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ESTUDOS DE TRADUÇÁO
FUNDAMENTOS DE UMA DISCIPLINA
Tradução de
Vivina de Campos Figueiredo
Revisão de
Ana Maria Chaves
Edição da
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Av. de Berna - Lisboa
2003
ISBN 972-31-1019-9
Depósito Legal n.' 198 101103
Estudos de tradução
o aparecimento dos primeiros artigos e comunicações so- literários aparentemente inócuo^.^ Enquanto criança,
bre o tema do discurso feminino e da traduçgo, e a proli- quando lia histórias de aventuras nas quais os heróis bran-
feração de trabalhos nos iIltimos anos é sinal de que esta- cos eram atacados por selvagens, ele tomava automatica-
mos perante uma nova h& desenvolvimento. mente o partido dos brancas contra os carapinhas. Quando
Do mesmo modo, tal como os estudos literários mu- se deu conta de que adoptando esta posição estava a colo-
daram de natureza e de metodologia assim que o seu de- car-se ao lado dos imperialistas brancos contra o seu pró-
senvolvimento transvasou as fronkiras da Europa, tam- prio povo e a aceitar um sistema de valores eumêntrico,
bém os estudos de tradução começaram a perder o seu começou a ver o mundo de maneira diferente. Do mesmo
cakter excessivamente eurochrico. Os Estudas de Tra- modo, o tradutor que agarra um texto e o transpõe para ou-
dugo desenvolveram-se rapidamente na h&, no seio tra cultura tem de considerar cuidadosamente as implica-
das comunidades hguisticas chinesa e h b e , na Arnkrica ções ideológicas dessa transposição. A metiifora do tradu-
Latina e em h c a . Tal como os Estudos Literários procu- tor como canibal baseia-se numa nocão revista do
raram sacudir a sua herança emCntfica, também os Ea- significado de canibalismo, considerado não do ponto de
tudos de Tradu~ãose -cam em v h r k direcções, uma vista do europeu colonizador a quem o conceito horroriza,
vez que s ênfase no factor ideológico, bem como no lin- mas da perspectiva dos povos cujas prãticas canibalescas
guistico, abre caminho i3 discuss8o do tema nos termos derivam de uma visão alternativa da sociedade.
mais vastos do discurso p6s-colonial. Os tradutores brasi- A concepção canibalista de traduçiio envolve um con-
leiros apresentaram uma metáfora nova, que pode aplicar- ceito modificado do valor do texto original em relação il
-se a esta nova pwspectivri alternativa sobre a tradu@o - a sua recepqão na cultura de chegada. A concepção tradicio-
imagem do tradutor como canibal devorando o texto ori- nal de tradução, datada do século XlX,que aqui abordare-
ginal num ritual que resulta na criaçgo de algo completa- mos mais tarde, baseava-se na relação senhor-servo, re-
mente novo,3Wole Soyinka descreveu a forma como a sua produzida no processo de tradução - ou o tradutor toma
perspectiva, tal como a de um continente inteiro, mudou a o texto original e o 'melhora' e 'civiliza' (cf. FitzgeraId
partir de uma tomada de consciência acrescida, quando acerca dos textos persas} ou o tradutor se aproxima do
identificou o racismo implicitamente presente em textos texto original com humildade e lhe presta homenagem (cf.
Rossetti sobre textos italianos do século XIJ). A concepção
Agradeço a Elw Meira, da Universidade de Belo Horizonte, por ter c b -
m d o a minha aten@o para esta metáfora e por me kr sugerido a leitura da obra ' SDYINKA. Wole - The Crjlic and Soçicly: Barlhes, Leftuçracy and
pioneira de Silviano Santiago - U m literatum nos trbpkos. Enmbs mbw &- Oiher Myihologies. In CATES, Henry Loiiis Jr Icd.) - Hlrirk Lit~rnriireand Li-
pettú&ta ~IJiurai.São Paulo: Bdiiwa h p d v a , 1978. Icnity T h ~ o t yLondon:
. Methucn. 1984. p. 27-59.
