento mental dos trens em colisão [NT. Exemplo clássico usado pela teoria da escolha racio-
nal] às experiências místicas dos monges medievais. Biólogos evolucionistas, psicólogos cognitivos
e especialistas em neuroimagem tentaram até mesmo identificar a gramática dos traços morais uni-
versais que poderiam definir os seres humanos e criar uma ética arraigada em seu cérebro.

Apesar das tentativas iniciais de caracterizar os fundamentos morais dos mundos sociais es-
pecíficos que estudavam, os antropólogos exploraram avidamente esse campo nas últimas duas ou
três décadas e renovaram substancialmente nosso entendimento sobre ele. Como é bem sabido, suas
pesquisas seguiram dois caminhos principais (Fassin 2014a). O primeiro enfoca as restrições sociais
da moralidade, as normas impostas pela sociedade, os valores compartilhados por seus membros e a
contribuição da ordem moral para a ordem social. A segunda insiste, ao contrário, nas dimensões
individuais da ética, na liberdade que cada pessoa tem para deliberar e decidir, e na experiência in-
terior por meio da qual os sujeitos éticos são formados. Assim delineada, a geografia do campo, que
reproduz a oposição clássica entre as filosofias kantiana e aristotélica, é certamente redutora, e as
múltiplas sobreposições entre as duas abordagens complicam cada vez mais a paisagem que acabei
de descrever, sendo que a alternativa entre restrições e liberdade é, para alguns, difícil de sustentar
tanto empiricamente quanto teoricamente. No entanto, a distinção que ela permite ao contrastar a
linguagem da moralidade e a linguagem da ética, já proposta por Bernard Williams, continua sendo
uma convenção útil, embora também se possa argumentar que o que os antropólogos costumavam
chamar de "moral" agora é denominado "ética" sem justificativas fortes em relação à diferença, mas
meramente por causa do apelo da palavra. Quanto a mim, associo os dois termos com apenas pe-
quenas inflexões semânticas.

Além de suas visões diversas e, às vezes, conflitantes, esses delineamentos de domínios al-
ternadamente denominados etnografia da moral (Howell 1996) ou antropologia da ética (Faubion
2011) têm logicamente em comum o fato de identificar o que constitui a moralidade ou a ética. Não
que eu considere ilegítimos os esforços empreendidos por filósofos e cientistas sociais para extrair
suas pérolas morais ou éticas a fim de poder melhor examiná-las, mas quero tentar estudá-las com
sua ganga e até mesmo em sua veia a fim de fornecer um relato e uma compreensão distintos de seu
significado social. A moralidade e a ética estão, de fato, sempre inseridas em contextos históricos,
universos culturais e práticas sociais. Geralmente estão intimamente ligadas a dimensões econômi-
cas e políticas. Exceto quando estão inscritas em doutrinas religiosas ou ideológicas, nas quais po-
dem ser claramente formuladas, sua identificação por antropólogos ou sociólogos resulta de uma
reconstituição por meio do estudo de discursos e práticas. Essa diferenciação entre o que é moral ou
ético e o que não é pode ser assimilada a uma forma de purificação por meio da qual os códigos
morais e as subjetividades éticas, por exemplo, são extraídos do curso das atividades humanas. Essa
é uma operação científica legítima que nos tornou cientes de áreas inteiras e questões específicas da
vida social que até então eram amplamente ignoradas ou desconsideradas. Entretanto, ao fazer isso,
os cientistas sociais, em especial os antropólogos, tendem a reproduzir o que os filósofos geral-
mente fazem quando isolam princípios morais ou dilemas éticos. Embora essa operação abstrata
possa ser justificada por razões teóricas, bem como por uma perspectiva prescritiva no caso da
filosofia, sua aplicação às ciências sociais deixa inexploradas certas dimensões morais e éticas da
ação humana que são empírica e normativamente impuras. Essa impureza nunca é tão óbvia quanto
no encontro entre ética e política.

Em uma de suas últimas entrevistas, Michel Foucault ([1984] 2001: 1414) resumiu assim
seu empreendimento intelectual: "De certa forma, pode-se dizer que tento analisar as relações entre
ciência, política e ética. Em vez disso, procuro contemplar como os processos podem interferir uns
com os outros na constituição de um domínio científico, uma estrutura política e uma prática
moral". Esse projeto, cuja genealogia pode ser rastreada até Nietzsche, torna-se cada vez mais pre-
sente nas duas últimas séries de palestras de Foucault no Collège de France, intituladas "O governo
de si e dos outros". De acordo com essa reflexão, é a interface entre a ética e a política, conforme
apreendida pelas lentes da ciência social, que quero estudar. Não estou insinuando que toda ética é
política ou que a política só tem a ver com a ética, mas acredito que a interligação das duas é uma
questão definidora do mundo contemporâneo que tem sido pouco estudada.

No entanto, essa não é uma preocupação nova. Há quase um século, em sua famosa palestra
"A polícia como vocação" Max Weber ([1919] 1994: 357) perguntou: "É de fato verdade que qual-
quer ética no mundo poderia estabelecer mandamentos substancialmente idênticos aplicáveis a to-
das as relações, sejam elas eróticas, comerciais, familiares ou oficiais, às relações com a esposa,
com o verdureiro, com o filho, com o concorrente, com um amigo ou com um acusado? O fato de a
política operar com um meio bastante específico, ou seja, o poder, apoiado pelo uso da violência,
pode ser realmente uma questão de tamanha indiferença no que diz respeito às exigências éticas im-
postas à política?" O domínio em que a ética e a política se cruzam e interagem é, de fato, profun-
damente influenciado pelas relações de poder e pelos jogos de poder em jogo. Isso não quer dizer
que o poder estaria ausente de outras atividades humanas, inclusive paternais, conjugais ou sexuais,
mas é, sem dúvida, uma característica dominante no domínio político, onde está potencialmente as-
sociado ao uso legítimo da violência.

Neste ensaio, explorarei o encontro entre ética e política por meio de uma série de estudos
de caso, um método que já foi usado anteriormente (Gutman e Thompson, 2006), mas ao qual pre-
tendo dar um conteúdo teórico mais geral. Farei isso passando das relações internacionais para as
questões nacionais e para os cenários locais, e me baseando principalmente em estudos anteriores
que realizei em vários contextos.

Duas dificuldades metodológicas, parcialmente relacionadas, surgem dos estudos de caso


apresentados e, de modo mais geral, da exploração da interface entre ética e política. A primeira diz
respeito ao aspecto individual da ética em contraste com a dimensão coletiva da política. A segunda
diz respeito ao nível microssocial da ética em oposição à escala macrossocial da política. Certamen-
te, essas dicotomias exageram a caracterização dos dois campos, mas as tensões entre eles existem
de fato na interpretação dos casos, quer se explore a "vida ordinária", por meio de histórias de amor
entre grupos religiosos hostis na Índia (Das 2010) ou variações linguísticas na evocação de um pai
sobre o assassinato de seu filho no México (Keane 2010), ou a vida pública, como farei neste ensaio
- e ficará claro por meio dos estudos de caso que os limites entre essas duas formas de vida, ordiná-
ria e pública, tendem a ser empiricamente indistintos. Como é possível estudar conflitos éticos nas
relações entre estados ou nações? Como abordar questões éticas no âmbito cívico? Como analisar
as contradições éticas dentro das instituições? Essas são algumas das perguntas que abordarei.

Primeiro examinarei o domínio das intervenções humanitárias, que talvez seja o local global
mais óbvio de debates éticos, para discutir as três principais teorias filosóficas: ética do dever, ética
da virtude e consequencialismo. Em seguida, analisarei a questão dos direitos civis e os dilemas
morais que eles podem suscitar, para distinguir entre duas éticas: convicção e responsabilidade. Por
fim, considerarei a questão da má conduta em profissões e instituições e suas justificativas morais
pelos agentes, para ilustrar a importância de analisar toda a gama de valores e afetos, independen-
temente de sua orientação positiva ou negativa.

Desenvolvendo e discutindo esses estudos de caso, pretendo prosseguir com o diálogo críti-
co e frutífero com a filosofia que travei em vários ensaios, defendendo uma traição respeitosa e leal
em vez de uma mera aplicação de conceitos (Fassin 2014b). Mais especificamente, apelarei para
interpretações geralmente apresentadas como distintas e até mesmo incompatíveis ou contraditórias
para mostrar que, quando são consideradas em situações reais, as linhas entre elas tendem a se
tornar indistintas. Essa investigação sobre as fronteiras entre as disciplinas e os limites entre os
campos significa aventurar-se em terrenos perigosos onde as epistemologias não estão estabilizadas,
mas onde, espero, o leitor me acompanhará.

QUESTIONAMENTO ÉTICO: SOBRE O CASO DA LÍBIA

A intervenção das forças francesas e britânicas na Líbia, que começou com o apoio dos Es-
tados Unidos e de sete outros países em 19 de março de 2011, foi considerada o primeiro teste real
para o princípio da Responsabilidade de Proteger adotado pelas Nações Unidas em 2005 (Fassin
2013a). Esse princípio, muitas vezes abreviado como r2P, é a resposta ao massacre de Srebrenica e
ao genocídio em Ruanda, para os quais a organização ficou paralisada ao assistir passivamente à
ocorrência de assassinatos em massa. Considerado um grande avanço na ética das relações interna-
cionais, ele implica que, em casos de genocídio, limpeza étnica, crimes de guerra e crimes contra a
humanidade, os estados-membros das nações unidas têm a responsabilidade de proteger as vítimas
usando "todas as medidas necessárias", desde pressões diplomáticas até operações militares. Para
seus promotores, ela difere radicalmente das tentativas anteriores de impor um "direito de intervir"
ou até mesmo um "dever de intervir", o que teria abalado definitivamente o princípio da soberania
estatal herdado do acordo de Vestefália há quase quatro séculos: quando invocada sob a responsabi-
lidade de proteger, a intervenção militar é apenas um último recurso depois que todas as outras op-
ções falharam e quando as populações estão em grave perigo. Para seus críticos, entretanto, é uma
mera continuação do "humanitarismo muscular", nos termos de Anne Orford (1999): declarar que
todas as outras opções falharam e que as populações estão em grave perigo é, para ela, uma questão
de julgamento dependente de interesses estratégicos. De fato, no final das contas, o princípio r2P
legitima a ação armada sempre que as nações poderosas assim o decidirem.

