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A CLÍNICA PSICANALÍTICA A PARTIR DE MELANIE

KLEIN. O QUE ISTO PODE SIGNIFICAR?1

Luís Claudio Figueiredo*

RESUMO

No presente trabalho procura-se identificar alguns aspectos do legado kleiniano


para a clínica psicanalítica contemporânea. Parte-se da hipótese de que a era das
escolas se encerrou, mas que algumas descobertas e elaborações de Melanie Klein
e seus seguidores passaram a se integrar ao pensamento e à prática da psicanálise,
independentemente das diferenciações e divergências internas a esta disciplina. Dois
temas merecerão um exame aprofundado: o conceito de phantasia inconsciente e a
problemática edípica. Quanto ao primeiro, vai-se enfatizar o seu caráter de imaginação
criativa, já presente no termo alemão Phantasie; quanto ao segundo, serão contempla-
das as questões relativas às relações triangulares, suas elaborações e efeitos nos
planos emocional, cognitivo e ético, bem como a questão das defesas contra a
triangulação (rejeição, recusa e recalcamento).

Palavras-chave: Clínica psicanalítica contemporânea. Phantasia inconsciente. Situ-


ação edípica e Édipo precoce.

Considerações preliminares
1
Palestra na Formação Freudiana, Rio de Encerrada a era das escolas, os psicanalis-
Janeiro, em dezembro de 2006; uma tas hoje em dia dispõem de um impressionante
parte destas idéias foi inicialmente apre-
sentada em simpósio organizado pelo conjunto de experiências clínicas e elaborações
Departamento Formação em Psicanáli- teóricas diversificadas e, de certa forma, diver-
se, no Instituto Sedes Sapientiae, São gentes. Parece ter-se realizado plenamente a
Paulo. interpretação de Michel Foucault: Freud fundou
*
Psicanalista; professor da PUC-SP e da
USP; agradeço a Pedro Henrique
um campo de diferenciações e a obra freudiana
Bernardes Rondon e a Elisa Maria Ulhoa não se limita a seus escritos, mas estende-se às
Cintra pelas revisões e correções; agra- inúmeras decorrências destes trabalhos, fecun-
deço ainda a Alfredo Naffah Neto, Ma- dando e mobilizando as práticas e teorias psicana-
rion Minerbo, Nelson Coelho Junior, líticas mais variadas. Alguns autores, no contexto
Mauro Meiches, Daniel Delouya , Ma-
ria Elena Salles de Brito e a Elias Rocha desta aparente dispersão, procurarão o “terreno
Barros pelas leituras, críticas e suges- comum” — os “invariáveis” — seja no plano dos
tões. conceitos, seja nos temas centrais, seja no Méto-

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do. Pensamos, ao contrário, nas vanta- râmica, o que se procurou fazer no livro
gens de respeitar este campo assim acima mencionado.
diversificado, e atravessá-lo, fazendo A realização da presente tarefa
ligações, costurando e recortando con- nos obriga a selecionar, dentre inúme-
forme as exigências do trabalho analí- ros aspectos igualmente relevantes, al-
tico em sua extraordinária singularida- guns temas especialmente determinan-
de. Para a execução desta estratégia, a tes dos rumos que a clínica psicanalíti-
posição de M. Klein, diante de Freud e ca tomou, ou pôde tomar, a partir de
de outros pós-freudianos (e não nos Melanie Klein. Escolhemos o da
referimos apenas àqueles que mais “phantasia inconsciente” e o da “situ-
obviamente lhe são devedores, como ação edípica”, o que inclui o “Édipo
Bion e Winnicott), nos parece especial. precoce”.
Não é preciso ser “kleiniano”,
até porque acreditamos ser necessário A phantasia inconsciente e o
efetivamente encerrar a era das esco- caráter da “metapsicologia
las, para reconhecer na obra de Mela- kleiniana”
nie Klein o alcance que lhe estamos
atribuindo. Não será, portanto, como O que é, que função tem, como se
porta-voz oficial de algum “kleinismo” situa e quais as vicissitudes da
que o presente trabalho está sendo es- phantasia inconsciente?
crito, mantendo-se aqui a mesma posi-
ção em que redigimos, com Elisa Maria Começaremos tentando respon-
de Ulhoa Cintra, o livro Melanie Klein: der a estas questões e para tal, além
Estilo e pensamento (Cintra e Figuei- dos trabalhos de Melanie Klein, conta-
redo, 2003). mos com o texto básico de Susan Isaacs
Na verdade, instados a falar so- (1952), bem como nos valeremos de
bre Melanie Klein, achamos de melhor alguns trabalhos mais recentes (Daniel,
alvitre tratar da clínica psicanalítica a 1992, Segal, 1964 e Spillius, 2001). O
partir de Klein. Ou seja, não se preten- trabalho de Isaacs é um modelo de
de falar sobre ou no lugar desta autora, escrita psicanalítica, de pesquisa e ela-
mas falar a partir dela, tal como suas boração de conceitos.
idéias e propostas teórico-clínicas po- Phantasias inconscientes são,
dem comparecer em uma prática ana- para início de conversa, os correlatos
lítica, independentemente de uma estri- subjetivos das pulsões. Mais precisa-
ta observância escolástica; não haverá, mente falando, são os representantes
também, a pretensão de oferecer de psíquicos das pulsões; mas são, igual-
sua obra uma visão sistemática e pano- mente, os representantes psíquicos dos

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A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. O que isto pode significar?

mecanismos do ego (não só os de defe- dá sentido e valor afetivo a tudo que se


sa, mas também os constitutivos, como faz e a tudo que nos acontece. A “cri-
a introjeção), embora não se confun- atividade original”, tal como concebida
dam com eles. Elas compõem a dimen- por Winnicott, é uma herdeira direta da
são subjetiva de todos os processos criatividade própria da phantasia in-
psicofísicos e, nesta medida, se consti- consciente 3.
tuem no conteúdo básico da vida men- A noção de “continuidade gené-
tal, do chamado mundo interno. Há tica”, tal como proposta por Susan
sempre uma camada de phantasias Isaacs no texto acima referido, nos
inconscientes operando ao longo de autoriza a afirmar que as phantasias
qualquer atividade somática e psíquica inconscientes atestam o poder imagi-
dos seres humanos. nativo do corpo (o termo é nosso) “na
Em uma definição abrangente, direção de” e “em resposta a” ambien-
diríamos que as phantasias inconsci- tes e seus objetos, bem como a transi-
entes são os representantes psíquicos ção desta produção fantasística, estrei-
de impulsos, necessidades e seus estí- tamente associada aos acontecimentos
mulos internos (como a fome), sensa- e processos somáticos, às operações
ções, sentimentos, afetos, tendências, mentais mais desenvolvidas. Por exem-
desejos, processos corporais fisiológi- plo, há uma linha contínua que vai do
cos (como os de nutrição e excreção), “agarrar” do bebê (e até mesmo do
mecanismos mentais, comportamentos, feto) até o “compreender” mais abstra-
idéias, falas e intenções. Nada do que to do cientista ou filósofo (para ambos
ocorre no corpo e na mente deixa de serve o termo inglês to grasp). Como
estar, de alguma forma, associado a veremos adiante, uma interpretação
esta atividade inconsciente e criativa percorre nos dois sentidos a via que vai
de fantasiar, uma imaginação radical, do soma à psique e da psique ao soma,
no sentido de Castoriadis (1975)2, que e isto é possível porque as phantasias

2
Para Castoriadis, a psyché é essencialmente uma capacidade de phantasiar (phantasmatization), de criar,
algo que Freud descobre e encobre. Quanto a Klein, Castoriadis tem as seguintes palavras: “Assim, mesmo
Melanie Klein, que, no entanto, concedeu às formações fantasiosas (phantasmatiques) uma importância
decisiva,... acaba fazendo das fantasias, como o assinalam J. Laplanche e J.-B. Pontalis, percepções falsas”.
(grifos nossos). De fato, nem sempre ela foi clara em suas afirmações, mas é indiscutível que até então
ninguém estivera mais próxima à noção de “imaginação radical” do que ela com seu conceito de “phantasia
inconsciente”. Vale lembrar que o termo alemão Phantasie, de onde vem o hábito de grafar em inglês
phantasy, entre os kleinianos, significa imaginação (cf. Britton, 2003).
3
Apontar esta herança não significa ignorar as diferenças. Sobre esta questão retornaremos mais adiante.
Podemos antecipar, contudo, dizendo que a noção de “imaginação radical”, contemplada na nota anterior,
guarda grande proximidade com a idéia de uma “criatividade original”, tal como concebida por Winnicott.

