Você está na página 1de 42

ÑAQUE

DE

PIOLHOS OU ATORES

Texto Original
[Ñaque o de Piojos y Actores]
José Sanchis Sinisterra - España 1980.
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

“Ñaque” de Piolhos ou Atores

SINOPSE

A obra centra as desventuras de Ríos e Solano, 2


míseraveis atores, integrantes de um Ñaque (Cia. teatral
composta por apenas 2 atores) na Espanha do Século
XVII, que, através de engenhosos diálogos, nos mostram
sua pobreza e seu talento por caminhos de Castilla.

“Arrastando um velho baú que entra todas suas “Tralhas”


teatral, Ríos y Solano chegam “aquí” e “agora” da
representação procedente de um largo vagabundeo
através do espaço e do tempo. Vão repetir frente ao
público um tosco espectáculo, mas o cansaço, as duvidas
e os temores atrasam, interrompem uma e outra vez sua
atuação, em um diálogo que deliberadamente, os
compara com Vladimiro e Estragón, os ambiguos clowns
de Samuel Beckett”. José Sanchis Sinisterra 1980.

[2]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

(O cenario esta vazio e deserto. Luz inserta,


possivelmente vacilante, igualmente dentro do quarto.
Pode-se escutar o vento, inclusive o soprar, o mover-se
do pó, papeis, folhas... O bater de portas mau fechadas.
Uma voz distante/ao longe, grita: Solano! ... Silêncio.
Outra voz, também distante. Ríos! ... A primeira agora
mais perto: Solano! ... E uma resposta mais longe: Ríos!
... As chamadas vão se repetindo alternativamente de
lugares destintos dentro do teatro. Quem as pronunciam
são dois (comediantes) de má dicção que aparecem aqui
e lá rapidamente, como perdidos, se encontrando em um
lugar estranho. Por fim, se encontram no cenario: um
deles, Ríos, arrastando uma velha caixa, e o outro,
Solano, levando no ombro dois (Cajados) grandes, com
um Manto/Pano atado ao Extremo/Ponta feito um
Rebanho/Braçada de madeira. Depois de ambos se
abraçarem, alegres e sem descanso olham inquietos em
toda volta).

[3]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: Onde estamos?


SOLANO: Em um teatro...
RÍOS: Certeza?
SOLANO: ... ou algo parecido.
RÍOS: Outra vez?
SOLANO: Outra vez.
RÍOS: Isso aqui é o cenário?
SOLANO: Sim.
RÍOS: E isso é o público?
SOLANO: Sim.
RÍOS: Isso?
SOLANO: Não parece estranho?
RÍOS: Diferente...
SOLANO: Diferente?
RÍOS: ...outra vez.
SOLANO: Me parece igual.
RÍOS: Certeza?
SOLANO: Certeza.
RÍOS: Você acredita?
SOLANO: Olha aquele homem.
RÍOS: Qual?
SOLANO: Aquele. O de barba.
RÍOS: Todos tem barba.
SOLANO: O de óculos.
RÍOS: Mas todos tem óculos.
SOLANO: O de nariz.
RÍOS: Ah! Sim.

[4]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: Não se lembra?


RÍOS: Não sei...
SOLANO: Já estava na outra vez.
RÍOS: Sim...
SOLANO: E todas as outras vezes.
RÍOS: Que (desgraça/Trágico/Sinistro), não?
SOLANO: Muito.
RÍOS: E os demais?
SOLANO: Também.
RÍOS: Todos iguais?
SOLANO: Mais ou menos.
RÍOS: E agente? (Silêncio) E agente?
SOLANO: De maneira que... (Gesto de pôr mãos à obra)
RÍOS: Você acredita?
SOLANO: Absolutamente. Estão esperando.
RÍOS: Outa vez.
SOLANO: E haverá mais vezes.
RÍOS: E vamos dizer as mesmíssimas coisas?
SOLANO: A mesmíssima.
RÍOS: E faremos a mesmo?
SOLANO: Sim.
RÍOS: Até quando? (Silêncio) Até quando?
SOLANO: Temos que começar. (Ríos pega os cajados e
Solano se precipita em tirar o manto que esta atado
neles) Eh! deixa isso ...
RÍOS: (Fica Pensativo) Solano.
SOLANO: Que?
RÍOS: Te importa?
SOLANO: Que? (Trata de tirar um sapato)
RÍOS: O que dissermos. Fazemos.

