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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

A RESPEITO DE ALGUNS FATOS DO ENSINO E DA APRENDIZAGEM DA


LEITURA E DA ESCRITA PELAS CRIANÇAS NA ALFABETIZAÇÃO

Luiz Carlos Cagliari


IEL/UNICAMP
I

As atividades de leitura e de escrita têm sido objeto de estudo de muitos


pesquisadores, sobretudo nas últimas décadas. Tem-se estudado o fenômeno
de muitos pontos de vista, trazendo-se, assim, contribuições para uma melhor
compreensão dos fatos envolvidos e, conseqüentemente, para uma melhor
atividade escolar1.
Neste trabalho, procuro analisar alguns fatos de conhecimento geral,
porém, interpretados, às vezes, de maneira própria, de acordo com o ponto de
vista específico de um lingüista interessado, sobretudo, nos aspectos fonéticos
da fala e na natureza, estrutura e usos dos sistemas de escrita. Pretendo,
assim, ampliar um pouco um tipo de discussão que, certamente, levará o
debate dessas questões a um melhor entendimento do processo de aquisição
da leitura e da escrita na alfabetização. Ainda há muito o que pesquisar e o que
discutir e, aqui, faço apenas uma pequena contribuição2.

II

Para se ler um texto escrito é preciso, antes de tudo, saber decifrar o que
está escrito. No mundo, ainda há vários sistemas de escrita que ainda não
foram decifrados (disco de Faistos, linear A, Maia, escrita de Mohenjo-Daro, da
Ilha de Páscoa, etc. (Jensen, 1970; Cagliari, 1987)). Ao tentarem uma
decifração, os cientistas começam a fazer hipóteses sobre o sistema,
procurando qualquer evidência que os ajude a ir, aos poucos, descobrindo tudo
o que precisam saber para ler este sistema de escrita. Esse foi o trabalho
realizado por muitos sábios que, nos últimos duzentos anos, decifraram muitos
sistemas antigos de escrita, como o egípcio, o cuneiforme, o linear B, etc.
(Doblhofer, 1962).

1 Meu objetivo, neste texto, é discutir fatos e não teorias. Sinto-me, portanto, à vontade para
dizer o que penso. Mas sei, também, que não existe análise sem teoria por trás, definindo o
ângulo pelo qual se comenta os fenômenos. Neste caso, há toda uma orientação lingüística
de minha formação.
2 Uma vez que pretendo, apenas, comentar certos fatos da aquisição da leitura e da escrita por
crianças na alfabetização e não, discutir teorias ou interpretações diferentes, não faço, aqui,
uma revisão da literatura a respeito do assunto tratado. A curiosidade do leitor, porém, será
recompensada, se este se dispuser a realizar essa tarefa, uma vez que há muitos trabalhos
interessantes a respeito, sobretudo os da linha cognitivista, socio-interacionista ou do chamado
”construtivismo”.

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Uma pessoa qualquer que vive no meio urbano, mesmo sendo uma
criança, logo percebe que a escrita é uma realidade do mundo em que vive. Ao
tentar entender melhor como a escrita é, essa pessoa começa a fazer
especulações a respeito do uso desse objeto e de sua estrutura interna e
organização externa, como, aliás, faz com qualquer coisa do mundo que queira
conhecer.
Assim como o cientista anda por vários caminhos até chegar à verdade e
decifrar um sistema de escrita antigo, assim também, uma criança envereda
por muitos caminhos, até chegar a descobrir o que precisa saber para decifrar
e ler o nosso sistema de escrita e poder escrevê-lo adequadamente.
O sábio progride à medida que compara o que já fez com uma nova
descoberta. A criança procede da mesma maneira. Por essa razão, é
importante que as descobertas parciais já feitas sejam explicitadas, registradas,
para que possam ir se constituindo em elementos com os quais as pessoas
vão construindo o seu conhecimento a respeito do objeto que investigam e
estudam.

III

Nas aulas de alfabetização, muitas vezes, é dada uma ênfase muito


grande ao processo de ensino, deixando-se, na prática, o processo de
aprendizagem relegado a um plano secundário. Obviamente, o ato de ensinar
pode ser feito por um professor diante de um grupo de alunos; nesse sentido, é
um ato coletivo. A aprendizagem, porém, será sempre um ato individual. Cada
pessoa aprende por si, de acordo com suas características pessoais, ou, como
se costuma dizer, cada um aprende segundo seu ”metabolismo”.
Uma criança, na sala de alfabetização, encontra-se numa situação
semelhante à de um cientista diante de um documento com uma escrita não
decifrada. Ambos começam a procurar uma entrada para esse mundo, para
descobrir como o sistema de escrita funciona. Neste caso, tudo é difícil e não
faz sentido pretender aprender o que se precisa numa ordem de dificuldades
escolhida de antemão e com exemplos ”facilitadores”. Também não existem
hipóteses naturais, organizadas em etapas ou períodos. Inútil começar-se com
escritas ideográficas, pictográficas ou convencionais, para se chegar a uma
escrita fonográfica; ou vice-versa. A única coisa importante são os
conhecimentos que cada um tem, construídos pelos indivíduos, por influência
da cultura onde vivem, ou elaborados criativamente pelo próprio pesquisador.
Se pudéssemos partir de uma linha pré-determinada de construção do
conhecimento, já teríamos, há quinhentos anos, decifrado o sistema de escrita
Maia.
Descobrir o mundo, a vida e o homem é o desafio de cada homem como
ser racional. O homem é, por sua natureza, um eterno descobridor. As crianças
adoram aprender e, se dermos chances a elas, aprenderão seja o que for. O
caminho de cada um tem o seu colorido e a sua paisagem, mas, com um
pouco de ajuda, as crianças aprendem o nosso sistema de escrita facilmente e
tornam-se seus usuários. A escola não precisa se preocupar muito com a
aprendizagem: isto as crianças farão por si. Precisa preocupar-se com dar

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chances às crianças para vivenciarem o que precisam aprender, sentirem que


o que fazem é significativo e vale a pena ser feito. Sem esse interesse
realmente sentido pelas crianças, as atividades da escola podem não passar
de um jogo, de um brinquedo, de uma obrigação, que alguns podem realizar e,
outros, inconformados, se passar.

