Você está na página 1de 9

Iniciação ao Islã e Sufismo1

Mateus Soares de Azevedo

Prefácio

Por William Stoddart2

Até a metade do presente século, a Igreja - no Brasil como em todos os países católicos
- ensinava o catecismo católico tradicional às crianças e aos adultos. Tratava-se de um
resumo simplificado, concebido para o homem comum, da mensagem eterna de Cristo
e dos ensinamentos imutáveis dos santos e doutores da Igreja, de Santo Agostinho a
Santa Tereza de Lisieux. A fé católica estava por toda parte, e era incontestada;
penetrava em todas as camadas da sociedade.

Pode-se contestar imediatamente que nem todos a aceitavam, mas não tenho tanta
certeza. Em Madri, durante a Guerra Civil espanhola, um "missionário" protestante fazia
um discurso exaltado para um grupo de comunistas sobre o evangelismo. Num
determinado ponto, os comunistas não aguentaram mais, e um deles exclamou: "Por
Deus e por Sua Santíssima Mãe, nós não acreditamos nem na verdadeira religião! Como
iríamos acreditar na sua?" Fico com minha visão de que, até a época do Concílio Vaticano
II, na década de 1960, a antiga e tradicional Igreja Católica era, em virtualmente todos
os países católicos, a "verdadeira religião”.

Desde os anos 1960 que tudo isso mudou. Foram-se as certezas de eras; foram-se as
“Verdades Eternas” de Platão: o Verdadeiro, o Bom e o Belo. Não pretendo agora
examinar porque isto aconteceu; apenas observo o estado de coisas existente. Em vez
de "nos ser dito no quê acreditar” (e no passado nos disseram para acreditar em muitas
coisas) agora somos condenados a "pensar por nós mesmos". Que Deus nos ajude!

Minha prece sóbria não é uma expressão de cinismo. Mais uma vez, apenas registro um
fato: a maioria de nós, adultos e crianças, simplesmente não é capaz da exigência
aterradora de "pensar por nós mesmos”; trata-se de uma exigência injusta; não é nosso
ofício; é um desafio que nos supera. Até o século XX, as autoridades religiosas (e os
santos e sábios) de todas as culturas e civilizações instruíram a sociedade sobre Deus, o
culto, a moralidade e a salvação. Subitamente, tudo isso é retirado de cena. Surpreende
que as pessoas estejam confusas e atrapalhadas? Elas nascem para ser carpinteiros,
pedreiros comerciantes, agricultores, ou membros de outras profissões; não é de se
esperar que (sem o benefício da escritura e da tradição, sem o benefício da dedicação e
do aprendizado) possam ser seus próprios instrutores (e juízes) em questão de religião
e salvação. Um mestre sapateiro não pode construir uma casa; um mestre pedreiro não
consegue consertar um par de sapatos. Como esperar que um sapateiro ou um pedreiro,
sem mais cerimônia, possa ensinar a verdade (a eles próprios ou aos outros) sobre Deus

1
Rio de Janeiro, Record, 1994.
2
O autor é médico e escritor, editor da revista Studies in Comparative Religion e autor de Outline of
Hinduism, Pearls of Christian Intellectuality and Spirituality e O Sufismo – Doutrina Metafísica e Espiritual
no Islã.
e o homem? Tal expectativa ingênua é absurda, para não dizer nociva. Não surpreende
que os resultados de tal inconsequência tenham sido desastrosos. A sociedade perdeu
sua coesão e seu princípio de unidade; ela está num estado de caos.

Este é o pano de fundo sobre o qual encetamos o estudo da religião e das religiões.
Teríamos todas as razões para começar com o estudo - inteiramente objetivo - do
Cristianismo tradicional, mas isto pode ser visto como uma tentativa de dar vida a um
corpo morto. Defrontamo-nos, ademais, com uma proliferação de seitas de todos os
tipos. Pode ser válido estudar, e tornar-se familiar com, as grandes religiões históricas,
cristãs e não-cristãs. Não se deve, contudo, confundir contrafações manifestas com algo
autêntico.