[5]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: A quem?
RÍOS: (Para o público) A eles.
SOLANO: Tem vindo, não?
RÍOS: Bom, vindo...
SOLANO: Tem vindo, sim ou não?
RÍOS: Sim, mas ...
SOLANO: Então...
RÍOS: Mas não veem ao teatro. Estão nele. A gente é que
vem. Eles já estão aqui.
SOLANO: Sempre?
RÍOS: Claro: no teatro.
SOLANO: Porque?
RÍOS: Por isso. Porque é o teatro. E eles o público.
SOLANO: Então, eles não importam?
RÍOS: Que?
SOLANO: O que dissermos ou faremos.
RÍOS: Não sei... Escutam, olham...
SOLANO: Isso é tudo?
RÍOS: Já é o suficiente, não?
SOLANO: (Consegue tirar um sapato) Escutam...
RÍOS: Sim.
SOLANO: ... e olham.
RÍOS: é bastante?
SOLANO: é bastante? (Silêncio)
RÍOS: Andamos muito.
SOLANO: Quando?
RÍOS: Muitos caminhos.
SOLANO: Não te entendo...
RÍOS: Devíamos parar.
SOLANO: Quando?

[6]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: Em algum momento.


SOLANO: Parar-nos...
RÍOS: Sim. Em algum lugar. Ficamos por lá.
SOLANO: Que dizer... então?
RÍOS: Sim. Ficamos. Ninguém nos perseguiria.
SOLANO: Não?
RÍOS: Uma casa, um povoado, uma cidade...
SOLANO: Um teatro...
RÍOS: O teatro, sim.
SOLANO: Muitos caminhos.
RÍOS: Outros ficaram.
SOLANO: Ninguém nos perseguiria?
RÍOS: Não.
SOLANO: Tem certeza? (Silêncio) Certeza mesmo?
RÍOS: A fome.
SOLANO: Que disse?
RÍOS: A fome. Digo, Foo-me...
SOLANO: Tens fome?
RÍOS: Sim.
SOLANO: Agora?
RÍOS: Sim. Agora também. (Procura em sua bolsa)
SOLANO: Agora? Quer comer agora?
RÍOS: Porque não? Tenho fome.
SOLANO: Sempre tens fome.
RÍOS: O mesmo que você. (Puxa uma cenoura)
SOLANO: Mas, a gente tem que começar... Estão
esperando.
RÍOS: Você não está com fome?
SOLANO: Sim, claro...
RÍOS: Então... (Come)

[7]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: Temos que atuar!


RÍOS: Atuar?
SOLANO: Sim, atuar...
RÍOS: Chamas de atuar isso que fazemos?
SOLANO: Como, se não?
RÍOS: (Deixa de comer e pensa) representar?
SOLANO: Não...
RÍOS: Declamar...
SOLANO: Não.
RÍOS: Relatar...
SOLANO: Não... Imitar?
RÍOS: Não... Recordar?
SOLANO: Lembrar?
RÍOS: Ressuscitar?
SOLANO: Não. Quem está morto?
RÍOS: (Come) Todos. Todos eles.
SOLANO: Agente também? (Silêncio) Agente também?
RÍOS: (Oferecendo cenoura) Quer?
SOLANO: Não. Temos que começar. (Tenta calçar-se)
RÍOS: (Continua comendo) Não seria melhor terminar?
SOLANO: Terminar? É muito tarde.
RÍOS: Muito tarde.
SOLANO: Devíamos ter pensado nisso há uma eternidade.
RÍOS: À 1600...
SOLANO: Faz uma eternidade.
RÍOS: Então, pelo menos éramos algo...
SOLANO: Pouco.
RÍOS: ... Fazíamos algo.
SOLANO: Pouco.
RÍOS: Então...

[8]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: Sobretudo, não diga “Então”.