IV

Alunos que são submetidos a um processo de alfabetização, seguindo o


método das cartilhas (com livro ou não), são alunos que são expostos
exclusivamente ao processo de ensino. O método ensina tudo, passo por
passo, numa ordem hierarquicamente estabelecida, do mais fácil para o mais
difícil. O aluno, seja ele quem for, parte de um ponto inicial zero, igual para
todos, e vai progradindo, através dos elementos já dominados, de maneira
lógica e ordenada. A todo instante, são feitos testes de avaliação (ditados,
exercícios estruturais, leitura perante a classe), para que o professor avalie se
o aluno ”acompanha” ou se ficou para trás. Neste último caso, tudo é repetido
de novo, para ver se o aluno, desta vez, aprende. Se ainda assim não
aprender, repete-se mais uma vez, remanejam-se os alunos atrasados para
uma classe especial, para não atrapalharem os que progrediram, até que o
aluno, à força de ficar reprovado, desista de estudar, julgando-se incapaz. E a
escola lamenta a chance que a criança teve e que não soube aproveitar (sic!).
O método das cartilhas não leva em consideração o processo de
aprendizagem. Quando diz que faz a verificação da aprendizagem através de
ditados, provas, etc., na verdade, está verificando, não se o aluno aprendeu ou
não, mas se o aluno sabe responder ao que se pergunta, reproduzir um modelo
que lhe foi apresentado, demonstrar que o professor ensinou direito. O que se
passa na mente do aluno, as razões pelas quais ele faz ou deixa de fazer algo,
são coisas que o método não permite que o aluno manifeste.

Um método de alfabetização que leve em conta o processo de


aprendizagem deve deixar um espaço para que o aluno exponha suas idéias a
respeito do que aprende. Isto pode ser feito não de maneira dissertativa (como
faz o professor, quando ensina), mas através da realização de trabalhos, onde
se pode ver o que o aluno fez e descobrir o que o levou a fazer o que fez, do
jeito que fez. Quando o aluno toma a iniciativa e diz algo, ou escreve, ou lê, ele
coloca, nessas atividades, seus conhecimentos. Como ele, nesse momento,
conhece apenas parcialmente o que está fazendo, inevitavelmente, irá cometer
acertos e erros. Da análise desses acertos e erros, pode-se descobrir o que o
aluno sabe e o que não sabe, se sabe ao certo ou se está tomando decisões
equivocadas, estranhas e incorretas.
Porque as cartilhas dirigem demais a vida do aluno na escola, ele tem que
seguir apenas um caminho, por onde passam todos; só pode pensar conforme
o método manda e fazer apenas o que está previsto no programa. Para alguns

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alunos, esse ”caminho” até que é ”suave” no começo, mas depois, quando
acaba a cartilha e se vêem na situação de terem de lidar não apenas com
elementos já dominados, como na cartilha, mas com o novo e desconhecido,
então, não sabem mais progredir, aprender, e a escola, que parecia tão
organizada, torna-se uma enorme confusão para essas crianças. Aquilo que
parecia tão organizado na cartilha, torna-se um caos fora dela e o aluno,
geralmente, não tem mais a quem recorrer.
Por outro lado, aquele aluno que tem seu espaço para revelar suas
hipóteses, através de sua iniciativa, em trabalhos escolares, parece, no
começo, em meio a um enorme caos. Mas, aos poucos, vai aprendendo a
organizar seus conhecimentos e a adequá-los à realidade e, aos poucos, tudo
vai achando seu lugar e sua razão de ser, de tal modo que esse aluno acaba
aprendendo não só o que deve, em termos de conteúdo, mas também aprende
a aprender: aprende como ele, do jeito que é, deve fazer para construir seus
conhecimentos. A escola precisa se preocupar antes com a aquisição do
processo de aprendizagem e depois com os resultados obtidos pelas crianças.
Alfabetizar pelas cartilhas (isto é, pelo BABEBIBOBU) é desastroso e,
quando o aluno aprende e progride nos estudos, faz isto apesar da escola.
Para outros alunos, o método é catastrófico e sem solução para os seus
problemas, dificuldades e perplexidades, ao tentarem construir os seus
conhecimentos na alfabetização.