Num mundo de desintegração cultural, de ideologias e cultos fabricados pelo homem, é


sensato e proveitoso estudar o que as grandes religiões mundiais ensinaram à
humanidade (e o fizeram por milênios). Se temos intenção séria, o estudo do Budismo,
do Hinduísmo ou do Islã pode nos ensinar muito sobre a religião em si, e, portanto,
muito sobre um Cristianismo tradicional esquecido. Pode nos introduzir a conceitos
essenciais como a natureza da revelação, a natureza da ortodoxia, e à questão de
porque há várias grandes religiões no mundo, e não apenas uma. Num estudo das
religiões, temos de começar por algum lugar, e há várias razões pelas quais o Islã seja a
mais apropriada para começarmos. Mas, antes, permitam-nos analisar algumas das
características essenciais da religião em geral.

Que é religião?

Em termos de etimologia, religião é o que liga, especificamente o que liga o homem a


Deus. A religião engaja o homem de duas maneiras: primeiramente, explicando a
natureza e o significado do universo, ou “justificando os caminhos de Deus para o
homem" (isto é teodicéia); em segundo lugar, elucidando a função e o propósito do
homem no universo, ou ensinando-lhe como libertar-se de suas limitações, constrições
e terrores (isto é soteriologia).

No primeiro ponto, religião é uma doutrina da unidade: Deus, que em sua realidade mais
elevada é um, é o Criador, Senhor e fim último do universo e do homem nele. No
segundo ponto, religião é um método de união: um caminho sacramental, um meio de
salvação.

Quaisquer que sejam as maneiras pelas quais os chamemos, estes dois componentes
estão sempre presentes: teodicéia e soteriologia; doutrina e método; teoria e prática;
dogma e sacramento; unidade e união.

Doutrina, ou teoria, diz respeito à mente (ou, no nível mais alto, ao "intelecto", no
sentido preciso e metafisico do termo); método, ou prática, diz respeito à vontade. A
religião, para ser ela mesma, deve sempre engajar tanto a mente quanto a vontade.

O segundo componente da religião, ou a prática, pode ser dividido em dois: isto é, culto
e moralidade. O culto, o elemento sacramental propriamente falando, em geral assume
a forma de participação nos ritos revelados (públicos ou privados) de uma dada religião,
com vistas a assimilar a vontade do homem à de Deus. A moralidade, o elemento social,
é "fazer as coisas que devem ser feitas e não fazer o que não deve ser feito". Alguns dos
conteúdos são universais: "não matarás" ''não roubarás” etc.; e alguns conteúdos são
específicos da religião em questão: "não farás imagem esculpida”, “o que Deus uniu o
homem não separa” etc.

Chegamos, assim, aos três elementos que René Guénon considerava os aspectos
definidores de toda religião: dogma, culto e moralidade. Quando elevados a um grau
mais alto ou intenso, isto é, o da espiritualidade ou mística, tornam-se, nas palavras de
Frithjof Schuon, a verdade, a via espiritual e a virtude.

O ponto específico mais importante sobre religião é que ela não é inventada pelo
homem, mas revelada por Deus. A revelação divina é uma condição sine qua non; sem
ela não há religião, apenas ideologia fabricada pelo homem, na qual nenhum elemento
sacramental ou salvífico está presente.

O ponto fundamental seguinte é a tradição. Tendo sido revelada, a religião é então


transmitida - imodificada na essência, mas em geral cada vez mais elaborada na
expressão - de uma geração a outra, pelo poder da tradição. E, por fim, intimamente
ligado à tradição, vem o atributo da ortodoxia, que é vista como o princípio da verdade,
ou, no nível prático, a preservação da pureza doutrinal.

Em síntese: os conteúdos essenciais da religião compreendem o dogma, o culto e a


moralidade; e o "recipiente" ou moldura indispensável da religião, compreende a
revelação, a tradição e a ortodoxia.

Que é Ortodoxia?