RÍOS: Não?
SOLANO: Para gente é agora.
RÍOS: Fazia 1600...
SOLANO: Mais ou menos. (Pausa)
RÍOS: E quando é agora?
SOLANO: Que agora?
RÍOS: O agora de agora; o meu, o teu, o do público...
SOLANO: Quer dizer... aqui?
RÍOS: Sim. Aqui.
SOLANO: Não sei. Pergunte.
RÍOS: A quem?
SOLANO: Ao público.
RÍOS: Pode fazer?
SOLANO: Tente.
RÍOS: Quero dizer... está permitido?
SOLANO: Por que não?
RÍOS: Ah, não sei...
SOLANO: Anda, pergunte.
RÍOS: E se...?
SOLANO: Que? Ninguém nos proibiu.
RÍOS: Não, mas...
SOLANO: Eu pergunto? (Consegue pôr o sapato)
RÍOS: Sim, por favor.
SOLANO: (A um espectador) Quando é agora? Que dia?
Que mês? Que ano? ... Obrigado. (Passa a resposta a Ríos
e vai preparar a caixa).
RÍOS: Que barbaridade! (Repete o ano) Solano...
SOLANO: Que?
RÍOS: Solano.

[9]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: Que?
RÍOS: Tem ideia? (Conta com os dedos) quase 400 anos...
SOLANO: Temos que começar.
RÍOS: Quase 400 anos... Tem ideia?
SOLANO: Uma eternidade. Sim.
RÍOS: Andamos muito.
SOLANO: Demasiados caminhos.
RÍOS: Devíamos deter-nos. Parar por aqui.
SOLANO: Em um teatro.
RÍOS: O teatro, sim.
SOLANO: (Recita para si mesmo)
Foi o tempo que se usavam
as comedias de aparências,
de santos e de tramoias...
Cantavam a quatro vozes,
saíam mulheres belas
vestidas com roupas de homem,
com correntes de ouro e perolas...
Tiravam/Decolavam, cavalos nos teatros, grandeza
nunca vista até este tempo...
RIOS: (Prossegue, de modo mais declamatório)
Agora o teatro está
elevado a tanta grandeza,
que que se perdem de vista
pela altura a que chegam
comedias, representantes, música,
as letras, a comicidade, os bailes, as mascaras,
vestidos, galas, riquezas,
invenções, novidades e por fim coisas tão diversas,
que eu confesso, não saberia descreve-las

[ 10 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

ou a menos valoriza-las devidamente...


SOLANO: (Animando-se)
Que dizer das comedias
que escreviam nossos poetas?
O divino Miguel Sánchez,
quem não conhece as que inventam o jurado de Toledo,
digno de memória eterna,
o grande canônico Tárrega,
o famoso Micer Artieda,
o grande Lupercio Leonardo,
Aguilar o de Valencia,
o licenciado Ramón,
Justiniano, Ochoa, Cepeda,
o licenciado Mejía,
o bom Don Diego de Vera,
Mescua, Don Guillén de Castro, Liñán, Don Felix de
Herrera, Valdivieso e Armendárez.
E entre todos, alguém fica,
a Fênix do nosso tempo,
quem que não haja escrito grandes obras
de comédias que não merecesse
estar com letras de ouro impressa,
pois valorizam o autor
e honram quem as representam...
(Se auto interrompe e fica perplexo, se esforçando por
lembrar) RÍOS...

RÍOS: Que?
SOLANO: Como se chama?

[ 11 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: Quem?
SOLANO: Esse que escreve tanto...
RÍOS: Não sei de quem fala.
SOLANO: Sim, homem. O grande... Como se chama?
Aquele bem famoso....
RÍOS: Existe tantos...
SOLANO: (Tenta retomar o raciocínio) E entre todos, um
fica... a Fênix de nosso tempo... quem não haja escrito
comédia... que não mereça estar...
RÍOS: Ah, sim... Já sei de quem fala. Aquele que... Como
se chama?...
SOLANO: (Conta com os dedos) Mescua, Don Guillén
de Castro, Liñán, Don Félix de Herrera, Valdivieso,
Armendárez...
RÍOS: López! López de ...! De que?
SOLANO: López?
RÍOS: Gómez?
SOLANO: Pérez?
RÍOS: Sánchez?
SOLANO: (Demonstrando o problema com um gesto)
Não importa... (E continua)
...e outros que não me lembro,
que escrevem e escreveram
comédias muito boas.
Quem que todos não conhece?
Quem que a fama não chega?
Quem não se admira de ver
a própria engenhosidade e eloquência?...
(Para ao notar que RÍOS bisbilhote-a entre os bastidores)
RÍOS. (Silêncio) RÍOS!