Foi na Líbia que a nova doutrina serviu, pela primeira vez, para o engajamento em uma
guerra. O Conselho de Segurança adotou a resolução 1973 em 17 de março, com dez países votando
a favor do texto, enquanto China, Rússia, Índia, Brasil e Alemanha se abstiveram. O ataque come-
çou dois dias depois, pois o cessar-fogo anunciado pelo governo líbio não foi considerado confiá-
vel. O objetivo anunciado era impor uma zona de exclusão aérea sobre grande parte do país. Em
Misrata e Benghazi, em particular, as populações estavam sendo ameaçadas pela progressão do
exército de Muammar Gaddafi e seus ataques aéreos. O chefe do Conselho Nacional de Transição
anunciou uma catástrofe, prevendo meio milhão de mortes se as tropas entrassem nas cidades man-
tidas pelos rebeldes. O presidente francês e o primeiro-ministro britânico convenceram os líderes
dos outros países (membros do Conselho de Segurança) a apoiar ou, pelo menos, não se opor à ope-
ração armada. Nove dias após o início da intervenção internacional, Nicolas Sarkozy e David Ca-
meron se regozijaram juntos em uma declaração pública: "centenas de milhares de pessoas foram
salvas de um desastre humanitário". Apesar da imprecisão do significado da frase - as vidas foram
realmente salvas ou um desastre em potencial foi evitado? - nenhuma justificativa melhor poderia
ser invocada ao recorrer à força na aplicação da Responsabilidade de Proteger: ameaçadas por seu
próprio governo, as populações enfrentavam um grave perigo, a menos que uma ação imediata fos-
se tomada. A operação não foi, de fato, descrita como militar, mas como humanitária.

O caso era, à primeira vista, relativamente simples. Inspirado pela Primavera Árabe, que re-
sultou na derrubada de dois presidentes autoritários por manifestantes civis na Tunísia e no Egito,
um movimento social se desenvolveu em janeiro de 2011 contra o ditador corrupto Muammar
Gaddafi, que estava no poder há mais de quatro décadas. À medida que as manifestações se trans-
formaram em confrontos com a polícia e as forças de segurança dispararam munição real contra os
manifestantes, a agitação evoluiu rapidamente para uma guerra civil. Os rebeldes, que incluíam
civis, policiais e militares desertores e, presumivelmente, grupos islâmicos, assumiram o controle
de grande parte do país, mas as forças governamentais logo recuperaram parte do território perdido
e marcharam sobre as cidades separatistas. As relações públicas de ambos os lados tentaram descr-
ever seus respectivos inimigos como envolvidos em assassinatos e torturas. O exército oficial foi
acusado de contratar mercenários estrangeiros e de estuprar sistematicamente mulheres.

Paralelamente, uma intensa atividade diplomática estava ocorrendo sob a égide da França e
da Grã-Bretanha (na União Europeia) para adotar uma posição comum, bem como no Conselho de
Segurança (das Nações Unidas), a fim de evitar o veto da Rússia e da China. Influenciado pelo inte-
lectual público francês Bernard-Henri Lévy, que, tendo ido a Benghazi como jornalista e se reunido
com os líderes da rebelião, defendeu uma intervenção rápida, Nicolas Sarkozy, sem sequer informar
seu ministro das relações exteriores, reconheceu apressadamente o Conselho Nacional de Transição
como o governo legítimo da Líbia e, com o apoio ativo de David Cameron, interveio pessoalmente
com os outros 14 chefes de estado do Conselho de Segurança para convencê-los de que uma opera-
ção militar era a única opção. Dois dias depois, a resolução 1973 foi aprovada, e os bombardeios
das forças aliadas sobre a Líbia começaram. Após sete meses de ataques navais e ataques aéreos,
cujo número de vítimas permanece desconhecido quatro anos depois, o fim da operação foi anunci-
ado com a confirmação da morte de Kadafi.

Considerado o principal autor do princípio da Responsabilidade de Proteger, o ex-ministro


australiano de relações exteriores Gareth Evans escreveu no Sydney Morning Herald em 24 de mar-
ço de 2011: "A intervenção militar internacional na Líbia não se trata de bombardear a democracia
ou a cabeça de Muammar Gaddafi - muito menos de manter os preços do petróleo baixos ou os lu-
cros altos. Legalmente, moralmente, politicamente e militarmente, ela tem apenas uma justificativa:
proteger o povo do país do tipo de dano assassino que Gaddafi infligiu a manifestantes desarmados
há quatro semanas, que continua a aplicar àqueles que se opõem a ele nas áreas que controla e que
prometeu infligir a qualquer um que se oponha a ele caso suas forças recapturem Benghazi e outros
territórios rebeldes." No entanto, falando com muito menos confiança em uma conferência em Mel-
bourne, em 20 de julho de 2012, Evans lamentou a perda de consenso por trás do princípio que ele
havia promovido, cujo resultado foi a ausência de resposta internacional aos massacres perpetrados
naquela época na Síria pelo exército de Hafez al-Assad, uma situação comparável, em muitos as-
pectos, àquela encontrada anteriormente na Líbia, embora a "violência do regime de Kadafi tenha
sido muito menor do que a de Assad", de acordo com o ex-ministro australiano. O consenso sim-
plesmente evaporou em uma confusão de recriminações sobre como a implementação liderada pela
OTAN do mandato do Conselho para a Líbia "para proteger os civis e as áreas povoadas por civis
sob ameaça de ataque" foi realmente realizada. Temos que reconhecer francamente que houve uma
certa infecção de todo o conceito de r2P pela percepção, precisa ou não, de que o mandato de prote-
ção civil concedido pelo Conselho foi manifestamente excedido por essa operação militar". Então,
como explicar o desencanto de Evans? Por que o consenso internacional evaporou? O que deu erra-
do com a aplicação do princípio que ele havia defendido?

Antes de responder a essas perguntas, que têm a ver com o fato de a intervenção não ter cor-
respondido às expectativas da comunidade internacional, deve-se formular um questionamento pre-
liminar sobre os próprios fundamentos da operação: Ela foi justificada, como supunham os promo-
tores do princípio da Responsabilidade de Proteger e como a votação no Conselho de Segurança
parecia indicar? A apresentação da situação pela mídia, por muitos políticos, por várias organiza-
ções não governamentais e, é claro, pelos líderes dos rebeldes, deixou poucas dúvidas: um massacre
estava prestes a ser perpetrado por um dos ditadores mais brutais do continente, e somente uma
ação preventiva imediata poderia evitá-lo. Entretanto, alguns condenaram essa precipitação belico-
sa. O teórico das "guerras justas", Michael Walzer (2011), escreveu no The New Republic, já em 20
de março de 2011, que o bombardeio era injustificado porque seus objetivos não eram claros, falta-
va o apoio das nações árabes e as condições de aplicação da responsabilidade de proteger não eram
atendidas, pois não havia nenhuma indicação de que ocorreriam mortes em massa de civis. Mas foi
fora do mundo ocidental, na África e no Oriente Médio em particular, que a operação militar, vista
como motivada por interesses econômicos e motivações imperialistas, recebeu a mais ampla oposi-
ção de intelectuais e do público em geral.

De forma surpreendente, provavelmente mais do que na Grã-Bretanha, onde a intervenção


contestada no Iraque deixou rastros entre a população, houve um amplo consenso na França em re-
lação à posição belicosa do presidente, conforme revelaram as pesquisas de opinião. Na Assembleia
Nacional, quase todos os representantes, dos conservadores aos socialistas, mantiveram seu apoio
ao engajamento militar do governo de direita durante toda a campanha, com a única exceção dos
comunistas. Mas não menos evidente, a maior organização humanitária francesa, Médicos Sem
Fronteiras, laureada com o Prêmio Nobel da Paz, estava entre as poucas que criticaram a interven-
ção militar como "legal, mas ilegítima", pois, segundo eles, ela banalizou o uso da força para resol-
ver conflitos internos. Analisando os eventos no final das operações, o ex-presidente da organiza-
ção, Rony Brauman, chegou a declarar no Le Monde, em 25 de novembro de 2011, que a suposta
coluna de tanques avançando em direção a Benghazi e a anunciada destruição do porto de Misrata
por ataques aéreos tinham sido mera "propaganda" do Conselho Nacional de Transição, assim como
os supostos massacres de civis, que nunca foram autenticados. Na verdade, até mesmo as alegações
de estupro como arma de guerra (as caixas de Viagra fornecidas como prova estavam muito bem
preservadas, considerando que teriam sido encontradas em tanques carbonizados), do uso de mer-
cenários estrangeiros (os africanos subsaarianos apresentados como tal eram, na verdade, migrantes
sem documentos), e do bombardeio de manifestantes civis por helicópteros, todas as acusações que
contribuíram significativamente para o aumento da indignação em todo o mundo e para a justifica-
tiva da operação militar, foram contestadas por um relatório independente da Anistia Internacional
em junho de 2011: nenhuma evidência dessas alegações foi encontrada. Embora seja impossível
determinar com exatidão qual era a situação quando a resolução 1973 foi votada e qual teria sido o
resultado do ataque contra os rebeldes se a intervenção não tivesse sido realizada, a decisão de der-
rubar o regime - e não simplesmente proteger a população - parecia ter sido tomada várias semanas
antes da contraofensiva do presidente francês, que havia declarado que "Kadafi deve sair".

De fato, mesmo aqueles que eram fortemente a favor da intervenção militar ficaram inco-
modados com o desenvolvimento de uma "missão rasteira", nas palavras de James Pattison (2011),
cujo objetivo principal era a deposição do ditador líbio em vez da anunciada imposição de uma
zona de exclusão aérea. Para entender a decisão de intervir e o que parecia ter sido, desde o início, o
objetivo real da operação, é preciso levar em conta as considerações internas (Chorin 2012). Duran-
te anos, Gaddafi foi demonizado no Ocidente: seu apoio a movimentos de libertação incluídos na
lista negra dos Estados Unidos foi usado como justificativa para ataques aéreos a Trípoli e Benghazi
em 1986, matando a filha do líder líbio; sua suspeita de envolvimento em ataques terroristas contra
dois aviões em 1988 e 1989, que causaram a morte de mais de quatrocentas pessoas, muitas delas
britânicas e francesas, levou a sanções econômicas internacionais. Mas na década de 2000, as coisas
mudaram. O regime colaborou com o governo dos Estados Unidos em sua guerra contra o terroris-
mo islâmico, concordou em indenizar as famílias das vítimas de seus ataques e renunciou oficial-
mente ao seu programa nuclear, obtendo, assim, após 2004, uma normalização progressiva de suas
relações com os países ocidentais, em especial as nações europeias ansiosas para acessar as reservas
de petróleo da Líbia, beneficiar-se de mercados promissores (incluindo a venda de armas no caso da
Grã-Bretanha) e trabalhar no controle da migração nas fronteiras do sul da Europa, uma grande pre-
ocupação para o governo italiano.

Imediatamente após sua eleição como presidente em 2007, Sarkozy entrou em negociações
com a Líbia para a libertação de cinco enfermeiras búlgaras e um médico de origem palestina acu-
sados de terem causado infecções por HIV em crianças, enviou sua esposa e seu secretário-geral
para discussões secretas em Trípoli e, após a deportação dos profissionais de saúde, expressou sua
gratidão a Kadafi (Zoubir 2012). Como parte de uma série de convites oficiais para as capitais eu-
ropeias, o ditador líbio foi recebido em Paris com grande pompa para o que um repórter do New
York Times chamou em 11 de dezembro de 2007 de "recompensa", citando o assessor especial do
presidente francês para assuntos estrangeiros como tendo dito que Kadafi tinha "direito à redenção".
No entanto, Sarkozy teve que suportar a humilhação dos caprichos e provocações de seu convidado,
como a instalação de sua suntuosa tenda perto do Palácio do Eliseu, a residência presidencial ofici-
al. Como essa visita do autocrata recém-reabilitado causou constrangimento e protestos na França,
inclusive dentro do governo, e como as revelações posteriores da mídia sobre os desenvolvimentos
da amizade entre os dois chefes de Estado e seus colaboradores mais próximos geraram ainda mais
humilhação, o ditador incontrolável caiu em desgraça.