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inconscientes fazem a mediação e a pas- mas neuróticos, bem como em inúmeras


sagem. A dimensão “metaforizante” de outras expressões físicas, comportamen-
uma interpretação psicanalítica4 deve-se, tais e psíquicas associadas ao caráter
justamente, ao fato de que nela ocorre neurótico.
uma trans-posição de sentido ao longo do Para Freud, como observa E.
contínuo coberto pela phantasia incons- Spillius (2001), embora pudesse haver
ciente. fantasias que fossem sempre inconscien-
Ao contrário das fantasias tais tes, desde o início (“unconscious all
como concebidas por Freud em sua prin- along”, como as “fantasias originais”
cipal linha de pensamento (cf. Spillius, supostas por ele em alguns momentos, de
2001)5, as phantasias inconscientes6 em origem filogenética), a posição central e
Melanie Klein não dependem de repre- mais assumida é de que a maioria das
sentação, nem de recalcamento (como as fantasias tenham sido representações
fantasias de desejo), embora incorporem conscientes (idéias) e pré-conscientes
e possam incluir representações e recal- antes de serem recalcadas (quando os
camentos. Ao ganhar caráter de repre- desejos e demais urgências pulsionais são
sentação, podem, por exemplo, receber o interditados), e transformadas em ex-
status de realidade e transformar-se em pressões disfarçadas do desejo, objetos
crenças, inconscientes ou conscientes de interpretação.
(Britton, 1995). Nesta condição, também Já no terreno kleiniano, Susan
podem, sob o efeito do recalcamento, Isaacs (1952, pp. 114-115) alinhava entre
justamente quando este incide nas primei- as encarnações de phantasias inconsci-
ras representações das phantasias in- entes as perturbações e fobias alimenta-
conscientes, com conseqüências inadmis- res e excretórias em crianças pequenas,
síveis pelo ego7, converter-se em sinto- os “maus hábitos”, tiques e cacoetes,
4
Isto não quer dizer que interpretações psicanalíticas sejam metáforas; certamente, não são analogias ou
sinonímias; o que as caracteriza é a capacidade de fazer o sentido circular, o psiquismo trabalhar e alcançar
novas posições; ao falar em “dimensão metaforizante”, procuramos enfatizar os processos de trans-
posição que levam, por exemplo, da escuta de um conflito cognitivo ou moral do paciente adulto à
interpretação em termos de processos corporais muito primitivos e infantis. Todas as interpretações da
transferência comportam este caráter trans-positivo em que o “aqui e agora” é trans-posto para o passado,
e vice-versa.
5
E. Spillius mostra como, ao lado desta linha principal, já em Freud encontramos o embrião de uma outra
concepção de fantasia, mais próxima ao conceito kleiniano, a de uma fantasia originária proveniente de uma
herança filogenética.
6
A diferença na grafia tenta dar mais visibilidade a esta diferença conceitual; “fantasia” pode ser devaneio,
ilusão e evasão, mas “phantasia”(Phantasie ou phantasy) diz respeito à imaginação como atividade
psíquica essencial, sendo a própria realidade psíquica (cf Britton, 2003).
7
Como assinala Britton (1995), transformadas em crenças, as phantasias passam a ter conseqüências,
algumas das quais intoleráveis e contra as quais o ego se defende.

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rabugices, explosões de mau humor, de- Embora o recalcamento das


safios à autoridade etc., em crianças phantasias inconscientes (quando trans-
maiores; e ainda os sintomas histéricos de formadas em crenças) produza adoeci-
conversão, dores de cabeça, susceti- mentos neuróticos, os problemas mais
bilidade a catarros, dismenorréia e outras sérios com a phantasia inconsciente são
alterações psicossomáticas. Mas tam- devidos a defesas muito mais primitivas
bém as características de personalidade que o recalcamento e que atacam ou
correntes como o estilo, o tom de voz, a neutralizam, justamente, esta capacidade
postura corporal, o modo de andar, de imaginativa, vale dizer, atacam o psiquis-
apertar a mão, a expressão facial, a cali- mo enquanto tal. Tais mecanismos po-
grafia estão a elas associadas. Da mesma dem ser identificados em suas operações.
forma, as atitudes da pessoa frente ao Eles:
tempo, à pontualidade, ao dinheiro e pos- (a) Produzem inibição e empobre-
ses de bens etc. se correlacionam a con- cimento das phantasias inconscientes,
juntos de phantasias inconscientes. Em com prejuízos para a curiosidade e a
parte, elas emanam, em parte, evocam, aprendizagem, por exemplo, bem como o
mas sempre comparecem como os repre- empobrecimento afetivo de todo o âmbito
sentantes psíquicos de tudo aquilo que, da experiência, pois são as phantasias
vindo do corpo, se projeta para o campo que dão sentido e valor afetivo às experi-
do sentido e, vindo da mente, se ências de que são correlatas. O corpo
retroprojeta no corpo, seus processos e biológico e comportamental não é
mecanismos e seus comportamentos. Nas inviabilizado — embora isto possa ocor-
phantasias inconscientes encontram-se rer, no extremo dos pacientes psicosso-
a origem de todas as ocorrências psicos- máticos e seus adoecimentos —, mas a
somáticas, com seus valores afetivos e qualidade da vida psíquica é reduzida a
significados profundos. A ênfase kleinia- quase nada, e daí decorrem, por exemplo,
na, como diz Spillius, é em seu caráter grandes dificuldades no “aprender”.
imaginativo, e não defensivo (em res- “Aprender” supõe, entre outras coisas,
posta à falta do objeto). Phantasias in- uma antecipação de sentido que se torna
conscientes são o estofo dos conteúdos impossível na ausência do phantasiar
inconscientes primários e referem-se à inconsciente. Sem ele, não restarão nem
“produtividade” da unidade somato- interesse nem capacidade para fazer no-
psíquico. Nesta medida, situam-se em um vas ligações e o “impulso epistemofílico”
plano de abstração diferente e mais pro- fica esvaziado e enfraquecido. Mais adi-
fundo do que qualquer fantasia — incons- ante, retornaremos a esta questão, ten-
ciente ou consciente — que possa ser tando sugerir as razões de ser deste ata-
acessada e ter uma existência fenomênica que ao phantasiar e identificando os
reconhecível. mecanismos aí implicados. Desde já, cabe

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assinalar que se trata de um ataque à (c) Expelem as phantasias incons-


pulsionalidade — e às phantasias que lhe cientes, fazendo-as invadir e inundar, sem
são correlatas — que não se confunde controle, o campo das experiências cons-
com o recalcamento e que parece ser cientes, produzindo alucinações e delírios,
muito mais nocivo: o resultado são os em um universo paranóide. Dizem alguns
indivíduos incapazes de sonhar, como os (Green, 2003) que se trataria de um trans-
“normopatas” e os pacientes do pensa- bordamento afetivo ou pulsional (débor-
mento concreto. dements), mas seria certamente mais
Passemos adiante, descrevendo correto falar em extravasamento das
brevemente outras formas primitivas de phantasias inconscientes, o que inclui
lidar com as phantasias inconscientes. todos os seus elementos (impulsos, ne-
Outros mecanismos de defesa muito com- cessidades, sensações, afetos, represen-
prometedores: tações, palavras etc). É este conjunto
(b) Produzem “enquistamento”, isto heterogêneo (e não apenas os afetos) o
é, um isolamento das phantasias, pela via que invade a consciência, o comporta-
das cisões e dissociações, mantendo-as mento (nas atuações) e o próprio corpo,
nas formas mais primitivas e onipotentes, em certos casos de adoecimentos psicos-
que se conservam intactas, ao invés de somáticos8.
entrarem em interação com os objetos Mais adiante, veremos as razões
externos e as experiências, podendo ser de ser destas operações e os mecanismos
por estas moduladas e transformadas. por elas responsáveis.
Temos, então, um mundo interno e um
mundo externo separados e não mais O hibridismo epistemológico
mediados pelas phantasias inconscien-
tes e elas produzirão efeitos muito pertur- O conceito de “phantasia incons-
badores. Por exemplo, podem manter-se ciente” rompe com a distinção freudiana
indestrutíveis em uma atividade autôno- entre a metapsicologia e a fenomenologia
ma e impermeável, em um universo da clínica. No pensamento de Melanie
esquizóide. Um mundo de devaneios cor- Klein, estes dois planos estão conjugados,
rendo em paralelo ao que se mantém em o que pode levar um purista a torcer o
um mínimo contato com a experiência e, nariz, mas que, bem ao contrário de um
muito provavelmente, prejudicando-a. equívoco, corresponde a uma das mais
Mas, associados especularmente revolucionárias contribuições da autora
aos enquistamentos, outros mecanismos para a teoria e para a clínica. Não é que
de defesa primitivos: não exista uma metapsicologia em Mela-

8
Há somatizações também devidas à inibição das fantasias, como parece ser o caso nos pacientes estudados
pela escola de Paris; este é o caso tratado no item (a) logo acima.