canibatista da tradução oferece uma perspectiva diferente, mente ligada ii teoria dos sistemas, mas mais dixectamente
que se articula com a noção de tradução proposta por Jac- preocupada com as implicações ideolbgicas da tradução,
ques Derrida, quando argumenta que o processo de tradu- desmvolve-se uma abordagem que reflecte sobre a trans-
ção cria um texto 'original', em oposiqão h ideia tradicie ferência inkrcultural nos seus aspectos linguísticos, histõ-
nd segundo a qual o 'original' t o ponto de partida. O ricos e sócio-políticos. André Lefevere desbravou muito
debate sobre a tradução que Derrida enceta em "La Tours deste terreno. Uma das grandes questões que coloca diz
de Babei" constitui um marco importante, porque, antes respeito a problemas paratextuais: o que acontece na tra-
dele, a maior parte do discurso sobre ttaduç8o era extraor- dução de textos kabes, onde não existe uma Iradição
dinariamente antiquado quando comparado com o nível é.pica e a lirica 6 o modo predominante, para luiguas e m -
do discurso na &a da teoria da literatura. As opiniões que peias, onde o &picosempre foi o modo mais elevado e a lí-
Demda subscreve sobre ri tradução não s50 isentas de fra- rica relegada para uma posição secundária?Implicará isso
gilidades - uma das suas metáforaspara representar o pro- que todas as traduções da poesia lírica h b e sejam de
cesso da traduç8o t o rasgar do hímen, a penetração ou a certa maneira lidas atravhs da lente deturpadora da tradi-
violação do texto original, que é dessa forma feminizado ção literdria ocidental que coloca a f i c a numa posição su-
de um modo sexista de pdssimo gosto - mas, apesar disso, balterna? Ou, para dar um exemplo diferente, terá a tradu-
o seu ensaio assinala a chegada de uma corrente p6s-es- ção de Shakespeare para as línguas do sub-continente
truturalista dos Estudos de Tradução e demonstra mais indiano um sign$mdo diferente da tradução de Sbakes-
uma vez os avanços da disciplina na 6ltim dkada. peare para japon*s? Na índia, onde, no século XIX,Sha-
Neste momento são claramente visíveis algumas li- kespeare era o epítome de tudo o que de grandioso existia
nhas de desenvoIvimentono conjunto da disciplina global na tradiçk inglesa e onde o lorde Macadey podia dizer
dos Estudos de TraduçZo. A linha de investigação origin4- que uma prateleira de uma boa biblioteca europeia valia
ria da Iinguistica aplicada continua a dar os seus frutos e, por todos os livros da fndia e da ArAbia, arrancar Shakes-
agora, existe mesmo um ramo de investigaçáo diferente peare das suas raízes na língua inglesa podia ter uma im-
preocupado com a tradução e a filosofia da linguagem. A plicaçáo revolucionãna que não teria na tradução para
abordagem baseada na teoria dos sistemas, com a sua h- uma lingua como o Japones, pois que o Japão nunca foi
fase no pó10 meta, pode considerar-se uma escola & pen- colonizado pelo impdrio britstnico.
samento dentro dos Estudos de Traduçb e, com a publi- É na funnula~áode questões como esta que radica a
cação do boletim informativo T M S S T em Te1 Aviv e a perspectiva (possivelmente tambem já uma escola de
revista Turget, esta escola tem agora um papel preponde- pensamento) que encara a tradução como um dos proces-
rante no âmbito internacional. Noutras latitudes, originai- sos de manipulação literária, uma vez que os textos são
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reescritos atravessando fronteiras linguisticas e que essa Outra grande área de investigação dentro dos Estudos
reescrita ocorre num contexto histórico-cultural clara- de Tradução é constituida pela anAlise da história da tra-
mente definido. Esta escola de pensamento tarnbkrn se dução, da!! atitudes face ao acto de traduzir que prevalece-
preocupa com a transmissão de textos entre literaturas e o ram em diferentes momentos da História, das afirmações
temo 'refracção' foi cunhado por Lefevere para substituir dos tradutores e das implicações doutriniúias da tradução.
a velha terminologia da 'influencia'. A reflexão envolve o Os centros de tradução da Universidade Georg-August de
espelho, a cópia do original; a refracção envolve uma mu- GWtingen, a Universidade Cat6lica de Lovaina e a Uni-
dança de percepção e esta imagem é muito útil para des- versidade Estadual de Nova Iorque em Binghamton têm
crever o que acontece quando um texto 6 transferido de em curso projectos de investigação de larga escala acerca
uma cultura para outra. Alem disso, a teoria da refracção da diacmnia dos Estudos de Tradução, e os professores e
implica necessariamente a consideração da evolução lite- estudiosos da Tradução na Universidade Estadual de Nova
riiria e, portanto, coloca a tradução num crintinisum tem- lorque estão tambdm muito preocupados com a investiga-
poral ao invés de a encarar como uma actividade que ção pedagiigica e profissional. A medida que alargamos os
acontece no vazia. Lefevere explica-se bem quando enu- conhecimentos sobre o que a tradução significa em dife-
mera alguns absurdas da hist6ria cultural que derivam de
rentes culturas, as nossas atitudes em relação h prática da
uma concepção excessivamente estreita da tradução:
tradução também mudam e com elas a nossa percepção do
DA que pensar ... que um obstinado tradutor da Bíblia para slernãri, papel desempenhado pela tradução na histbrirt literária.
um monge augustiniancidesfradado, tenha sido, também por causa Em 1980, quando saiu a primeira edição deste livro,
da sua tradução, largamente responsável pela Reforma que mudou eu ainda sentia que tinha de defender o meu trabalho em
a face da Europa pura sempre; ou que o Aramaico que Jesus Cristo tradução junto das pessoas que colocavam questões como
faIava fossc destituído de verbos copulativos. especificamente do
estas: ''Como 6 que alguém pode falar de tradução?',
verbo 'ser', apesar de os te6logos se terem questionado durante
séculos sobre o verdadeira significado do 'C' que aparece. na tra-
"Como podemos avaliar traduções?", "Qual é a vantagem
dução grega, em frases do tipo 'este t o meu corpo' e que tenham de se debater Histbria a propósito da tradução de poesia?',
queimado, semprc que tiveram esse poder. aqueles que discorda- "Não é a tradução. para todos os efeitos. uma actividade
ram da sua reescrita.' secundária?" Sempre acreditei que a tradução era uma ta-
refa complexa, que envolvia uma grande habilidade, pre-
LEFEVERE, Andre - Why Waste Our Time on Rewrites'! The Tmuhle paraçiio, conhecimento e afeiqão intuitiva pelos textos,
with Interpretation. and h e Role of Rewriiing in ~ i n
Alternniive Paradigm. In
HERMANS, Theu (ed.) - Thu Manipirlatiritt cif Litemture. hndnn: Crooin
e. i medida que descubro o desenvolvimento dos Estudos
Hclm, 19R5. p. 241-2. de Tradução h escala mundial, sinto cada vez mais que a
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