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I. O encontro
Tinha sido um dia quente e ensolarado; já era noite. O calor descia a camisa que
comprou semana passada, sem, porém, retirar o aroma amadeirado do perfume que
adquirira na última viagem do ano passado, com sua ex esposa. Sentado na
arquibancada do estádio via um dos jogadores passar a bola para o outro, num
movimento gracioso e hábil. O jogo havia começado a pouco tempo e ainda nenhum
dos times havia marcado.
O encontro aconteceria ali, assim haviam combinado, ele e ela. Já trocavam
mensagens a algum tempo, mas nunca se conheceram pessoalmente. Como ela era uma
torcedora irremediável, pensou ele que seria uma boa ideia se ver em um dia de jogo.
Não ligava muito para esse tipo de esporte, mas pensou, ora, por que não?
Como ela sabia onde estava na arquibancada, assim que chegou – e isso não
demorou muito, após o início da partida – foi ao seu encontro.
Oi, disse-lhe
Oi, já chegou faz tempo?
Não, um pouco antes do jogo começar
Ah, sim!
Como não era bom em conversar, pensou que pudesse ser uma boa ir a um lugar
onde não precisasse dizer muito, mas apenas focar no jogo e fazer um comentário ou
outro esporadicamente. Já estava quase arrependido, mas pensou em um momento que
se não fosse a algazarra da torcida, teria reinado um silencio deveras constrangedor.
Quando a torcida gritou pela pontuação, ela levantou-se sem pestanejar e
comemorou efusivamente; enquanto ele, sem saber muito como se portar, meio
deslocado, ficou parado, à espera de seu retorno ao assento, para que pudesse tecer
algum comentário.
Belo, não?
Sim, fantástico, não esperava menos de meu time.
Depois disso ficaram só fitando o desenrolar da partida, sem mais nenhum
contato, a não ser um breve olhar de esguelha que ele a deu por alguns segundos, mas
não foi correspondido. Pareceu-lhe que estava curtindo e compenetrada.
Terminada a partida, na qual saiu vitorioso o time de sua acompanhante, após
uma tormentosa e decisiva disputa que só nos instantes finais sinalizou o triunfo,
desceram os dois a arquibancada e dirigiram-se ao portão que dava acesso ao corredor.
Nesse, andaram em meio a uma multidão de torcedores, nada sóbrios e barulhentos.
Quando ele olhou para o lado não mais a viu, ela sumira no meio da turba
alucinada e raivosa. Parou por um momento, pensando que passada a manada ela
poderia achá-lo. Depois de alguns minutos, começou a se dar por vencido. Foi
caminhando até a saída, na vã expectativa de encontrá-la, pensando que devia ter
elucubrado algum jeito de escapar de sua soturna presença.
Após confirmar suas expectativas, andou até o ponto de ônibus mais próximo,
pensando em quão longe seria o caminho de volta para casa, pois morava distante de
onde estava. Lá chegando, viu que o local estava cheio. Muitos, pelo visto, pegariam o
mesmo caminho de volta que ele. Uma fila começou a se destacar no lugar, as pessoas,
já menos furibundas, aguardavam a condução, quando um ambulante começou a
anunciar o seu produto a gritos. Dois indivíduos a sua frente compraram um maço de
cigarro escrito “Ilha”, em que havia uma foto atrás de um homem decrépito e respirando
por aparelhos. Tratava-se de uma campanha do governo, para desestimular o consumo
de nicotina.
Ainda esperando o transporte, ficou ele na expectativa dela aparecer. Em uns
dois minutos depois aquele chegou, e já era quase sua vez de entrar; porém, mais uma
vez nada aconteceu. Seria uma longa viagem para casa.
II. A segunda Vi(n)da
Em uma noite fosca e quente, Margarida estava despida no sofá aguardando seu
nobre vassalo Clemente. Ambos extáticos, penduraram os seus pudores e atravessaram
horas de suor e deleite. Nada os interrompia, nem mesmo o pensamento, que dormitava
enquanto a carne ia à labuta voluptuosa.
No despertar do transe lascivo, as horas ainda tardavam a ganhar o dia.
