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Maria de Lourdes Parreiras Horta *

Semiótica e Museu

A abordagem senuotica do fenômeno museológico parece-me poder abrir


um campo novo e extremamente frutífero para a teoria e a prática dos museus, no
momento em que a ruptura 110S modelos clássicos e nas suas formas de ação -
provocada por demandas sociais e transformações culturais cada vez mais críticas
e urgentes - coloca os profissionais da Museologia ante a necessidade imperiosa
de rever os seus critérios e crenças, e de buscar novas maneiras de compreender e
de avaliar o seu trabalho e sua interação com o meio social.
Vivemos uma crise de identidade - institucional e profissional - que coloca
em jogo as certezas simplísticas e vagas sobre a necessidade e a utilidade dos
museus, assim como sobre a natureza de nossa competência específica, como
museólogos, e da nossa performance , ou práxis social, no contexto da realidade
em que vivemos.
A intenção desta minha comunicação é a de tentar compartilhar algumas idei-
as e conceitos que pude elaborar e analisar ao longo dos últimos anos, e que me
levam a pensar que o estudo da Semiótica (ou da Semiologia, para alguns) deveria
ser uma disciplina fundamental na área da Museologia, como um instrumento de
trabalho indispensável ao aprimoramento de nossa profissão. Algo como um nu-
croscópio num laboratório, ou um telescópio num observatório - que nos possibi-
lita a percepção das micro-estruturas e da dinâmica do fenômeno museológico,
além de sua aparência superficial, e que nos permite uma visão ampliada do uni-
verso social em que navegamos, como satélites artificiais, emitindo mensagens
que nem sempre são captadas na terra da realidade brasileira, e que às vezes se
perdem em ondas magnético-culturais que vão morrer em outras praias, que não as
nossas - de Saturno, de Urano ou Netuno, conforme o nosso mapa astral...
Os instrumentos da Semiótica podem servir assim, não como uma bússola,
o que conotaria a existência de uma só direção, a nortear os nossos rumos - e a
Semiótica não é normativa, ou dogmática - mas como um painel de radar que nos
permita captar com mais sensibilidade a energia e o movimento dos corpos soci-
ais que circulam em torno de nossas pequenas cápsulas, chamadas "museus"; um
instrumento que nos permita entrar em sintonia com essas forças, e uma comuni-
cação eficiente com elas, inseridos em órbitas cada vez mais expandidas e em
harmonia com o cosmos cultural. Na verdade, sem esse recurso, corremos o ris-
co, cada vez mais provável, de nos chocarmos com alguns desses corpos - políti-
cos, históricos, sociais, comunitários - e, pelas leis da física e da gravidade, de
nos desintegrarmos no ar, ou de cairmos no ferro-velho das invenções obsoletas e
que já não tem uso na vida quotidiana.
A palavra-chave que surge desta imagem, tipo "Spielberg-2001", é a comu-
nicação: como qualquer instituição social, os museus se baseiam num sistema de
trocas, de veiculação, de circulação de informações, de mensagens e discursos,
10 ESTUDOS DE MUSEOLOGIA

de bens materrais e imateriais. A abordagem semiótica dos museus permite-nos


vê-Ias como meios de comunicação, inseridos no processo cultural e tendo por
base sistemas de significação, ou CÓdigos culturais, que regulam e coordenam es-
sas trocas significativas e simbólicas, com linguagens próprias a cada cultura, re-
sultantes e determinantes dessa própria cultura.
Antes de abordar em mais detalhes alguns conceitos básicos para a compre-
ensão dos mecanismos semióticos em jogo na experiência do museu - o que nos
~ ~permitirá falar da "museal idade" dessa experiência - vamos falar sobre o que é,
afinal, a Semiótica, ou a Semiologia, que para alguns ainda assusta, como algo
esotérico demais, sofisticado demais ou muito complicado ..
O que quer dizer Semiótica? Uma ótica pela metade? Uma ciência cabalís-
tica? Um tipo de visão do mundo? Esta última alternativa parece a mais acertada
para se tentar definir um tipo de investigação, de perspectiva, quase um tipo de
"óculos" que se pode colocar para deixar de ver as coisas pela metade, no seu
aspecto puramente concreto, aparente, convencional... um instrumento que nos
permite desmistificar a ilusão do "império dos sentidos" - ver, ouvir, tocar, chei-
rar, falar - e nos coloca sob o império do sentido, da significação, o sentido de
cada ato de percepção, de expressão e de comunicação e, no nosso caso, o sentido
de cada ato ou ação museológica.
A abordagem semiótica nos leva a uma nova visão do museu não como insti-
tuição, como uma estrutura formalizada, mas como um meio, um instrumento, um
sistema de comunicação, com uma estrutura dinâmica, cibernética, que tem uma
parte ativa no processo cultural; uma estrutura flexível e mutante como a da Lin-
guagem, que se apóia em um novo conceito do objeto "museal". Sob essa ótica do
sentido, os objetos inseridos no contexto museológico desempenham uma fun-
ção significativa, como signos da Linguagem "museal": sua materialidade origi-
nal e concreta serve como suporte de sentidos e remete-nos a outros objetos, au-
sentes do nosso campo de visão mas presentes em nosso universo mental, como
unidades culturais, como palavras de um texto cultural, expresso e refletido no
texto "rnu seal". Desse pressuposto decorre assim, da mesma forma, um novo con-
ceito de exposição museológica, como exercício de uma linguagem específica, e
como uma arte de organizar e articular essas unidades, esses objetos/signo, em
discursos coerentes e significantes para a sociedade. A partir daí, é possível de-
tectarmos e analisarmos a retórica particular que formaliza esses textos museoló-
gicos, as ideologias que lhes servem de base, a produtividade ilimitada desse pro-
cesso. É a partir desta abordagem que nos será possível definir o conceito da
"rnuse al idade", da qualidade e da natureza essencial do fenômeno "rnuseal" e de
seus signos, mecanismos e discursos. A missão do museu e do trabalho do muse-
ólogo adquirem, desse modo, um novo sentido, uma nova dimensão - intrinseca-
mente social e cultural - a partir do momento em que temos consciência de sua
potencial idade e de seus efeitos na interação com os indivíduos e os grupos soci-
ais. É nessa dimensão complexa da produção de sentidos, da elaboração de mode-
los de mundo e da proposição de discursos sobre a cultura que a teoria e a prática
SEMIÓTICA E MUSEU 11