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nie Klein, como às vezes se afirma, mas No entanto, mais importante do que distri-
ela se enraíza na observação clínica muito buir as phantasias entre as instâncias,
mais fortemente que a freudiana e, ao interessa-nos mostrar como elas as arti-
mesmo tempo, oferece à clínica um maior culam de uma forma inovadora, tornan-
alcance teórico. Trata-se, no nosso en- do-se, assim, a principal unidade da vida
tender, de um conceito que encarna o que somatopsíquica, uma unidade em que
de mais próprio existe em uma epistemo- pulsões e afetos, sensações e representa-
logia psicanalítica, o seu caráter híbrido. ções, mecanismos e tendências etc. en-
Na verdade, este conceito de “phantasia contram-se reunidos. Além disso, uma
inconsciente” apenas desenvolve a pro- das instâncias, o superego, adquire um
blemática epistemológica já presente no outro estatuto: ele mesmo se torna clara-
conceito de “pulsão”, em Freud, mas o faz mente um objeto interno da phantasia,
com a vantagem de estabelecer as medi- como, aliás, todos os outros objetos inter-
ações entre planos — como “soma” e nos. Na verdade, todas as phantasias
“psique”, por exemplo, “inconsciente” e inconscientes ligam-se aos chamados
“consciência”, e assim por diante — e objetos internos duplamente: estes são
não apenas indicar o lugar das passagens. “objetos” da e na phantasia e a própria
O conceito, desta forma, engloba uma phantasia pode ser concebida como uma
heterogeneidade de elementos que po- espécie de “objeto”9. A “desobjetaliza-
dem existir ou ser pensados em níveis ção”, processo de desinvestimento pro-
muito distintos, desde os mais sensoriais movido pela pulsão de morte, segundo A.
até os mais abstratos. Green (2003), ataca os objetos internos
Uma das possibilidades que se des- da e na phantasia inconsciente, vale
cortinam a partir deste conceito é a de dizer, ataca as phantasias inconscientes,
fazermos a ligação entre as duas tópicas inibindo-as e destruindo-as em sua capa-
freudianas sob a dominância da segunda. cidade criativa e objetalizante.
Poderíamos dizer que as phantasias in- Por outro lado, as phantasias in-
conscientes mantêm uma estreita vincu- conscientes fazem contato com a primei-
lação com as instâncias da segunda tópi- ra tópica e com a distinção entre os
ca: haveria phantasias inconscientes do processos primários e os secundários,
id e suas pulsões; phantasias inconscien- entre o inconsciente e o sistema pré-
tes do ego e seus mecanismos; e consciente-consciência. De certa forma,
phantasias inconscientes do superego, e corresponderia a uma revalorização do
suas ameaças, interdições e prescrições. lugar e das funções do “pré-consciente”.

9
O mesmo é verdadeiro da phantasia quando transformada em crença, como observa Britton (1995). A
dor da perda por este objeto pode ser tão difícil quanto a de qualquer outra perda, sendo mais fácil recusá-
la ou recalcá-la do que fazer efetivamente o luto por ela.

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Elas podem ocorrer simultaneamente e Por outro lado, as experiências com


desconhecer o tempo e a contradição, os objetos externos são decisivas para a
operando de forma caótica, tumultuada, modulação e transformação das phanta-
avassaladora. Mas, como já se projetam sias inconscientes, como veremos mais à
para o campo do sentido e são aptas à frente. O mundo de “fora” nos chega por
passagem para a palavra e outras formas esta via que, por sua vez, se modifica de
de expressão e simbolização, acabam acordo com o que é experimentado. Pela
estando sujeitas igualmente às leis e con- ênfase na relação do mundo interno e
dições de funcionamento dos processos seus objetos com as phantasias incons-
secundários. Nunca serão apenas sub- cientes, perde-se freqüentemente a ca-
metidas a uma das lógicas, mesmo que pacidade de reconhecer nelas uma fun-
uma delas possa prevalecer em um dado ção mediadora entre o “dentro” e o “fora”.
momento. As descrições freudianas dos Seria necessário dizer que elas estão
dois campos e suas lógicas não se per- “dentro”, mas ao mesmo tempo, estão
dem, mas enfatiza-se a passagem, a mis- “entre” estas duas esferas. Coube a Winni-
tura, a instabilidade. Complica-se, portan- cott (1951,1960, 1971), com sua concep-
to, o panorama concebido por Freud, ex- ção dos fenômenos e objetos transicio-
cessivamente racionalista para o gosto de nais, estabelecer mais claramente esta
Melanie Klein. posição entre o objeto subjetivo (um obje-
Outra mediação proporcionada pelo to interno) e os objetos objetivos. O que,
conceito de phantasia inconsciente se dá contudo, nem sempre é percebido é que
entre o “mundo interno” e o “mundo os elementos transicionais encarnam e
externo” (o “dentro” e o “fora”), estejam realizam precisamente uma das funções
eles funcionando em paralelo ou em inte- das phantasias inconscientes, estas enti-
ração. Embora as phantasias inconsci- dades híbridas entre tantas esferas e, no
entes sejam os próprios conteúdos bási- caso, entre as do sujeito e as do objeto.
cos do mundo interno, como vimos, não há Mas, como sabemos pelo mesmo Winni-
contato, não há percepção, não há apren- cott, a força dos elementos transicionais
dizagem, não há experiência com os obje- deve-se, em primeira instância, à força
tos externos que não sejam antecipados e dos objetos subjetivos, vale dizer, de um
enquadrados pelo fantasiar. O pensa- objeto criado pelo bebê a partir de suas
mento “objetivo” não se desenvolve con- experiências com o ambiente. Na tese
tra a phantasia inconsciente, mas a partir que estamos desenvolvendo, a capacida-
dela e das antecipações de sentido que ela de criativa postulada por Winnicott é uma
proporciona (Segal, 1964). As phantasias herdeira direta, posto que modificada, das
inconscientes são pensamentos em esta- phantasias inconscientes de Melanie
do embrionário e sem elas nenhum pensa- Klein em seu caráter primordialmente
mento pode ser desenvolvido. imaginativo. Cremos que, além da dívida

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A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. O que isto pode significar?

mais óbvia e assumida em relação à exoterismo: trata-se de trabalho feito a


posição depressiva e à fase do concern, partir de, pelo menos, dois complexos
nem a criatividade primária nem os fenô- somatopsíquicos em um nível profundo de
menos transicionais postulados por Winni- funcionamento10.
cott seriam possíveis sem a tradição klei-
niana e, em particular seu conceito de As incidências e desdobramentos
phantasia inconsciente. teóricos do conceito de phantasia in-
Sem este conceito, igualmente, os consciente são inúmeros: o protomental,
processos de identificação projetiva e os elementos β e os processos α (como os
identificação introjetiva e as “comunica- sonhos e as rêveries), bem como os
ções entre inconscientes” ficariam elementos α em Bion, dependem, para
inexplicados. Tal mecanismo, inicialmen- fazer sentido, do conceito de phantasia
te concebido como defesa (Klein, 1946), inconsciente com o seu notável hibridismo
desde Bion (1962) alcançou o estatuto de e heterogeneidade, e que reúne o mais
forma primordial de comunicação. Não somático e sensorial a uma possibilidade
há mágica nenhuma: experiências corpo- embrionária de sentido. Segal (1964) tam-
rais ou psíquicas “produzem” em um su- bém mostra que a noção bioniana de pré-
jeito phantasias inconscientes e são elas concepção deriva do conceito de
que, pela via de uma outra phantasia phantasia inconsciente, no caso, em sua
inconsciente — associada ao mecanismo forma mais primitiva. Da mesma forma, o
de ex-cisão — evocam em outros sujeitos “irrepresentável” dos Botella (2002), e as
suas próprias phantasias inconscientes, chamadas “memórias corporais” dos
mescladas às do primeiro sujeito e intro- ferenczianos referem-se aos elementos
jetadas pelo segundo. O que se verifica, de uma das pontas do contínuo coberto
em uma rêverie, por exemplo, é justa- pelo conceito. Assim, o irrepresentável,
mente este amálgama de phantasias in- embora possa resistir à representação,
conscientes que, expressas e simboliza- tende para ela e pode, em última instância,
das pelo segundo sujeito — a mãe ou o alcançá-la pela via, por exemplo, do tra-
analista —, podem ser interpretadas e balho em duplo, da atividade alucinatória
devolvidas ao indivíduo — o bebê ou o do analista, da sua capacidade de dar
paciente. Intuição e empatia adquirem, figurabilidade aos elementos “irrepre-
desde então, uma possibilidade de exis- sentáveis” do e pelo paciente11. Tudo que
tência natural, sem relação a qualquer diz respeito às passagens do corpo à