Margarida diz que vai até a cozinha pegar um copo de água, pois depois de tanto
desgaste, seu corpo pedia para ser hidratado. Clemente fala que a aguarda no quarto ao
mesmo tempo em que assente com a cabeça.
Nesse meio tempo, levanta-se do sofá e vai olhar a janela do quarto. A rua estava
iluminada apenas por alguns poucos postes. Viu um casal de jovens transitando na
calçada, com as mãos dadas e rindo. A monção apascentou sua alma, que jazia ociosa e
frustrada, mas complacente. Nada lhe faltava enquanto ele era outro.
O rapaz vestia-se bem e aparentava ter metade da sua idade, a moça era
deslumbrante e andava firme e altiva. Clemente fitou-os até não mais poder. A imagem
trouxe-lhe um acalento, qual fazia tempo já não tinha.
Um barulho irrompe o silêncio no tálamo e Clemente dá um pulo; era
Margarida, que havia quebrado um vidro em outro cômodo, enquanto se penteava
sentada. Desajeitada e sonolenta, esbarrara seu cotovelo no espelho, que, sobre a
cabeceira, guardava memórias de outrora.
A dama levantou-se e foi titubeando para o quarto que acomodava o casal.
Margarida sofre de artrose, o que a fazia andar mais devagar, para suavizar as dores que
sentia.
Chegando no quarto, Clemente absorto em pensamentos, olhou para sua senhora
e notou de si para si que a figura dela apequenava a noite e seu perfume rescendia os
finais de domingo, que em nada lhe agradavam, por lembrá-lo que o dia vindouro estava
próximo e que a roda da refrega circularia mais uma vez.
Sentiu-se mal e egoísta por pensar assim, mas era incapaz de tornar atrás. Viu-se
em um emaranhado de culpa e auto sinceridade. Como poderia punir-se duplamente? O
tempo já se encarregava dos dois e fazia o trabalho pesado.
- Quantos dias cabe em um dia? Perguntou em voz alta, como se esperasse uma
resposta.
Margarida, cujas rugas formavam sulcos em sua derme, acendeu um cigarro e
viu-se ao longe. Evitou fitá-lo, quanto mais respondê-lo. A alcova ganhou ares de
miasma. Terminado o fumo, apenas arrastou seu andrajo para o leito e dormiu.
IV. Eus (ou dois sóis)
Havia oito meses que não se viam, mas Jean pensava que parecia ter mais
tempo. Terminaram após muitas brigas. Nenhum mais aguentava o outro, mas ele tinha
ainda saudades dos momentos que passaram juntos.
Jean queria viajar para conhecer sua família por parte de pai, até para não mais
pensar em quem o magoara tanto. Queria começar de novo, talvez, em outro lugar. Seus
parentes moravam distante, no Japão, do outro lado do globo.
Não muito tempo depois de juntar umas economias de seu trabalho como ator,
conseguiu reservar um voo para lá em uma época propícia do ano.
Chegado o momento esperado, Jean se instalou no avião e quando se deu conta
já tinha alcançado o tão sonhado destino. Combinara de se encontrar com seu tio
Tanaka e sua tia Frida.
Logo que os encontrou, deparou-se com uma amistosa recepção dos dois que de
pronto o ajudaram com suas bagagens. Levaram-no para estadear em sua casa durante o
período que o sobrinho precisasse. Jean ficou feliz com a maneira que seus tios o
acolheram e refletiu como as coisas poderiam dar certo naquele lugar, onde tudo era
novo.
A casa dos seus tios possuía uma sala espaçosa e antiga, com tapetes orientais,
um piano, uma lareira e sem televisão. Muitos móveis antigos e uma estante de livros já
meio carcomida pelo tempo.
Jean se aprumou para pegar uma brochura da estante, enquanto Frida preparava
um chá para seu sobrinho.
- Gosta de ler então né? Disse Tanaka.
- Sim, mas estou vendo que aqui a maioria dos livros estão em japonês, de modo
que não poderei os ler, já que não entendo nada do idioma.
- Ah sim, mas temos alguns que não são, depois posso te emprestar.
