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DE LEI
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T
AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE

CLUB

UR
de Apoio
José Saramago

A
(A)NORMAL
Por Maria Camila Moura
Edição 2022 /
REFLEXÕES Ciclo da Vida: do vir ao partir.

As Intermitências da Morte foi publicado em 2005, ou seja, quando Saramago tinha


83 anos, ou seja, quando de algum modo o partir já se colocava em perspectiva em seu ciclo da
vida. Há quem interprete que a escolha desse tema por Saramago nesse ponto da vida seria
uma maneira de lidar com a única questão irremediável da vida, que partiremos. E uma maneira
de lidar de uma forma (re)conciliada com a morte, com humor. Uma passagem no livro que
remete a isso: “Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante
de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um
dia viria a morrer, Porque cada um de vos tem a sua própria morte, transporta-a consigo num
lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe”.

Neste livro, Saramago, de uma maneira muito sábia, subverte a nossa noção usual de
finitude como algo ruim e traz consequências morais, pragmáticas e catastróficas caso
houvesse uma interrupção da morte. São inúmeros os elementos que poderíamos trabalhar a
partir desse livro: aspectos macrossociais, familiares, a relação com a morte e com sua ausência
e, curiosamente, como a morte lida conosco. Saramago tece várias críticas ao longo do livro,
sempre se utilizando de um tom satírico, irônico, que traz até uma certa leveza ao falar sobre a
morte.

Em relação ao enredo em si, vemos como Saramago tece ferrenhas críticas à nossa
sociedade. Por exemplo, quando vemos a máphia mandando nas decisões governamentais
estamos lidando com deboche puro. Saramago nos coloca de uma maneira muito curiosa como
todas as políticas públicas passam por interesses privados; por oportunismos. Por exemplo,
politicamente, o país era uma monarquia, mas se vê em meio a disputas, com o partido
republicano que quer se aproveitar da situação para se projetar como uma força, enquanto o
rei, até então mantido alheio a toda a situação, é mantido à distância pelo governo. Às vezes
suas críticas são mais veladas, mas tantas outras são escancaradas, como quando ele fala do
pragmatismo político.

Óbvio que a imprensa também é alvo de suas críticas. O narrador vai nos mostrar
tanto como o governo trabalha em seu benefício ocultando informações, utilizando da
publicidade que o favorece e como a imprensa também relata ou oculta informações não
pensando no povo, mas no poder econômico, na questão empresarial.

A Igreja é uma instituição que parece também ter vez junto ao governo. A Igreja surge
não somente por suas questões transcendentais, filosóficas, mas por questões de poder, de
possibilidade de perder seu prestígio. Em um dado momento da reunião em que os líderes
religiosos debatem com os filósofos, os religiosos são postos em dúvida e, no fim das contas,
decidem o que é melhor para Igreja, pouco se importando com a discussão sobre a vontade de
Deus.
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Por Maria Camila Moura
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REFLEXÕES Ciclo da Vida: do vir ao partir.

É importante perceber também que Saramago refere-se a “deus” e “igreja” sem usar
letras maiúsculas. Ou seja, nos remete a uma certa indiferença e à mesma reflexão sobre a
“morte” com “m” minúsculo; existem outras, tanto a morte como deus são apenas mais um
dentre vários. Além disso, como A Igreja Católica foi e é uma das principais instituições em
Portugal, podemos interpretar a crítica à relação entre igreja e Estado como aludindo ao papel
da Igreja Católica no Estado português.

Há críticas importantes, ainda, aos representantes populares e às famílias. E quando


conhecemos um pouco mais o autor, vemos como sua vida e obra em algum ponto se
confundem e por isso que, normalmente, os autores tendem a repetir determinados elementos
em diferentes livros. Por exemplo, quem é familizarizado com a obra de Dostoievski, sabe que
há um fio condutor entre as obras, há questões morais, uma menção a Deus, ainda que, muitas
vezes, não literal. E com Saramago isso também acontece: alguns temas vão se repetir em suas
obras. Por exemplo:

1. Isolamento da população em questão, assim como um estado de exceção. Nas


Intermitências da Morte, vamos encontrar o governo querendo impedir que a população
saia, vigiando a fronteira.
2. Exercício do Poder e democracia. vemos como o cardeal tem acesso ao estado, como a lei
ainda é ligada a princípios religiosos, e como se submete a interesses econômicos, à máphia.
3. Dilemas sobre Regras e convenções. uma regra universal, a da morte é quebrada.
4. Mídia e ideologia: A mídia em As Intermitências da Morte é quase um aparelho ideológico
do Estado.

Falamos anteriormente como um traço marcante de Saramago é a intertextualidade.


Saramago faz diversas alusões ao longo da obra. Por exemplo, ele faz referências a contos
tradicionais, como aquele do menino e a tigela de madeira; ditados populares, como "encanar a
perna à rã, dar uma no cravo e outra na ferradura"; aos Lusíadas, clássico de Camões, quando
menciona o gigante Adamastor (p. 65); e diversas referências musicais, especialmente
compositores de música clássica como Bach e Chopin.