Nesse contexto, a perspectiva de uma Primavera Líbia foi considerada uma oportunidade
para o presidente francês, cada vez mais impopular, corrigir seus erros políticos, principalmente de-
pois de ter sido criticado por sua gestão da Primavera Árabe anterior e de ter pedido a demissão de
sua ex-ministra das Relações Exteriores devido ao seu relacionamento muito próximo com o auto-
crata tunisiano. De acordo com uma análise publicada pela Forbes em 29 de março de 2011, embora
factualmente distintas, as considerações domésticas não eram tão diferentes em substância para o
governo britânico, uma vez que as perturbadoras negociações secretas de Tony Blair com Kadafi
em 2007 e 2008 foram tornadas públicas, a libertação do principal perpetrador do ataque de Loc-
kerbie por razões humanitárias em 2009 causou comoção entre a família das vítimas e os possíveis
investimentos da British Petroleum na Líbia foram considerados em risco. Em suma, o nobre argu-
mento humanitário apresentado pelos líderes franceses e britânicos como justificativa para o ataque
não estava isento de segundas intenções, que foram reveladas pela reorientação da missão. A rejei-
ção de várias centenas de refugiados que fugiam do conflito e os ataques aéreos, que foram parados
e devolvidos na fronteira sul da França, revelaram mais tarde os limites da compaixão do presidente
pelo sofrimento dos líbios.

Mas, ainda mais problemático do que esse desvio, a evolução da situação no terreno levan-
tou preocupações crescentes sobre as consequências da intervenção tanto no curto quanto no longo
prazo, conforme discutido por Alan Kuperman (2013). Como se considera que a operação da OTAN
aumentou a duração da guerra, alguns especialistas estimam que o número de mortos tenha sido de
sete a dez vezes maior, com crimes de guerra e crimes contra a humanidade perpetrados por ambos
os lados, incluindo o assassinato de migrantes da África subsaariana acusados de serem mercenários
do regime. Talvez ainda mais preocupante, quatro anos após o fim oficial do conflito, o país contin-
ua dividido em quatro áreas sob o controle de organizações antagônicas, incluindo o Estado Islâmi-
co do Iraque e do Levante, e a Líbia se tornou um local geoestratégico para rivalidades entre gover-
nos muçulmanos no Oriente Médio, com o Egito e os Emirados Árabes Unidos lançando ataques
aéreos contra grupos islâmicos apoiados pela Turquia e pelo Catar. Além disso, o alastramento do
conflito para a região, em especial para a Argélia e Mali, foi facilitado pela disseminação de mil-
itares e milícias, bem como pela dispersão de armas de arsenais saqueados, levando ao fortaleci-
mento de grupos rebeldes e jihadistas no Sahel e a novas intervenções militares da França na região.
Em última análise, o princípio da Responsabilidade de Proteger foi parcialmente desacreditado e o
frágil consenso formado em torno dele foi quebrado: os governos que relutaram em participar da
operação militar na Líbia, mas que aceitaram não vetá-la, sentiram-se enganados e, posteriormente,
opuseram-se sistematicamente a resoluções semelhantes, principalmente na Síria.

Como interpretar o caso da Líbia à luz da relação entre ética e política? O humanitarismo
tem uma longa genealogia e uma história curta: a primeira pode ser rastreada até o século XVIII e
além como uma teologia política caracterizada pelo alívio do sofrimento e pelo salvamento de vidas
em nome de uma humanidade comum; a segunda se expande rapidamente no final do século XX na
interface entre organizações não governamentais, agências multilaterais e Estados como uma políti-
ca global de compaixão e resgate (Fassin 2012). A Responsabilidade de Proteger é tanto a continu-
ação quanto a culminação do projeto humanitário da perspectiva das relações internacionais, pois
substitui o princípio histórico da soberania nacional pela obrigação ética superior de defender as
populações cuja sobrevivência está ameaçada e cujo sofrimento se torna intolerável, ou melhor, tor-
na esta última subsidiária da primeira em situações extremas. De fato, a Responsabilidade de Prote-
ger estipula, em primeiro lugar, que os Estados mantêm a responsabilidade primária pela proteção
de sua população; em segundo lugar, que a comunidade internacional tem a responsabilidade de
ajudá-los a cumprir esse objetivo; e, em terceiro lugar, que ela deve, consequentemente, usar todos
os meios apropriados para atingir esse objetivo, inclusive o uso da força por meio das Nações
Unidas. De acordo com a nova doutrina, a soberania pode, portanto, ser respeitada desde que a pro-
teção da população não seja colocada em risco pelo próprio soberano.

A Responsabilidade de Proteger pertence claramente à tradição kantiana da ética do dever.


Ela impõe uma obrigação moral a cada estado de proteger sua própria população e, em caso de ina-
dimplência de um deles, às Nações Unidas de agir em substituição. Para Kant ([1785] 2005: 61-63),
uma ação pode ser boa, mas não tem valor moral se for realizada por interesse ou por inclinação ou
em consideração às suas consequências. somente "uma ação realizada por dever deriva seu valor
moral, não do propósito que deve ser alcançado por ela, mas da máxima pela qual ela é determinada
e, portanto, não depende da realização do objeto da ação, mas meramente do princípio da volição
pelo qual a ação ocorreu, sem levar em conta qualquer objeto de desejo". Assim, "o dever é a neces-
sidade de agir a partir do respeito à lei". Mas o que é essa lei, que não leva em conta os efeitos que
produz? A resposta é, notoriamente, o imperativo categórico: "Nunca devo agir de outra forma que
não seja para que eu também possa desejar que minha máxima se torne uma lei universal." A res-
ponsabilidade de proteger pode, portanto, ser vista como a reverência à lei universal que ordena evi-
tar o sofrimento e preservar a vida de pessoas ameaçadas por genocídio, limpeza étnica, crimes de
guerra e crimes contra a humanidade. Tanto a formulação do princípio quanto sua aplicação dizem
respeito ao dever. Entretanto, como mostra o caso da Líbia, dois elementos interferem na ética estri-
ta do dever como pura reverência pela lei.

A primeira é o que Kant descreve como "inclinação", da qual ele dá como exemplo o fato de
ajudar os outros pelo prazer sentido ao ver a felicidade deles. No contexto do humanitarismo, a
compaixão diante do sofrimento sofrido pelos outros é um motivo crucial para a ação e tem sido
usada taticamente pelos governos para justificar operações militares por motivos humanitários. Os
rebeldes líbios sabiam disso, pois produziram narrativas, testemunhos e imagens que provocaram
essa reação. E o público do Ocidente, inclusive os políticos, não pôde evitar ser tocado e atraído
pelo espetáculo da aflição humana. Sinceramente ou não, essa exposição contribuiu para a legitima-
ção da intervenção na Líbia. De modo mais geral, no âmbito humanitário, os sentimentos morais
estão intrinsecamente associados aos princípios morais derivados da lei universal: os afetos e os va-
lores estão intimamente ligados e o desejo de agir é inseparável da vontade de agir. Mas essa obser-
vação não se limita ao humanitarismo, como Émile Durkheim ([1906] 2010: 36) enfatizou em seu
esforço para desenvolver uma sociologia dos fatos morais: "As regras morais são investidas de au-
toridade especial em virtude da qual são obedecidas simplesmente porque ordenam. A obrigação é,
portanto, uma das principais características da regra moral. Em oposição a Kant, entretanto, mostra-
remos que a noção de dever não esgota o conceito de moralidade. Para que nos tornemos o agente
de um ato, ele deve interessar nossa sensibilidade até certo ponto e nos parecer, de alguma forma,
desejável." Na visão de Durkheim, se o filósofo pode decidir prescritivamente como se deve agir
moralmente, o cientista social deve estabelecer descritivamente como se age moralmente, sob o im-
pério de princípios e emoções.

O segundo acréscimo à ética do dever corresponde ao "interesse próprio", como diz Kant,
dando como exemplo o comerciante que não cobra a mais de um cliente inexperiente porque essa
quebra de confiança teria efeitos negativos em seus negócios devido ao mercado local competitivo.
No caso da Líbia, o interesse próprio dos chefes de estado ou de governo e de seus países certamen-
te desempenhou um papel na decisão de intervir. Ao avaliarem a situação, o presidente francês e o
primeiro-ministro britânico incluíram os benefícios esperados da operação em suas respectivas situ-
ações internas, em termos de autoridade e popularidade pessoais, bem como as implicações geopolí-
ticas e econômicas para seus países e suas empresas. Esses vínculos entre a moralidade e o interesse
próprio são discutidos há muito tempo nas ciências sociais, e a fábula das abelhas de Bernard Man-
deville ([1714] 1970) e seus paradoxos provocaram um escândalo em sua época, e também fazem
parte da teoria do capital simbólico de Pierre Bourdieu ([1994] 1998: 85): "É possível um ato desin-
teressado?", ele pergunta, e sua resposta é que "todo campo, ao produzir a si mesmo, produz uma
forma de interesse que, do ponto de vista de outro campo, pode parecer desinteresse" e que, reci-
procamente, é sempre possível descobrir "interesse no desinteresse". Novamente, enquanto o filóso-
fo define um ato moral em termos normativos, o cientista social contempla sua lógica social, in-
cluindo o papel do interesse próprio.
Até o momento, apenas a ética kantiana do dever foi discutida, mesmo que tenha sido de-
safiada ou enriquecida a partir da perspectiva das ciências sociais pela inclinação e pelo interesse
próprio, ou seja, apelando para os sentimentos morais e para o reconhecimento das motivações real-
istas. No entanto, o humanitarismo certamente não deve ser reduzido a esse paradigma. Por um
lado, não se pode descartar a ética da virtude aristotélica, tanto entre os trabalhadores de campo
quanto entre os tomadores de decisão, tanto nas organizações não governamentais quanto nos
aparatos estatais, na Líbia e em outros lugares. A maioria dos agentes não age apenas de acordo com
o que é seu dever, mas também, em parte, de acordo com sua intuição e reflexão sobre o que é bom,
conforme descrito por Peter Redfield (2013). O princípio da responsabilidade de proteger popu-
lações ameaçadas não é exclusivo do sentimento de responsabilidade com relação à proteção de
pessoas que estão em perigo. A inclinação emocional e o interesse próprio racional não impedem a
reflexividade virtuosa em relação à melhor ação a ser realizada. Não se compreenderia o significado
ético do humanitarismo em sua totalidade se ele se restringisse ao cumprimento de uma obrigação,
simplesmente temperado por afetos e alimentado por cálculos. Algo como uma ética do cuidado
está simultaneamente em ação, pelo menos entre alguns dos envolvidos ou simplesmente preocupa-
dos. Mas, por outro lado, também é preciso levar em conta a ética consequencialista, que avalia a
moralidade do ato levando em consideração seus efeitos previsíveis. Esses efeitos, como argumenta
David Kennedy (2004), geralmente são muito distantes do que se poderia supor. À luz do que se
sabe sobre o processo da decisão de intervir na Líbia, fica claro, no entanto, que o senso de urgência
para lançar a operação militar, seja qual for a razão ou motivação, prevaleceu sobre a análise minu-
ciosa do que aconteceria em seguida em nível local, regional e internacional. E, à luz do que se sabe
sobre o resultado da operação em termos de baixas e violações dos direitos humanos, bem como de
insegurança e instabilidade no país e na região, é óbvio que as consequências negativas da inter-
venção, embora parcialmente previsíveis a partir de precedentes no Afeganistão ou no Iraque, foram
amplamente ignoradas.