da Museologia podem encontrar o seu campo científico de investigação no insti-


gante campo das Ciências Sociais.
A Semiótica, como ciência, disciplina ou campo de estudos, procura expli-
car e investigar os mecanismos mentais, intelectuais, lógicos, afetivos, culturais
e sociais que estão em jogo em cada ato de ver, ouvir, tocar, falar, em cada ato de
comunicação conosco mesmo, em nosso discurso interior, ou com os outros, na
coletividade.
~_ Para isso ela vai buscar subsídios em disciplinas correlatas ou cooperati-
vas, tais como a Lógica, a Matemática, a Psicologia, as teorias do Conhecimento e
da Percepção, a Antropologia Cultural, a Etnometodologia, a Psicanálise, a Lin-
güística, as Teorias da Informação e da Comunicação, a Semântica Estrutural, a
Gramática Gerativa, a Retórica, a Poética, a Estética, a Literatura, os estudos do
texto e do discurso. Todas essas disciplinas elaboraram teorias, métodos e con-
ceitos que são úteis à abordagem semiótica, que incorpora em sua própria teoria
esses dados, redefinindo-os em sua perspectiva própria.
Não sendo uma filosofia, ou uma especulação teórica sobre a natureza dos
seres e das coisas, a Semiótica propõe-se a ser uma ciência, uma disciplina, um
método de investigação, ainda em expansão e elaboração, e como tal, parte de uma
definição de seu objeto específico, ou de seu campo de estudos, cujos limites
são, às vezes, difíceis de se estabelecer.
Esse objeto de estudo, passível de ser observado e analisado dentro de pers-
pectivas e fronteiras teóricas mais ou menos claras e definidas, parte daquilo que
lhe dá o nome - o signo ou semeion , em grego - e expande-se na análise da vida
desses signos na sociedade, de acordo com a definição de Ferdinand de Saussure
(Q.l), lingüista suíço considerado um dos pais da Semiologia. No decorrer de seu
Curso de Lingüística Geral, publicado por seus discípulos em 1916, Saussure pro-
põe a possibilidade de uma disciplina ainda não existente, mas que teria direito,
ou que deveria existir - a esta ciência ele dá o nome de Semiologia, o estudo dos
signos, como base de qualquer linguagem, de qualquer sistema de significação e
de comunicação. A Semiologia deveria tornar-se uma ciência-mãe, incorporando
todos os estudos da linguagem, inclusive o da linguagem verbal, objeto da Lin-
güística propriamente dita.
A preocupação com os signos e os processos de significação e de expres-
são de sentidos não se inicia neste século. Os lógicos e os filósofos da antigüida-
de - como Aristóteles, por exemplo - já se preocupavam com a questão. Santo
Agostinho, o filósofo e doutor da Igreja, é um dos que se dedicam profundamente
ao estudo do sign um e do signatum , do signo e do significado. Locke, o pensador
e lógico inglês, é igualmente um dos precursores da Semiótica, em seu ensaio
concernente ao entendimento humano. Uma longa sucessão de filósofos e lin-
güistas se encadeia e se entrecruza para formar as bases dessa nova disciplina, que
se formaliza no século XX, recebendo um grande aporte do Estruturalismo.
Em 1931, a publ icação dos escritos do americano Charles Sanders Peirce
propõe as bases da teoria que ele batiza de Semiótica, considerando-se um pionei-
ro na elaboração dessa disciplina, derivada da Lógica e da Matemática, e buscando
Q.l

'n'rale

SEMIOL

o estudo da vida do imo na ociedade

FUNDAMENTOS q a ingüís ti a. a linguagens


"narurais" erbais)
I

Q.2
Charles San e - P_ CE
19"'}
"Collected Paper ..
,
SEMIOTIC

o estudo do processo infinito da »semiose"


relações e processos lógicos do pen amento e da comunicação

FUNDAMENTOS q a Lógica as linguagens


matemáticas
SEMIÓTICA E MUSEU I3

nessas ciências a estrutura das relações mentais, dos processos lógicos e abstra-
tos que governam o pensamento e a linguagem, como base para a comunicação
(Q.2).
Enquanto Saussure se preocupava em explicar a estrutura dos signos tendo
como fundamento os estudos de linguagem verbal, focalizando principalmente os
processos da significação, Peirce procurou explicar os mecanismos dos signos, o
processo das trocas mentais de idéi as abstratas através de sinais concretos, que
ele denomina o processo infinito da semiose, ou da geração de sentido, no pro-
cesso de comunicação entre indivíduos, ou entre indivíduos e a realidade concre-
ta. A Semiótica de Peirce amplia assim o enfoque e o alcance dessa nova doutrina
e possibilita uma fundamentação mais científica para uma teoria da comunicação.
A escola de Semiologia oriunda dos cursos de Saussure, apesar de toda a
gama de enfoques e explorações teóricas desenvolvidas ao longo de seu percurso,
mantém inevitavelmente a referência à linguagem verbal e aos paradigmas da Lin-
güística, formalizados pelo grande mestre. A influência de Saussure foi determi-
nante na obra de sucessivas gerações de estudiosos, entre os quais os membros do
Círculo Lingüístico de Praga, a Escola Soviética de Tartu, o Círculo Lingüístico
de Moscou e de Copenhague, e entre os nomes fundamentais para os estudos da
Semiótica estão Roman Jakobson, Iuri Lotman, Ivanov e Todorov, Louis Hjelmslev,
entre muitos outros. Roland Barthes, um dos maiores críticos literários e sernió-
logos da modernidade, inverte a proposição de Saussure, sugerindo que a Semióti-
ca, ou a Semiologia, como o estudo das linguagens não-verbais, poderia ser vista
como uma parte integrante de uma Li ngüística Geral, que abarcasse todas as li 11-
guagens.
A Semiótica derivada de Peirce e de outros teóricos anglo-saxões não se
limita aos parâmetros da Lingüística, como princípios fundamentais, mas a vê como
um dos possíveis ramos da Semiótica Geral, considerada ainda em elaboração.
Umberto Eco, um dos mestres e teóricos da Semiótica contemporânea, re-
laciona uma série de disciplinas e campos de estudo passíveis de serem abordados
sob o enfoque da Semiótica.
• a "Zoo-Semiótica", por exemplo, que estuda os sistemas de comunicação
dos animais, como um limite inferior da Semiótica, mas que revela alguns meca-
nismos de comunicação presentes na linguagem humana;
• a "Semiótica Médica", a primeira disciplina a utilizar esta designação, a
Semiótica, como o estudo dos sistemas e sinais que permitem aos médicos diag-
nosticar e descrever os diferentes sintomas e patologias;
• as linguagens artificiais ou científicas e seus sistemas de sinais lógicos e
convencionais, como a Matemática, a Álgebra, a Química, a Física, ou as lingua-
gens dos computadores e seus sistemas de operação em códigos binários, o códi-
go Morse, o alfabeto dos surdos-mudos, os sinais de trânsito, ou os códigos de
bandeiras e apitos usados na navegação;
• as linguagens não-verbais, como a mímica, o gesto, a "proxêrnica", a mú-
sica e a dança, as artes plásticas, que articulam signos e comunicam mensagens
em sistemas mais ou menos convencionais e sistematizados.
14 ESTUDOS DE MUSEOLOGIA

