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Brasil: arquipélagos econômicos

COLEÇÃO DANA MERRILL - MUSEU PAULISTA DA


A economia brasileira foi organizada com ênfase na produção

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, SÃO PAULO


de determinadas mercadorias em regiões e tempos distintos. Isso
originou uma organização territorial fragmentada, comparável à
forma de arquipélagos, com pouca articulação entre as diversas
áreas produtoras.
A organização da produção atendia mais aos interesses externos
do que às necessidades internas do mercado consumidor. Desse
modo, quando aumentou a demanda pela cana-de-açúcar no sécu-
lo XVII, foram adotadas formas de ampliar a exploração agrícola e
Inspeção da ferrovia Madeira-
-Mamoré, construída entre exportar o açúcar. Mais tarde, no fim do século XVII, o ouro passou a constituir o principal
1907 e 1912. Foto de 1910. produto das exportações nacionais. Posteriormente, em razão da Guerra de Secessão
Com mais de 360 quilômetros nos Estados Unidos, ocorrida entre 1861 e 1865, houve falta de algodão no mercado
de extensão, ligou os municípios
rondonienses de Porto Velho externo, e os latifundiários brasileiros passaram a produzir essa mercadoria.
e Guajará-Mirim durante o Na passagem do século XIX para o XX, a extração de látex para a produção da bor-
auge da extração de borracha
racha alcançou rapidamente um grande volume de produção na Região Amazônica
na Amazônia. A ferrovia foi
projetada para escoar a produção e atendia à demanda externa gerada pela crescente indústria automobilística nos
do Brasil e da Bolívia, e sua Estados Unidos e na Europa.

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


construção estava prevista como
parte do acordo estabelecido O predomínio da produção de determinado artigo entre o século XVII e o início do
no Tratado de Petrópolis. XX não significou, entretanto, total queda da produção de outros. Apesar de a cana ter
deixado a liderança das exportações e o ouro ter assumido esse lugar, o Brasil conti-
nuou a exportar cana-de-açúcar. Posteriormente, com o declínio da mineração, o café
passou a ser o principal produto de exportação; porém, os produtores do país conti-
nuaram a comercializar no mercado externo a cana e o ouro.
As áreas produtoras estavam sob a organização político-administrativa do Estado
brasileiro, mas a articulação entre elas era frágil em razão de a produção ser priorita-
riamente voltada à exportação. Esse quadro de relativo isolamento interno entre as
áreas produtoras se associava a fatores como a reduzida infraestrutura de estradas
interligando o extenso território nacional,
BRASIL: ECONOMIA E TERRITÓRIO – SÉCULO XIX certa especialização econômica regional e
CATHERINE ABUD SCOTTON

interesses das elites regionais.


Observe, no mapa ao lado, a representa-
OCEANO
ATLÂNTICO ção da distribuição das atividades econômi-
EQUADOR
0° cas no país no século XIX.
Belém
Manaus São Luís
Fortaleza Com as fronteiras terrestres consolida-
das, no início do século XX, e tendo dimen-
Natal sões continentais, o território do país con-
Paraíba
Recife tinuou apresentando ocupação irregular.
Maceió A presença de maior concentração demo-
Aracaju
gráfica nas proximidades do litoral indica a
Salvador
marca da dependência externa, um legado
Café Cuiabá do passado colonial.
Mate Goiás
Cacau Ouro Esse contexto somente começou a mu-
Fumo Preto
Vitória dar com a expansão e, principalmente, com
Algodão
Ouro e diamantes São Paulo Rio de Janeiro a crise da cafeicultura, a partir da década
TRÓPICO D
Drogas do sertão
Curitiba Santos
E CAPRICÓ
RNIO de 1930, quando aumentaram os investi-
e borracha
Cana-de-açúcar
mentos na interligação e na articulação das
Pecuária Florianópolis regiões brasileiras.
Ferrovia
Limite internacional Porto Alegre
atual Fonte: THÉRY, H.; MELLO-THÉRY, N. Atlas do
Cidades e vilas 460 km Brasil: disparidades e dinâmicas do território.
50° O 3. ed. São Paulo: Edusp, 2018. p. 55.