Obrigação, caráter e antecipação, aos quais podem ser acrescentados sentimento e interesse,
constituem, portanto, o complexo entrelaçamento de fios éticos envolvidos no humanitarismo ou,
mais especificamente aqui, na intervenção militar em nome da Responsabilidade de Proteger. Em
vez de uma clara delineação da ética do dever, da ética da virtude e do consequencialismo, é a artic-
ulação dos três e o peso relativo dado a cada um deles que, em última análise, define a interseção da
ética e da política. Os antropólogos e sociólogos que estudam as relações internacionais não pre-
cisam escolher entre os paradigmas: com base em suas pesquisas empíricas e interpretações teóric-
as, eles devem tentar compreender os vínculos, as tensões e as contradições entre as lógicas do dev-
er, da virtude e das consequências, que também são afetadas por impulsos emocionais, influenci-
adas por vantagens esperadas e, em última análise, incorporadas aos interesses políticos. A inter-
venção humanitária em geral e seu avatar militar em particular são muito mais do que a mera pro-
teção benevolente das populações em nome das quais são conduzidas. Mas é possível encontrar out-
ras maneiras de explicar a interseção entre ética e política, conforme revelado pelas controvérsias
levantadas após um evento dramático ocorrido em Paris.

ALTENATIVA ÉTICA: SOBRE O ATAQUE AO CHARLIE

O tiroteio no Charlie Hebdo em 7 de janeiro, seguido dois dias depois pelo ataque a um su-
permercado kosher, inaugurou tragicamente o ano de 2015 na França. No entanto, talvez mais do
que os atos em si, foi a resposta coletiva que eles provocaram na população que recebeu atenção
internacional: quatro milhões de pessoas marcharam pacificamente por todo o país com faixas onde
se lia Je suis Charlie, Eu sou Charlie, em 11 de janeiro de 2015. Todos os partidos políticos convo-
caram manifestações, nas quais apenas a Frente Nacional foi declarada indesejada, com o grito de
guerra: "Contra a barbárie, vamos defender os valores da República!" Desses valores, dois estavam
mais especificamente em jogo: liberté e laïcité, uma vez que o fuzilamento de pessoas associadas à
publicação violava a liberdade de expressão e o fato de que elas teriam sido alvejadas por causa do
conteúdo antirreligioso de seu trabalho, o que infringia os princípios seculares (Fassin 2015). De
fato, os irmãos Kouachi, que haviam matado doze pessoas nos escritórios da revista satírica e nas
proximidades, incluindo cinco cartunistas famosos, queriam vingar a ofensa de terem representado
o Profeta Maomé e, especialmente, de terem feito isso de maneira degradante (por exemplo, nus na
posição de prostração de oração, proferindo a famosa frase de Brigitte Bardot no filme de Jean-Luc
Godard, Desprezo: "E o meu bumbum, você gosta do meu bumbum?") e de forma insultuosa para
com os muçulmanos (por exemplo, em lágrimas, reclamando desesperadamente: "É difícil ser ama-
do por idiotas!"). Mas essas provocações não foram isoladas. Elas ocorreram em um contexto mais
amplo de islamofobia desenfreada expressa abertamente na França (Hajjat e Mohammed, 2013) e
em toda a Europa (Gottschalk e Greenberg, 2007) pela extrema direita, parte da direita e outros.
Nesse contexto, os dois irmãos, que haviam passado por uma infância e juventude difíceis, acaba-
ram sendo vítimas do proselitismo de pregadores islâmicos e decidiram perpetrar seu ataque mortal.

A marcha de 11 de janeiro e, de modo mais geral, o movimento Je suis Charlie, obviamente


com foco no ataque aos escritórios da revista satírica, tenderam a ofuscar o outro assassinato, o de
judeus em uma loja kosher. Embora o antissemitismo tenha sido firmemente denunciado pelo go-
verno, bem como pelos líderes muçulmanos, e dolorosamente experimentado pelas comunidades
judaicas, a mobilização nunca diferenciou explicitamente o assassinato de indivíduos pelo que eles
fazem e o assassinato de indivíduos pelo que eles são. De certa forma, os crimes contra a república
eclipsaram um pouco os crimes contra a humanidade. Isso provavelmente se deveu à popularidade
dos cartunistas, à ausência de precedentes de tal agressão e à sensação de que valores essenciais à
nação francesa haviam sido transgredidos. Na França, a liberdade e o secularismo são geralmente
apresentados como dois pilares sagrados da nação, o legado da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 1789 e da Lei sobre a Separação da Igreja e do Estado de 1905, respectivamente. O
segundo desses princípios, em particular, foi objeto, nas duas últimas décadas, de uma política vo-
luntarista do governo e do parlamento franceses visando o que era visto como uma ameaça repre-
sentada pelos muçulmanos à democracia secular. Conforme demonstrado por Joan Scott (2007), a
aprovação da lei que proíbe o uso de "sinais ou roupas que manifestem conspicuamente as afilia-
ções religiosas dos alunos" nas escolas públicas de ensino fundamental, médio e superior em 2004 e
a controvérsia apaixonada que a cercou revelaram que a "política do véu" - uma vez que a legisla-
ção visava, de fato, proibir os lenços de cabeça - significava muito mais do que uma defesa do secu-
larismo. De modo mais geral, a radicalização dos promotores da laicidade modificou profundamen-
te o espírito de seus defensores iniciais e, de acordo com Jean Baubérot (2014), "distorceu" seu
próprio princípio.

De fato, após o ataque ao Charlie, a defesa da liberdade e do secularismo por parte das auto-
ridades do Estado e da sociedade civil, por mais sincera que tenha sido para muitos, ignorou as
inúmeras violações já existentes na aplicação desses princípios. De fato, no que diz respeito à liber-
dade de expressão, a difamação da bandeira ou do hino nacional, a negação ou irreverência em rela-
ção a um genocídio ou os apelos ao boicote comercial de um país estrangeiro têm sido cada vez
mais processados de acordo com a lei francesa e, no que diz respeito às práticas seculares, o Estado
subsidia generosamente os sistemas educacionais privados para cristãos e judeus, o ensino da reli-
gião é obrigatório nas escolas públicas da Alsácia e Mosela, e o papa concedeu aos presidentes
franceses o título de único cônego honorário de São João de Latrão, herdado do antigo regime,
quando a França era considerada "a filha mais velha da Igreja”. Assim, nem todos os discursos são
protegidos pela liberdade de expressão e nem a todos os grupos religiosos foi imposta a mesma re-
gra secular, mas poucos comentaristas notaram os padrões duplos usados pelo Estado na aplicação
desses princípios fundamentais. Ironicamente, o simples fato de evocar publicamente o tratamento
desigual do Islã levantou suspeitas e poderia até mesmo ser severamente punido - e foi o que acon-
teceu quando os alunos fizeram isso em sala de aula, paradoxalmente depois de terem sido convida-
dos a expressar sua opinião pelo professor. Em 14 de janeiro, a própria ministra da educação decla-
rou na Assembleia Nacional: "essas questões sobre padrões duplos são intoleráveis para nós, espe-
cialmente na escola, que é encarregada de transmitir valores". Apesar de tais contradições, os credos
da liberdade de expressão e da sociedade secular se beneficiaram de um amplo consenso nacional
na França.

Ex-membro da equipe editorial do Charlie Hebdo e conhecida por suas repetidas críticas ao
Islã, Caroline Fourest (2015) estava na vanguarda da mobilização pela liberdade de expressão e
pelo secularismo radical, chegando a escrever uma "defesa da blasfêmia" de duzentas páginas. Du-
rante a entrevista ao Sky News, para a surpresa da jornalista Dharshini David, ela repentinamente
brandiu um exemplar da revista satírica que mostrava Maomé. A transmissão foi interrompida e o
âncora pediu desculpas ao público, lamentando que alguns telespectadores "possam ter se sentido
ofendidos" e lembrando que o canal havia tomado a "decisão de não mostrar essa capa". Nos dias
anteriores, a ensaísta francesa havia feito tentativas semelhantes nas redes de notícias a cabo norte-
americanas CNN e MSNBC, mas como as entrevistas haviam sido pré-gravadas, a imagem havia
sido borrada antes de ser transmitida. Referindo-se ao episódio na Sky News, Caroline Fourest co-
mentou na mídia francesa sobre a "traição dos jornalistas britânicos" e a "violência sem precedentes
e hipocrisia absoluta" da censura da qual ela havia sido vítima.

Essa anedota é reveladora de um fenômeno mais amplo. Enquanto na França a mídia optou
por exibir a capa da revista de forma ostensiva e insistente, no Reino Unido e nos Estados Unidos
ela geralmente decidiu não fazê-lo. Muitos comentaristas franceses consideraram esta última atitude
complacente, se não pusilânime. Muitos comentaristas franceses consideraram essa última atitude
complacência, se não pusilanimidade. Por outro lado, do outro lado do Canal da Mancha e do Atlân-
tico, a posição anterior era frequentemente considerada um insulto inútil e estigmatizante. Na ver-
dade, o cenário ideológico era menos homogêneo do que parecia, e cada sociedade estava dividida
de acordo com essas linhas, como revelado pelos protestos de duzentos escritores quando, em Nova
York, o PEn American Center concedeu um prêmio por "coragem na liberdade de expressão" ao
Charlie Hebdo em maio de 2015. Debates apaixonados semelhantes ocorreram em todo o mundo.
Mutuamente exclusivas, as duas posições - publicar ou não publicar - muitas vezes desacreditaram
uma à outra, os radicais chamando seus adversários de indulgentes com os muçulmanos e os libe-
rais considerando seus adversários intolerantes com o Islã. Em vez de opor coragem e covardia,
como era comum na França após os assassinatos, ou liberalidade e fanatismo, como se ouvia na
Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, sugiro ver as duas posições como éticas alternativas.