Esses são alguns pontos de intertextualidade escancarada, direta. Porém, ela aparece
também em relação ao tema principal do texto: a morte. Por exemplo, a morte faz questão de
ser reconhecida como a morte com letra minúscula, afinal, havia outras mortes. Isso é muito
claro na mitologia grega. A morte, entre os gregos antigos, era multifacetada, e cada uma dessas
facetas era representada por uma entidade diferente. Outro ponto de intertextualidade é que,
no livro, a morte anuncia por suas cartas que as pessoas irão morrer, que a pessoa em questão
tem um tempo limitado de vida.
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E Ankou — que citamos na aula de contexto — por exemplo, aparece conduzindo uma
carroça, cuja carga são cadáveres e cujo rangido, se ouvido por alguém, significa que aquela
pessoa dispõe de pouco tempo de vida, enquanto aqueles que chegam a ver a carroça saberão
que irão morrer dentro de um ano. Podemos, então, traçar um paralelo com as cartas recebidas,
o anúncio da morte em determinado período de tempo.

Outro aspecto peculiar que faz intertextualidade é a existência de uma espécie de


registro dos mortos. Em As Intermitências da Morte, vemos que a morte consulta um livro (na
realidade, um ficheiro), que tinha detalhes da vida de cada ser humano, inclusive seu tempo de
vida. Isso nos remete ao Livrodo Apocalipse, cap 20, versículo 12: “Vi também os mortos,
grandes e pequenos, em pé diante do trono, e livros foram abertos. Outro livro foi aberto, o
livro da vida. Os mortos foram julgados de acordo com o que tinham feito, segundo o que
estava registrado nos livros.”

Há, também, uma clara intertextualidade com Dostoiévski. Saramago explicitamente


cita (p. 36) o célebre aforisma de Dostoiévski, dito pelo seu personagem Ivan em Os Irmãos
Karamázov: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Trata-se de uma reflexão ética: se a
sociedade moderna e cientificista matar Deus, existirá alguma baliza ética para impedir as
atrocidades humanas? Mas Saramago amplia ainda mais esse horizonte: se a morte é essencial
para o discurso cristão, a “morte” da morte, por tabela, também levaria à morte de Deus...
portanto, o fim da morte também “permitiria tudo”. Se a morte acaba, Deus também morre.

Mais um ponto de intertextualidade é que nessa obra, Saramago dialoga com


Montaigne, um dos escritores mais admirados pelo autor. Montaigne afirmava que “filosofar é
aprender a morrer”, e é aí que podemos encontrar a “lição” do romance/fábula de Saramago. E
Saramago coloca essa citação de maneira literal em seu livro, logo no comecinho. E o
pensamento de Montaigne faz intertextualidade com a mitologia grega, e nosso autor também.
Por exemplo, na mitologia grega, Sísifo, rei de Éfira (atual Corinto), era um homem altamente
sagaz e consegue escapar da morte enganando Tânatos, o deus da morte, e faz com que o deus
acorrente a si próprio no Tártaro, uma prisão destinada àqueles que haviam pecado contra os
deuses. E enquanto Tânatos estava acorrentado no Tártaro, ninguém na terra morreu, assim
como na primeira e na última linhas do romance de Saramago. Vale dizer que as consequências
de Sísifo de enganar a morte são bem pouco invejáveis. Pelo crime de enganar os deuses não
uma, mas duas vezes, Sísifo é condenado por eles a carregar eternamente uma pedra morro
acima, apenas para vê-la cair novamente quando se aproxima do topo. E, como vimos logo na
primeira parte de As Intermitências, escaparmos da morte, mas não haver mais morte não nos
levou a um paraíso na terra, mas a um cenário distópico. Podemos pensar que a falta de sentido
que Sísífo sofre não está no fim da vida, mas na ausência desse fim.
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Também há uma conexão com a filosofia existencialista. Como explicitamos na aula do


contexto, a filosofia existencialista buscou “fazer as pazes” com o conceito abstrato da morte.
Camus afirmava, ao idealizar a sua filosofia do absurdo, que o principal motivo pelo qual
atribuímos uma causalidade à morte (seja por meio da crença, seja por meio da personificação) é
porque, ao nos depararmos com a abstração da morte, nos depararíamos com um vazio
existencial e nos questionaríamos o sentido de viver. Esse mesmo questionamento é colocado
pela própria morte a respeito de si mesma, questionamento que ocorre justamente quando ela,
pelo afeto, se aproxima da humanidade.

O final das Intermitências da Morte nos conduz à seguinte reflexão: escapar da morte,
ao contrário de nos levar a uma vida paradisíaca, pode nos trazer, na melhor das hipóteses, um
tédio extremo, e, na pior, a desumanização. Uma vida infinita levaria à repetição de atividades,
mesmo daquelas atividades que consideramos significativas, como amar ou produzir ciência ou
arte, um número infinito de vezes. A dúvida que se impõe é se essas atividades teriam o mesmo
sentido para nós, ou seriam aprazíveis se fossem repetidas tantas vezes.

Leitura complementar:

Entrevista com Saramago para a RTP, uma rede televisiva de Portugal, que nos dá chaves
interpretativas bem interessantes sobre o final/início da obra.
Fonte: https://ensina.rtp.pt/artigo/jose-saramago-sobre-as-intermitencias-da-morte/

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