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Litoral versus sertões: desigualdades territoriais

© POTY LAZZAROTTO
Uma dimensão importante do território brasileiro debatida no
período da Primeira República dizia respeito aos processos de moder-
nização e às áreas consideradas atrasadas, caracterizando certa oposi-
ção entre o litoral (sinônimo do “moderno”) e os “sertões” (sinônimos
de “atraso”).
As áreas “modernas”, localizadas no litoral, eram as de ocupação mais
antiga, nas quais se localizavam cidades econômica e politicamente im-
portantes, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Nessas áreas, em que a
produção econômica era mais avançada, podiam ser encontradas escolas,
faculdades, hospitais, energia elétrica, telégrafo, teatros etc., e o modo
de vida da elite era parecido com o estabelecido em cidades europeias
e dos Estados Unidos.
Em vastas porções do interior do Brasil (nos “sertões”), porém,
a vida era bem mais difícil, com poucas escolas, quase nenhum hos-
pital, menos circulação de moeda e produção econômica atrelada ao
modo de vida rural. O governo e a elite da época consideravam essas
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áreas atrasadas e divulgavam a ideia de que deveriam ser estendidos a


elas os ideais de “civilização” do litoral. Todavia, em razão da dinâmica
da produção do país, concentrada no campo e voltada à exportação,
o desejo de modernização estava, de fato, longe da realidade da
população brasileira, metade da qual, até meados da década de 1960,
vivia na zona rural.

O povo no projeto nacional


Se na construção do projeto nacional, o Estado brasileiro considerava
o território e a natureza seus recursos fundamentais, qual seria o lugar
ocupado pelo povo?
Essa questão foi considerada um grande problema para a elite brasi-
leira entre o final do século XIX e o início do século XX, principalmente
porque a população era constituída majoritariamente por negros e
mestiços. Para muitos intelectuais daquela época, influenciados por Trecho do mapa pictórico de Poty, impresso
ideias racistas, abordadas no Capítulo 4, isso dificultava o alcance da nas orelhas da edição de 1958 do romance
modernidade. Para outros, era uma característica positiva, uma vez que, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa,
integrante da terceira geração de escritores
por meio da miscigenação, o brasileiro adquiriria as melhores caracte- do Modernismo brasileiro. Na obra, os vastos
rísticas de cada povo. sertões do país ultrapassam limites históricos e
geográficos, ganhando forte expressão literária
Diante dessa discussão, para não definir se a miscigenação era po- e contextualizando histórias do universo
sitiva ou negativa, foram privilegiados aspectos territoriais e naturais sertanejo e sua rica linguagem.
na constituição do que seria a “identidade nacional”, ou seja, optou-se
por construir o “orgulho de ser brasileiro” com base nos atributos da
imensidão territorial e na exuberância da natureza. Essas características
estão presentes até hoje na música, nas pinturas e nos ditos populares
do Brasil.

Reflita
Conexão com Linguagens
Escritores, pintores e compositores procuraram representar a identidade (EM13LGG604)
nacional por meio de diversas produções artísticas. Qual é o papel da arte
na construção do imaginário sobre um território e seu povo? Converse sobre
isso com os colegas.

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Dica de livro 3. Modernização e integração econômica
A marcha para o oeste: nacional: anos 1930 a 1980
a epopeia da Expedição
Roncador-Xingu No período da Primeira República, ocorria o revezamento da presidência do
Orlando Villas Bôas Brasil entre as oligarquias políticas de Minas Gerais e de São Paulo. Essa articulação
e Cláudio Villas Bôas. perdurou até o final da década de 1920. Por meio da Revolução de 1930, entretanto,
São Paulo: Companhia Getúlio Vargas chegou ao poder e realizou uma ampla reforma do Estado – com forte
das Letras, 2012.
centralização do poder político –, transformando a administração pública e a organi-
A obra é baseada no diário
dos irmãos Villas Bôas e con- zação institucional do país. Além disso, ele estabeleceu políticas de desenvolvimento
tém, além dos relatos da via- de abrangência nacional, estimulando a industrialização e a ocupação dos “sertões”,
gem e do contato com os com a Marcha para o Oeste.
indígenas, análises históricas
e antropológicas da identi- Desse modo, o governo de Getúlio Vargas promoveu mudanças na articulação do
dade e da formação do Brasil território brasileiro por meio de investimentos em energia e infraestrutura de transporte,
contemporâneo. possibilitando a interiorização e a modernização das atividades econômicas, tanto na
indústria quanto na agropecuária.