VI

Um bom trabalho de alfabetização precisa levar em conta o processo de


ensino e de aprendizagem de maneira equilibrada e adequada. O professor
tem uma tarefa a realizar em sala de aula e não pode ser um mero expectador
do que faz o aluno ou um simples facilitador do processo de aprendizagem,
apenas passando tarefas. Cabe a ele ensinar também e, assim, ajudar cada
aluno a dar um passo adiante e progredir na construção de seus
conhecimentos.
Com as novas idéias do construtivismo, alguns professores têm levado os
trabalhos de alfabetização para o extremo oposto ao das cartilhas, também
com graves conseqüências para alguns alunos. É o caso absurdo do professor
que pretende tirar todos os conhecimentos a partir do aluno e, para tanto, acha
que sua tarefa não é a de ensinar, mas, apenas, a de promover situações para
o aluno fazer algo. Tudo o que o aluno faz é valorizado - mesmo que se
constate que ele começa a andar em círculos e não consegue ir além do que
faz -, na esperança de que, um dia, ele descubra a solução de seu problema.
Isto pode demorar demais e o aluno se vir ridicularizado pelos seus colegas,
perturbado pelos pais, quando não acontece, para sua grande surpresa, um
convite por parte da escola para ele se retirar ou para ir para uma ”classe se
alunos de seu nível”. Muitos eufemismos e hipocrisias.
No extremo, por exemplo, algumas classes, estudando algo escrito,
parecem-se com um grupo de pessoas completamente desnorteadas diante do
sistema de escrita; como turistas curiosos vendo peças de um Museu: todos
dão palpites e não se constrói nada. A escola tem que ser diferente: como o

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professor conhece o sistema de escrita que usamos (e alguns alunos


conhecem alguns de seus aspectos), a escola deve dispor desses
conhecimentos para ajudar quem não sabe. Não é só o professor que é um
mediador entre uma atividade e um aluno que aprende, mas os próprios alunos
podem ser mediadores uns dos outros, quando trabalham juntos e
compartilham seus conhecimentos.
Deixar o aluno construir seus conhecimentos é fundamental como
atividade própria do aluno. Ensiná-lo, ajudá-lo a progredir é também
fundamental como atividade do professor e como objetivo que dá a razão de
ser de uma escola. Se for apenas para constatar o que cada um faz na vida,
não é preciso escola.
Essa situação não é própria só da alfabetização. Em séries adiantadas,
alguns professores não vão além da simples constatação das tarefas
realizadas pelos alunos e da atribuição de notas. O professor não sabe ensinar
(ou não ensina simplesmente), quando um aluno, sistematicamente, escreve
errado a ortografia das palavras, não sabe escrever um texto adequadamente,
não sabe resolver determinadas dificuldades de matemática, química, etc. Nas
séries mais adiantadas, é ainda mais difícil encontrar escolas que deixam
alunos serem mestres de seus colegas, mediadores do processo de
aprendizagem de seus companheiros. A interação social, infelizmente, ainda é
um fato ausente de nossas salas de aula e, com isso, a escola perde uma
importante ferramenta de aprendizagem. É curioso como o ensino precisa ser
compartilhado, vivido, para fazer sentido para os indivìduos e ser memorizado
e usado, quando necessário. Pois é exatamente assim que aprendemos.
Ensinar não é repetir um modelo até que se aprenda o que ele quer dizer.
Ensinar é compartilhar as dificuldades do aprendiz, analisá-las, entendê-las e
sugerir soluções. Como, a cada momento, um indivíduo está numa situação
histórica diferente da construção da sua vida e de seus conhecimentos, a cada
momento o ensinar é diferente.
Por outro lado, nenhum processo de ensino pode se realizar, se o
professor desconhece o que acontece com o aluno no seu processo de
aprendizagem. Todo programa de ensino pode, de antemão, unicamente,
estabelecer linhas gerais. Na sua realização, ele precisa se adequar à
realidade de cada um dos aprendizes.
Conhecer a realidade do aluno não é uma tarefa metodológica ou
psicológica: é interpretar de maneira correta os conhecimentos que o aprendiz
tem a respeito do que faz e do jeito que faz. Para isto, o professor não precisa
de conselhos pedagógicos, mas de conhecimentos técnicos específicos,
detalhados e completos, a respeito do assunto que ensina e das coisas que o
aluno está querendo aprender.

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VII

Penetrar no mundo da aprendizagem é tarefa difícil, porque, em outras


palavras, de certo modo, é penetrar na mente das pessoas; é descobrir o que
elas pensam, quando realizam algo. Se essa tarefa não for realizada
corretamente, em vez de descobrir o que a outra pessoa pensa, o analisador
pode se equivocar, interpretar com pré-conceitos de sua parte, pode chegar ao
erro por ignorância. Se este pesquisador representar uma autoridade, suas
conclusões podem ter sérias conseqüências para a vida da escola e das
pessoas. Quantos alunos não aprendem por causa da ignorância de seus
professores que não sabem avaliar corretamente o que o aluno faz? Por
exemplo, na alfabetização, um aluno escreve uma palavra com as letras
devidas, mas, porque escreve com uma péssima letra, o professor pensa que
ele escreveu ortograficamente errado.
Esse é um perigo que os cientistas, sobretudo da área de ciências
humanas, sempre enfrentam, quando estão realizando seus projetos de
pesquisa. Pessoas que investigam a linguagem, ou outra coisa qualquer
através da linguagem, precisam ser profundos conhecedores de como a
linguagem é, o que, mesmo para um lingüista experiente, ainda não é uma
tarefa fácil e simples. Um exemplo antológico é a maneira como algumas
pessoas chegaram à conclusão a respeito do chamado ”realismo nominal”. Por
exemplo, se se perguntar a uma criança não alfabetizada: ”que palavra é
maior, BOI ou FORMIGA?”, ela dirá que é BOI. A razão pela qual ela diz BOI e
não FORMIGA, segundo alguns, é porque a criança, nesse momento, só sabe
pensar a linguagem com relação ao mundo material, isto é, só sabe fazer um
uso concreto (sic!) da linguagem; não consegue abstrair. Daí vem a expressão
”realismo nominal”. Ora, esse tipo de pergunta é, pelo menos, estranho para os
fins que se deseja investigar, porque toda palavra não tem apenas sons (ou,
pior ainda, letras), mas significados, que estão indissoluvelmente associados
aos sons. Portanto, uma ”palavra” enquanto tal, pode ser tomada pelo
significante (sons) ou pelo significado. A criança tinha duas opções e escolheu
a interpretação semântica, dizendo BOI, uma vez que no uso comum da
linguagem, guiamo-nos, de maneira mais consciente pela semântica e não pela
fonética. Se a pergunta feita à criança fosse, por exemplo: ”quando você fala,
você mexe mais a boca, quando fala a palavra BOI, ou quando fala a palavra
FORMIGA?”, a criança iria responder indicando a palavra FORMIGA e não,
BOI. O tipo de pergunta induz a um tipo especial de resposta.
Além disto, é curioso que as pessoas que procuram saber se as crianças
sabem ”abstrair”, interpretem a ”palavra” como algo concreto. O que é concreto
é a pronúncia e a escrita. A palavra como tal não tem tamanho, peso, não
ocupa espaço, ou seja, é imaterial e, como um conceito - diferente de uma
imagem -, é totalmente abstrata. Por isso, mesmo quando a criança diz BOI ou
FORMIGA, será sempre uma resposta estranha, a uma pergunta sem sentido.