Umberto Eco chega a referir-se até mesmo a um sistema de comunicação


interplanetário, que poderia ser estudado pela Semiótica, a partir da premissa bá-
sica, postulada por alguns, de que ele exista.
Outras linguagens e sistemas de significação e comunicação existem e são
utilizados por todos nós em nossa civilização contemporânea, sem que nos demos
conta de que os usamos e compreendemos, por força dos códigos sociais e cultu-
rais que nos governam, tais como a linguagem da moda, estudada por Barthes, o
~ sistema dos objetos, analisado por Baudrillard, os sistemas de culinária ou de pa-
rentesco, estudados por Lévi-Strauss, as linguagens dos mitos, da propaganda, da
comunicação de massas, da televisão, os ritos sociais e religiosos, as linguagens
simbólicas e de comportamento, estudadas pela Sociologia, pela Psicologia Soci-
al e pela Psicanálise, e até mesmo, como vamos propor aqui, a linguagem do mu-
seu.
Todos estes campos de estudo, abordados como sistemas e modos de signi-
ficação e de comunicação entre indivíduos e sociedades, são passíveis de serem
estudados e compreendidos através dos métodos e dos princípios da Semiótica,
mesmo aqueles nos quais, aparentemente, não se reconhece a sua capacidade de
veicular e de gerar sentido ou significação.
O que há em comum entre todas essas possíveis linguagens é, na verdade, a
presença do signo - um conceito complexo e muito discutido - mas que se poderia
definir como instrumento do sentido. Os signos são instrumentos mentais, ne-
cessários ao homem, do mesmo modo que os instrumentos físicos e concretos
que ele produz, que permitem aos indivíduos representar e transmitir idéias e con-
ceitos abstratos, ou referir-se à realidade, na interrelação social.
Como um campo de estudos complexo e abrangente, a Semiótica pode ser
vista como uma disciplina ou uma teoria que pode ser o ponto de encontro de
inúmeras disciplinas correlatas. Entre elas podemos situar a Museologia, no en-
foque que vamos propor aqui, como o estudo dos signos culturais, de seus signifi-
cados e relações no processo e na vida social, com o objetivo de sua preservação
e comunicação, como base da memória e da ação da sociedade.
Em 1967, por ocasião de um simpósio internacional que criou a Associação
Internacional de Semiótica, foi adotada a designação "Serniótica" para esta ciên-
cia geral dos signos, ainda em evolução e expansão. Julia Kristew, por exemplo,
propôs recentemente a expansão do campo da Semiótica para o de uma "Sernanálise".
Adotaremos o termo Semiótica, ao abordar o campo da Museologia sob este enfo-
que, sem nos preocuparmos com as sutilezas teóricas que poderiam diferenciá-Io
do termo Semiologia - que vem a constituir, afinal, o mesmo campo de estudos.
Se os seguidores da Semiologia saussuriana prendem-se muitas vezes à ma-
triz lingüística da questão do signo, é preciso não esquecer que o próprio Saussure,
ao definir o seu conceito de signo - apesar de não ter chegado a uma clareza abso-
luta sobre esta definição - partia do princípio de que um signo é basicamente um
fenômeno mental, algo que se passa na mente dos indivíduos, indiferente à subs-
tância concreta dos sinais que lhe servem de veículo. Uma palavra é um signo,
assim como um desenho, uma fonte de luz, um som, um gesto, um objeto, podem
ser signos (Q. 3).
Q.3
A ESTRUTURA DO SIGNO

I "SIGNIFICADO"
ARBRE '"SIGNIFICANTE"

SAUSSURE, 1916

e, __e
"ARVORE"
I I I

I I
duW
I
16 ESTUDOS DE MUSEOLOGlA

Por ser um fenômeno mental, e por ser quase impossível penetrarmos na


mente de um indivíduo, o conceito de signo fica limitado, quando procuramos de-
fini-Io, como fez Saussure, como uma entidade específica e particular. Umberto
Eco propõe a implosão desse conceito quase ingênuo e limitado r, preferindo a
análise e a investigação da função significativa de um elemento qualquer - palavra,
coisa, objeto, som, luz, gesto, elemento natural - considerado ou utilizado como
signo, ou com uma função "sígnica", em determinadas circunstâncias e contextos
J.~specíficos.
Lembro-me aqui da minha infância, quando passava horas a discutir se as
nuvens pareciam camelos ou elefantes, até que o vento as tocava e desmanchava, e
minha mãe me dizia para entrar, porque ia chover. Para a criança, as nuvens eram
signos do zoológico da imaginação, para o adulto, um simples sinal da mudança de
tempo ... O universo das crianças, dos loucos e dos artistas é altamente semiótico.
Chegamos, assim, ao ponto crucial da questão semiótica, que é a questão do
signo - ou da função "signica" - e dos mecanismos que determinam e governam
essa função, que fazem do signo um instrumento de significação ou de geração de
sentido, indispensável a qualquer processo de comunicação.
O que é, afinal, um signo, e como ele funciona no processo de significação
e comunicação?
Todo mundo fala em signos, hoje em dia, e agora, mais do que nunca, nos
preocupamos em saber os nossos signos de nascimento, para ler o horóscopo no
jornal, ou para ver se combinamos com esta ou aquela pessoa. Já falamos aqui em
mapa astral, e a Astrologia, tão discutida e tão na moda, também pode ser inserida
no campo dos estudos semióticos, juntamente com o Tarô, o I Ching ou o jogo de
búzios ... Na verdade, sabemos que não existem Aquários ou Virgens no céu. Sagi-
tários, Peixes e Leões, Touros e Capricórnios, Balanças e Escorpiões são figura-
ções simbólicas, são imagens mentais correspondendo a seres ou a elementos re-
ais ou mitológicos (alguém já viu por acaso um Sagitário atravessando a rua?) que,
de acordo com um código cultural, um sistema de significação, no caso, o da As-
trologia, representam idéias ou qualidades, atributos e aspectos da própria nature-
za humana.
As linhas que se cruzam num pedaço de papel, com letras e símbolos codifi-
cados pela Astrologia, numa mandala gráfica chamada mapa astral, representam
para os adeptos do método o mapa do céu no momento do nascimento de uma
pessoa e ao longo dos trânsitos e órbitas planetárias ... Misticismo, ou supersti-
ção? Ciência ou terapia?
Até hoje os astrônomos não param de descobrir novos corpos celestes, al-
guns invisíveis, como os buracos negros ou as estrelas anãs, e conseguem ouvir
um estrondo que aconteceu há 50 milhões de anos-luz. Ora, direis, ouvir estre-
Ias ... resmungava o poeta, mas até hoje conti nuamos a querer ouvi-Ias e entendê-
Ias. Se os cientistas pesquisam hoje aquilo que nenhum olhar humano jamais po-
derá enxergar e se os místicos, os astrólogos e os crentes procuram uma compro-
vação científica para suas visões de mundo, alguma coisa nos diz que no universo
SEMIÓTICA E MUSEU

