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Prefácio
Até a metade do presente século, a Igreja - no Brasil como em todos os países católicos
- ensinava o catecismo católico tradicional às crianças e aos adultos. Tratava-se de um
resumo simplificado, concebido para o homem comum, da mensagem eterna de Cristo
e dos ensinamentos imutáveis dos santos e doutores da Igreja, de Santo Agostinho a
Santa Tereza de Lisieux. A fé católica estava por toda parte, e era incontestada;
penetrava em todas as camadas da sociedade.
Pode-se contestar imediatamente que nem todos a aceitavam, mas não tenho tanta
certeza. Em Madri, durante a Guerra Civil espanhola, um "missionário" protestante fazia
um discurso exaltado para um grupo de comunistas sobre o evangelismo. Num
determinado ponto, os comunistas não aguentaram mais, e um deles exclamou: "Por
Deus e por Sua Santíssima Mãe, nós não acreditamos nem na verdadeira religião! Como
iríamos acreditar na sua?" Fico com minha visão de que, até a época do Concílio Vaticano
II, na década de 1960, a antiga e tradicional Igreja Católica era, em virtualmente todos
os países católicos, a "verdadeira religião”.
Desde os anos 1960 que tudo isso mudou. Foram-se as certezas de eras; foram-se as
“Verdades Eternas” de Platão: o Verdadeiro, o Bom e o Belo. Não pretendo agora
examinar porque isto aconteceu; apenas observo o estado de coisas existente. Em vez
de "nos ser dito no quê acreditar” (e no passado nos disseram para acreditar em muitas
coisas) agora somos condenados a "pensar por nós mesmos". Que Deus nos ajude!
Minha prece sóbria não é uma expressão de cinismo. Mais uma vez, apenas registro um
fato: a maioria de nós, adultos e crianças, simplesmente não é capaz da exigência
aterradora de "pensar por nós mesmos”; trata-se de uma exigência injusta; não é nosso
ofício; é um desafio que nos supera. Até o século XX, as autoridades religiosas (e os
santos e sábios) de todas as culturas e civilizações instruíram a sociedade sobre Deus, o
culto, a moralidade e a salvação. Subitamente, tudo isso é retirado de cena. Surpreende
que as pessoas estejam confusas e atrapalhadas? Elas nascem para ser carpinteiros,
pedreiros comerciantes, agricultores, ou membros de outras profissões; não é de se
esperar que (sem o benefício da escritura e da tradição, sem o benefício da dedicação e
do aprendizado) possam ser seus próprios instrutores (e juízes) em questão de religião
e salvação. Um mestre sapateiro não pode construir uma casa; um mestre pedreiro não
consegue consertar um par de sapatos. Como esperar que um sapateiro ou um pedreiro,
sem mais cerimônia, possa ensinar a verdade (a eles próprios ou aos outros) sobre Deus
1
Rio de Janeiro, Record, 1994.
2
O autor é médico e escritor, editor da revista Studies in Comparative Religion e autor de Outline of
Hinduism, Pearls of Christian Intellectuality and Spirituality e O Sufismo – Doutrina Metafísica e Espiritual
no Islã.
e o homem? Tal expectativa ingênua é absurda, para não dizer nociva. Não surpreende
que os resultados de tal inconsequência tenham sido desastrosos. A sociedade perdeu
sua coesão e seu princípio de unidade; ela está num estado de caos.
Este é o pano de fundo sobre o qual encetamos o estudo da religião e das religiões.
Teríamos todas as razões para começar com o estudo - inteiramente objetivo - do
Cristianismo tradicional, mas isto pode ser visto como uma tentativa de dar vida a um
corpo morto. Defrontamo-nos, ademais, com uma proliferação de seitas de todos os
tipos. Pode ser válido estudar, e tornar-se familiar com, as grandes religiões históricas,
cristãs e não-cristãs. Não se deve, contudo, confundir contrafações manifestas com algo
autêntico.
Que é religião?
No primeiro ponto, religião é uma doutrina da unidade: Deus, que em sua realidade mais
elevada é um, é o Criador, Senhor e fim último do universo e do homem nele. No
segundo ponto, religião é um método de união: um caminho sacramental, um meio de
salvação.
Quaisquer que sejam as maneiras pelas quais os chamemos, estes dois componentes
estão sempre presentes: teodicéia e soteriologia; doutrina e método; teoria e prática;
dogma e sacramento; unidade e união.
Doutrina, ou teoria, diz respeito à mente (ou, no nível mais alto, ao "intelecto", no
sentido preciso e metafisico do termo); método, ou prática, diz respeito à vontade. A
religião, para ser ela mesma, deve sempre engajar tanto a mente quanto a vontade.