Nos dias de hoje, muito frequentemente a Ortodoxia é considerada apenas uma forma
de intolerância: um grupo de pessoas impondo suas próprias opiniões a outros. A este
respeito, contudo, é útil lembrar o primeiro item do "Nobre Caminho Óctuplo” do
Budismo: “pensamento correto”, ou “conhecimento correto”. É óbvio o porquê de o
“pensamento correto” gozar de prioridade, pois, tanto lógica como praticamente, vem
ante, do "correto fazer". E qual é a palavra portuguesa (derivada do grego) que significa
"pensamento correto"? "Ortodoxia”, precisamente.

Para levar a questão mais longe: 2 + 2 = 4 é ortodoxo; 2 + 2 = 5 não é ortodoxo. Simples,


mas também válido para níveis bem mais elevados. Outra maneira de encarar a questão
é esta: mesmo nas atuais circunstâncias, muitas pessoas ainda preservam a noção de
“pureza moral”, e dão-lhe alto valor. Ortodoxia é "pureza intelectual", e, enquanto tal,
é um prelúdio indispensável à graça. Vista desta maneira - e longe de "dizer aos outros
no que acreditar"- ortodoxia não é mais do que uma referência à primazia da verdade.

Ortodoxia, de fato, é o princípio da verdade que perpassa mitos, símbolos e dogmas, os


quais são a própria linguagem da revelação. Como a moralidade, a ortodoxia pode ser
tanto universal (conformidade à verdade enquanto tal) ou específica (conformidade às
formas de uma dada religião). É universal quando declara que Deus é incriado, ou que
Deus é absoluto e infinito. É específica quando declara que Jesus é Deus (Cristianismo),
ou que Deus assume a tríplice forma de Brahma, Vishnu e Shiva (Hinduísmo).

Afastamento da ortodoxia é heresia: ou intrínseca (por exemplo, o ateísmo) ou


extrínseca (por exemplo, um muçulmano não acreditando na divindade de Jesus).

Ortodoxia é normal; heresia, anormal. Isto permite o uso de uma metáfora médica: o
estudo das várias ortodoxias tradicionais compete ao fisiologista religioso, enquanto o
estudo das heresias (se valesse a pena) compete ao patologista religioso.

Ortodoxia é particularmente importante num mundo no qual as grandes religiões


tomaram-se conscientes uma das outras e cujos aderentes geralmente vivem lado a
lado. É do mesmo modo importante no campo da religião comparada. Este ponto foi
bem explicado por Bernard Kelly:

“A confusão é inevitável sempre que culturas baseadas em tradições espirituais


profundamente diferentes se misturem sem proteções rígidas que preservem a sua
pureza. O cruzado com a cruz brasonada em seu peito e a tanga e a roca de Mahatma
Gandhi quando visitou a Europa são imagens do tipo de precaução sensata quando se
viaja em território espiritualmente estrangeiro. O visitante moderno com seu chapéu-
coco e seu terno listrado está protegido por esta vestimenta contra qualquer falta de
seriedade ao discutir finanças. De proteções mais importantes ele não sabe nada. O
secularismo completo do mundo moderno ocidental, em todos os lugares onde chegou
sua influência, abriu as comportas para uma confusão que varre para longe os contornos
do espírito... As normas tradicionais fornecem critérios para a cultura e a civilização. A
ortodoxia tradicional é assim o pré-requisito de qualquer diálogo entre as tradições.”3

O lugar do Islã entre as religiões do mundo

As religiões dividem-se naturalmente em três amplas categorias: os xamanismos


hiperbóreos (incluindo Confucionismo, Taoísmo, Xintoísmo e a religião dos índios
americanos), as mitologias arianas (incluindo Hinduísmo, Budismo, e a extinta religião
greco-romana) e os monoteísmos semitas (incluindo Judaísmo, Cristianismo e Islã).