da mente humana, as fronteiras da Lógica e da Poesia se fundem irremediavelmen-


te ... e podemos talvez afirmar que, no momento em que estes dois pólos, aparen-
temente opostos, se encontram em nossa mente, nasce um signo.
Descobrimos, então, o que os astrônomos e os astrólogos, os cientistas e
os poetas, os artistas e o homem que passa na rua têm em comum: os mecanismos
básicos de suas máquinas mentais, capazes de processar a realidade em células
abstratas, em unidades de sentido, ou unidades culturais, ou melhor, em signos.
Os mecanismos lógicos da inteligência e da racionalização vão organizar essas
unidades em sistemas, por comparação, dedução, inferência, sintetização; o lado
direito do cérebro, simultaneamente, e sem que alguma coisa seja capaz de irnpe-
di-Io, desafia esses mecanismos com a força desorganizada e intuitiva da imagina-
ção. É quando a Poesia entra em ação nesse processo, brincando com os dados da
memória e do pensamento, e extraindo deles, por invenção, criação, extrapolação,
um mundo inesgotável de imagens e sensações, que a própria razão desconhece e
que as palavras criadas nem sempre são capazes de exprimir. Esse fenômeno, essa
batalha interna de imagens e significados, é uma "guerrilha semiótica" (nos ter-
mos de Eco), impossível de ser controlada, imprevisível e ilimitada; é o fenôme-
no da Arte, da criação, da invenção, da Poesia, da Comunicação. Se não podemos
determiná-Io ou mantê-Io sob controle em nossas relações com os outros, é im-
portante conhecê-Io em toda a sua complexidade para podermos, ao menos, ter
consciência das condições e dos limites de nossos atos de comunicação e de ex-
pressão.
O espaço museológico, visto como um espaço semiótico, é um campo ideal
para o estudo dessa batalha de significados, de signos e de interpretações, que
ainda não foi suficientemente explorado.
Como podemos explicar o fenômeno semiótico de maneira mais concreta,
ou menos abstrata do que fizemos até aqui?
Jonathan Swift, nas suas Viagens de Gulliver, descreve o que se passava na
ilha de Laputa, onde um sábio inventara um sistema infalível e simples de comuni-
cação: cada um dos minúsculos habitantes da ilha levaria em um saco todos os
objetos possíveis de serem referidos numa comunicação quotidiana - uma maçã,
um peixe, um prato, uma faca, uma corda, etc ... Cada vez que o indivíduo quisesse
referir-se a alguma dessas coisas, bastaria tirá-Ia do saco e mostrá-Ia ao interlo-
cutor. Eliminava-se assim o risco das más interpretações, ou das ambigüidades da
comunicação verbal. O gato de Alice, no país de Carrol, não sobreviveria a tanta
clareza ... ; o problema se configurava no momento em que o liliputiano precisava
referir-se ao gosto da maçã, ou informar que ela havia custado um absurdo na
feira. Como demonstrar a frescura do peixe, ou a cor da aurora na manhã em que
ele foi pescado?
Às vezes parece que vivemos, em nossos museus, a mesma situação dos ha-
bitantes de Laputa. Defrontamo-nos com uma tarefa quase impossível de resol-
ver. Como nos fazermos entender, como garantir a compreensão de nossa comu-
nicação, se usarmos basicamente a mesma linguagem ostensiva, a forma mais pri-
mitiva de comunicação, através de objetos concretos e tridimensionais?
18 ESTUDOS DE MUSEOLOGIA

o que acontece, na maioria das vezes, é procurarmos resolver o problema


caindo na armadilha da linguagem verbal. e terminamos sempre com um livro didá-
tico pregado na parede. A frustração ainda é maior quando nos vem à cabeça aque-
la frase antológica do mundo dos museus: os objetos falam por si, ou deveriam
falar ... mas como fazê-Ics falar, e que linguagem é esta que tornaria isto possível?
Existiria uma linguagem "museal"? Onde ela reside, ou como defini-Ia?
Para entendermos como funciona uma linguagem - ou um sistema de signos
- é preciso conhecer como funciona um signo, e por que mecanismos semióticos
elê 'nos permite falar, e até mesmo mentir, pois, para Umberto Eco, a Serniótica é
também uma teoria da mentira.
É preciso, assim, investigar a "micro-Serniótica" dos elementos significan-
tes fundamentais, e sua dinâmica neste processo, para podermos passar a uma
"macro-Semiótica" do texto e do contexto da comunicação, ambos os aspectos
aplicáveis ao sistema da linguagem "museal".
Imaginemos que eu acabo de voltar da ilha de Laputa, após uma longa via-
gem, e tiro da minha "sacolinha falante" alguns objetos - uma maçã, um perfume,
um fio dental. .. Falo com entusiasmo, mostrando os meus achados, mas não pare-
ce que eu consiga convencer a ninguém do interesse do meu relato - afinal de
contas, uma maçã é uma maçã em qualquer lugar do mundo; o perfume pode ser
bom, mas precisamos cheirá-Io para verificar se é francês, ou se foi fabricado
naquela ilha; e o fio dental pode fazer, no máximo, imaginar que eu estou tentando
dizer que não se deve esquecê-Io, no caso de uma viagem a Laputa, porque não é
encontrado facilmente na ilha.
Estou querendo, no entanto, dizer muito mais do que o nome dessas simples
banalidades que encontrei na ilhota dos pigmeus. É preciso que eu dê uma "dica",
para que se possa decifrar a minha mensagem. Se eu mostrar meu passaporte, a
minha mala de viagem, e o globo terrestre, talvez se adivinhe a que eu me estou
referindo, as cidades por onde andei, antes de chegar a Laputa ...
Por acaso, esqueci-me de trazer o bacalhau e algumas tulipas ... mas parece
que tudo ficou claro agora: a maçã não é mais uma maçã, mas Nova York; o perfu-
me é Paris; o fio dental, não preciso explicar a um público de cariocas, e o Porto
é Amsterdam, como é fácil deduzir, também estava no meu roteiro turístico-cultu-
ral. A mágica da transmissão do pensamento, da comunicação de idéias e da refe-
rência a fatos da realidade é facilmente explicável se conhecemos os processos
mentais que permitiram a decodificação da minha mensagem um tanto inesperada.
Dominamos um mesmo código cultural e, por saber disso, imaginei que não teria
dificuldades em me fazer entender. Mas se houvesse aqui um habitante originário
de Laputa, que nunca tivesse saído de lá até o presente momento, e se alguém lhe
dissesse que eu estou falando das cidades por onde andei, é possível que este indi-
víduo chegasse à conclusão de que eu não passo de uma mentirosa, e que a maçã, o
fio dental, o perfume, são made in Laputa, com a trademark de Jonathan Swift.
Para Umberto Eco, o signo é tudo aquilo que nos permite mentir. Porque se algu-
ma coisa não pode ser usada para mentir, também não pode ser usada para dizer a
verdade - de fato, não pode ser usada para "dizer" coisa alguma!
SEMIÓTICA E MUSEU