O segundo componente da religião, ou a prática, pode ser dividido em dois: isto é, culto
e moralidade. O culto, o elemento sacramental propriamente falando, em geral assume
a forma de participação nos ritos revelados (públicos ou privados) de uma dada religião,
com vistas a assimilar a vontade do homem à de Deus. A moralidade, o elemento social,
é "fazer as coisas que devem ser feitas e não fazer o que não deve ser feito". Alguns dos
conteúdos são universais: "não matarás" ''não roubarás” etc.; e alguns conteúdos são
específicos da religião em questão: "não farás imagem esculpida”, “o que Deus uniu o
homem não separa” etc.
Chegamos, assim, aos três elementos que René Guénon considerava os aspectos
definidores de toda religião: dogma, culto e moralidade. Quando elevados a um grau
mais alto ou intenso, isto é, o da espiritualidade ou mística, tornam-se, nas palavras de
Frithjof Schuon, a verdade, a via espiritual e a virtude.
O ponto específico mais importante sobre religião é que ela não é inventada pelo
homem, mas revelada por Deus. A revelação divina é uma condição sine qua non; sem
ela não há religião, apenas ideologia fabricada pelo homem, na qual nenhum elemento
sacramental ou salvífico está presente.
Que é Ortodoxia?
Nos dias de hoje, muito frequentemente a Ortodoxia é considerada apenas uma forma
de intolerância: um grupo de pessoas impondo suas próprias opiniões a outros. A este
respeito, contudo, é útil lembrar o primeiro item do "Nobre Caminho Óctuplo” do
Budismo: “pensamento correto”, ou “conhecimento correto”. É óbvio o porquê de o
“pensamento correto” gozar de prioridade, pois, tanto lógica como praticamente, vem
ante, do "correto fazer". E qual é a palavra portuguesa (derivada do grego) que significa
"pensamento correto"? "Ortodoxia”, precisamente.
Ortodoxia é normal; heresia, anormal. Isto permite o uso de uma metáfora médica: o
estudo das várias ortodoxias tradicionais compete ao fisiologista religioso, enquanto o
estudo das heresias (se valesse a pena) compete ao patologista religioso.
As religiões distinguem-se umas das outras pela disposição específica desses dois
domínios. O Islã possui um domínio exotérico – a shariah -, que contém os elementos
básicos necessários para a salvação e que são consequentemente obrigatórios a todos,
e um domínio esotérico - a haqiqa - Verdade ou Realidade (interior), cuja aspiração é
uma questão de vocação. Este último domínio - que compreende tanto doutrinas como
práticas - é o do Sufismo.
A philosophia perennis
O que os místicos do Islã, os sufis, expressam, nas formas mais apropriadas à sua
respectiva religião, é a "sabedoria incriada! (como Santo Agostinho a chamava), que é
mais conhecida como philosophia perennis, e que reaparece, em diferentes roupagens,
mas sempre essencialmente a mesma, no Extremo Oriente, entre os hindus, na Irlanda
e na Gália de antigamente, entre os sioux e entre os primeiros eremitas cristãos no
deserto egípcio – aquela sabedoria que a Bíblia descreve nas seguintes palavras: "Desde
o princípio, antes de todos os séculos, Ele me criou, e não cessarei de existir até o fim
dos séculos." (Eclesiástico XXIV, 14).
O mesmo simbolismo pode também ser representado sob a forma de uma montanha.
Aqui se dirá que "todos os caminhos levam ao mesmo cume". O cume representa a
verdade total. A montanha é feita de encostas, cada uma representando determinada
religião. A parte inferior de cada encosta representa o exoterismo, enquanto a parte
mais elevada representa o correspondente esoterismo. O ápice representa o esoterismo
em estado puro.
Talvez o mais direto de todos os simbolismos que se referem à gênese, relação mútua e
papel salvífico das várias revelações é o que assemelha esoterismo (em estado puro) à
luz incolor, e as várias religiões ao vermelho, verde, amarelo e as outras cores do
espectro. Dependendo de sua distância da fonte de luz, os raios serão mais intensos ou
mais fracos (isto é, mais esotérico ou exotéricos). Cada cor é uma forma ou um veículo
da verdade (uma refração da luz incolor). Cada cor "representa" a verdade total (a luz
incolor). Mas a verdade supraformal, a plenitude da luz incolor, não é esgotada nem
está limitada a qualquer cor específica.
Tudo isso tem consequências práticas importantes: não se pode assumir a perspectiva
de que, já que a mística ou o esoterismo é a verdade interior comum a todas as religiões
(isto é, a religio perennis), pode-se então dispensar a religião (o exoterismo) e buscar
apenas a mística (esoterismo). A situação do homem é tão precária que é apenas com a
graça de Deus que ele pode se tomar digno de voltar-se para a luz incolor, e ele deve
fazê-lo por meio do "vermelho", do "verde", ou de alguma outra cor (religião). E seu
"vermelho", ou "verde", deve ser tão puro e intenso quanto possível.