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VIII

Ao lidar com a linguagem é preciso, ainda, tomar cuidado com relação


aos rótulos que se atribui, na análise, a determinados fatos. Como os rótulos
são palavras e podem ser termos técnicos, com definições rigorosas, o seu uso
indevido pode levar a análise a interpretações equivocadas. Por exemplo, a
noção de sílaba é algo muito claramente definido, quer foneticamente, quer nos
sistemas de escrita (embora, fonologicamente, possa ser redefinida à
conveniência das teorias).
No entanto, é muito comum o uso desse rótulo para classificar fatos que
não se caracterizam, na verdade, como o que se define, nas ciências da
linguagem, por ”sílaba”. Um exemplo famoso é o uso equivocado da noção de
sílaba para definir regras de acentuação e de uso de hífen na língua
portuguesa (Cagliari, 1989).
Um sistema de escrita, que tem caracteres com valores silábicos, é
aquele que usa um caractere para cada exemplo de sílaba, segundo o sistema
lingüístico dessa língua, como a escrita cuneiforme, a japonesa, as escritas
indianas e tantas outras. Neste caso, o caractere representa um padrão
composto de consoantes e de vogais. Tem-se, então, caracteres diferentes ,
por exemplo, para as vogais, quando usadas isoladamente em sílabas, e para
as composições de consoantes e de vogais. As escritas indianas caracterizam-
se por padrões silábicos do tipo CV, onde V é sempre a vogal ”a”. A escrita
japonesa, por sua vez, associa consoantes com vogais diferentes, à moda das
cartilhas (Baeiou).
Uma outra maneira de se escrever consiste em representar apenas as
consoantes das palavras. As línguas semíticas antigas (egípcio, fenício,
hebraico, árabe) registravam, na escrita, apenas as consoantes,
individualmente ou em grupos (Jensen, 1970; Cagliari, 1987). Em egípcio,
representava as consoantes PR, mas podia-se escrever PR com = P e =
R. No nosso sistema, temos a letra X que pode representar duas sílabas ou
duas consoantes: TAXI = TA-KI-SI ou TA-KSI, ou o T, que pode representar um
ou dois sons, como em TIA = TI-A ou TCHI-A; em grego, a letra psi ()
representa duas consoantes, isto é, P + S.
A representação apenas de consoantes na escrita não pode ser chamada
de representação silábica, mesmo quando uma letra ocupa o lugar de uma
sílaba, se o sistema pretende, com essas letras, representar apenas as
consoantes. Nestes casos, as letras não representam padrões silábicos, mas
tão somente os elementos consonantais.
Quando, numa fase inicial, uma criança tenta escrever fazendo bolinhas
ou rabiscos, ela pode ir atribuindo um rabisco a cada palavra ou a cada sílaba
que vai pronunciando. Esse sistema de escrita que está construindo e
convencionalizando para si, nesse momento, é um sistema logográfico
(representando palavras por caracteres individuais) ou silábico (representando
sílabas por caracteres isolados). Considerar este segundo tipo de escrita como
pré-silábico é, sem dúvida, muito estranho ou equivocado. O fato de não usar
letras do nosso alfabeto não é argumento para ser ”pré-silábica”. Ela é,
simplesmente, pré-letrada (do ponto de vista do nosso sistema de escrita).

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As crianças, quando estão aprendendo a relacionar letras com sons da


