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O NATAL COMO SÍMBOLO DE RECRIAÇÃO DA INOCÊNCIA

(Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu – Isaías 9,6)

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Natal: uma data sugestiva. Em todo o mundo ocidental, o calendário comemora o nascimento
do menino salvador do mundo, o Cristo de Deus. Sabe-se que o Natal é compreendido, por
uma maioria cognitiva, como um tempo (cultural) em que as famílias cristãs se unem para
celebrar o Advento em forma de festividades. Assa-se um peru, faz-se uma farofa com moela e
uvas passas, cresta-se uma leitoa, toma-se um bom vinho, dá-se e recebe-se presentes, ouvem-
se músicas da ocasião, declama-se um discurso bonito, etc.

Pois bem ... Tudo isso faz parte do ‘folclore natalino’. O Natal é, sem dúvida, a data mais
esperada do ano. Mas, é preciso fazer uma pergunta importante para todos/as que irão
participar dele: Você já pensou qual é o sentido antropológico desta data festiva? Alguém, de
pronto, poderia responder: é o dia em que o menino Jesus veio para salvar a humanidade. Eu
diria: resposta correta, apesar de [ser] incompleta. Afinal, deve-se perguntar também: De quê a
humanidade precisa ser salva? Para dar uma resposta a essa pergunta é necessário fazer ainda
outra pergunta: O que se perdeu na humanidade para justificar a sua reclamação por
redenção?

A história humana sofreu um golpe mortal. Orígenes chamou esse evento de ‘queda
transcendental’, situação que marca um estado de transição da ‘essência para existência’
[humana]. Com esse advento de transgressão do ser humano (hb. ‘Adam), conforme consta na
narrativa da queda, um componente disfuncional entra em cena e compromete a integridade
psíquica da vida humana. Depois da queda, a maldade humana se generaliza e ganha força de
um movimento cultural macro cósmico. O ser humano se torna malicioso, habitualmente.
Entre o bem e o mal, ele passa a fazer opção usual pelo comportamento reprovável (Rm 7,19).
Como a moral nunca vem dissociado da ‘intenção’ (psicologia racional do desejo) e, portanto,
não existe comportamento destituído de sentido, logo se deduz que a inclinação humana se
tornou refém de uma ‘cobiça incurável’. Sim! A cobiça (gr. Epithymia) é a vontade contaminada
pela ‘intenção desatinada’ que produz um ‘comportamento desregrado’ (gr. Asotía) como
forma padronizada de adaptação instintiva da vida humana num mundo em descontrole.

Neste sentido, toda interação [humana] pós-queda (segundo a tradição bíblica) passa a sugerir
uma subtração intencional das verdadeiras motivações existentes no coração humano de modo
camuflado (aletofobia). E, por essa razão, a maldade entra em cena social e cria tipos de
relação baseados na ocultação de informações para a preservação de certos benefícios
pretendidos por uma das partes implicadas nela (relação). Isso passou a ser lógica de interação
generalizada. A intenção escondida ganhou status de ameaça potencial à salubridade moral da
pessoa humana. ‘Esconder motivações’ começou a ser usado como ferramenta de
desestabilização emocional da relação eu-tu. Por causa dela (intenção maliciosa que se
esconde), a racionalidade operante do mal ganhou fôlego e poder para desfuncionalizar os
componentes estruturantes da saúde psíquica das ‘interafetividades’.

Esse drama psicomoral da humanidade foi produzido por aquilo que a tradição teológica judeu-
cristã chama de ‘peccatum originale’ (pecado original). Nele, de fato, uma transição acontece:
a humanidade se torna destituída de sua inocência original. Esse fenômeno antropológico
pontuou o advento de uma psicopatologia coletiva subsequente, o que implicou o contágio
incontido de uma idiossincrasia coletivamente compartilhada: a ‘suspeita paranoica universal’.
O potencial alienante desta [psicopatologia coletiva] transformou o ser humano numa pessoa
desconfiada de tudo e de todos (personalidade paranoide). Esse sentimento coletivizado teve o
poder de criar dispositivos psíquicos capazes de acentuar uma percepção paranoica apta para
produzir uma ‘guerra intersubjetiva generalizada’ (interindividual).

A primeira humanidade perdeu a inocência. Isso é um fato (histórico) para a tradição judeu-
cristã. E com essa destituição, ela desenvolveu um vício endêmico: o de instrumentalizar-se da
‘malícia militante’ habitualmente, algo que passou a ser considerado um traço determinante
do seu ethos. A incapacidade de socializar benefícios e de ignorar a fome de retribuir mal com
o mal viralizou, tornando-se uma espécie de traço instintivo de um sujeito universal. O
embotamento generalizado, associado à desconfiança patológica (coletiva), passou a constituir
a matriz ontológica do peccatum enquanto condição inalienável do humano propriamente,
determinando assim (e de modo permanente) o perfil moral/funcional da ‘velha humanidade’
(gr. Palaion anthôpon).