A Semiótica não' se preocupa em saber se estamos mentindo ou dizendo a


verdade - mas apenas em saber como e de que modo podemos dizer coisas, emitir
mensagens, falsas ou verdadeiras, comunicar idéias abstratas ou nos referirmos a
coisas concretas, de maneira a nos fazermos compreender, ou de maneira a enga-
narmos os outros, e de que mil maneiras aquilo que dissemos poderá ser compre-
endido, ou mal compreendido, pelos outros.
A Semiótica "museal" pode nos dar a medida com a qual podemos avaliar a
nossa responsabilidade ética e social na construção de nossas mensagens e dis-
cursos. Ela nos dará a consciência de nosso "poder" e de nossa capacidade comu-
nicativa, do alcance e da efetividade de nossas ações comunicativas no sistema
social.
A Semiótica se preocupa em suas análises com o modo de significação, o
modo de comunicação, os códigos e os sistemas de expressão e o modo de inter-
pretação das mensagens recebidas.
Não é difícil compreender e decodificar a minha mensagem na língua de
Liliput, porque dominamos um código cultural comum e válido em nossa socieda-
de. Um código que relaciona Nova York com uma maçã, um perfume com Paris, o
fio dental com o nosso Rio, etc ... O mecanismo semiótico que acontece em nossa
mente nessa situação é o mesmo que acontece quando vemos um gato no escuro.
Imaginem que estamos andando à noite por uma rua deserta. De repente, enxerga-
mos um vulto, alguma coisa que vem em nossa direção, e a princípio não sabemos
ainda o que é; apuramos a vista e fazemos um esforço para identificar a "coisa", e
logo descobrimos, com alívio, que se trata apenas de um gato. O que parece uma
coisa simples e natural, resulta do fato de termos reconhecido um gato ao ver a
figura em movimento com mais clareza. Esse reconhecimento só foi possível,
entretanto, porque sabemos o que é um gato, porque em nossa vida já tínhamos a
experiência de observar esse animal. Esta imagem física corresponde, em nossa
enciclopédia de imagens mentais, à imagem-tipo de um gato, bem como ao con-
ceito - um felino, com quatro patas, um rabo, bigodes, orelha de gato, olho que
brilha no escuro, pêlo macio, e que em geral é absolutamente inofensivo. Mas
sempre existe a possibilidade de sermos um pouco míopes, e de que o gato, na
verdade, seja um tigre, cuja forma de expressão é bem semelhante à primeira, mas
que possui marcas semânticas bem diferentes e a história poderia acabar em tra-
gédia. Reconhecemos um gato, ou um tigre, de qualquer maneira em que eles se
apresentem à nossa percepção, quer ao vivo, quer através de uma fotografia, um
desenho, ou uma réplica de borracha, porque essas imagens e conceitos fazem
parte do nosso mobiliário mental, da nossa enciclopédia de referência, guardada
em nossa memória das experiências que vivemos. Mas se eu contar para minha
filha adolescente que vi um gato na rua, é possível que ela me pergunte se era
louro ou moreno. A expressão "gato" corresponde na enciclopédia de minhas fi-
lhas a um outro tipo formal e a um outro conceito, que, na minha época, era repre-
sentado pela expressão "um broto".
As linguagens, verbais e não-verbais, só são possíveis porque existem códi-
gos específicos, que relacionam determinadas expressões com determinados con-
20 ESTUDOS DE MUSEOLOGIA

teúdos, aceitos convencionalmente por um grupo ou sociedade. Se não houvesse


esses códigos, não seria possível qualquer comunicação.
A linguagem verbal relaciona palavras com significados, arbitrariamente e
convencionalmente, e registra essas relações em dicionários. As linguagens não-
verbais também podem ser arbitrárias e convencionais, como o alfabeto do surdo-
mudo, o código Morse, ou os sinais de trânsito. As duas primeiras formas, ou
sistemas, não são mais que transcodificações da linguagem verbal. As linguagens
não-verbais que utilizam signos visuais ou concretos, como a linguagem dos mu-
seus, que aqui nos interessa, não podem ser tão arbitrárias, ou se basear em siste-
mas rígidos e fixos de significação. Isso porque a matéria-prima de que são feitas
as suas unidades significantes não tem uma função exclusivamente lingüística,
como é o caso dos fonemas da linguagem verbal. Nessas linguagens concretas e
visuais, como, no caso, o nosso sistema de objetos, a matéria-prima tem normal-
mente uma função primeira nas sociedades que as utilizam, uma função utilitária e
significativa, que não tem nada a ver com o sistema verbal. Uma capa de chuva é,
antes de mais nada, um abrigo contra a chuva. Uma cadeira é um utensílio domés-
tico e o automóvel, uma máquina para transportar pessoas de um lugar ao outro.
Entretanto, no sistema cultural de uma sociedade, esses objetos e essas funções
são "sernantizadas", isto é, adquirem novas significações que vão fazer parte do
código cultural e social de um determinado grupo. A própria matéria de que são
feitos passa a significar, a conotar valores e conceitos determinados pelo grupo.
A cadeira de ouro passa a ser um trono e o automóvel importado, um símbolo de
st atus social.
Essa é a lógica da cultura, dos códigos e sistemas de valores que atribuímos
aos objetos do quotidiano e que vamos aplicar, às vezes inconscientemente, na
linguagem "museal". O processo de percepção e de decodificação dos signos
"museais" é bem mais complexo do que o da interpretação das linguagens verbais.
Os efeitos e o potencial semiótico dessas unidades de significação, no discurso
museológico, exigem uma análise mais profunda de seus mecanismos e de sua na-
tureza, para que possamos compreender o processo de comunicação que acontece
nos museus.
Iuri Lotman, o semiólogo russo que analisa a semiótica da cultura, afirma
que as diferentes culturas são linguagens específicas, que podem ser classificadas
em uma tipologia, de acordo com seus códigos e gramáticas culturais, e de acordo
com sua relação com a "signicidade". Para Umberto Eco, toda cultura pode ser
vista como um sistema de comunicação, e pode ser analisada sob o ponto-de-vista
semiótico.
Eco nos dá um exemplo muito claro para explicar a origem da cultura como
um processo de significação e de comunicação, baseado no uso de signos articu-
lados em diferentes sistemas de relação, em diferentes contextos. A estrutura do
signo, ou da função "significa", para Eco, pode ser melhor entendida através do
exemplo a seguir.
Quando um homem pré-histórico usou pela primeira vez uma pedra para partir
o crânio de um macaco, não se pode ainda dizer que este gesto é um fato cultural,
SEMIÓTICA E MUSEU :1