[ 12 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: (Reaparecendo com uma moderna Tampa/Frente


de Banheiro/Bacia nas mãos) Que?
SOLANO: Que estas fazendo?
RÍOS: Eu? Nada... (A esconde)
SOLANO: Nada?
RÍOS: Nada.
SOLANO: E o que levas aí?
RÍOS: Isso? (Mostra o que havia escondido)
SOLANO: Sim, isso. Que é?
RÍOS: Não sei... À encontrei por aí...
SOLANO: Por onde?
RÍOS: Jogado por ai, no chão...
SOLANO: No chão...
RÍOS: Sim, jogado... vi e pensei: quiçá possa nos servir...
SOLANO: Para que?
RÍOS: Para atuar. Levamos tão poucas quinquilharias e
utensílios ...
SOLANO: Se por tua sapiência fossemos, já
necessitaríamos um bom carro
RÍOS: Por mim?
SOLANO: Sim, por ti. Sempre tens que andar
Bisbilhotando/Farejando/Agregando... e nem sempre com
coisas do chão.
RÍOS: Que queres insinuar?
SOLANO: Que te sobram mãos... (RÍOS as observa, com
estranhamento) E a mim me falta Lombo/Costas para
Encaixar/Levar os Látegos/Açoites/Palmadas que por
vossa culpa nos chovem.
RÍOS: Pois língua não te falta para dizer
Absurdos/Merdas.

[ 13 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: Absurdos? Quantas pauladas a gente levou do


Carrasco de Murcia? Cinquenta?
RÍOS: Sabes muito bem que aquilo foi uma tremenda
injustiça. A tigela era de cobre e não valia se quer (III
Reales, III Maravedies ou I Peso de Ocho) ... E além
disso, essa não seria uma ocasião propicia de se lavar a
roupa suja?
SOLANO: A roupa suja... (Vai até o Baú) Deixemos isso de
lado e comecemos de uma vez. Já se faz tarde.
RÍOS: Tarde? Para que? (Silêncio) Para que?
SOLANO: (Tirando roupas do baú) Temos que começar.
RÍOS: (Para o Público) Estão esperando?
SOLANO: Que outra coisa podem fazer?

(RÍOS Fica pensativo, olhando o público. E de pronto, se


ilumina a face.)

RÍOS: Solano...
SOLANO: Que?
RÍOS: Solano.
SOLANO: Que?
RÍOS: E se trocássemos os papéis?
SOLANO: Quem? Tu e eu?
RÍOS: Não... A gente e eles.
SOLANO: Queres dizer o público?
RÍOS: Sim.
SOLANO: Trocar? Como?
RÍOS: Eles atuam e a gente... Assisti/Olha e
Escuta/Observa.
SOLANO: Nossa, boa ideia!

[ 14 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: Não te agradaria?


SOLANO: Não sei... não creio...
RÍOS: Seria divertido.
SOLANO: Seria entedioso.
RÍOS: Entedioso? Porque? Imagina: a Gente aqui,
olhando, e eles...
SOLANO: Eles, o que?
RÍOS: Atuando.
SOLANO: E se não atuarem?
RÍOS: Algo faram...
SOLANO: E se não fazem nada? (Silêncio) E se não fazem
nada?
RÍOS: Vamos provar. Fazer um teste.
SOLANO: Será um tédio.
RÍOS: Será divertido.
SOLANO: Se tu diz...
RÍOS: Vem, senta-te aqui...

(Se sentam as margens do palco e observam o público


durante largos/longos minutos. Por fim RÍOS se
incomoda)

SOLANO: Tens ideia?


RÍOS: (Decepcionado) Sim. Me dei conta disso.
SOLANO: (Incorporando-se) Então, comecemos nós
mesmo?
RÍOS: (Idem) Sim, comecemos.