fala, usam, entre outras estratégias, a enunciação da fala por sílabas, dizendo,
por exemplo, CA-VA-LO. Ao fazerem isso, podem prolongar a vogal - CAAA-
VAAA-LOOO -, o que mostra a vogal como sendo a parte mais saliente da
prolação. Se elas acharem que basta uma letra para cada unidade da fala
(sílaba), neste caso, escolhendo o elemento fonético mais saliente, poderão
escrever AAO para ”cavalo”. Mas, se por outro lado, em vez de darem ouvidos
à sonoridade das sílabas, resolverem observar os movimentos articulatórios
que fazem ao silabar, irão colocar em destaque o início das sílabas - dizendo
CA-CA-CA, VA-VA-VA, LO-LO-LO - e, ao registrarem a escrita da palavra,
poderão tentar escrever ”cavalo” com CVL.
É curioso observar que essas crianças já conhecem algumas relações
entre letras e sons. Sabem que A = A, O = O, V = V, etc., mas optam por
representar, na escrita, apenas aquilo que lhes parece mais saliente do ponto
de vista auditivo (vogais) ou articulatório (consoantes).
Ao transferirem essas observações fonéticas para a escrita, as crianças
têm duas opções: ou escrevem ”cavalo” só com as vogais AAO, ou só com as
consoantes CVL, porque acham que basta escrever uma letra para cada
sílaba. Porém, ficam confusas ao ler, se escreverem ”sapato” com AAO e,
compararem com o AAO de ”cavalo”. às vezes, chegam à conclusão de que se
trata de um caso de ambigüidade na escrita, lendo ora CAVALO, ora SAPATO.
às vezes, optam pela escrita das consoantes, achando melhor esse sistema:
CVL e SPT.
Algumas crianças escrevem, ainda, BBLT para ”borboleta” e PSC para
”pescar” (dito ”pescá”), ou ainda, AUAI para ”saudade”, AAI para ”rapaz” (dito
”rapais”). Estes exemplos mostram que nem sempre procuram atribuir uma
letra a uma sílaba, mas que observam os elementos vocálicos e consonantais
da fala e escrevem representando essas saliências fonéticas que, às vezes,
correspondem às sílabas e, às vezes, não. Curiosamente, a observação do que
escrevem, leva as crianças a refazerem a sua fala normal, ao lerem, atribuindo
uma letra a cada sílaba, dizendo: RA-PA-IS, ou confundindo-se todas, lendo,
PE-SE-CA ou PE-SA-CA, em vez de PES-CA. Ao lerem a palavra ”cavalo”,
elas não têm problemas, guiando-se pelas vogais ou pelas consoantes que
escreveram, mas ao lerem ”pescar”, atribuem uma sílaba a cada consoante ou
acabam a leitura verificando que sobrou uma letra.
Isso tudo mostra que, na verdade, são as maneiras como as crianças
analisam as saliências fonéticas que as levam a escrever do jeito que fazem,
só com vogais ou só com consoantes, e não a simples atribuição de uma letra
a uma sílaba. Depois de ter escrito, quando a criança é solicitada a explicar o
que fez, nesse momento, procura uma explicação (para responder) e acaba
revelando que escreve realacionando uma letra para cada sílaba, porque, na
verdade, não tem condições discursivas para explicar ao seu interlocutor o que
realmente fez (baseando-se nas saliências auditivas e articulatórias). Note-se
também que elas têm estratégias diferentes para escrever e para ler.

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IX

A escrita alfabética - a que representa os sons das sílabas através de


consoantes e vogais - existe apenas como ponto de partida dos nossos
sistemas de escrita e não como ponto de chegada. A simples escrita alfabética
não passa de uma transcrição fonética. O nosso sistema de escrita, mais do
que alfabético, é ortográfico. Se as pessoas escrevessem simplesmente
alfabeticamente, uma mesma palavra seria escrita de maneiras diferentes, por
falantes de dialetos diferentes numa mesma língua, ou por um mesmo falante,
em circunstâncias diferentes, quando, ao observar a sua fala, percebe que fala
palavras de maneiras diferentes. Por exemplo, ao escrever a palavra ”pote”,
poderia escrever POTE ou POTI ou, talvez, até POTH. Um outro falante
poderia escrever POTCHI, porque é assim que se diz no seu dialeto. Uma
palavra como ”dentro” poderia ser escrita DENTRO, DENTRO, DENTRU e,
talvez, até DRENTO.
A representação de consoantes e vogais serve apenas para se observar a
fala e ter-se uma orientação inicial para escrever uma palavra. Depois, é
preciso conhecer qual é a ortografia da palavra e representá-la da maneira
estabelecida. Da mesma maneira, quem escreve ideograficamente, como
ponto de partida, baseia-se nas idéias para escolher os caracteres apropriados,
mas sua decisão final será sempre ortográfica, isto é, deverá saber quais,
dentre os caracteres possíveis, deve utilizar para atender as convenções
estabelecidas pelo seu sistema de escrita. Isto para evitar que cada usuário
escreva à sua moda, o que é proibido em todos os sistemas de escrita.
Portanto, o princípio alfabético da escrita que temos não garante uma
escrita correta. Quando nós - usuários assíduos da escrita - escrevemos,
guiamo-nos não pela natureza alfabética das letras, mas pelo princípio
ortográfico. É por isso que podemos escrever cursivamente, rabiscando letras
incompreensíveis, com formas gráficas que não têm nada a ver com o que
deveriam ser, mas, nem por isso, o que escrevemos torna-se incompreensível
para nós leitores, porque conseguimos reconhecer, naquelas garatujas de
escrita, uma palavra e sabemos, por consegüinte, quais as letras com que deve
ser escrita e, finalmente, lemos e não nos assustamos com o nosso modo de
escrever. Se dependêssemos da escrita alfabética, seria impossível ler nessas
circunstâncias, muitas vezes.
Além dessas maneiras de interpretação da escrita pela criança (e pelo
adulto) (Ferreiro, 1979), há outros fatos igualmente importantes e atuantes na
construção dos conhecimentos da escrita e da leitura pelas crianças (Cagliari,
1989).