10
Do entrejogo de phantasias inconscientes, provavelmente, é que se irão constituir e ser introjetadas as
matrizes que organizarão a vida mental do sujeito. Dificilmente se poderá saber o peso da imaginação radical
dos dois envolvidos nos resultados do processo.
11
Ou seja, a imaginação radical do analista (Castoriadis) está preservada e é posta a serviço da análise.
Nos nossos termos, dizemos que as phantasias inconscientes do analista estão em plena operação.

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mente e da mente ao corpo depende do onipotência. Uma phantasia inconscien-


conceito de phantasia inconsciente. te posta em palavras, sob o império da
Mesmo quando a base sensorial predomi- semântica e da sintaxe, já foi submetida a
na, quando predominam tendências e pro- uma transformação decisiva e não per-
cessos fisiológicos, necessidades nuas e manece intata e intratável. Por outro lado,
cruas, há sempre uma possibilidade de qualquer phantasia inconsciente ao ser
expressão e simbolização, embora estas posta em palavras — ou mesmo ao ser
possam estar bloqueadas. Os sonhos, os representada e simbolizada por qualquer
jogos e brincadeiras, as encenações dra- outro meio — já não é “a mesma de
máticas, os objetos transicionais, as nar- antes”. Só podemos acessá-las por meio
rativas etc. fazem parte da cadeia de de palavras, mas devemos estar cientes
transformação, e cada uma destas for- de que, ao fazê-lo, já procedemos a uma
mas e modalidades simbolizantes tem a transformação e que jamais teremos como
sua eficácia subjetivante e terapêutica: ao fazer contato com elas em si mesmas.
permitir que as phantasias inconscientes Entretanto, é preciso que as palavras
se expressem, se articulem e sejam sim- sejam justas e precisas. A isso voltare-
bolizadas, confere-se ao sujeito uma am- mos logo adiante. Ainda neste item, é
pliação na capacidade de fazer contato, importante que se observe que, mesmo
processar e comunicar-se em um nível quando uma phantasia inconsciente é de
profundo. Mais que isto, é a partir destas algum modo posta em palavras, nem por
expressões simbólicas que as phantasias isso ela se dissolve e perde sua natureza.
inconscientes podem ser moduladas, su- Ou seja, mesmo falada e interpretada, a
blimadas e postas em mais estreita intera- phantasia inconsciente continua operan-
ção com as experiências do sujeito com do e produzindo efeitos. Assim, ao falar e
seus objetos externos, o que inclui, princi- escutar, nem se fala nem se escuta “tudo”
palmente, outros sujeitos. o que há para ser considerado no plano
Neste particular, avulta a impor- das phantasias inconscientes. Por exem-
tância das palavras, mesmo que nem plo, identificações projetivas continuarão
sempre precisem ser usadas palavras produzindo seus efeitos entrelaçados às
para os processos de expressão e simbo- palavras e demais simbolizações, às ve-
lização. Edna O’Shaughnessy (1983) cha- zes confirmando-as, às vezes suplemen-
ma a atenção para o tema. Colocar em tando-as e às vezes contradizendo-as. As
palavras é uma atividade do ego, que se palavras que escuto, além da semântica e
enriquece e adquire maiores poderes de da sintaxe, têm estilo, ritmo, timbre, inten-
reflexão, favorece a ampliação da rede sidades etc. e é mediante todas estas
associativa e do poder sintético do sujeito, dimensões que as phantasias inconsci-
dando relevo ao que é falado e narrado, e, entes estarão sendo postas em circula-
principalmente, impõe-lhe uma quebra de ção.

134 Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 125-150, dez. 2006.


A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. O que isto pode significar?

Antes de encerrarmos este tópico, muito vulneráveis às operações defensi-


vale a pena ressaltar que o caráter híbrido vas. Algumas vicissitudes nestas passa-
do conceito de phantasia inconsciente gens já foram estudadas quando falamos
não apenas lhe garante a posição de de inibição e empobrecimento, de disso-
unidade somatopsíquica capaz de estabe- ciação e enquistamento e de transborda-
lecer pontes e mediações, como liberta o mento e evacuação. Podemos pensar
pensamento psicanalítico do império das estas vicissitudes a partir de uma noção
dicotomias e dualidades sem prejuízo da de contínuo que vai do mais somático e
discriminação entre elementos. Ao invés silencioso ao mais mental, expressivo e
de pensarmos que os representantes das sublimado. Em diferentes pontos deste
pulsões são, por exemplo, de um lado, os contínuo podem ocorrer interrupções e
afetos e, de outro, as representações, a problemas.
partir de Melanie Klein a função de repre- Uma impossibilidade bastante ra-
sentar, tanto as pulsões, quanto todos os dical nas passagens ao símbolo é a que
elementos somatopsíquicos, é desempe- cria buracos negros no psiquismo, áreas
nhada pela phantasia inconsciente, que de não-simbolização e de elementos não-
reúne uma variedade de dimensões e representáveis (como na psicose branca
componentes: afetos, representações, descrita por Donnet e Green [1973], e os
sensações, necessidades, sentimentos, psiquismos traumatizados descritos por
tendências etc., tudo amalgamado em Botella e Botella [2002]) em que a
entidades heterogêneas12.Como dissemos phantasia inconsciente está silenciada e
no início, o purismo epistemológico torce silenciosa. A este silêncio se associa uma
o nariz, mas cremos que esta natureza da experiência traumática, seja como causa
metapsicologia kleiniana faz justiça à com- (o trauma que emudece), seja como con-
plexidade ontológica do que interessa à seqüência, pois o enfraquecimento de sua
psicanálise pensar. potência imaginativa torna o sujeito me-
nos apto a lidar com o que o afeta vindo de
Vicissitudes fora ou de dentro do corpo.
Indo um passo além no contínuo,
Como sabemos, a possibilidade de encontramos a “equação simbólica”
passagem à representação e à simboliza- conceituada por Hanna Segal (1957). Mais
ção inscrita nas phantasias inconscien- adiante, deparamo-nos com a transfor-
tes não garante muita coisa, pois elas são mação de objetos transicionais em feti-
12
Cremos que, se perdêssemos a discriminação entre tais elementos, também perderíamos o caráter
heterogêneo da phantasia inconsciente. Assim, tanto é importante aceitar estas associações quanto
assinalar as distintas naturezas de seus componentes. Alguns deles, por exemplo, são mais facilmente
expressos e simbolizados, enquanto outros parecem muito mais primitivos e resistentes.