A classificação das principais religiões do mundo pode ser representada


esquematicamente da seguinte maneira:

Religiões universais e religião de um povo

Quando se usa a expressão "religiões mundiais", é importante te ter em mente a


distinção entre as religiões que dirigem sua mensagem a “todos os povos" e aquelas cuja
mensagem é restrita a virtualmente um. Na primeira categoria estão as "religiões"
missionárias, Budismo, Cristianismo e Islã, que podem ser apropriadamente designadas
“universais”, que pregam a todos, e que têm adeptos em muitas terras. Na segunda

, 3 Dominican Studies, Londres, volume 7, 1954, p. 256.


categoria estão Hinduísmo e Judaísmo, que não são missionárias e que, em termos
gerais, são religiões de um povo ou de uma nação apenas.

Budismo, Cristianismo e Islã aceitam, e em geral buscam vigorosamente, convertidos. O


Hinduísmo e o Judaísmo, de outro lado (sem dúvida com algumas exceções muito
especiais), não buscam, nem normalmente aceitam convertidos. Em geral, para ser um
membro destas religiões, é necessário ter nascido nelas.

Diferenças entre Islã e Cristianismo


Falamos de três monoteísmos semíticos ou abraâmicos. O primeiro deles é o Judaísmo
(revelado por Deus através de Moisés); o segundo é o Cristianismo (revelado por Jesus);
e o terceiro é o Islã (revelado através de Mohamed). É importante notar que Abraão não
era judeu; ele era e pré- judeu e pré-árabe, e dele derivam tanto judeus como árabes –
os árabes, de seu filho Ismael (cuja mãe foi Hagar) e os judeus, de seu filho Isaac (cuja
mãe foi Sara). Abraão é, assim, o antepassado das três religiões monoteístas. O Jehovah
dos judeus, o Deus dos çristãos e o Allah dos muçulmanos são naturalmente o único e
mesmo Deus.

Apesar de Cristianismo e Islã pertencerem ambos à mesma família, há várias diferenças


importantes entre eles. Para indicar o que estas diferenças são, faremos referência à
mística ou espiritualidade. A mística ou espiritualidade é, em geral, vista como o
coração, ou a dimensão interior, de uma determinada religião, e, enquanto tal, é muitas
vezes contrastada com o lado mais formal, ou institucional. Esta distinção não é em lugar
nenhum mais pronunciada do que no Islã. Mesmo o observador mais preocupado pode
notar os principais elementos da forma "externa" do Islã, tais como as cinco preces
diárias, o jejum anual e a peregrinação a Meca. O lado “interior”, de outra parte, é
invisível por definição, mas, não obstante, revela-se nos tratados e na poesia místicos,
e, acima de tudo, na vida exemplar de seus santos.

As religiões distinguem-se umas das outras pela disposição específica desses dois
domínios. O Islã possui um domínio exotérico – a shariah -, que contém os elementos
básicos necessários para a salvação e que são consequentemente obrigatórios a todos,
e um domínio esotérico - a haqiqa - Verdade ou Realidade (interior), cuja aspiração é
uma questão de vocação. Este último domínio - que compreende tanto doutrinas como
práticas - é o do Sufismo.

O Cristianismo é, de um certo ponto de vista islâmico, como este Iniciação ao Islã e


Sufismo expõe mais adiante, puramente uma haqiqa, ou esoterismo (um "mistério",
para falar em termos cristãos). Nas palavras de Cristo: "Meu Reino não é deste mundo."
Em princípio, o Cristianismo (ao contrário do Judaísmo e do lslã) não tem uma “lei”;
trata-se antes de "louvar a Deus em espírito e em verdade”. Historicamente, contudo,
para existir, este esoterismo teve de se tornar uma religião para todos os tipos e
condições de homens (um exoterismo), num esforço para, por assim dizer, fazer valer o
elemento exotérico que não fazia parte da revelação original. É importante, contudo,
enfatizar que esta aplicação da revelação cristã (em si mesma um esoterismo ou
"mistério") ao nível público ou exotérico não poderia e não alterou de nenhuma maneira
a natureza original dos dogmas e sacramentos cristãos, que continuaram a ser, de jure,
e em sua essência, formulações “esotéricas" e ritos " iniciáticos", respectivamente.