Para Weber ([1919] 1994: 359-60), no centro da relação entre ética e política está um confli-
to entre "duas máximas fundamentalmente diferentes e irreconciliavelmente opostas". A primeira é
a "ética da convicção", que é absolutista. Às vezes, ela também é traduzida como a ética dos fins
últimos. O indivíduo que age em função dessa ética o fará seguindo os princípios de sua religião ou
ideologia, custe o que custar. A segunda é a "ética da responsabilidade", que é relativista. Ela dá
atenção especial aos meios utilizados. O indivíduo que age de acordo com essa ética o fará anteci-
pando os possíveis efeitos da decisão tomada. "Se as consequências maléficas decorrem de uma
ação realizada por pura convicção, esse tipo de pessoa responsabiliza o mundo, e não o autor da
ação, ou a estupidez dos outros, ou a vontade de Deus que os criou assim. Um homem que adere à
ética da responsabilidade, por outro lado, fará concessões exatamente para essas falhas cotidianas."
Em um contexto de guerra, por exemplo, uma "pessoa de convicções socialistas muito firmes" pode
ter de escolher entre mais alguns anos de conflito que levem a uma revolução ou uma paz imediata
com um status quo político.

Mas embora sua inclinação seja claramente para a segunda opção, Weber ([1919] 1994: 361-
67) não caricaturiza a oposição: "Não é que a ética da convicção seja idêntica à irresponsabilidade,
nem que a ética da responsabilidade signifique a ausência de convicção baseada em princípios - não
há dúvida disso." Na verdade, a alternativa não é fácil de resolver: "nenhuma ética no mundo pode
contornar o fato de que a realização de fins 'bons' está, em muitos casos, ligada à necessidade de
empregar meios moralmente suspeitos ou, pelo menos, moralmente perigosos, e que é preciso con-
tar com a possibilidade ou até mesmo com a probabilidade de efeitos colaterais maléficos. nenhuma
ética no mundo pode determinar quando e em que medida o fim eticamente bom 'santifica' os meios
e efeitos colaterais eticamente perigosos". A implicação é que não há uma solução fácil para esse
tipo de dilema: "Se alguém deve agir com base em uma ética de convicção ou de responsabilidade,
e quando deve fazer uma coisa ou outra, essas não são coisas sobre as quais se possa dar instruções
a qualquer pessoa". No fim das contas, "a ética da convicção e a ética da responsabilidade não são
opostos absolutos", mas "são complementares uma à outra". Essa conclusão otimista pode não ser
totalmente satisfatória, no entanto: ainda há algo praticamente insolúvel nesse confronto porque as
opções são intelectualmente incompatíveis.

A resposta ao ataque ao Charlie Hebdo fornece ampla evidência disso: é preciso decidir se
as caricaturas de Maomé serão publicadas ou não. É preciso fazer uma escolha. De modo mais ge-
ral, não se pode argumentar simultaneamente a favor da aplicação absoluta de princípios em nome
da convicção e da atenção preferencial às consequências dessa aplicação em nome da responsabili-
dade. Mas, neste caso específico, não há simetria perfeita entre as duas éticas por dois motivos: uma
é teórica, a outra é empírica. De uma perspectiva teórica, a ética da convicção enfatiza os princípios
da democracia, aqui a liberdade e a laicidade, que supostamente representam sua versão francesa
chamada republicanismo, enquanto a ética da responsabilidade valoriza os fundamentos da política,
ou seja, nos termos de Hannah Arendt (2005: 93), "o fato da pluralidade humana" ou "a coexistên-
cia e a associação de homens diferentes". Essa última pode ser considerada menos específica e mais
universal do que a primeira. Pode-se dizer que ela é menos limitada historicamente e tem mais pro-
fundidade antropológica. De uma perspectiva empírica, a ética da convicção é reivindicada por gru-
pos dominantes e aplicada seletivamente aos dominados, uma vez que os muçulmanos representam
o segmento inferior da sociedade e sofrem várias formas de discriminação, conforme discutido por
John Bowen (2015), enquanto a ética da responsabilidade tende a ser inclusiva de ambos os grupos,
reconhecendo o contexto histórico, cultural e social no qual os princípios são formulados. A aparen-
te neutralidade do apelo a ideais abstratos da primeira posição muitas vezes oculta a desigualdade
real de sua aplicação concreta, à qual a segunda é mais sensível. Pode-se argumentar que essa assi-
metria nas relações de poder tem implicações éticas. Vamos examinar as duas posições em mais de-
talhes.

Por um lado, aqueles que defendem a ética da convicção invocam a liberdade de expressão e
o secularismo radical, o que significa, nesse caso, o direito de blasfemar, que se tornou comum na
França e até mesmo, na prática, um dever de blasfemar, já que, mesmo antes dos ataques ao Charlie,
a recusa em mostrar a caricatura do Profeta foi apresentada como uma renúncia ética. No entanto, a
aplicação real desses princípios parece contradizê-los. Em primeiro lugar, embora tenha pretensões
universais, essa postura é enfraquecida por sua relativa inconsistência: as autoridades que defendem
a liberdade de expressão e a defesa da laicidade processam ativistas que manifestam opiniões antis-
sionistas (o Estado francês leva sistematicamente à justiça aqueles que defendem a campanha de
BDS - boicote, desinvestimento e sanção) e financiam generosamente as escolas católicas (que re-
cebem mil vezes mais alunos e cinco mil vezes mais fundos públicos do que as escolas muçulma-
nas, apesar de os muçulmanos serem apenas cinco vezes menos numerosos do que os católicos). Em
segundo lugar, embora supostamente seja aplicada a todas as religiões igualmente, a blasfêmia se
concentra em uma delas, enquanto as outras são poupadas de tal profanação (se a definirmos como
irreverência em relação ao que é considerado sagrado em um determinado grupo social, ridiculari-
zar o Profeta poderia ser considerado equivalente a zombar do Holocausto, mas os promotores da
blasfêmia aceitam a primeira e condenam a segunda). No final, o duplo padrão e a dominação sim-
bólica que ele revela minam a promessa democrática.

Por outro lado, aqueles que defendem a ética da responsabilidade invocam o reconhecimen-
to da sensibilidade dos outros, que se sentem insultados e discriminados pela representação e zom-
baria do Profeta e pelo risco de gerar distúrbios sociais, até mesmo em escala global, com a possi-
bilidade de perda de vidas, e em ambos os aspectos, os fatos provaram que eles são verdadeiros, já
que muitos muçulmanos em todo o mundo ficaram indignados, levando a protestos violentos e re-
pressão severa. As questões levantadas por seus opositores contra essa posição são duas. Primeiro,
eles temem o desenvolvimento de censura e autocensura: essa preocupação é legítima, mas deve ser
considerada como tal para todas as expressões de sátira, crítica e dissidência, independentemente do
alvo. Em segundo lugar, eles se preocupam com o lugar concedido às crenças religiosas por um es-
tado secular: essa preocupação é, novamente, compreensível, mas reflete o endurecimento do secu-
larismo nas últimas décadas na França ainda mais do que a mudança na presença pública das re-
ligiões. Para aqueles que defendem a ética da responsabilidade, esses dois riscos, que certamente
não devem ser ignorados, são, no entanto, contrabalançados pelos benefícios esperados: respeito
pela dignidade de todos os cidadãos, independentemente de sua fé, e integração das várias comu-
nidades na coletividade nacional.

Mas a análise do confronto entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade, no caso


em estudo, não deve se limitar à troca de argumentos de ambos os lados, como se fosse uma disputa
intelectual pura. Tanto o contexto histórico quanto o político são importantes. De fato, a publicação
das caricaturas ocorreu em uma época em que o Islã era cada vez mais representado com traços
negativos na França e, de forma mais ampla, em todo o mundo ocidental, e em que os muçulmanos
eram confrontados com atitudes hostis e provocativas nos países europeus e norte-americanos onde
viviam. Foi também uma época na história do Oriente Médio e, de forma mais ampla, do mundo
muçulmano, em que a radicalização de grupos jihadistas gerou conflitos violentos e em que a sensi-
bilização de segmentos maiores da população facilitou tensões extremas. Os cartunistas estavam
conscientes de seu jogo perigoso. Os pregadores brincavam com as frustrações dos muçulmanos.
Todos conheciam o cenário de suas ações. É precisamente a consideração desse contexto histórico e
político que inclina Weber para a ética da responsabilidade: para ele, ser responsável é levar em
conta o contexto, do qual se pode derivar consequências previsíveis e decidir a favor da opção
menos danosa.

Mas justamente porque o contexto é tão crucial para a interpretação dessas escolhas éticas e
porque a política está tão intimamente ligada à ética na esfera pública, o significado e a implicação
de cada ética variam de acordo com as circunstâncias. Enquanto a expressão de convicção (na defe-
sa da liberdade de expressão e do secularismo após os ataques) foi consensual e, portanto, com
pouco risco para aqueles que a professaram na França, às vezes ela representa a opção definitiva e
destemida para aqueles que falam a verdade ao poder (em contraste com os cartunistas que zom-
baram de um grupo social já estigmatizado). Podemos pensar no engenheiro mauritano Mohamed
Cheikhould Mohamed, membro de uma casta inferior de origem negra africana, acusado de aposta-
sia e condenado à morte por um artigo que denunciava as raízes religiosas da desigualdade social
em seu país, ou no escritor chinês Liu Xiaobo, ativista de direitos humanos, acusado de subversão e
condenado a onze anos de prisão por sua participação em um manifesto que pedia a democratização
de sua sociedade. Simetricamente, embora a invocação da responsabilidade (contra o apelo por
princípios absolutos) tenha sido uma forma de resistir a uma postura amplamente aceita no contexto
francês, ela pode se transformar em aceitação leniente do status quo a qualquer custo (em contraste
com a posição desconfortável daqueles que não se associaram ao momento coletivo). Pode-se evo-
car líderes europeus não dispostos a estabelecer políticas comuns para resgatar imigrantes em peri-
go no Mar Mediterrâneo ou conceder asilo a refugiados de países africanos e do Oriente Médio em
guerra, com os argumentos da necessidade de controlar as fronteiras, evitar a xenofobia, limitar a
expansão da extrema direita e manter a sustentabilidade dos programas de bem-estar.

Assim, o significado da oposição entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade


depende do campo de forças no qual ela está inserida. Expressar a convicção de defender os direitos
contra agentes poderosos é diferente de fazê-lo contra grupos dominados. Argumentar a favor da
responsabilidade não é a mesma coisa quando se representa o primeiro ou se protege o segundo.
Isso não significa que criticar agentes poderosos seja, por si só, bom ou correto, e que a crítica seja
necessariamente ruim ou errada quando se trata de grupos dominados. Estou simplesmente argu-
mentando que as implicações são diferentes, assim como o significado. Os vazamentos relativos às
práticas de espionagem de comunicações nacionais e estrangeiras pela Agência de Segurança Naci-
onal são um exemplo disso. Independentemente do que se pensa sobre seus atos, Edward Snowden
agiu em nome de uma ética de convicção, para proteger a privacidade e a liberdade dos cidadãos.
Ele fez isso com o risco de sua reputação e até mesmo de sua vida. Pode-se referir à "coragem da
verdade", como Foucault ([2008] 2011) a analisa, usando Sócrates como exemplo. E, independen-
temente de como se julgue sua resposta, o governo Obama a justificou nos termos de uma ética de
responsabilidade, argumentando que manter o sistema secreto e acusar o denunciante de espiona-
gem eram necessários para garantir a proteção da segurança nacional. O custo foi uma grande vio-
lação dos direitos civis e humanos, tanto para o público quanto para o acusado, incluindo, para este
último, violações de seu direito a um julgamento justo (já que o caso deveria ser apresentado a por-
tas fechadas) e ao asilo (já que foram exercidas pressões sobre outros governos para evitar sua con-
cessão). Pode-se interpretar essa atitude como um compromisso que privilegia a segurança em de-
trimento da liberdade e a soberania em detrimento dos direitos, e então será preciso decidir, à luz da
história, se é ou não o que Avishai Margalit (2010) chama de "compromisso podre", dando o acordo
de Munique de 1938 como uma ilustração poderosa do preço pago nesse caso.