Indigenista: indivíduo que atua na


proteção e na valorização das po- A Marcha para o Oeste
pulações indígenas. O indigenismo
guarda relação com o sertanismo, A Marcha para o Oeste foi um programa de colonização e ocupação de fronteiras

Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.


prática de penetrar os sertões com instituído em 1940. A criação do programa foi motivada por diversos interesses estatais,
o objetivo de encontrar riquezas.
incluindo questões geopolíticas de segurança nacional no contexto da Segunda Guerra
Mundial, estudada no Capítulo 4. Vários órgãos e agências estatais foram instituídos
para esse fim, ampliando o controle político-administrativo do território. Já em 1938,
por exemplo, foram fundados a Divisão de Terras e Colonização e o Conselho de Imi-
Explore gração e Colonização.
Que estratégias e recur- As noções de “Brasil Central” e “Oeste” da época continham certa imprecisão geo-
sos visuais foram uti- gráfica e abarcavam uma vasta área que começava no Triângulo Mineiro e se estendia
lizados no cartaz para pelo Planalto Central.
representar os processos A expedição Roncador-Xingu, marco nesse processo de interiorização, foi orga-
de colonização, integra-
nizada em 1943 para reconhecer as terras ocupadas pelos povos indígenas na bacia
ção e modernização do
território promovidos
do Rio Xingu, na Região Amazônica. Participaram dela diversos profissionais, como
pelo governo Vargas? militares, médicos e exploradores indigenistas, que abriram rotas, bases e núcleos
de povoamento.
A Fundação Brasil Central foi
REPRODUÇÃO - COLEÇÃO PARTICULAR

o órgão responsável por essa em-


preitada e por documentos, relatos
e conhecimentos gerados sobre os
povos indígenas. O ativismo político
indigenista dos irmãos Villas-Bôas,
que alcançaram a liderança de
outras expedições nas décadas se-
guintes, foi decisivo para a criação
do Parque Indígena do Xingu, em
1961, o que garantiu a demarcação
de terras indígenas a várias etnias
na porção nordeste do Mato Grosso.
Na década de 1970, durante o
período da ditadura, os governos
retomaram o projeto de integrar
as áreas de baixo adensamento
populacional do país às dinâmicas
Cartaz do programa Marcha para o Oeste, lançado em 1940. econômicas nacionais.

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Brasília: mudança de eixo político
e busca pela articulação territorial
A fim de estimular a Marcha para o Oeste, iniciada na Era Var-
gas, a capital federal foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília,
em 1960, no fim do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961).
Esse é considerado o mais importante movimento de incorporação
das regiões interiores feito pelo Estado brasileiro.
A história do Distrito Federal, a menor das unidades federativas,
é facilmente confundida com a construção de Brasília, atribuída ao

ESTADÃO CONTEÚDO
governo de Juscelino Kubitschek, mas a ideia remonta ao início do
século XIX, quando José Bonifácio, cientista e político, conhecido
como patriarca da independência, propôs a transferência da capital
para o interior do território por uma questão de segurança nacional,
sugerindo nomeá-la Brasília. Presidente Juscelino Kubitschek
durante desfile da Caravana de
Mais tarde, em 1892, a área onde seria estabelecido o Distrito Federal foi delimi- Integração Nacional em Brasília,
tada em forma de quadrilátero por vários pesquisadores que integraram a expedição Distrito Federal. Foto de 1960.
científica conhecida como Missão Cruls, organizada para determinar o centro geo-
Reprodução proibida. Art.184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

gráfico do país.
Dica de filme
Brasília pode ser considerada um caso exemplar de cidade artificialmente cons-
Os anos JK: uma
truída pela decisão de um Estado. Seu projeto urbanístico, elaborado por Lúcio Costa, trajetória política
que organizou o espaço da cidade em setores de atividade, e os edifícios oficiais, Direção: Silvio Tendler.
a maioria dos quais projetada por Oscar Niemeyer, simbolizam a marca da modernidade País: Brasil.
que se buscava para o país em meados do século XX. Ano: 1980.
Duração: 110 min.
O deslocamento do Distrito Federal para o centro do país, a partir de 1960, foi via- O documentário retrata a tra-
bilizado pela expansão da malha rodoviária e aérea do país, que deveria integrar com jetória política de Juscelino
rapidez a nova capital aos grandes centros urbanos, ampliando a difusão da industria- Kubitschek, fornecendo
um panorama das ações de
lização e da urbanização – o que também afetou a reordenação dos fluxos migratórios
modernização do país pro-
internos. Destacou-se, na época, a construção das rodovias que ligam Brasília a Belém, movidas em seu governo.
Porto Alegre, Fortaleza e Belo Horizonte.
Com o Distrito Federal localizado no Centro-Oeste, o poder político federal distan-
ciou-se da elite dos centros políticos e econômicos regionais e afastou o poder federal
Vista do Plano Piloto de Brasília,
das áreas com maior concentração de população, afetando a participação do povo no tombado pela Organização das
processo político. O espaço de poder se distanciou das manifestações populares, mas, Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (Unesco)
em uma sociedade democrática, há várias possibilidades de ação política, que pode ser em 1987 como patrimônio
viabilizada também pelos modernos recursos de comunicação. cultural da humanidade.
Imagem de satélite de 2019.
© GOOGLE EARTH IMAGES

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