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 125-150, dez. 2006. 135


Luís Claudio Figueiredo

ches, tal como descrito por Winnicott coisa sob a dominância de uma phantasia
(1960). Estes fenômenos mostram como inconsciente onipotente.
a onipotência da phantasia inconsciente
pode levar a melhor. Na equação simbó- Implicações clínicas
lica, o pareamento entre uma phantasia
auto-erótica e tocar um violino, sob a Um efeito clínico importante do
dominância da phantasia inconsciente conceito que estamos examinando é o
onipotente (é o exemplo clássico), impede questionamento de uma separação muito
que o tocar violino ocorra em público: ao nítida entre interpretação e construção.
invés de ele simbolizar a phantasia, é ela Interpretar e construir — no sentido freu-
que invade o campo da consciência e do diano dos termos — encontram-se aqui
comportamento, perturbando-a e inibin- conjugados. Há sempre uma phantasia
do-o. O sujeito não pode tocar violino, inconsciente a ser interpretada, mas há
exatamente como não pode tocar em seu sempre um trabalho de transformação e
pênis e masturbar-se diante de uma pla- construção a ser efetivado. Descoberta e
téia. O violino é o pênis, ao invés de criação estão combinadas e talvez toda
representá-lo. Já no caso relatado por intervenção analítica tenha o caráter de
Winnicott (1960), uma corda que servia uma “invenção”, o que nela reúne estes
como objeto transicional, permitindo a dois aspectos. Como foi dito acima, em-
separação entre o garoto e sua mãe, e, ao bora não tenhamos contato com as
mesmo tempo, mantendo a união simbó- phantasias senão a partir de suas repre-
lica entre eles, converte-se em fetiche sentações e simbolizações, é preciso que
quando começa a servir para impedir de as palavras sejam justas e precisas, vale
forma onipotente a separação e para dizer, interpretem com propriedade as
manter uma “união real” imaginária, ocu- phantasias inconscientes subjacentes, as
pando, na realidade, o espaço vazio, o desvelem. E é necessário que elas sejam
intervalo. É o que Winnicott denomina bem interpretadas, embora neste proces-
“denial of separation”13 (1960, p. 156). so haja simultaneamente construção e
O objeto transicional — no caso uma transformação.
corda — transforma-se em uma coisa em Em geral, deveríamos evitar os
si, um fetiche, e dá lugar a uma perversão. extremos: a “tradução simultânea” e os
Nos dois casos, o psicótico de H. Segal e “enxertos”, como dizia Lacan da técnica
o jovem perverso de D. Winnicott, o que kleiniana de análise de crianças peque-
poderia ser símbolo transforma-se em nas, em que palavras são colocadas na

13
A Verleugnung freudiana ora foi traduzida como denial, ora como disavowal: o garoto sabia e não sabia
da separação.

136 Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 125-150, dez. 2006.


A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. O que isto pode significar?

boca da criança para que se faça contato e as patologias caracterizando-se pela


com suas phantasias e angústias. No operação de mecanismos de defesa con-
entanto, é inegável que em alguns mo- tra elas. Não se coloca jamais a idéia de
mentos cabem intervenções que pare- aboli-las. Assim, o “teste de realidade”
cem se aproximar de um dos extremos. A não poderia ser concebido como um con-
realidade, porém, é que, mesmo nestes fronto entre fantasia e percepção, dado
casos, haverá sempre uma mistura de que não haveria percepção alguma sem
interpretação e construção nas interven- que estejam operando phantasias in-
ções analíticas, o que coloca um problema conscientes. O que se espera é que elas
ético: o quanto do paciente pode emergir possam ir sendo processadas e o termo
destas intervenções analíticas? Mas não “processamento da realidade” parece
se trata de favorecer esta mescla, mas de muito mais cabível, desde que se entenda
reconhecer seu caráter inevitável. Seria que se trata de um processamento da e na
desejável, certamente, que em uma inter- phantasia 15 .
venção interpretativa pudéssemos estar Assim sendo, alguns dos objetivos
absolutamente seguros de estamos traba- mais centrais da atividade clínico-analíti-
lhando “per via de levare”, deixando as ca podem ser expressos da seguinte for-
construções para situações especiais, ou ma: desinibição, expressão e simboliza-
deixando-as apenas a cargo do paciente. ção das phantasias inconscientes de for-
A clínica a partir de Klein não assume ma a garantir o enriquecimento da expe-
esta visão ingênua e dispõe-se a correr os riência e da interação entre “mundo inter-
riscos de conjugar a “via de levare” com no” e “mundo externo” (instalando ou
a “via de porre”, até porque não há outra ampliando a capacidade de “aprender
forma de trabalhar14. com a experiência” [Bion, 1962]). Espe-
Consideremos agora a implicação ra-se que as phantasias transformadas
do conceito em termos dos objetivos da percam seu caráter onipotente e possam
análise. De um ponto de vista kleiniano, a entrelaçar-se às experiência de vida do
diferença entre “normalidade” e patolo- sujeito. Trata-se, enfim, da criação e da
gia reside nas formas dominantes de lidar ampliação da capacidade para pensar
com as phantasias inconscientes, a “nor- (containing), para admitir e processar as
malidade” consistindo em admitir, ex- phantasias inconscientes, sem que ne-
pressar, simbolizar e transformar estes nhuma noção médica de cura e saúde se
elementos em contato com a experiência, imponha.

14
A solução do problema ético deve ser procurada na dialética da implicação e da reserva, conforme sugerido
em outra parte (Figueiredo, 2000).
15
A distinção entre teste e processamento de realidade nos parece importante e foi adotada em um outro
trabalho (Figueiredo, 2006).

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 125-150, dez. 2006. 137


Luís Claudio Figueiredo

Passemos agora ao segundo tema com o leite, os carinhos e cuidados mater-


selecionado. Como se verá, porém, ele nos, seja porque entre o homem e seu
nos permitirá retornar às phantasias in- mundo e seus objetos há sempre
conscientes, trazendo novas elaborações inadequação — em qualquer idade e em
a respeito delas. todas as circunstâncias —, os primórdios
phantasiosos da “cena primária” estão
A noção de “Édipo precoce” inscritos no psiquismo desde o início. A
e a “situação edípica” isto chamaremos de “situação edípica”,
a partir de M. Klein aproveitando o termo usado por Melanie
Klein em 1926 e desde o início associado
Para início de conversa, perceba- às experiências de impedimentos a uma
mos que, segundo Melanie Klein, a rela- gratificação plena, às privações (depriva-
ção narcísico-dual que o bebê estabelece tions). No começo, ela é apenas uma
com seu objeto primário — a mãe e, mais phantasia inconsciente nebulosa: há ou-
particularmente, o “seio” da mãe, repre- tras fontes e alvos de prazer para a mãe,
sentando a principal fonte de gratificação correlatas às suas ausências, às faltas e
— está longe de ser uma relação idílica insuficiências do objeto (sentidas ou ima-
pura. Se, de um lado, as experiências de ginadas) e aos incômodos, pavores e do-
satisfação estão associadas a phantasias res daí decorrentes. Ou seja, o “outro do
inconscientes de plenitude, há, ao mesmo outro”, como diz Green (2003), o não-
tempo, phantasias de outra ordem asso- mãe, como objeto e como fonte libidinal
ciadas a outros momentos. Melanie Klein da mãe, phantasiado e “percebido” —
não alimenta ilusões e é, na esteira de mas sempre é phantasiado antes e mais
Freud, uma pensadora do mal-estar. As do que percebido — faz parte da realida-
relações narcísico-duais comportam frus- de psíquica em formação.
trações e conhecem limites. O “não-mãe” Nesta medida, há uma situação
(a mãe má, o pai, o mundo) é permanen- triangular precoce e incipiente, pouco ní-
temente o horizonte inevitável do objeto tida, como “limite da bem-aventurança”;
primário, e a indiferenciação característi- mas ela é, também, uma condição de
ca das relações narcísico-duais não é possibilidade: é uma condição da relação
nunca absoluta: uma diferenciação está diádica (contra a atração fusional), e uma
desde sempre se insinuando, mesmo que sustentação e viabilização da onipotência
reduzida pelos mais eficientes cuidados e narcísica primordial da unidade mãe-bebê.
adaptações do ambiente. Seja porque é Esta função do “terceiro”, o pai, como
impossível atender perfeitamente a vora- condição do “segundo” e do “primeiro”
cidade infantil, seja porque as pulsões em sua união primordial foi bem aprecia-
hostis dirigidas para fora colorem os obje- da por Winnicott. O “pai” dá sustentação
tos e são em seguida introjetadas junto à mãe e à dupla para que a mãe dê

138 Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 125-150, dez. 2006.