Na prática, esta diferença essencial entre as economias espirituais de Islã e Cristianismo


significa que, numa visão cristã superficial, o Islã exotérico parece ter algo de "farisaico"
- uma censura que parece injustificada quando se entende o propósito providencial e os
salutares efeitos individuais e comunitários de uma "lei" revelada. Inversamente, aos
olhos islâmicos, o Cristianismo parece ser um esforço perpétuo em busca de uma
"perfeição" quase inatingível - algo que é irrealista exigir da maioria dos homens e que
consequentemente leva à hipocrisia, e, assim, corre o risco de levar a religião ao
descrédito.

Uma segunda diferença importante em princípio entre as duas religiões é que o


Cristianismo, como todos sabem, é uma religião predominantemente do Amor,
enquanto o Islã compreende os três níveis clássicos de culto: temor, amor e
conhecimento. A presença do último elemento confere ao Islã um certo sabor
"gnóstico” ou "jnânico" (ver a este respeito o capítulo 2 do livro) - que não é
característico do Cristianismo - e que se torna particularmente evidente no Sufismo
“teosófico”. O elemento “conhecimento” não está de todo ausente no Cristianismo, mas
sem dúvida não é o aspecto predominante.

A philosophia perennis

O que os místicos do Islã, os sufis, expressam, nas formas mais apropriadas à sua
respectiva religião, é a "sabedoria incriada! (como Santo Agostinho a chamava), que é
mais conhecida como philosophia perennis, e que reaparece, em diferentes roupagens,
mas sempre essencialmente a mesma, no Extremo Oriente, entre os hindus, na Irlanda
e na Gália de antigamente, entre os sioux e entre os primeiros eremitas cristãos no
deserto egípcio – aquela sabedoria que a Bíblia descreve nas seguintes palavras: "Desde
o princípio, antes de todos os séculos, Ele me criou, e não cessarei de existir até o fim
dos séculos." (Eclesiástico XXIV, 14).

As várias religiões reveladas são algumas vezes representadas como setores de um


círculo, sendo que os setores, por definição, unem-se no ponto central. A área maior e
mais ampla de cada setor, ladeando a circunferência, representa um dado exoterismo;
a área menor e mais estreita, e que está próxima do centro, é o correspondente
esoterismo; e o centro sem dimensões é o esoterismo em estado puro: a verdade total.

O mesmo simbolismo pode também ser representado sob a forma de uma montanha.
Aqui se dirá que "todos os caminhos levam ao mesmo cume". O cume representa a
verdade total. A montanha é feita de encostas, cada uma representando determinada
religião. A parte inferior de cada encosta representa o exoterismo, enquanto a parte
mais elevada representa o correspondente esoterismo. O ápice representa o esoterismo
em estado puro.

Talvez o mais direto de todos os simbolismos que se referem à gênese, relação mútua e
papel salvífico das várias revelações é o que assemelha esoterismo (em estado puro) à
luz incolor, e as várias religiões ao vermelho, verde, amarelo e as outras cores do
espectro. Dependendo de sua distância da fonte de luz, os raios serão mais intensos ou
mais fracos (isto é, mais esotérico ou exotéricos). Cada cor é uma forma ou um veículo
da verdade (uma refração da luz incolor). Cada cor "representa" a verdade total (a luz
incolor). Mas a verdade supraformal, a plenitude da luz incolor, não é esgotada nem
está limitada a qualquer cor específica.

Tudo isso tem consequências práticas importantes: não se pode assumir a perspectiva
de que, já que a mística ou o esoterismo é a verdade interior comum a todas as religiões
(isto é, a religio perennis), pode-se então dispensar a religião (o exoterismo) e buscar
apenas a mística (esoterismo). A situação do homem é tão precária que é apenas com a
graça de Deus que ele pode se tomar digno de voltar-se para a luz incolor, e ele deve
fazê-lo por meio do "vermelho", do "verde", ou de alguma outra cor (religião). E seu
"vermelho", ou "verde", deve ser tão puro e intenso quanto possível.