É à luz dessa análise antropológica que o fenômeno do Advento deve ser compreendido e
interpretado. Sim! O Natal representa o ‘renascimento da inocência’, algo que se perdeu na
primeira humanidade. Não é à toa que a ‘criança na manjedoura’ foi apresentada como
símbolo do ato redentor da Providência na história humana. Esse sentido dado, porém, precisa
ser entendido em linguagem psicoantropológica: afinal, a malícia foi adquirida com a inserção
do peccatum (gr. Hamartia) no mundo da vida humana. O que é, portanto, o pecado nesta
perspectiva apresentada aqui? Ele é, fundamentalmente, a ‘perda de algo’ ... A ‘perda da
inocência’. Como a criança representa, simbolicamente, o ‘estado da inocência’, o Natal, então,
deve ser entendido como o ‘renascimento da inocência perdida’, o que pressupõe o
surgimento do ethos de ‘uma nova humanidade’ (gr. Kainon anthropon) baseado nela
(inocência).

A malícia (maldade) precisa ser vencida pela inocência. Essa é a mensagem da redenção
histórica da vida no mundo que a fé cristã anuncia há séculos através de sua tradição
querigmática. A lei judaica não tinha essa capacidade operacional de efetuá-la. A
transformação, portanto, só pode ser operada pela ação santificadora do Espírito. Neste caso, o
verbo ‘santificar’ (gr. Hagiazô) preconiza o estado de inocência que o Espírito (e não a Lei de
Moisés) deve promover na consciência desta nova humanidade, tendo a [inocência] do menino
Jesus como ‘referência’ única de ‘condição moral a ser alcançada’ (escatologicamente). Mas,
afinal, o que é a inocência? Ela é, fundamentalmente, a capacidade de reagir à maldade sofrida
sem desenvolver o desejo de querer se vingar. Sim! É uma atitude que revela uma impotência
moral de retribuir o mal com o mal. Ela se configura como uma habilidade psíquica que não se
deixa ser seduzida pela cultura da malícia provocativa. E o simbolismo da criança incorpora
todas essas definições.

O Natal é Advento não de uma nova era, mas de uma ‘nova humanidade’, agora destituída da
‘maldade’ (gr. Ponería). A inocência (preconizada na figura do ‘menino salvador’) é uma vacina
que a consciência humana precisa receber para ser imunizada contra a tendência de ver o mal
em tudo e em todos o tempo todo (percepção paranoica do mundo). Sem ela (inocência), a
tendência social é que a ‘malícia’ ganhe, cada vez mais, uma ‘forma de cultura moral
generalizada’, determinada pelos componentes valorativos emblemáticos da velha humanidade
que corrompem, dia a dia, a consciência humana por meio de ‘desejos enganosos’ e cheios de
maldade (gr. Tás epithymias tês apatês).
O que significa, então (e, portanto), a redenção histórica da humanidade anunciada pela
mensagem do Natal (Advento)? A resposta é simples: Ela implica reconhecer que o menino
Jesus representa, moralmente, o modelo antropológico definitivo de uma ‘nova humanidade’.
Essa condição é aportada com a figura simbólica ‘da criança’ nascida na manjedoura. Na noite
do nascimento do menino Deus, uma luz brilhou naquele escuro céu. Esta criança, por essa
razão, deverá ser modelo de santificação para a nova humanidade, e nisto consiste a redenção
história da vida humana no mundo. Essa é a mensagem com sentido antropológico que deve
ser dada ao Natal: o ‘renascimento da inocência perdida’.

Aí está a dimensão exortativa que o advento natalício preconiza. O modelo histórico se torna ‘a
criança inocente’ prenunciada pelo profeta Isaías a qual haveria de ser enviada para oferecer a
redenção definitiva à humanidade, retirando-a de sua própria ‘escuridão ontológica’. Não é à
toa que Jesus o Cristo recomenda a Nicodemos que ele precisaria recuperar a ‘inocência
perdida’ ‘nascendo de novo’ ... Do contrário, ele não veria o reino de Deus (Jo 3,3). Neste
sentido, ‘renascer’ (gr. Gennêthê anôthen) significa, pois, abdicar a maldade moral herdada de
um modelo cultural corrompido de humanidade. Você já tinha pensado no Natal deste modo?
Celebre-o, portanto, este ano com essa consciência nova ... É no regaste psicológico da
inocência que torna-se possível encontrar ‘o caminho de cura’ para um novo modo de existir
que a primeira humanidade perdeu.

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