A sociedade forma a sua cultura e as pessoas, mesmo indiretamente,


compartilham, através da cultura, conhecimentos típicos da escola e de
métodos de ensino, mesmo que nunca tenham estado numa sala de aula. Um
falante de inglês, por exemplo, é levado a dizer as letras de uma palavra

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(spelling), quando quer esclarecer seu interlocutor que não o entendeu ou não
sabe escrever o seu nome. Um falante de português, por outro lado, é levado a
dizer a palavra silabando-a. Falantes não alfabetizados são levados, em geral,
a repetir a palavra como um todo, confiando na semântica e não na fonética.
As pessoas ouvem um indivíduo, querendo saber como se escreve uma
palavra, perguntar: ”‘cachorro’ se escreve com X? ‘úmido’ se escreve com H?”
ou, se estiver em fase de alfabetização: ”‘cachorro’ se escreve com CA de
‘caneca’? ‘hoje’ se escreve com O de ‘homem’?”, etc. Isto não ocorre só na
escola; ocorre também em casa, no trabalho, enfim, onde se precisa escrever.
O modelo da escola fica na vida. Esses modos de se referir ao sistema de
escrita, impregnados na cultura, revelam métodos de alfabetização e processos
de uso do conhecimento sobre a escrita e a leitura que as pessoas usam na
sociedade. A maioria das crianças, quando entram na escola para se
alfabetizarem, já tomaram contato com este tipo de comportamento alguma vez
em sua vida e, não raramente, esperam que a escola faça exatamente isso
(mais do que as crianças, seus pais têm essa expectativa e tudo que é
diferente, parece inadequado).

XI

Apesar da sílaba ser uma unidade fonética muito evidente e saliente para
qualquer falante, a linguagem não é só sons; é também significados. Por isso,
algumas crianças, além de aprenderem que se escreve com letras e que as
letras representam consoantes (articulações) e vogais (sonoridades), escrevem
apresentando problemas de segmentação. Aqui também, será a ortografia
quem irá dar a palavra final. A complexidade e a riqueza deste assunto, como
tópico de pesquisa, pode ser visto em trabalhos de Abaurre (1989a, 1989b).

XII

O sistema ortográfico neutraliza a variação lingüística na escrita, mas, em


compensação, cria relações complicadas entre letras e sons, tornando a escrita
alfabética um referencial muito ruim para o ensino na alfabetização. Porque as
relações entre letras e sons, com a ortografia, estendem-se a todos os
diferentes modos de falar a língua, quando as crianças vão escrever uma
palavra e ainda não sabem sua ortografia, elas procuram, num primeiro
momento, escrever como elas acham que as palavras podem ser escritas
(Teberosky, 1989). Ao fazerem isto, elas revelam seus conhecimentos e
hipóteses sobre o sitema de escrita. Por exemplo, o aluno escreve DICI
porque, com essas letras, pode-se ler DISSE, o que não aconteceria se, em
vez do que fez, tivesse escrito APLO. Neste último caso, o aluno sabe que se
deve escrever com letras, mas não sabe ainda que as letras representam sons
determinados, razão pela qual não deve usar qualquer letra para escrever
qualquer palavra. A leitura cria e guia a escrita, estabelece os seus limites de
uso e constitui a alma dos sistemas de escrita. Para um estudo mais detalhado
deste assunto, veja Abaurre (1985) e Cagliari (1989).

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Uma outra perspectiva apoiada no caráter alfabético das letras e que leva
alguns alunos a escreverem errado é a observação da própria fala, quando a
fala apresenta formas lexicais diferentes daquelas contempladas pela
ortografia. Isto se deve, basicamente, à variação lingüística, ou seja, ao modo
como se dizem as palavras em diferentes dialetos. É o caso do aluno que fala
DRENTU, PRANTA, PATIO, PSICRETA e tem que escrever ”dentro”, ”planta”,
”patinho”, ”bicicleta” e assim por diante. O mesmo se aplica a questões de
concordância: ele diz: OZOMI TRABAIA, UZLIVRU, NOIZ VAI... e tem que
escrever: ”os homens trabalham”, ”os livros”, ”nós vamos”.

XIII

Os alunos aprendem os nomes das letras e sabem que, no nosso sistema


de escrita, existe, de certo modo, um princípio acrofônico: o nome das letras
serve de guia para mostrar que sons elas representam. Pro exemplo, dizemos:
”a, é, i, ó, u” (no alfabeto, porém, dizemos ”ê” e ”ô”). A letra C tem o nome ”cê”
e representa o som ”sss”; a letra F tem o nome ”efe” e, tirando as vogais, fica
com o som de ”fff”, e assim por diante. Só a letra H e o W não servem para isto.
Com estas idéias, um aluno pode tentar escrever a palavra ”hélice” com LC; ou
HTO, para ”gato”; ou CAMLO, para ”camelo”; e assim por diante.

XIV

Uma evidência de um outro procedimento usado pelas crianças para lidar


com o sistema de escrita, encontra-se, mais freqüentemente, na leitura. É o
caso dos alunos que foram alfabetizados pelo método do BABEBIBOBU das
cartilhas (palavras-chave, família de sílabas, sílaba geradora) e, quando vão
ler, dizem, em voz alta, não apenas a palavra como deveria ser lida, mas os
procedimentos de decifração que usam, quase como que querendo explicar
como lêem juntamente com a própria leitura. Assim, o aluno vai ler a palavra
”lata” e diz: LE-A-LA, TE-A-TA, LA-TA. Provavelmente faz o mesmo quando
escreve, o que pode ser mais um tipo de explicação para o fato de que
algumas crianças escrevem, em ditados, LT para ”lata”, uma vez que o L deve
ser entendido como La-Le-Li-Lo-Lu e o T como Ta-Te-Ti-To-Tu. Alguns alunos,
no início, chegam mesmo a escrever coisas como: ”lata te ti to tu” ou ”casa se
zi zo zu”.
A expressão popular ”duvideodó” exemplifica um processo de decifração
de leitura típico de quem estudou pelo método do BABEBIBOBU. É curioso
como esta expressão fonética, associada ao verbo ”duvidar”, serve para
mostrar, ao interlocutor, a certeza daquilo que se diz, imitando a certeza de
como se lê na escola, para a professora avaliar.