A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. O que isto pode significar?

sustentação ao bebê. Mas é claro que em detrimento do terceiro elemento do


este mesmo terceiro elemento mal perce- triângulo16.
bido, mal delimitado, já figura como uma Convém, igualmente, levar em con-
ameaça a esta relação: é o ingrediente ta que há formas manifestas (a situação
decisivo da cena primária original edípica como phantasia inconsciente
phantasiada, derivada das privações expressa, representada e transformável)
(desde as mais precoces “dores de barri- e formas invisíveis, em que a situação
ga”, até o desmame, o treinamento de edípica é recusada ou rejeitada.
hábitos higiênicos, etc.). A isso retornare- Dito isto, passemos então a acom-
mos mais adiante. panhar em traços largos as transforma-
Nas próximas páginas acompanha- ções da situação edípica desde uma
remos, em grandes linhas, as evoluções phantasia inconsciente primária até as
possíveis desta situação edípica primordi- suas formas no complexo de Édipo preco-
al e para tanto contamos com trabalhos de ce, e mais além.
Melanie Klein (1926, 1945), e também O que pode ser caracterizado como
com os de Boswell (2001), Britton (1985, uma “boa evolução” da situação edípi-
1988), Hinshelwood (1994) e O’Shaugh- ca, quais seus elementos e qual sua dinâ-
nessy (1988). Nestas companhias, trata- mica?
remos das formas da “situação edípica”. Como sair da onipotência narcísica
e das figuras combinadas e confundidas
Formas da “situação edípica” onipotentes, tais como dispostas na
phantasia inconsciente? Segundo esta
Não podemos confundir a situação phantasia inconsciente, constitui-se a
edípica, tal como a estamos definindo, cena primária em que mãe e não-mãe (o
com uma de suas formas, como, por “outro” e o “outro do outro”) unem-se em
exemplo, a sua manifestação cabal nas um intercurso contínuo e violento. A vio-
condições consideradas por Freud no lência é aí projetada a partir da força da
complexo de Édipo. Comecemos assina- voracidade do bebê e da resposta emoci-
lando que há formas constitutivas e estru- onal à privação. Na cena primária primor-
turantes (como a phantasia inconsciente dial fantasiada cria-se o objeto todo-
do “outro do outro”) e formas defensivas, poderoso, protetor absoluto e terrorífico,
como as fantasias neuróticas edipianas, detentor de todos os atributos e capacida-
por exemplo, em que são idealizadas as des, o interior da mãe com um pênis
relações privilegiadas do filho (ou filha) interno. Não é preciso, absolutamente,
com um dos membros do casal parental, que haja uma percepção do coito entre a

16
Neste caso, a triangulação não é totalmente ignorada ou recusada, mas o terceiro elemento é depreciado
e reduzido em sua potencial rivalidade.

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 125-150, dez. 2006. 139


Luís Claudio Figueiredo

mãe e um homem. O objeto combinado na ses de idade e antes de um ano) permitem


phantasia inconsciente é um objeto com- uma experiência de triangulação (R.
pleto e auto-suficiente. Uma mãe narci- Britton, 1985, pp. 89 e seguintes), dando
sista e auto-erótica, por exemplo, oferece lugar ao “complexo de Édipo precoce”. O
uma base experiencial perfeita para ali- outro (a mãe) e o “outro do outro” (o pai)
mentar tal phantasia; mas, em qualquer se diferenciam, e se unificam e integram,
circunstância, a dependência absoluta do cada um vindo a se constituir em uma
bebê e as falhas inevitáveis do objeto pessoa total, com aspectos bons e maus.
primário poderão gerar esta quimera. Além disso, podem ser phantasiados e
Diga-se de passagem, a internalização percebidos como não mais combinados e
deste objeto fantasiado/experimentado fundidos, mas reunidos um ao outro, seja
está na origem do “superego primitivo”, em termos de uma aliança, seja em ter-
uma instância de poder, proteção, contro- mos eróticos. Por sua vez, o self se
le e submetimento inigualável. Mais adi- separa e se reúne ao outro (mãe) e ao
ante voltaremos ao assunto. outro do outro (pai) em suas relativas
A primeira organização viável das separação e reunião.
relações objetais envolve as cisões cons- Na situação edípica madura, e aqui
titutivas da posição esquizoparanóide. já nos aproximamos do complexo de Édi-
Quando bom e mau, próximo e distante, po freudiano, o que requer um longo
etc., tornam-se modos primitivos de sepa- período de elaboração da posição depres-
rar e organizar a experiência com os siva, constitui-se o casal parental fecundo
objetos, é possível separar a mãe boa da (aliança e erotismo), e benigno, capaz de
mãe má, ou a mãe boa do “pai” mau, ou, acolher e sustentar seu filho, funcionando
inversamente, o “pai” bom da mãe má. como o bom objeto a ser introjetado.
Criam-se, assim duas relações duais Esta introjeção tem importantes efeitos
(Green), uma com o outro e a outra com subjetivos: (a) proporciona uma comple-
o “outro do outro”; estamos na ante-sala xa experiência de exclusão-inclusão, pois
da triangulação, uma primeira estrutura- o filho está incluído na aliança e excluído
ção da situação edípica em que o comple- da relação erótica; (b) nesta posição,
xo de Édipo precoce ainda não se confi- pode experimentar as diferenças de gê-
gurou. Nela, o desenho triangular não nero e de gerações, identificando-se com
aparece e a situação edípica se mantém um dos pais e desejando o outro, mas
invisível, posto que anunciada. Pacientes percebendo também que o amor entre os
borderline tendem a permanecer nesta cônjuges é de natureza distinta do que há
condição (Figueiredo, 2006) pela recusa entre pais e filhos; (c) dá-se, assim, a
em aceitar esta triangulação incipiente. possibilidade de uma experiência de de-
As integrações da posição depres- pendência não-simbiótica e de interde-
siva (que ocorrem depois de alguns me- pendência com o casal em conjunto e com

140 Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 125-150, dez. 2006.


A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. O que isto pode significar?

cada um de seus elementos, o que cria o de terceiro (o que vai depender, também,
horizonte da individuação e de uma rela- do psiquismo, do comportamento e das
tiva liberdade; (d) angústias de castração falas da mãe). “Pai” será tudo aquilo e
e de culpa emergem claramente, mas todo aquele que puder bem ocupar um
podem assumir uma feição muito mais lugar de terceiro que já está aberto desde
moderada que as angústias de separação a instauração da situação edípica, muito
e engolfamento da posição esquizopara- antes de um complexo de Édipo se mani-
nóide (veremos isso mais adiante); (e) festar plenamente.
abrem-se as possibilidades de reparação, O que pode ser agora caracteriza-
dado que as ansiedades e culpas mitiga- do como uma “má evolução” da situação
das podem ser enfrentadas com atos edípica, quais seus elementos e qual sua
reparatórios — se elas crescerem, contu- dinâmica? Trataremos esquematicamen-
do, darão ensejo às reparações maníacas; te da questão contemplando duas possibi-
(f) do lugar de terceiro em uma relação, lidades, uma mais grave, outra mais leve.
cria-se a possibilidade de observação, Comecemos com as figuras oni-
simbolização do objeto ausente e de pen- potentes combinadas, confundidas e
samento; o filho aceita o terceiro e acei- esquartejadas (pois são objetos parciais)
ta-se como sendo ele mesmo o terceiro e que se cronificam em uma “cena primá-
esta é a posição determinante para o ria” determinante de ansiedades psicóti-
desenvolvimento das suas capacidades cas e da introjeção de um superego cruel.
cognitivas e auto-reflexivas, sujeito e ob- Em tais casos, os psiquismos funcionam
jeto de conhecimento; torna-se possível como os pacientes que Ferenczi caracte-
conhecer a realidade — liberar o impulso rizou como sendo apenas id e superego,
epistemofílico e as phantasias inconsci- com um ego inexistente ou muito fraco.
entes correspondentes — fortalecendo o As decorrências são: (a) prevalecem as
elo K e modulando os elos L e H (para relações diádicas e narcisistas (simbió-
falarmos a linguagem de Bion, 1962). ticas) e monádicas (esquizóides) com a
Na ausência da triangulação, o recusa ou a rejeição da relação triangular
conhecimento e o pensamento ficam ini- inscrita na situação edípica incipiente; (b)
bidos e as relações de amor e ódio preva- neste campo, dão-se as experiências ra-
lecem imoderadas, mas isso já é parte do dicais de exclusão e de inclusão não-
que trataremos mais adiante. mediadas e intoleráveis; na relação com o
Toda essa evolução bem-sucedida aspecto tudo-bom e na relação com o
ideal depende, é claro, dos objetos primá- aspecto tudo-mau do objeto combinado e
rios, ou seja, da mãe e do “pai”, as aspas todo-poderoso, ou bem se vive uma inclu-
servindo para lembrar que as funções do são engolfante, ou bem uma exclusão
pai, a serem recenseadas mais adiante, aniquilante, o que incrementa (c) proces-
dizem respeito à boa ocupação do lugar sos de idealização defensiva e de