mesmo que este homem tenha transformado um elemento da natureza em um ins-


trumento. Para Eco, a cultura nasce quando:
a) um. ser pensante estabelece uma nova função para a pedra. Não importa se
ele atua sobre ela, transformando-a em uma faca, ou se a usa em sua forma natural;
b) ele designa esta pedra como "uma pedra que serve para alguma coisa", no
caso, para "partir", quer ele o diga para os outros, ou para si mesmo;
c) ele é capaz de reconhecer esta pedra como "a pedra que corresponde a
, . uma determinada função (F)" - a de partir coisas - e a qual ele designou com um
nome específico, ou um grunhido específico. Não importa se ele a usa uma se-
gunda vez, é suficiente que ele a reconheça como um tipo determinado de pedra.
Essas três condições dão origem ao processo semiótico da cultura, que po-
demos demonstrar com o seguinte diagrama: (Q.4)
Após descobrir e usar a primeira pedra (P.l), o nosso A ustr alopith ecus en-
contra uma segunda pedra (P.2), que ele reconhece como uma outra ocorrência, ou
exemplar, do mesmo tipo geral de pedra (PT), que serve para partir coisas.
Por um processo mental de abstração, ele é capaz de sintetizar a segunda
pedra e a primeira, sob um tipo abstrato de pedras que se refere à possível função
de "partir". Nosso homem pode assim ver as duas pedras como veículos-"sígnicos",
ou como formas significantes, que se referem, ou que cor respondem àquela de-
terminada função (F); as pedras são assim exemplares, ou tokens (na terminolo-
gia semiótica) do tipo (PT) de pedra que serve para partir coisas.
A possibilidade de dar um nome à pedra-tipo, para que ele possa designá-Ia
e comunicar suas descobertas aos companheiros, dá origem ao nascimento da lin-
guagem, o que vem acrescentar uma nova dimensão a esta situação semiótica.
Esta capacidade mental de se referir a uma coisa através de outra coisa, que
a substitui, ou que a representa, um processo de "trocas mentais", está na base do
processo de comunicação, na raiz do processo cultural. Peirce o define como proces-
so infinito da "semiose". A doutrina que ele chama de Semiótica tem por objeto estu-
dar a natureza e as variedades possíveis da "seruiose".
O modelo clássico da estrutura do signo, proposto por Saussure, baseia-se
na interação de dois aspectos: o significante e o significado; e o signo é a totali-
dade destes dois aspectos. A fórmula de Peirce define o signo como "alguma
coisa que representa outra, para alguém, de algum modo ou por alguma capacida-
de". A semiose, diz Peirce, "é uma ação, uma influência, que envolve a coopera-
ção de três entidades - um signo, seu objeto e seu interpretante". (Q.5)
O elemento introduzido por Peirce para explicar o mecanismo estrutural do
signo, que ele chama de interpretante, amplia o conceito de signo para o sentido
de função e de variabilidade, inserindo aí o elemento do contexto, da circunstân-
cia, do código e do intérprete. O signo não é mais uma entidade fixa e imutável, e
quando nos referimos a ele estamos falando de uma função "sígnica", transitória e
imutável.
O interpretante não é o intérprete, mas as diferentes possibilidades de sig-
nificação geradas por um signo, de acordo com a situação comunicativa, ou com a
situação semiótica.
Q.4
o processo semiótico da cultura
F

Pt nome

PIL------
U. ECO, 1979
P2

Q.5

a estrutura do signo

interpretante
homem/sujei to

signo objeto
objeto/bem cultural espaço/cenário

Peirce, 1931
SEMIÓTICA E MUSEU

o interpretante, 'na verdade, é essa outra coisa, à qual o signo se refere, a


Nova York da maçã, para alguém, em determinadas circunstâncias e sob determi-
nados aspectos. Essa outra coisa, que pode ser qualquer coisa, uma vez que a men-
te e a experiência humanas são limitadas e incontroláveis, assim como imprevisí-
veis, é uma imagem mental, uma representação provocada pelo signo na mente de
um indivíduo, de acordo com sua experiência de vida, seu nível de conhecimentos
e seu quadro de referências, suas expectativas, seus códigos culturais, suas cren-
ças e valores, suas intenções, em suma, por sua enciclopédia mental, acumulada
em sua memória.
Nova York pode ser uma imagem para mim, e outra para cada pessoa, e um
perfume, ou um fio dental podem nos trazer diferentes evocações, algumas até
bem desagradáveis ...
Vemos assim como, na prática da comunicação museológica e na interação
com o público, os "objetos não falam por si", mas, na verdade, falam por nós, por
cada um de nós que os usamos e percebemos de diferentes maneiras... Esse pro-
cesso é impossível de ser controlado, mas pode ser, ao menos, reconhecido e apro-
veitado como um fator de enriquecimento da experiência "museal". O reconheci-
mento dessa produtividade do signo, e de suas infinitas possibilidades, pode ser
um instrumento de enriquecimento do mobiliário mental dos usuários do museu,
dos leitores dos nossos discursos; e as conseqüências desse instrumento no pro-
cesso fundamentalmente educativo da comunicação museológica podem ser me-
lhor avaliadas e compreendidas. O desenvolvimento das funções cognitivas e dos
processos mentais superiores pode ser ativado e estimulado, se soubermos reco-
nhecer a potencialidade da linguagem "museal".
O interpretante que o nosso A ustr alopithecus concebeu para a pedra que
encontrou foi o de servir para partir coisas. A pedra, entretanto, não tem neces-
sariamente apenas esta função ou utilidade. Em algum dado momento, um outro
A ustr alopith ecus pode ter dado à mesma pedra um outro interpretante, o de servir
para partir a cabeça de alguém, no instante em que o nosso antepassado cometeu
seu primeiro crime.
Um quadro de referenciais se estabelece, assim, em relação à realidade, um
sistema de significação, que paulatinamente vai ser codificado pelas diferentes
linguagens verbais, permitindo ao homem organizar o contin uum da matéria e do
pensamento em campos organizados e definidos, separando as coisas de acordo
com sistemas específicos, atribuindo-lhes significados e funções, aceitas coleti-
vamente, e construindo as diferentes linguagens e culturas. Algo assim como um
Th esaurus da realidade, que categoriza, classifica e organiza os elementos de
acordo com sua natureza ou função. O Thesaurus museológico que utilizamos
não é mais do que a organização sistemática dos elementos possíveis de serem
encontrados nas coleções dos museus, baseada em critérios e normas aceitas pela
coletividade científica ou museológica, e refletindo os códigos culturais vigentes
em nossa sociedade. Qualquer infração, desrespeito ou desorganização desse sis-
tema de dados e de classificação pode gerar uma crise na organização institucio-
nal e no sistema de valores museológicos. Salvador Dali, entretanto, no seu Tea-
24 ESTUDOS DE MUSEOLOGIA