É importante acrescentar neste ponto que qualquer sincretismo (ou pseudoteosofia) é


do mesmo modo vão. Escolher e pegar fragmentos e pedaços da religião (supostamente
aqueles relacionados a um imaginado "máximo denominador comum") é tentar mesclar
o imiscível. Não leva à claridade, mas a um estéril e opaco "marrom curvo e vago".

Erros modernos e metafisica tradicional

A época atual está repleta de falsas espiritualidades. O equívoco central de virtualmente


todas elas é a confusão entre espírito e "alma". Segundo a metafísica tradicional (grega,
medieval, islâmica, entre outras), o homem é feito de três elementos distintos, como se
segue:

Português Latim Grego Árabe


Espírito (Intelecto) Spiritus (Intellectus) Pneuma (Nous) Rûh (‘Aql)
Alma Anima Psyche Nafs
Corpo Corpus Soma Jism

O "Espírito" (ou "Intelecto"), apesar de "criado" é o único elemento supraformal, ou


universal, "arquetípico" e objetivo. Espírito e Intelecto são os dois lados da mesma
moeda, o último referindo-se à Verdade (ou doutrina) e o primeiro ao ser (ou
realização). A alma, de outra parte, é formal e individual. O Espírito é, portanto, a
“medida”; a alma nunca pode ser a “medida” do Espírito. (Entre as faculdades da alma
a mente - ou razão -, a vontade, o sentimento, a imaginação e a memória. Na linguagem
moderna, “intelecto” é em geral erroneamente usado para indicar mente ou razão, ao
passo que tradicionalmente é sinônimo de "Espírito". Não há barreira impenetrável
entre a mente, ou razão, e o Intelecto.) O erro de alguém como Jung é a confusão entre
o Espírito e a alma. A consequência disso é a "abolição” do Absoluto e o bloqueamento
do acesso ao fundamental elemento da objetividade. Somos deixados sem recursos num
mundo onde tudo (verdade, moralidade, arte) é relativo! Apenas as tradicionais religiões
mundiais podem se opor a isso.

É precisamente em razão do caráter anti-Platônico, anti-Aristotélico, anti-Tomista do


mundo que se pode dizer que a sua principal característica é a “abolição” do absoluto e
da objetividade. É uma era na qual o relativismo e o subjetivismo correm soltos, com
resultados catastróficos tanto para o indivíduo como para a sociedade. O único antídoto
ao relativo e o a subjetivo é o absoluto e o objetivo, e são precisamente estes os
conteúdos da metafísica tradicional ou philosophia perennis.

O Islã no mundo moderno


Para concluir, uma importante observação final deve ser feita: o primeiro pré-requisito
para entender a religião do Islã é separá-la inteiramente, em nossas mentes, da ideia
transmitida pela cobertura de imprensa atual sobre os países islâmicos - ou mesmo dos
pronunciamentos feitos por alguns de seus líderes! É verdade que existem ainda muitos
países e dirigentes islâmicos honrados no mundo (pensamos por exemplo em eminentes
dirigentes como Abu Bakar Balewa, da Nigéria, e Tungku Abdel Rahman, da Malásia),
mas os países e líderes que mais aparecem nos meios de comunicação são
frequentemente tudo o que se quiser, menos autênticos muçulmanos. Alguns são
modernos revolucionários revestidos de “literalismo'' ou de “fundamentalismo"; alguns
são secularistas ostensivos (os quais, apesar de seu secularismo, algumas vezes usam a
religião para fins políticos). A política moderna lançou uma praga em muitas (de fato em
quase todas) partes do mundo, não apenas no campo islâmico. Algumas vezes, é claro,
artigos de jornal e revista ou programas de televisão sobre os países islâmico são
desonestos ou parciais, e a pessoa tem de olhar pelo menos um pouco debaixo da
superfície para descobrir a verdadeira situação. O presente livro, contudo, é sobre
religião, não sobre política moderna, de maneira que, à parte soar um alarme necess6-
do, não diremos mais nada sobre este assunto aqui.

Você também pode gostar