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 125-150, dez. 2006. 141


Luís Claudio Figueiredo

persecutoriedade intensa; (d) nesta con- dade que protege o sujeito da exclusão e
dição precária desenvolve-se o que foi da inclusão devastadoras, livrando-o das
chamado de “ódio à realidade”, o ataque grandes oscilações borderline, mas dei-
à curiosidade genuína e ao conhecimento, xando-o aprisionado.
e instala-se a arrogância defensiva, já que Uma outra possibilidade, bem me-
o maior dos sofrimentos parece ser justa- nos grave, diz respeito às fantasias de
mente levar em conta as phantasias incesto, isto é, as fantasias edipianas pro-
inconscientes que criam e sustentam uma priamente ditas (prenhes de rivalidades,
cena primária intolerável. inveja e ciúmes ou, no extremo, de indife-
Nesta condição, observa-se o que rença diante de um terceiro elemento
já foi designado como o “Édipo invisível” amesquinhado e ridículo). Tais fantasias
(E. O’Shaughnessy, 1988). Trata-se da (“minha mãe gosta muito mais de mim
recusa e/ou da rejeição da cena primária que de meu pai”, por exemplo) perpetu-
intolerável, que é a manifestação em es- am-se como defesas (neuróticas) contra
tado bruto da situação edípica, uma as ansiedades psicóticas diante das figu-
phantasia inconsciente primária. Aliás, ras onipotentes combinadas e produzem
cabe assinalar que não se trata de fato de tanto phantasias inconscientes homici-
“ódio à realidade”, recusa ou rejeição, ou das e culposas (em geral, recalcadas),
negação da realidade ela mesma. Até quanto phantasias de reparações maní-
porque não há como fazer contato direto acas (em geral, atuadas). Nestes casos, o
com ela. Dizer que se trataria de uma Édipo torna-se “excessivamente visível”
negação da “realidade tal como interpre- em sua forma defensiva (Britton, 1989).
tada” já é um avanço, mas não vai ao
ponto, pois não especifica a qualidade e a Funções do pai, funções do mundo,
natureza desta interpretação. O que se funções do “terceiro”
passa é uma intolerância às phantasias
inconscientes que constroem uma cena Tentemos recensear agora, breve-
primária da qual se está completamente mente, o que poderia ser uma boa ocupa-
excluído ou na qual se é incluído como um ção do lugar de terceiro (instalado na
dos participantes — identificação com o phantasia inconsciente), em oposição à
pai ou com a mãe — e na qual se experi- má ocupação da posição de terceiro, uma
mentam as intensidades elevadas de uma ausência da “função paterna”.
interação violenta, confusa. Uma forma Na ante-sala do Édipo, mas já no
de alcançar alguma estabilidade sem ter contexto de uma situação edípica, o “pai”
de enfrentar as agruras da travessia e do limita, permite e protege a relação diádica
enfrentamento pode ser a da construção e o narcisismo de origem. Pode não ser
dos “refúgios psíquicos” (Steiner, 1993), um pai, mas um conjunto familiar, uma
uma organização narcísica da personali- instituição, que desempenha a função de

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A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. O que isto pode significar?

dar holding à mãe e, mais precisamente, ma aliança fecunda, as fantasias edipia-


à unidade mãe-bebê. Não fazer isto seria, nas tenderão a se manifestar e a ser
ao contrário, aparecer como um terceiro recalcadas neuroticamente.
invasor e inimigo e em conluio com a mãe Vale assinalar que, na condição de
na tarefa de excluir e matar o bebê. Aqui parceiro, o pai também comparece como
se manifestam as formas mais cruentas modelo identificatório de “terceiridade”
da inveja. liberando as relações objetais para for-
Em seguida, o “pai” serve como mas de desenvolvimento salutares nos
objeto de investimento libidinal da mãe. É eixos do amor, do ódio e do conhecimen-
melhor que seja de fato um homem, mas to. Esta função de modelo identificatório,
pode ser o trabalho da mãe ou qualquer embora seja mais evidente em meninos,
outro interesse dela apaixonante. É preci- não é desprezível para a constituição
so que haja investimento erótico dela e psíquica da mulher. Será, igualmente, nesta
nela para que a mãe seja vitalizada e o condição que a superação do Édipo dei-
terceiro seja legitimado. Surgem ciúmes, xará como herança uma internalização de
o que já é uma evolução positiva da inveja ideais, valores, interdições etc., vale dizer,
anterior, mas estes ciúmes podem ser, em os elementos do superego.
princípio, contidos, transformados e repa- Finalmente, deve-se observar que
rados. A ausência do “pai”, neste mo- apenas nesta triangulação bem instituída
mento, deixa intatas as phantasias in- as relações de confiança podem emergir
conscientes de uma relação dual-narci- e se firmar. A confiança na mãe e a
sista exclusiva e excludente; os ciúmes confiança no pai, mais que isso, a confian-
que então podem emergir diante da mera ça no “casal”, como protótipo da confian-
possibilidade do rompimento desta rela- ça nas instituições, dependem da elabora-
ção são, aí sim, insuportáveis. ção da situação edípica. Por outro lado,
Mais adiante, o “pai” — um com- será a introjeção do casal como objeto
panheiro da mãe — funciona como par- bom e criativo que cria as condições para
ceiro de um casal parental fecundo e a confiança em si, como primeiro, segun-
benigno. Nesta condição, instala-se efeti- do ou terceiro em uma relação amorosa e
vamente a dialética de exclusão e inclu- cognitiva17.
são simultâneas, com as conquistas emo- As formas evolutivas da situação
cionais e psíquicas já mencionadas. Se a edípica em Melanie Klein, como se vê,
mãe carecer — no plano da phantasia incidem nos desenvolvimentos emocio-
inconsciente — de uma inserção em algu- nais, cognitivos e éticos. O respeito à
17
Embora Melanie Klein não tenha dedicado à confiança a mesma atenção de Balint e Winnicott (cf.
Figueiredo, no prelo), há menções a esta noção em seus escritos. Mas o que aqui está sendo acentuado é
que seu pensamento oferece excelentes bases para uma compreensão psicanalítica bastante integrada em
torno deste tema.

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 39(71): 125-150, dez. 2006. 143


Luís Claudio Figueiredo

alteridade e a confiança nos outros e em das experiências compartilhadas para dali


si são os principais ganhos destes proces- impor à produção fantasística (ou fantás-
sos e da boa resolução do complexo de tica) uma exigência de trabalho. É impor-
Édipo, vale dizer, dependem fundamen- tante que se perceba que o confronto não
talmente da boa ocupação do lugar de se dá entre a phantasia inconsciente do
terceiro. paciente e a realidade, representada su-
postamente pelo analista. O analista não
A clínica psicanalítica a partir de é o guardião da realidade e o suporte da
Melanie Klein verdade. O confronto deve ocorrer entre
as formas de expressão e simbolização da
Muitas observações já foram sen- phantasia e os mecanismos de defesa do
do feitas ao longo do texto sobre as paciente, refratários a admiti-las, expressá-
implicações e derivações clínicas das las e simbolizá-las. A função analítica não
noções de phantasia inconsciente e situ- é confrontar, mas constituir o campo do
ação edípica. A seguir, retomaremos com confronto intrapsíquico, vale dizer, situar-
a maior brevidade a elas, dando-lhes uma se no terreno das próprias phantasias e
feição um pouco mais organizada. seus conflitos com o ego do paciente.
No que concerne ao primeiro con- Finalmente, a “terceira clínica” —
ceito, acreditamos que a complexa clínica a mais nitidamente bioniana — tenta lan-
de W. R. Bion é a que mais tira partido das çar o paciente e seu analista em um
contribuições kleinianas. Podemos identifi- silêncio e um vazio de imagens — para
car em Bion (1962, 1965, 1970) três mode- fora, portanto, dos espaços mentais satu-
los clínicos em interação, embora ele mes- rados — e na direção do inesperado e
mo não se expresse nestes termos: uma desconhecido. Esta terceira clínica, cer-
clínica da continência, uma clínica do con- tamente, contrapõe-se à escola kleinia-
fronto e uma clínica do vazio. na dos inícios e às suas técnicas de
A primeira está comprometida com interpretação excessivas e muito impreg-
uma função de receber, conter e transfor- nadas de imagens. No entanto, esta críti-
mar phantasias inconscientes, o que exi- ca ativa ao kleinismo não dispensa o
ge a mobilização das phantasias do pró- conceito de “phantasia inconsciente” e a
prio analista, e, em decorrência, de suas sua redefinição bioniana, em termos de
rêveries; todas as suas idéias sobre con- “pré-concepção”. Ao contrário, deixa-a
tinente e contido, elementos β e função livre das idéias prévias, das imagens fei-
α,sobre as transformações etc. cami- tas, da exuberância imagética, fazendo
nham nesta direção. dela uma espécie de imaginação sem
A segunda destina-se a estabele- imagens, pura capacidade receptiva,
cer um limite firme para as phantasias, antecipadora, poiética e poética de cria-
estabelecendo-se o analista no terreno ção e espera do inesperado. Cabe à