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

XV

Quando uma criança começa a ler, nåo apenas estudando o valor


fonético das letras, mas em busca de um texto, mesmo que seja curto, do
tamanho de uma frase, às vezes, acrescenta ou elimina palavras escritas. Ela
pode eliminar palavras quando não sabe o que está escrito, ou quando não
sabe o que elas significam e não consegue extrair a informação necessária do
contexto, como, aliás, fazemos nós, usuários habituais da leitura. Quando
lemos, precisamos interpretar algo pensado e formulado lingüisticamente por
outrem. Porém, para ler e entender, devemos reprocessar estas informações,
como se fôssemos dizer isso espontaneamente (Cagliari, 1988). Ao nos
apropriarmos do texto, na leitura, após a decifração, normalmente
acrescentamos nossa opinião, nossa meditação, nossos devaneios e, às
vezes, até modificamos o literal do texto. Isto tudo ocorre na nossa mente, mas
não podemos externar esses sentimentos, pois a leitura pública nos obriga a
sermos fiéis ao que o texto escrito tem de literal. Essa convenção social é
desconhecida por algumas crianças, quando começam a ler. Por isso, diante
de um texto como: ”Maria comeu bolo na festa da prima”, uma criança pode ler
à moda das histórias que ouve e dizer: ”Era uma vez ,uma menina, que se
chamava Maria, que foi na festa e comeu o bolo da prima”. Esse tipo de leitura
mostra um excelente leitor porque, além de saber decifrar o que está escrito, lê
com emoções, apropriando-se do texto e fazendo-o seu. É assim, certamente,
que lemos, em silêncio, poesias e romances e, até, notícias nos jornais. Alguns
não são capazes de ler, sem interromper de vez em quando para dar seus
palpites. Na escola, porém, a leitura não é para ser feita assim, pelo menos, a
leitura pública, em voz alta.
às vezes, quando se pede para a criança explicar o que ela leu,
mostrando as palavras, ela pode ficar confusa, uma vez que a ”sua leitura” não
bate com o ”literal” do texto. É curioso observar que, nestas ocasiões,
freqüentemente, a criança procura, no texto, a palavra que corresponde ao foco
do enunciado, segundo sua interpretação. Aí, ela mostra uma palavra qualquer
e diz que é ”bolo” (no caso do texto acima). O conceito de leitura literal aplica-
se para ela às relações entre letras e sons e serve, apenas, para palavras
isoladas. A leitura de um texto apresenta outras estratégias discursivas que
podem levar o observador desinformado a concluir que a criança não sabe ler,
ou que só lê verbos ou substantivos, ou que só identifica sujeito e predicado.
A leitura mencionada acima é diferente daquela que a criança faz
inventando tudo de sua cabeça, quando ainda não aprendeu a decifrar a
escrita, dizendo qualquer coisa para qualquer texto, simplesmente para
responder a uma pergunta ou para fazer uma atividade pedida pela professora.
Ainda a respeito de leitura e leitores, gostaria de fazer uma observação
com relação à chamada ”leitura incidental”, ou seja, aquela leitura que uma
pessoa analfabeta faz de algo escrito com letras, reconhecendo uma escrita
”estereotipada”, representando, por exemplo, a marca de um produto. Essa
pessoa não sabe as relações entre letras e sons e, por isso, não generaliza seu
processo de decifração, segundo nosso sistema de escrita, estendendo-o a
outras palavras. A leitura incidental, porém, é um bom ponto de partida. Ela se
processa como se a escrita não fosse de base fonográfica, mas ideográfica

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

(como os pictogramas e os números, por exemplo) A pessoa lê como se a


palavra fosse um ideograma. Ela sabe que aquilo é um ”desenho” que é uma
escrita e não, um simples desenho que representa, figurativamente, coisas do
mundo. Uma pessoa poderia aprender a ler e a escrever todas as palavras
desse modo. Na alfabetização, alguns alunos até começam desse modo. A sua
dificuldade em prosseguir, aprendendo desse modo, é a enorme quantidade de
ideogramas que teriam que aprender. Esse procedimento é encontrado, não
raramente, em alunos que são alfabetizados segundo o método do
BABEBIBOBU das cartilhas. Eles vão conseguindo desempenhar as tarefas
escolares até certo ponto, lendo e escrevendo as palavras já dominadas, como
se fossem ideogramas. Até o momento em que se deparam com palavras não
estudadas e revelam, então, que não sabem ler como deviam e,
conseqüentemente, não sabem escrever.
É curioso notar que, depois que uma pessoa se torna profunda
conhecedora do sistema de escrita que temos e exímia leitora, ela irá escrever
e ler as palavras como se fossem, de fato, ideogramas, não se preocupando
tanto com o caráter fonográfico do nosso sistema de escrita.