Em outras palavras, a diferenciação heurística de Weber entre a ética da convicção e a ética


da responsabilidade precisa ser avaliada em cada contexto histórico e político específico, conside-
rando mais especificamente as relações de poder e os jogos de poder nos quais elas estão inseridas.
Elas envolvem mais do que o idealismo, do lado da convicção, e o pragmatismo, do lado da respon-
sabilidade. Da perspectiva das ciências sociais, sua interpretação não pode ser feita de forma abso-
luta. É preciso levar em conta a estrutura de dominação envolvida e o contexto em que ela faz sen-
tido. Na verdade, a preferência proclamada por Weber pela ética da responsabilidade em detrimento
da ética da convicção deve ser entendida no momento histórico e político de sua famosa palestra de
1919 para a União dos Estudantes Livres em Munique, ou seja, imediatamente após o levante espar-
taquista, que, como figura pública, ele havia defendido com veemência: a revolução acabou no ba-
nho de sangue da repressão do governo.
Portanto, evitar um julgamento de valor sobre as duas éticas seria provavelmente mais fiel
aos princípios epistemológicos do sociólogo alemão. Em vez disso, talvez seja preferível afirmar a
importância da distinção analítica entre elas, em vez de uma hierarquia normativa entre elas. A ética
da convicção e a ética da responsabilidade têm significados culturais e implicações sociais difer-
entes e, portanto, podem ser avaliadas de forma diferente dependendo do cenário histórico e dos
interesses políticos. Essa afirmação não se aplica apenas às duas éticas de Weber; ela se aplica a to-
das as formas éticas. Ela não implica relativismo moral, mas simplesmente o reconhecimento da
necessidade de os cientistas sociais diferenciarem a ética (em vez de rejeitarem como antiética
qualquer postura que não corresponda à sua posição ética) e contextualizarem sua interpretação (em
vez de analisá-las em termos absolutos). Tais precauções tornam-se especialmente cruciais quando
se analisa o que geralmente é visto como práticas desviantes a partir de uma perspectiva ética.

TENSÕES ÉTICAS: SOBRE A MÁ-CONDUTA POLICIAL

Embora todos concordem que não se trata de um fenômeno novo, mas sim de uma realidade
antiga reconhecida apenas recentemente, os problemas relacionados a práticas irregulares graves na
aplicação da lei tornaram-se proeminentes nas últimas décadas (Fassin [2013] 2015). Na Grã-Bre-
tanha, o assassinato de Stephen Lawrence em 1993, na França, a morte de Zyed Benna e Bouna
Traore em 2005, e nos Estados Unidos, o assassinato de Michael Brown e Eric Garner em 2014 -
apenas para mencionar alguns eventos que geraram conscientização coletiva e agitação urbana nos
respectivos países onde essas tragédias ocorreram - levaram a descobrir de forma mais ampla a ba-
nalidade da discriminação racial, abuso físico e práticas ilegais entre as forças policiais, bem como
a impunidade conspícua da qual os perpetradores se beneficiaram. Além dos delitos individuais, no
entanto, a instituição e até mesmo o próprio Estado começaram a ser responsabilizados por essas
ações que perturbam o senso moral comum. Mas como conectar a interação entre os policiais e seu
público e o funcionamento das organizações de aplicação da lei e dos órgãos governamentais e, de
modo mais geral, como conectar o microssocial e o macrossocial é um quebra-cabeça clássico, mas
difícil, nas ciências sociais (Cicourel, 1981). Aqui, o caso se torna ainda mais complexo, pois é pre-
ciso considerar como a moral e a ética entram em cena e, mais especificamente, como os agentes
explicam seu mau comportamento ou, ao contrário, o corrigem, e como o Estado contribui para esse
desvio ou, ao contrário, o regula.

Uma ilustração pode esclarecer essas questões. Tomo como exemplo a pesquisa etnográfica
que realizei entre 2005 e 2007 em um dos maiores distritos policiais franceses, situado nos
arredores de Paris (Fassin [2011] 2013). A conurbação de 200.000 habitantes tem taxas de desem-
prego, pobreza e criminalidade significativamente mais altas do que o restante da região. A pro-
porção de imigrantes é substancialmente maior do que a média nacional, e as minorias estão super-
representadas nos muitos projetos habitacionais. Durante um período de quinze meses, realizei um
trabalho de campo, acompanhando em suas atividades diárias os policiais uniformizados encarrega-
dos da segurança pública, bem como agentes à paisana pertencentes aos esquadrões anticrime. Es-
sas unidades especiais foram criadas nos anos 2000 como parte das políticas de lei e ordem desen-
volvidas por sucessivos governos conservadores. Em geral, elas se dedicam a capturar criminosos
em flagrante, mas, na falta de tais casos, tendem a não ser muito diferentes das unidades regulares,
exceto pelo fato de seus membros terem a merecida reputação de serem durões. A maioria das min-
has observações foi realizada acompanhando a polícia durante suas patrulhas diurnas e noturnas em
toda a aglomeração, geralmente em carros, às vezes a pé. A fim de exemplificar a má conduta co-
mum em vez de ações espetaculares envolvendo brutalidade ou mesmo crueldade, que também
testemunhei, escolhi propositalmente uma cena trivial e banal.
Certa noite, durante os tumultos de 2005, a polícia foi informada de que uma escola primária
em um conjunto habitacional estava pegando fogo, provavelmente devido a incêndio criminoso. A
equipe do esquadrão anticrime com a qual eu estava em patrulha dirigiu-se imediatamente para o
local, onde os bombeiros já estavam trabalhando para apagar o fogo sob o olhar curioso dos
moradores. Alguns minutos depois, no estacionamento onde estávamos observando a cena, ouviu-se
uma pequena explosão. Era um coquetel molotov, cuja origem era difícil de determinar. Examinan-
do os arredores mergulhados na escuridão, os policiais notaram, do outro lado da quadra de esportes
que margeava os blocos de apartamentos, um pequeno grupo de adolescentes quase indistinguíveis,
alguns deles usando suéteres com capuz de cor clara. Eles imaginaram que o culpado estava entre
eles e começaram a perseguir as figuras sombrias, que fugiram e desapareceram. A busca subse-
quente na vizinhança não foi bem-sucedida. Depois de um tempo, retomamos a patrulha. Três horas
se passaram sem nenhuma outra ocorrência significativa, mas quando estávamos dirigindo por
vários quarteirões do local onde o incidente havia ocorrido, os policiais avistaram três adolescentes
que conversavam tranquilamente em frente a um bloco de apartamentos. Eles pareciam ser de
origem norte-africana. O carro parou, os agentes pediram duramente aos jovens seus documentos e
fizeram uma revista corporal à força. Um dos três, que não estava com seus documentos, explicou
que morava com os pais dois andares acima e se propôs a subir correndo, possivelmente com um
policial, para pegar sua carteira de identidade. A polícia se recusou e o levou para a delegacia. O
adolescente estava usando um moletom branco com capuz. Embora fosse uma roupa bastante co-
mum entre os jovens, isso o tornava um suspeito (ou melhor, uma presa fácil), cuja prisão poderia
ser formalmente justificada.

Durante o trajeto até a delegacia, ele foi importunado e ameaçado. Se ele não confessasse
seu crime, disseram-lhe que seria detido. O adolescente disse que não entendia do que ele suposta-
mente era culpado. Na delegacia de polícia, um dos agentes verificou o registro nacional de delitos
denunciados e encontrou um nome semelhante ao dele associado a um delito anterior. Por um longo
tempo, ele interrogou agressivamente o adolescente sobre sua identidade e fez piadas sobre seu
nome árabe, Abdelkrim, cuja última sílaba é pronunciada em francês como a palavra "crime". Obvi-
amente, o policial sabia que a probabilidade de essa prisão aleatória corresponder ao verdadeiro
culpado era muito baixa e que, se fosse o caso, a chance de obter uma confissão era ainda menor.
Mas ele provavelmente tinha outros motivos para manter o garoto na delegacia. De fato, quando o
adolescente foi finalmente liberado, era o meio da noite e não havia mais transporte público. Ele
teve de caminhar quase cinco quilômetros para voltar para casa.

Essas práticas não são raras. Dois estudos oficiais sobre o tratamento judicial de menores
(Delon e Muchielli 2007) e jovens adultos (Mazars 2006) presos durante os distúrbios urbanos mos-
tram que três quartos dos primeiros e um terço dos últimos foram liberados por falta de provas.
Com relação aos adolescentes, os autores observam que a maioria dos acusados de resistir à prisão
já era conhecida da polícia, o que implica que o indiciamento pode ter sido uma forma de retribui-
ção direcionada. Em uma entrevista realizada com um juiz, este descreveu como comuns essas
apreensões seguidas de várias horas de detenção e assédio. Essa forma de punição arbitrária infligi-
da de forma mais ou menos aleatória, dependendo se alguém já identificado como desordeiro estava
por perto, era essencialmente dirigida àqueles que os agentes dos esquadrões anticrime designavam
depreciativamente como "bastardos", um termo difícil de não ser interpretado em termos raciais,
pois fazia alusão ao que a maioria dos membros da unidade especial considerava um status nacional
ilegítimo, sendo a maioria deles franceses nascidos na França, mas de ascendência africana. Embo-
ra, para a maioria, os jovens não acabassem sendo condenados ou mesmo processados, o simples
fato de tê-los atormentados, humilhados, assustados ou simplesmente irritados era suficiente para
que a polícia sentisse que os supostos infratores haviam recebido uma retribuição justa. De fato,
embora antiéticos pelos padrões comuns, esses atos, que infringem as normas legais e deontológicas
de sua profissão, ainda assim recebem justificativas morais por parte dos policiais, que os racionali-
zam com dois argumentos complementares.