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A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. O que isto pode significar?

negative capability do analista (1970) a teúdo específico, atesta a independência,


tarefa de deixá-lo “sem memória, sem a autonomia e a capacidade de pensa-
desejo e sem compreensão”, confiante no mento do analista, que, ao mesmo tempo
caráter produtivo da imaginação sem ima- que é objeto da transferência, mantém-se
gens, aquela capacidade que em alemão como observador do que se passa na
se diz justamente Phantasie. Novamente situação. Qualquer interpretação estabe-
aqui, cabe-nos recordar a noção de “ima- lece um ângulo novo na relação, um vér-
ginação radical” de Castoriadis, condição tice da triangulação. Por isso, alguns pa-
de emergência de toda representação, cientes recusam qualquer interpretação
mas ela mesma aquém do campo repre- exatamente como recusam, ou rejeitam, a
sentacional18. Esta terceira clínica de Bion triangulação, enquanto outros a dissol-
torna-se, assim, o melhor antídoto contra vem no já-sabido, tentando reconstituir
as “traduções simultâneas” e os “enxer- deste modo a ilusão de dualidade e narci-
tos” e contra os desvios éticos que emer- sismo. Assim sendo, como tão bem assi-
gem da mescla inevitável entre interpre- nalou R. Caper, a partir de Klein, Bion e
tação e construção. Transformar as Britton, cabe ao analista preservar uma
phantasias inconscientes em puras “es- “mente própria”, proteger e manter-se
truturas enquadrantes” — nas palavras fiel aos seus objetos internos, entre os
de A. Green — é o máximo a que pode quais a própria teoria psicanalítica. É a
chegar a clínica psicanalítica em suas afirmação do papel crucial do terceiro em
funções terapêuticas, embora as duas análise. Algumas vezes, o analista deverá
outras vertentes da clínica de W. Bion estar disponível para uma relação próxi-
continuem indispensáveis. ma e quase fusional, mas para isso vir a
Já as implicações clínicas da situa- ser terapêutico o lugar do terceiro ele-
ção edípica, do “Édipo precoce” e das mento deverá ser ocupado, seja pelo
funções do terceiro concentram-se nas setting, seja pelos objetos internos do
diversas funções do terceiro na situação analista, seja por um supervisor. Outras
analítica. O terceiro, além de desempe- vezes, caberá ao próprio analista ocupar,
nhar todas as “funções paternas” aponta- simultaneamente, este lugar e o lugar de
das no item anterior, mostra-se em suas segundo na relação. De uma forma ou de
várias figuras: o enquadramento, o mane- outra, a boa ocupação do lugar de tercei-
jo e as interpretações (em geral) são ro, escute-se o que se escutar, diga-se o
terceiros elementos nas relações entre que se disser, é certamente a base e a
paciente e analista. Qualquer interpreta- condição da ação terapêutica do psicana-
ção, aliás, independentemente de seu con- lista.

18
A “criatividade originária”, segundo Winnicott, também corresponde a uma potência imaginativa
destituída de formas prévias, puro vazio e virtualidade (Naffah Neto, comunicação pessoal).

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Luís Claudio Figueiredo

Melanie Klein no panorama da pectivas de aproximações e combina-


psicanálise contemporânea ções. Resgatar Melanie Klein pode ainda
ser a melhor maneira de nos mantermos
Chegamos ao fim deste percurso, freudianos, sem abrir mão de tudo que
sem falar em nome de Melanie Klein, mas veio depois dela no complexo universo
a partir dela, e sem qualquer pretensão de psicanalítico. De certa forma, ela pode
representar uma escola kleiniana. Mas é nos ser de grande auxílio justamente na
justamente deste lugar que podemos apre- superação da era das escolas, cujas so-
sentar seu pensamento clínico e o que ele brevivências anacrônicas ainda existem
nos oferece e propicia. É a partir dele que em um certo lacanismo e winnicottismo
se torna possível um resgate da autora, renitentes, com suas profissões de fé
para além de escolas e modismos. antikleinianas. E isso não é pouco.
O primeiro aspecto a destacar é a Mas talvez o aspecto mais deci-
possibilidade de síntese criativa entre a sivo para a clínica contemporânea te-
primeira e a segunda tópicas elaboradas nha sido o redimensionamento da no-
por Freud. Esta síntese torna-se capaz de ção de fantasia, gerando o conceito de
enfrentar os impasses e limitações das phantasia inconsciente com sua incrí-
três clínicas freudianas, quando vistas em vel capacidade de mediações. O alcan-
separado: a “clínica da representação”, a ce da escuta se amplia, bem como se
“clínica das pulsões” (o que inclui a ênfa- incrementa o alcance das interpreta-
se no irrepresentável) e a “clínica dos ções e demais dispositivos analíticos
mecanismos de defesa”. A clínica psica- quando dispomos de um conceito que
nalítica a partir de Melanie Klein articula atravessa a unidade somatopsíquica em
estas três vertentes de forma integrada. suas diversas formas de articulação, e
Com ela, ou a partir dela, podemos em seus diferentes níveis de desenvol-
também empreender a superação de al- vimento. Os cuidados a neuróticos, psi-
guns mitos da origem: o mito da origem cóticos, perversos, borderline, com-
plena, da indiferenciação e do idílio — tal pulsivos, psicossomáticos etc. podem
como pode ser entendido de algumas encontrar em Melanie Klein e no seu
posições de Winnicott — e o mito da conceito de phantasia inconsciente uma
origem como falta e pura diferença — tal base consistente. Sem que precisemos
como se depreende do pensamento de descartar todas as extraordinárias ela-
Lacan. Não é de estranhar que, no silên- borações teórico-clínicas — inclusive
cio que se criou em torno de Melanie as não-kleinianas e antikleinianas —
Klein, Winnicott e Lacan tendam a cres- que povoam nossa história de pouco
cer, mas também a revelar seus limites e mais de cem anos. E isso é bastante,
unilateralidades e, ainda, a ensejar pers- mesmo que não seja suficiente.

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A clínica psicanalítica a partir de Melanie Klein. O que isto pode significar?

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Luís Claudio Figueiredo

SUMMARY

The psychoanalytic practice after Melanie Klein.


What this means?

In the present paper two aspects of the kleinian thought are identified as possible
basis to the contemporary psychoanalytic practice. The concept of unconscious
phantasy and the questions around the oedipal situation, along their transformations,
evolutions and aspects, are examined, including the early Oedipus complex. Both of
these themes can be conceived as a solid and useful ground for psychoanalysts of non-
kleinian orientations.

Key words: Contemporary psychoanalytic practice. Unconscious phantasy. Oedipal


situation and early Oedipus complex.

RESUMEN

La clínica psicoanalítica con base en Melanie Klein.


Qué puede eso significar?

En el presente trabajo, se hace un esfuerzo para identificar algunos razgos del


legado kleiniano para la clínica psicoanalítica contemporánea, aunque el psicoanalista
no estea filiado a la escuela de Melanie Klein. Dos temas serán objetos de un detenido
examen: el concepto de phantasia inconsciente y las cuestiones relativas a la situación
edípica, lo que incluye el Édipo precoce.

Palabras-clave: Clínica psicoanalítica contemporánea. Phantasia inconsciente. Situación


edípica y Édipo precoce.

Luís Claudio Figueiredo


R. Alcides Pertiga, 65 — C. César
05413-100 São Paulo, SP
Fones: 3083-3731 / 3086-4016
E-mail: lclaudio@netpoint.com.br

Recebido em: 10/11/06


Aceito em: 14/12/06

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