tro Museu, em Figueras, fez isso constantemente, por uma questão de princípios:
o Thesaurus surrealista desafia a ordem, a lógica, os sistemas convencionais e
utiliza o poder da infração das regras para comunicar a expressar seus discursos
sobre a realidade. É possível nos perguntarmos aqui se não é freqüentemente a
infração das regras, a quebra das convenções, que permitem a invenção e a renova-
ção, o avanço em qualquer área da criatividade humana.
No processo da comunicação museológica os objetos não falam por si, como
não "valem por si". Quanto vale um pedaço da forca de Tiradentes? Os objetos
~... "museais", como signos de Ulua linguagem, têm o valor daquilo que eles signifi-
cam como valores culturais ou unidades culturais, a partir do princípio de que são
reconhecidos coletivamente como valores de uma determinada cultura, em deter-
minado tempo e espaço. A convenção social que suporta a idéia de museus como
lugares onde esses valores culturais são preservados, estudados e expostos, para o
enriquecimento cultural da sociedade, é o primeiro código que explica e justifica
o conceito de "rnusealidade" - tudo o que está no museu, em princípio, tem valor,
é significativo e deve ser preservado. Sabemos, entretanto, que o que está nos
museus, e foi coletado e selecionado, é resultado de uma escolha dos museólogos
e especialistas em cada matéria, os quais determinam o que tem valor, e o que não
interessa, de acordo com seus códigos acadêmicos e particulares. O princípio da
autoridade do discurso museológico pode configurar aqui um segundo aspecto do
código da "musealidade".
Mas será que podemos falar de uma vassoura "museal", do telefone "museal",
do livro de ponto ou da xerox "museais", só porque essas coisas também se encon-
tram nos museus? No dia em que houver um museu dos museus, esses objetos
poderão adquirir talvez a qualidade a que nos referimos... Mas o que se passa nos
museus, em sua prática quotidiana? O sistema dos objetos, de que fala Baudri-
llard, o mercado das trocas simbólicas, descrito por Bourdieu, ou a "cozinha dos
sentidos", proposta por Roland Barthes, mostram-nos claramente a complexidade
das relações e das inter-relações que se estabelecem entre os homens e os obje-
tos, e nos dão elementos para compreender melhor a noção de "museali dade".
Nem todos os objetos que chegam a um museu são signos, embora muitos
deles já cheguem com o seu pedigree cultural, identificados como valores signi-
ficativos, como signos culturais, adquiridos, doados ou coletados pela institui-
ção. Outros, entretanto, podem ter sido trazidos por doadores ingênuos, que tra-
zem os seus signos particulares e individuais, ou foram recolhidos em algum lu-
gar, em alguma escavação amadora, ou até mesmo por uma criança curiosa.
No momento em que são trazidos ao museu, estes objetos são signos em
potencial, como as relíquias do sótão da vovó. São, na verdade, estímulos, que
podem levar-nos a descobrir neles a sua função significativa, a partir do momento
em que são estudados e analisados. Os objetos se tornam signos no momento em
que são investidos de significado, pelos curadores, pelos arqueólogos, pelos edu-
cadores. O que não quer dizer que estes objetos não possam ter o valor de signos
para quem os fez, usou, achou ou comprou, ao longo de sua história, ou de seu
percurso até a vi trine do museu, ou até a lata de lixo.
SEMIÓTICA E MUSEU

Em muitos museus, entretanto, o processo não passa desse estágio. Os ob-


jetos são recolhidos, higienizados, estudados, classificados, numerados e regis-
trados e são devidamente acomodados em seus lugares nas reservas técnicas, uma
vez julgados pertinentes pela equipe de especialistas. Ainda assim, esses objetos
não podem ser vistos como signos, mas apenas como signos em potencial. É a
competência semiótica dos responsáveis pela coleção ou pela exposição, que po-
derá reconhecer nesses elementos um potencial significativo, capaz de gerar sig-
nificado, de produzir sentido no processo de comunicação do museu.
Recolher, classificar, estudar, etiquetar, numerar, acondicionar, são etapas
do processo de informação de um sistema museológico. Servem para alimentar
um possível sistema de significação, para a elaboração de um Thesaurus, ou até
de uma enciclopédia museológica. Não são, entretanto, suficientes para o pro-
cesso de comunicacão de um museu, para a transmissão de seu potencial signifi-
cativo, para o seu uso semiótico.
Os objetos na reserva técnica não são signos, por mais significativos que
possam parecer para os curadores. É apenas quando existe um trabalho de produ-
ção de signo e sua utilização na comunicação "museal" que os objetos adquirem a
sua função "sígnica" e são inseridos no discurso museológico.
Voltemos, assim, ao diagrama de Eco, para transformá-Io no contexto mu-
seológico: a pedra 1 passa a ser a pedra museológica 1 e a pedra 2, a pedra muse-
ológica 2, representando aqui qualquer objeto de uma coleção. Essas pedras cor-
respondem a uma categoria-tipo de pedra, ou de "peça de museu"; nesse contex-
to, elas podem representar ou corresponder a diferentes funções, de acordo com
os diferentes códigos e sistemas de significação válidos para os técnicos. As di-
ferentes designações que vão receber, nas fichas e catálogos e nas etiquetas da
exposição, vão determinar os possíveis interpretantes, as diferentes denotações e
conotações que podem sugerir, de acordo com a intenção dos autores do discurso.
(Q. 6)
O que acontece aqui, de fato, é um deslisamento lateral do sentido, ou da
função original do objeto em seu contexto de origem, de modo que ele passe a
corresponder a novas funções significativas, que referenciam os modelos acadê-
micos e científicos dos códigos museológicos.
A linguagem do museu passa, assim, a ter um mecanismo semelhante àquele
do mito estudado por Roland Barthes, como linguagens roubadas de significados
primeiros, que o mito transforma e dos quais se apropria para construir um novo
discurso.
A interpretação desses signos, entretanto, não é inteiramente controlável,
como já dissemos aqui. Por mais que os emissores ou os autores da mensagem
museológica queiram controlar o sentido atribuído por eles a essas peças - de
acordo com seus sistemas de codificação - nada impedi r que os receptores exer-
á

çam seu poder de decodificá-Ios de um modo diferente. O sentido está na mente


humana, que não é controlável, apesar de ser manipulável. Dependendo de suas
motivações e expectativas, de seu quadro de referências e experiências indi vidu-
ais, o público vai reagir ativamente às mensagens propostas pelos museólogos,
Q.6

o processo semiótico na
musealização
FI F2
I /
I / F3
I / /'
/'
I /

PM
I
/
/
/'
/'
/'

-
/'
/'

.------ --- F4

:::::: NOME(tipo)

PM 1 PM2 PM3 PM4


(deslisamento lateral da significação)