Primeiro, a polícia geralmente considera seu público como culpado ou cúmplice. A expres-
são "seu público" tem o objetivo de descrever os moradores de bairros de baixa renda, pertencentes,
em sua maioria, a minorias étnicas (ou seja, negros, árabes e, às vezes, ciganos). Eles correspondem
àqueles designados por John Alan Lee (1981) como "propriedade da polícia", em outras palavras,
categorias da população que a sociedade considera como pertencentes a priori à jurisdição das orga-
nizações de aplicação da lei e que as autoridades, portanto, deixam ao arbítrio dos policiais. Essa
fusão de territórios inteiros (moradias públicas) ou grupos (jovens de projeto) e sua associação men-
tal com atividades criminosas (muitas vezes meras contravenções) foram descritas em vários con-
textos nacionais de aplicação da lei, mas são agravadas no caso francês pelo fato de que 80% das
forças policiais vêm de áreas rurais e cidades pequenas e seu primeiro destacamento é sempre nos
distritos mais expostos e menos valorizados, ou seja, os bairros desfavorecidos localizados nas
grandes cidades ou em seus arredores (Pruvost, Coulangeon e roharik, 2004). Alimentado pelo dis-
curso de seus professores na academia e de seus colegas na delegacia, que frequentemente retratam
os banlieues como uma "selva" e seus habitantes como "selvagens", o sentimento de alienação vi-
venciado pelos jovens policiais contribui para sua falta de discernimento: incapazes de estabelecer
diferenças entre os moradores dos conjuntos habitacionais, eles os veem como prováveis delinquen-
tes e inimigos em potencial. Quando um delito é cometido, as pessoas se enquadram em duas cate-
gorias: aquelas que o cometeram ou ajudaram a cometê-lo e aquelas cujo silêncio as torna cúmpli-
ces. Para a polícia, prender um adolescente sabendo que há uma chance muito pequena de que ele
seja o culpado e que, se fosse o caso, não haveria como provar, é, portanto, moralmente justificado:
ele paga não apenas por seu grupo social, mas também pelas vezes em que não foi pego enquanto
culpado.

Em segundo lugar, essa retribuição é ainda mais legítima em sua opinião, pois eles estão
convencidos de que os magistrados são muito brandos. Nós prendemos os criminosos e os indici-
amos, dizem eles, e no dia seguinte o juiz os libera sem sentença. Essa crença reforça sua convicção
de que eles próprios devem fazer justiça na rua ou na delegacia - e, não raro, também a caminho da
delegacia. A reclamação sobre a indulgência dos magistrados, que supostamente aniquila os
valiosos esforços dos policiais para combater o crime, não é específica de um país nem de uma
época, e Egon Bittner (1980: 26), entre outros, discutiu o fenômeno nos Estados Unidos há várias
décadas. No entanto, na França, como na maioria das nações ocidentais, os dados mostram exata-
mente o oposto. Como consequência de uma legislação mais severa, de uma aplicação mais rig-
orosa e de procedimentos judiciais mais rápidos, mais acusados são condenados com mais frequên-
cia e mais pesadamente do que tem sido o caso em décadas recentes (Timbart 2011). Mas para os
policiais - que notam a presença em locais públicos de indivíduos que prenderam, mas ignoram o
destino daqueles que foram encarcerados - os juízes nunca são suficientemente severos, e sempre
que a polícia tem a chance de punir física ou psicologicamente os suspeitos de crimes enquanto eles
estão ao seu alcance, eles a aproveitam.

Assim, por acharem que estão lidando com uma população criminosa e por presumirem que
os magistrados demonstram muita clemência, os policiais se sentem no direito de disciplinar seu
público e castigar seus suspeitos, independentemente das provas - ou da falta delas - que possam ter
contra eles. A retribuição, seja na forma de punição aleatória de um transeunte, como exemplificado
aqui, ou de uma expedição punitiva visando um bloco de apartamentos inteiro, como descrito em
outro lugar (Fassin 2013b), é, portanto, considerada pela polícia como moralmente defensável. Es-
sas pessoas tiveram o que mereciam, afirmam com confiança.

Talvez seja necessário fazer uma ressalva aqui. Quando apresentei essa análise a públicos
acadêmicos, tive reações notavelmente contraditórias: enquanto alguns manifestavam sua indig-
nação com os policiais e com a maneira como justificavam suas práticas, outros declaravam seu de-
sconforto com relação ao que pensavam ser minha aprovação dessas justificativas, e outros ainda
expressavam sua irritação com o que consideravam minha parcialidade contra a polícia. Analisar
justificativas morais não é expressar um julgamento moral na forma de condenação ou desculpa. É
um esforço para tornar inteligíveis - inclusive nos próprios termos morais dos agentes - atos que
parecem ser puramente antiéticos. No entanto, as reações de meus auditores revelaram de forma útil
uma situação difícil com a qual os cientistas sociais são frequentemente confrontados: a tensão ética
entre a primeira e a terceira pessoa - nesse caso, entre o reconhecimento das justificativas morais da
polícia e o reconhecimento do desvio moral de seus atos.

Como conciliar ou simplesmente justapor o primeiro e o segundo sem recorrer à explicação


simplista de Jean-Paul Sartre pela "má-fé" ou sucumbir à definição provocativa de Jean-Luc Godard
de objetividade como "cinco minutos para Hitler e cinco minutos para os judeus"? Se levarmos a
sério o fato de que os agentes geralmente encontram argumentos morais para explicar para si mes-
mos e para os outros o que geralmente é considerado como atos imorais, e se acharmos que é tarefa
dos cientistas sociais explicar essa contradição ética, como podemos evitar a dupla armadilha da
mera condenação e das desculpas indulgentes? Para resolver esse dilema, sugiro seguir três etapas
analíticas: primeiro, expandindo horizontalmente o alcance do que se enquadra na moral e na ética;
segundo, integrando verticalmente as ações individuais em seu contexto institucional e político; ter-
ceiro, identificando as diferenças entre os agentes com relação à má conduta.

O primeiro momento consiste em incluir na análise de questões éticas dimensões morais que
nada têm a ver com o certo, o bom e, de modo mais geral, com o lado "positivo" da moralidade e da
ética. Essa é uma mudança conceitual importante, pois, na maioria das vezes, tanto os filósofos
quanto os cientistas sociais definem a moralidade e a ética precisamente em termos da coisa certa a
fazer e da vida boa a ser vivida. No entanto, é notável que os moralistas escoceses abriram o cami-
nho e, por exemplo, em seu famoso estudo sobre sentimentos morais, Adam Smith ([1759] 1976)
não estava interessado apenas em "simpatia", "gratidão" e "virtudes amáveis e respeitáveis", mas
também em "ódio", "ressentimento" e "paixões egoístas". O problema é sintetizado pelo fato de que
a única alternativa disponível à "antropologia do bem" (2013) de Joel Robbins é a "antropologia do
mal" (1985) de David Parkin, como se as formas comuns de ética "positiva" só pudessem ser con-
trastadas com formas extraordinárias de moralidade "negativa", não deixando espaço para o estudo
de expressões negativas triviais. De fato, quase toda a antropologia contemporânea da moralidade e
da ética está voltada para o bem.

Portanto, eu pediria uma antropologia desmoralizada, uma antropologia que não se concen-
trasse apenas no lado positivo da moralidade e da ética, mas que considerasse também seu lado
sombrio ou, talvez seja melhor dizer, obscuro. Em uma análise perspicaz e profunda de suas própri-
as emoções morais ao retornar à Alemanha alguns anos depois de ter sido deportado para Aus-
chwitz, Jean Améry ([1966] 1980) explicou as raízes éticas de seu "ressentimento", usando a pala-
vra francesa em referência à famosa interpretação de Nietzsche sobre a genealogia da moral. Adap-
tando sua reflexão para explicar a expressão de rancor e animosidade que encontrei em meu traba-
lho de campo sobre a AIDS na África do Sul e o policiamento na França, propus (Fassin 2013c) dis-
tinguir o ressentimento como relacionado a uma condição histórica (a dos negros que viveram o
apartheid) e o ressentimento como relacionado a uma posição sociológica (a da polícia encarregada
de fazer o trabalho sujo da sociedade). O ressentimento é alimentado, no último caso, pela proximi-
dade sociológica dos policiais com seu público (eles fazem parte da classe baixa). A distinção moral
que eles constroem para se diferenciar da população local (eles veem sua atividade como a defesa
da ordem social contra os perigos representados pelos bairros pobres e seus moradores) muitas ve-
zes serve para encobrir ou tornar aceitável o racismo puro e simples (a maioria deles é branca e atua
em áreas onde a maioria dos habitantes pertence a minorias de cor). Mas esse ressentimento não é
apenas auto-reproduzido; ele também é alimentado por discursos ouvidos e políticas implementa-
das.

O segundo estágio implica, de fato, descentralizar a análise de modo a integrar os atos indi-
viduais no contexto moral mais amplo da instituição, do Estado e da sociedade como um todo. Os
fundamentos éticos com os quais os agentes justificam sua conduta são influenciados pelo clima
moral da época. Os discursos políticos e as políticas públicas, em particular, podem legitimar ou até
mesmo incentivar práticas desviantes entre os policiais (Mouhanna 2011). Desde a década de 1990,
sucessivos governos de direita marginalizaram e estigmatizaram os imigrantes e seus filhos, a quem
um ministro do interior rotulou de "escória"; uma legislação mais severa criminalizou práticas tipi-
camente encontradas em projetos habitacionais, como a vadiagem no saguão de blocos de aparta-
mentos; as forças policiais receberam prerrogativas ampliadas em termos de parar e revistar e rece-
beram unidades especiais, como os esquadrões anticrime, para exercer um controle mais rigoroso
sobre os bairros desfavorecidos; Por último, mas não menos importante, em nome da cultura do de-
sempenho, foram estabelecidas altas cotas de prisões, que só poderiam ser alcançadas procurando
presas fáceis, como usuários de maconha, ou até mesmo provocando homens jovens para estimular
suas reações, então qualificadas como insulto e resistência à polícia (essas prisões geralmente são
feitas por meio de perfis raciais em projetos habitacionais). Esse direcionamento verbal, legal, or-
ganizacional e gerencial convergente de certas populações e certos territórios contribuiu em grande
parte para facilitar ou incentivar práticas violentas, abusivas e discriminatórias na aplicação da lei e
para habilitar os policiais já inclinados a essas práticas, ainda mais porque a expectativa de impuni-
dade autoriza a banalização do desvio.

Para explicar esse clima moral subjacente à política e às políticas de aplicação da lei, tomei
emprestado, mas reformulei, o conceito clássico de economia moral de E. P. Thompson (1971) e o
defini como a produção, circulação e apropriação de valores e afetos com relação a um determinado
problema social (Fassin 2009). Essa definição leva em consideração tanto a dinâmica de mudança
no espaço moral quanto a capacidade dos agentes de adotar, contestar ou manipular objetos éticos.
No presente caso, o que pode ser chamado de economia moral da insegurança, como se desen-
volveu nas últimas décadas, com sua fabricação de ansiedade, raiva e intolerância, sua criação de
bodes expiatórios, rejeição da alteridade, exaltação do nacionalismo, demanda por ordem, expecta-
tiva de intransigência e consentimento com a perda de direitos, definitivamente proporcionou
condições favoráveis para o desenvolvimento da má conduta policial e a geração de uma anestesia
ética coletiva. No entanto, está claro que, mesmo em um contexto tão nocivo para a democracia,
nem todos os policiais agem da mesma forma.