XVI

O exposto acima mostra como uma criança pode trilhar muitos e


diferentes caminhos para aprender a ler e escrever. Há muitos procedimentos
que ela pode seguir para obter os resultados esperados pela escola. Ver,
nessas hipóteses, etapas necessárias e pré-determinadas que conduzem,
naturalmente, a criança a construir seus conhecimentos sobre a escrita e a
leitura é uma temeridade. O conhecimento se constrói com a somatória das
informações que se interiorizam e das relações que se estabelecem entre elas
na mente dos indivíduos. Uma pessoa que começa pela leitura incidental, por
exemplo, já opera com um sistema de escrita muito sofisticado e, às vezes,
mais ainda do que aquele que apenas relaciona letras e sons, seguindo o
sistema alfabético. Como pode estar numa fase pré-silábica, silábica ou
alfabética, uma criança que começa a aprender a ler pelos números? Quando
escrevemos 7 ou 8, como relacionamos letras e sons? Os números só são
aprendidos da maneira como se faz ”leitura incidental”, considerando-se cada
algarismo como um ideograma e o número, como um outro ideograma, como 2
e 5 (dois e cinco) e 25 (vinte e cinco). Um sistema de escrita do tipo egípcio
jamais permitiria que as pessoas fossem alfabéticas (no sentido de colocar
vogais e consoantes nas palavras). E uma vez adquirido o sistema pleno de
escrita, persistiria ainda o uso ”pré-silábico” para o usuário. Na verdade, o uso
dos determinativos semânticos de sistemas de escrita, como o egípcio, parece-
me uma grande sofisticação do sistema de escrita, para facilitar a leitura e
tornar a escrita mais atraente, e não um estágio primitivo, de uma fase precária
da construção do conhecimento desses sistemas de escrita. O próprio sistema
semítico, sem a representação das vogais, como poderia levar as crianças a

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

uma etapa alfabética, como querem algumas pessoas que seguem os


trabalhos de Emília Ferreiro?3
Não só cada sistema de escrita tem suas especificidades, como também
cada aprendiz tem sua maneira de aprender, seguindo suas próprias
especificidades. Voltamos, assim, à discussão anterior à respeito do ensino e
da aprendizagem. As crianças precisam de seu espaço próprio e de condições
favoráveis para poderem construir seus conhecimentos na escola; mas
precisam também que o professor as ajude, quando necessário, explicando a
elas o que elas já sabem, o que fizeram e porque fizeram, nas suas tentativas
de aprendizagem, e o que precisam fazer e como, para dar um passo à frente e
progredir, sobretudo se elas, por iniciativa própria, não descobrem o que
devem fazer para progredir4.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Abaurre, M. B. & L. C. Cagliari (1985) Textos espontâneos na 1ª série:


Evidência da utilização, pela criança, de sua percepção fonética da fala
para representar e segmentar a escrita. Cadernos CEDES, 14: 25-29.
SP: Cortez Ed.

Abaurre, M. B. (1989a) Oral and written texts: Beyond the descriptive illusion of
similarities and differences. Mimeo, inédito.

Abaurre, M. B. (1989b) Hipóteses iniciais de escrita: evidências da percepção,


por pré-escolares, de unidades ritmico-entoacionais da fala. Anais do IV
Encontro Nacional da ANPOLL, a sair.

Cagliari, L. C. (1986) A ortografia na escola e na vida. In Isto se Aprende com


o Ciclo Básico, Projeto Ipê, Curso II: 97-108. SP: CENP-SE-SP.

3 A própria autora tem dito e enfatizado que seu trabalho não resulta num método de
alfabetização. Mas, como ela o chama de ”psicogênese da leitura e da escrita” e trabalha
numa linha piagetiana construtivista, fica muito fácil para seu leitor concluir que, se aquilo
que ela diz é a maneira natural como as crianças adquirem o conhecimento da leitura e da
escrita, seguindo as várias etapas e estágios mostrados pelas suas conclusões de
pesquisa, então, esse é o caminho que a escola deve seguir. De fato, apesar dos protestos
da autora, muitos professores alfabetizadores viram, no trabalho de Emília Ferreiro, não
apenas uma pesquisa acadêmica, mas uma proposta metodológica de alfabetização e
relutam muito, ou mesmo ficam muito frustrados, quando ouvem que ”devem seguir Emília
Ferreiro”, mas ”sem o seu método, porque ele não existe”.
4 O construtivismo piagetiano não é a única teoria psicológica a querer explicar a gênese do
conhecimento. Há outras teorias psicológicas (filosóficas e lingüísticas), com propostas
muito diferentes. O trabalho de Emília Ferreiro, seguindo o construtivismo piagetiano, é uma
hipótese que tenta interpretar os dados colhidos e observados, de determinado modo,
procurando aplicar à realidade assim configurada uma das várias teorias psicológicas sobre
o conhecimento. O construtivismo tem se mostrado uma boa teoria em muitos casos e,
desde Piaget, tem evoluído, enfatizando, mais recentemente, o lado social e interacionista,
onde o conhecimento é algo compartilhado já na sua construção e não se reduz apenas a
uma tarefa solitária do indivíduo.

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Alfabetização e Letramento: Perspectivas Lingüísticas

Cagliari, L. C. (1987) Introdução aos Estudos dos Sistemas de Escrita:


História, natureza e usos da escrita. A sair.

Cagliari, L. C. (1988) A leitura nas séries iniciais. Leitura: Teoria & Prática, 12:
4-11, ano 7, dezembro. P. Alegre: ALB.

Cagliari, L. C. (1989) Alfabetização e Lingüística. SP: Ed. Scipione.

Doblhofer, E. (1962) A Maravilhosa História das Línguas: Decifração dos


símbolos e das línguas extintas. SP: IBRASA.

Ferreiro, E. & A. Teberosky (1979) Los Sistemas de Escritura en el


Desarollo del Niño. México: Siglo XXI.

Jensen, H. (1970) Sign, Symbol and Script. London: George Allen & Unwin
Ltd.

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