F 1 - "peça de museu"
F 2 - "objeto arqueológico"
F 3 - 'utensílio lítico"
F 4 - "espécime raro do tipo ... "
etc...
SEMIÓTICA E IUSEU

decodificando-as, às vezes, aberrantemente, no processo de leitura da exposição,


ou do discurso museológico.
O que normalmente ocorre nesta situação é que os códigos que governam o
sistema museológico especializado não correspondem aos códigos usados e reco-
nhecidos pela maioria do público. Os dicionários e enciclopédias diferem no tra-
tamento da inter-relação entre significante e significado.
A maneira como organizamos e construímos uma exposição corresponde
aos mesmos mecstusmos que goverttsm o (($'O da úÍ'lgrl'd'gé'u/ f'é'Ébd'/, ./.13 co.//s//uçJo

de textos e discursos. Os processos básicos da hng,\\ag,em, como demonstrou


Rornan Jakobson, são: a seleção das unidades significativas de um repertório dis-
ponível e a sua articulação em sentenças, frases e discursos, com uma sintaxe pró-
pria e de acordo com uma gramática. Cada elemento do texto, cada palavra, cada
signo, ou cada objeto em exposição tem um valor próprio, no campo semântico
em que está inserido e adquire outros valores, em sua associação e articulação
com outros elementos. A imagem de um jogo de xadrez é um bom exemplo para
explicar esta dupla situação significativa.
O processo de construção das mensagens museológicas implica o uso de
diferentes códigos e sistemas semióticos, que vão atuar simultaneamente sobre
os receptores. Os códigos dos objetos (que poderíamos chamar' de "icônicos")
vão atuar concomitantemente no processo semiótico da exposição, interferindo
uns nos outros, e gerando novos sentidos, ênfases e associações. O conhecimen-
to da potencialidade semiótica de cada um destes sistemas e de seus efeitos sobre
o público é fundamental para a análise e a avaliação da comunicabilidade das expo-
sições.
Mas isso já seria objeto de outro artigo. Este já se estendeu demais.
O importante 110S parece ser o reconhecimento da existência desses meca-
nismos semióticos, que possibilitam a linguagem "museal", de sua natureza espe-
cífica e de sua potencialidade, assim como a consciência da responsabilidade éti-
ca e profissional que nos cabe assumir ao construirmos em nossos discursos mu-
seológicos modelos de mundo que, às vezes, não correspondem senão aos nossos
pequenos mundos particulares.
Os signos são forças sociais, diz Umberto Eco, e seu estudo é uma prática
social, que tem conseqüências em nosso trabalho quotidiano. O reconhecimento
da liberdade do receptor e de sua produtividade semiótica na decodificação das
mensagens museológicas não deve ser um problema, que procuramos controlar Oll
limitar, mas deve ser a razão e a necessidade de nosso trabalho e de nossa reflexão
sobre ele.
Garantir essa liberdade e estimular a capacidade de interpretação e a com-
petência semiótica do público ao qual servimos é uma maneira de contribuir para
o seu desenvolvimento intelectual, a sua consciência crítica, e para o enriqueci-
mento da vida cultural. Para isso precisamos conhecer mais profunda e mais am-
plamente as capacidades e potencialidades do museu como um meio de comunica-
ção e a riqueza semiótica que ele oferece para o prazer e o enriquecimento dos
indivíduos. Podemos falar de museus sob inúmeras perspectivas e abordagens,
28 ESTUDOS DE MUSEOLOGIA

mas não podemos falar da "mllsealidade" sem viajar pelo universo infinito da aven-
tura semiótica.

* Museóloga, Doutora em Museologia pela Universidade de Leicester, In-


glaterra; Diretora do Museu Imperial, do IPHAN.
Texto, adaptado pelos editores, da conferência apresentada na Escola de
Museologia da Uni-Rio, em comemoração ao Dia Internacional dos Museus, maio
de 1992.
Denise Hamú de Ia PenIla"

o Papel dos Museus Antropológicos no Brasil

I, Paradígmns Impopulares
O desafio contemporâneo primeiro dos museus de história natural e antro-
pologia é o de transmutar seus visitantes de seu estado de curiosidade passiva,
para um estado de engajamento ativo com as coleções, as exposições, bem como
com seus guias e monitores. Temos que não apenas satisfazer suas necessidades
de encontro com celebridades exóticas das coleções, mas permitir ao visitante
ver pela primeira vez o que lhe deveria ser inteiramente familiar. Qual o ecossis-
tema de uma casa? Como é a vida em uma favela? Como a natureza se adapta à
ocupação urbana? Como se sobrevive sob os viadutos, às margens de rios esque-
cidos, ou simplesmente em comunidades instantâneas como garimpos?
Os meios de comunicação, especialmente a TV e o turismo, alteraram nos-
so mundo e a própria maneira como o percebemos. O exótico tornou-se próximo
e familiar, e o familiar distante e exótico. Ironicamente, os visi tantes con hecem
mais sobre os "peles vermelhas" que sobre os Waimiri-Atroari e Urubu-Kaapor.
Chamam uma onça de tigre, e ignoram a diferença entre crocodi los africanos e
jacarés do Pantanal. Deslizando pelas exposições a meio quilômetro por minuto,
para a maioria dos visitantes, seu meio ambiente próximo é uma anônima mancha
de verde ou, na maioria dos casos, cinza concreto. Quantos poderão identificar
até mesmo as árvores mais comuns, o mato rasteiro, insetos e pássaros no meio
em que habitam? Infelizmente os visitantes possuem pouco ou nenhum contato
tangível com a compreensão do ecossistema onde vivem e do qual dependem. Em
minha experiência, visitantes externos à Amazônia dominam mais informações
sobre a região que os locais. Exceto pelos Kayapó e lanomami que, pela via da
"rnidia" - nem sempre responsável - entraram na casa de milhões, são incapazes de
citar qualquer outro grupo indígena amazônico. Pior, em sua concepção, todas as
peças expostas em museus pertencem a grupos extintos.
É aqui, creio eu, onde as coleções, idéias, informações e resultados de pes-
quisas nos museus antropológicos têm um papel a desempenhar. Esses museus
encontram-se hoje à beira de uma fenda cultural. O paradigma do progresso verti-
cal inclina-se rapidamente para um de progresso horizontal, globalmente interco-
nectado e interdependente - o paradigma do lugar que os povos têm na natureza.
Não mais nos vemos como mestres da ordem natural das coisas, no topo da
espiral darwiniana, sobre as quais recebemos domínio divino, mas como partici-
pantes de um sistema ecológico conexo e horizontalmente interdependente, sobre
o qual se superpõe um sistema cultural pluralístico. A vulnerabilidade de ambos
desencadeou a urgência no interesse pela natureza. Num mundo em degradação,
os museus antropológicos, os museus de história natural e os museus de ciências
em geral não mais podem dar-se ao luxo de manterem-se como instituições erudi-

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