Consequentemente, a terceira abordagem esclarece as variações éticas existentes no grupo


profissional e em seu ambiente institucional. Mesmo quando as condições internas (justificativas
morais) e externas (economia moral) são propícias ao desvio, alguns indivíduos cometem delitos e
outros não. Há várias maneiras de interpretar essas diferenças. Em um estudo clássico, William Ker
Muir (1977: 3-4) distinguiu duas "virtudes", que ele chamou de "senso trágico" e "equanimidade
moral", sendo que a primeira tem a ver com a capacidade de "compreender a natureza do sofrimen-
to humano" e a segunda se refere à "contradição de alcançar fins justos com meios coercitivos". No
entanto, esses critérios podem evocar mais a visão idealista do cientista social do que a realidade do
trabalho policial. Nas unidades que observei, a diferenciação entre os policiais podia ser identifica-
da ao longo de dois eixos. Um eixo corresponde à comunidade moral imaginada pelos policiais, ou
seja, aqueles com quem eles consideravam compartilhar uma humanidade comum. Essa comunida-
de moral poderia ser inclusiva, no sentido de que compreendia, prima facie, todos sem distinção de
cor, cultura, religião ou classe, ou exclusiva, no sentido de que certos grupos ou categorias eram a
priori rejeitados, geralmente por motivos raciais ou étnicos. A atitude em relação aos jovens das mi-
norias refletia com bastante precisão essa distinção: civilidade e correção no primeiro caso, hostili-
dade e desprezo no segundo. O outro eixo indica a obrigação moral que os policiais sentiam com
relação ao código de conduta de sua profissão, especialmente com relação ao uso da força e ao res-
peito à lei. Essa obrigação moral pode ser forte, com o que é frequentemente descrito como profis-
sionalismo, ou fraca, com práticas agressivas e ilegais.

A observação empírica revelou uma combinação mais frequente de comunidade moral ex-
clusiva e obrigação moral fraca (policiais racistas e violentos) do que de comunidade moral inclusi-
va e obrigação moral forte (policiais corteses e cumpridores da lei). É interessante notar que o se-
gundo cenário caracterizou os poucos agentes que cresceram em áreas urbanas comparáveis àquelas
em que foram designados; em contraste, seus colegas criados em cidades pequenas e áreas rurais
incorporaram a primeira atitude. Mais raramente, foram encontradas combinações discordantes:
comportamentos agressivos e ilegais dirigidos indiscriminadamente a todos ou, simetricamente,
crenças racistas não traduzidas em atos discriminatórios. Essas várias configurações, que obviamen-
te precisariam ser refinadas empiricamente para mostrar como operam concretamente e também
como os mesmos indivíduos podem passar de uma para outra, podem ser interpretadas à luz do que
Foucault ([1984] 1985) descreve como subjetividades morais, por meio das quais os agentes não se
contentam com a implementação de regras ou a reprodução de normas, mas desenvolvem sua pró-
pria capacidade de avaliar pessoas e situações e agir de acordo. No caso da aplicação da lei, se a
conformidade com um modelo de trabalho que muitas vezes foi descrito por criminologistas em
termos de cultura policial é a atitude mais frequentemente contrariada, aqueles que conseguem es-
capar dos hábitos de sua organização, dos preconceitos de sua profissão e da pressão de seus pares
são de particular interesse para analisar como, muitas vezes de forma discreta e quase imperceptí-
vel, os "sujeitos da virtude", como James Laidlaw (2014) os chama em um contexto diferente, são
silenciosamente constituídos.

A atenção antropológica ao desvio moral - práticas que ofendem a consciência comum - en-
riquece, assim, nossa compreensão da ética, ampliando o escopo do que conta como questões
morais e éticas, ao mesmo tempo em que leva a terrenos incertos em que é difícil reconhecer simul-
taneamente as justificativas morais dos agentes e os problemas éticos objetivos. Por um lado, as
economias morais sustentam as condições de possibilidade desse desvio, já que os valores e afetos
mutáveis e muitas vezes conflitantes o impedem ou facilitam, combatem ou legitimam. Por outro
lado, as subjetividades morais reabrem o espaço do possível para os indivíduos, que mantêm certa
margem de manobra em relação às normas e regras coletivas e podem, portanto, exercer uma espé-
cie de discrição ética. Quer usem essa linguagem ou não, a maioria dos analistas se concentra no
nível macro das economias morais ou no nível micro das subjetividades morais, como uma eterna
reviravolta da alternativa metafísica entre determinismo e liberdade. O pensamento dialético pode
permitir a análise das tensões entre as restrições coletivas e a autonomia individual.

CONCLUSÃO
Seguindo o caminho há muito explorado pelos filósofos, os antropólogos recentemente ten-
taram identificar a questão da moralidade e da ética na ação humana. Embora eu considere esse es-
forço valioso, a abordagem que adotei é diametralmente oposta: Considerei que essa questão moral
ou ética não pode ser isolada e que o reducionismo metodológico pode empobrecer nossa com-
preensão das questões morais e éticas que estão em jogo. Em vez de considerar a moralidade e a
ética como um dado que os antropólogos descobririam, analisei problemas morais e questões éticas.
Em vez da linguagem potencialmente objetificadora da moralidade e da ética, prefiro resolutamente
a linguagem das questões morais e éticas, que indica que os problemas morais e as questões éticas
emergem da ação humana e tomam forma por meio de dilemas, debates, decisões e conflitos, cuja
interpretação permanece sujeita a discussão e negociação. O que está moral ou eticamente em jogo?
Esse é o questionamento que tento abordar.

A consequência lógica dessa abordagem crítica é que os domínios da moral e da ética não
são puros - e só podem ser purificados artificialmente. As emoções, os benefícios, as estratégias, as
segundas intenções, os jogos de poder e as relações sociais interagem com os valores, os princípios
e as virtudes. Para analisar o campo assim definido, é necessário, no entanto, evitar um possível
mal-entendido. Nas últimas décadas, a linguagem da ética tem sido cada vez mais importada para a
esfera política, seja para denunciar "práticas antiéticas", como corrupção, desvio de verbas, tráfico
de influência e repressão violenta, seja para promover "práticas éticas", principalmente por meio de
garantias legais e agências reguladoras. Embora legítimo e às vezes útil, esse tipo de empreendi-
mento moralizador é claramente normativo, além de amplamente retórico. Por outro lado, defendo
um método descritivo e analítico. Eu não condeno - ou tento não condenar - ações antiéticas e pro-
movo procedimentos éticos. Não tenho a intenção - pelo menos como parte dessa intervenção aca-
dêmica - de tornar os políticos e a atividade política melhores. Meu objetivo mais modesto é escla-
recer algumas das questões morais e éticas que surgem da prática da política ou dentro das arenas
políticas.

Isso me leva a tratar as questões morais e éticas principalmente em nível coletivo e não in-
dividual, como geralmente acontece. Não ignoro, é claro, que a política é produzida por meio da
ação de homens e mulheres que são indivíduos e que, como tais, podem se comportar de uma forma
que será vista como moral ou ética por eles mesmos e por outros, incluindo os cientistas sociais que
comentam suas ações. Mas a escolha epistêmica que faço é compreender as questões morais e éticas
em campos como o das relações internacionais, espaços como a esfera pública ou instituições como
a polícia. Essa escolha não é arbitrária. Ela deriva do próprio objeto sob análise: a política. O que a
distingue de outras dimensões da atividade humana é a centralidade do poder, e o poder não pode
ser descrito e analisado apenas entre indivíduos. Como o poder se cruza com a ética e como a ética
interfere no poder? Essa é a pergunta que tentei responder.

Interpretados com base nisso, os três casos que estudei aqui - intervenção militar, secularis-
mo radical e má conduta policial - levam, além de sua singularidade, a uma série de observações
gerais. Primeiro, os fundamentos éticos da ação política resultam de uma combinação complexa das
várias éticas conflitantes propostas pelos filósofos. De fato, o dever, a virtude e a utilidade são
teoricamente incompatíveis, mas empiricamente reconciliáveis, embora em tensão. Além disso, eles
estão inextricavelmente entrelaçados com afetos e interesses, decisões táticas e forças sociais. Em
outras palavras, esses fundamentos éticos são heterogêneos, tanto interna quanto externamente. Em
segundo lugar, o significado ético das posições políticas depende do cenário histórico, do contexto
cultural e do contexto social. O mesmo ato de dizer a verdade tem um significado e um impacto
diferentes, dependendo do fato de ser dirigido aos poderosos ou aos impotentes. Portanto, a con-
vicção e a responsabilidade não ocupam um lugar fixo no campo da ética. Entretanto, esse rela-
tivismo não deve ser visto como moral, sugerindo que todos os valores são relativos, mas como so-
ciológico, afirmando que os valores e as emoções associadas a eles não são conceitos abstratos, mas
entidades situadas que devem ser compreendidas em sua relação com as posições sociais. Em ter-
ceiro lugar, a avaliação ética das práticas políticas deve levar em conta a banalidade da má conduta
e a discrepância entre a normatividade da primeira e da terceira pessoa, em outras palavras, a aporia
das justificativas morais dos agentes e a interpretação moral do observador. Uma implicação impor-
tante é a mudança da versão comum da antropologia da moralidade e da ética para dar conta de toda
a gama de sentimentos e valores morais, da compaixão ao ressentimento, da justiça à crueldade, em
vez de limitar a investigação ao lado positivo da moralidade e da ética. Tal esforço, portanto, amplia
o espectro de problemas morais e questões éticas relevantes e permite a interpretação de discursos
ou atos incompreensíveis, considerados meramente imorais ou antiéticos.

Na introdução do volume coletivo que ele editou sobre ética ordinária, Michael Lambek
(2010: 1) levanta um paradoxo importante: enquanto "os etnógrafos geralmente descobrem que as
pessoas que encontram estão tentando fazer o que consideram certo ou bom, estão sendo avaliadas
de acordo com critérios do que é certo e bom, ou estão em algum debate sobre o que constitui o
bem humano", em contraste, "a teoria antropológica tende a ignorar tudo isso em favor de análises
que enfatizam a estrutura, o poder e o interesse". Para corrigir essa inconsistência, ele pretende
"demonstrar a centralidade da prática ética, do julgamento, do raciocínio, da responsabilidade, do
cultivo e do questionamento na vida social". Embora eu reconheça a importância desse esforço,
quero reconectar os dois lados. O que tentei aqui foi vislumbrar a possibilidade de manter unidos o
senso do bem humano e a alavancagem das forças sociais, o reconhecimento dos outros e as formas
de dominação, o julgamento moral e as relações de poder, os valores e os interesses - e, em última
análise, restaurar um espaço intelectual de tensões, contradições e, às vezes, aporia: as águas agita-
das onde a ética e a política se encontram.

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a Patrick Brown e Laura McCune pela leitura atenta de uma primeira versão,
bem como ao meu revisor quase anônimo por suas críticas úteis e pouco promissoras. Também
gostaria de expressar minha gratidão a Michael Lambek por ter iniciado este trabalho coletivo e a
Veena Das e Webb Keane por terem tornado esta aventura intelectual agradável e proveitosa.

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