- Tudo bem, mas não precisa – afirmou Jean tentando ser amigável.
- Você sabia que existem palavras que só existem em alguns idiomas? Perguntou
Tanaka, querendo estimular o jovem a um discurso.
- Bom, já ouvi dizer, mas não sei muito bem como funciona isso. Creio, porém,
que cada palavra pode ser traduzida por uma correspondente.
É verdade, com a exceção daquela que te dá o nome, pois essa, só em sua língua
pode-se proferir. Nenhuma outra palavra ganha o mesmo sentido do que a no seu
próprio idioma, para expressá-la.
Após essas reflexões, o assunto se encerrou e Jean, após tomar o chá que sua tia
preparara, subiu para o seu cômodo e pegou-se pensando naquilo o resto do dia. Por
estar deveras cansado da viagem, logo pegou no sono.
Na manhã seguinte, enquanto deambulava pela cidade, tudo lhe lembrava o que
seu tio havia dito. Foi até o jardim japonês que esse lhe indicara. O sol estava alto e o
céu sem nuvens. Parou em uma pequena ponte que atravessava um lago repleto de
cardumes e contemplou, à sua margem, uma relva robusta de um verde viçoso e escuro.
Pegou-se pensando nela por um instante e viu que nada traduzia a si naquele lugar.
Rememorou os anos que passaram, as conquistas, o lar que haviam construído e até
algumas das brigas bobas que tinham. Percebeu que estava no país do sol nascente
apenas em matéria, em carne e osso, pois sua aurora despontava em outro lugar.
Em mais alguns dias viu-se cansado e achou melhor voltar. Sua viagem chegava
ao fim. Despediu-se de seus tios e agradeceu-lhes pela acomodação e pelo modo como o
trataram no pouco tempo que ficara.
Tanaka e Frida despediram-se, comovidos. Queriam que seu sobrinho ficasse
mais, pois além de gostarem muito da companhia deste, não tinham um filho – embora
tivessem querido cuidar, quando mais jovens, de uma outra vida. Contudo, Tanaka era
estéril e não pensavam em adotar.
No retorno para casa, Jean pensou no que disse seu tio, e depois foi pensando em
outras coisas, até se esquecer.
V. O acidente.
Lá estava ela. Vi sua figura no alpendre, estendendo as roupas no varal. Sua
beleza contrastava com o tom escuro do recinto em que me situava e nada iluminava
mais que sua tez negra curtida por Hélio. Batia um ânimo no desânimo de lembrá-la.
Algo me restou, mas era tudo.
Conhecemo-nos ali. Já a tinha contemplado por eras. Após muita hesitação, a
afoiteza exsurgiu. Depois maldizia o dia que a não via. Nada, porém, mudou, somente
as coisas como eram, pensei.
Não podia mais viver lá. Vendi a casa por um preço não tão bom assim. Se
considerasse o que ela vale por suas lembranças, decerto que ela estaria fora de alçada
de qualquer um. Mas precisava do dinheiro e o lugar já não mais pertencia ao que havia
de mais importante.
-Maldita pista oleosa... e aquela árvore...
Percorria o inventário de memórias deixadas, até encontrar uma carta de tempos
imemoriais, devia estar sempre ali, sempiterna. Li o texto que deixara. Carpia como
nunca antes. Um álbum de fotos recordava-me do que não queria. Já sofrera muito. Sem
adentrar no que se sucedeu desde então, lobrigava naqueles momentos, que eram um
tanto.
Acordei do sono desperto e me encaminhei ao solar de outrora, como quem
quisesse ficar mais. Tal como era permaneceu. E foi ficando que ficou...
Até o telefone lembrar-me o dia, pisei no solo e dei-me conta de que flutuara
demais. Atendi, mas não era ninguém, como de costume.
-Que horas são? perguntei a camareira, que a essa altura cumpria seu ofício,
enquanto do outro lado da sala esperava por ontem.
-Ora, já são 15 horas.
-Ah sim, obrigado.
Como tivesse visto o dia passar, peguei minhas escolhas e saí, pra dentro.
VI. Diário de um homem sem vida.
VII. Telecinese