(Clareando grosseiramente a voz, vão até o baú e tiram


de lá uns chifres de cabra. RÍOS – e uma flauta –

[ 15 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO – Logo se situam no proscênio, a ambos lados


do cenário e de lá, avançam ritmicamente até o baú e
sobem em cima dele, fazendo soar seus respectivos
instrumentos. Ao término, declamam);

RÍOS: Senhores/Senhoritas, devem saber, que existem


oito maneiras de Cias. e representantes, e todas
diferentes. Cada qual com sua particularidade.
SOLANO: E se chamam: Bululú, Ñaque, Gangarilla,
Cambaleo, Garnacha, Bojiganga, Farándula e
Compañía.
RÍOS: Como foi que disse?
SOLANO: Eu disse: Bululú, Ñaque, Gangarilla,
Cambaleo, Garnacha, Bojiganga, Farándula e
Compañía.
RÍOS: Bululú, Ñaque, Gangarilla...
SOLANO: Cambaleo, Garnacha, Bojiganga...
RÍOS: Farándula e Compañía.
SOLANO: Oito maneiras e todas diferentes.
RÍOS: Bululú, Ñaque, Gangarilla, Cambaleo,
Garnacha, Bojiganga, Farándula e ... e...
SOLANO: E Compañía.
RÍOS: E Compañía!
SOLANO: Vou dizer ao contrário: Compañía, Farándula,
Bojiganga, Garnacha, Cambaleo, Gangarilla, Ñaque
e Bululú
RÍOS: Compañía, Farándula, Bojiganga...
SOLANO: Garnacha, Cambaleo, Gangarilla...
RÍOS: Ñaque e... e...
SOLANO: E Bululú.

[ 16 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: E Bululú!

(Fizeram uma Tosca/Rude coreografia, que conclui com


ambos escondidos detrás do baú)

SOLANO: (Em tom normal, Espiando/Espreitando) Não


está mal.
RÍOS: Que?
SOLANO: Que não está mal.
RÍOS: Não está mal, o que?
SOLANO: O Princípio/Começo.
RÍOS: Que princípio?
SOLANO: Este. O nosso. Que começamos bem.
RÍOS: Sim?
SOLANO: Sim. Melhor que outras vezes.
RÍOS: Tu crês?
SOLANO: Sim.
RÍOS: Tá. E é por isso que você corta.
SOLANO: Corto?
RÍOS: Sim, cortas.
SOLANO: Como?
RÍOS: Vá e diga: “Não está mal”. E cortas.
SOLANO: É que, não é verdade?
RÍOS: Que?
SOLANO: Que não está mal.
RÍOS: E isso, a quem importa?
SOLANO: Como?
RÍOS: Sim. A quem se importa, diz?
SOLANO: Bom, não sei... Ao público, por exemplo...

[ 17 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: Tá. Ao público... Ao público não importa tua


opinião!
SOLANO: Não?
RÍOS: Não!
SOLANO: E o que importa, então?
RÍOS: (Vai responder mas não sabe o que) Vamos deixar.
SOLANO: Sim, será melhor.
RÍOS: Começo outra vez.
SOLANO: Não outra vez não.
RÍOS: Porque não?
SOLANO: Acaso isso não sai tão bem...
RÍOS: (Se segurando) Segue você.
SOLANO: Eu?
RÍOS: Sim. Tua vez... Compañía...

SOLANO: Ah, sim... Nas Cias. existe todo tipo, gênero de


Gusarapas e bugigangas. Tem gente muito discreta,
homens muito estimados, pessoas bem nascidas e ainda
mulheres muito honradas... que onde existe muito, é força
que exista de tudo. Trazem 50 comédias, 300 arroba de
rebanhos, 10 e 6 pessoas que representam, 30 que
comem, um que cobra e... Deus sabe lá quem rouba! São
seus trabalhos excessivos por ter tantos papeis que
estudar, ensaios tão contínuos e gostos tão diversos...
Farándula!

RÍOS: Farándula é a véspera da Cia. Trazem 3 mulheres,


8 ou 10 comédias, 2 cofres de rebanho e andam de mulas
e as vezes de carro. Entram em bons povoados, possuem
boas vestimentas, com penas sobre seus chapeis: comem

[ 18 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

distantes um do outro, fazem festas de Corpus a duzentos


ducados e vivem felizes... Digo, os que não são
apaixonados, porque também existe os que namoram por
debaixo de seus chapeis... Bojiganga!

SOLANO: Na Bojiganga vão duas mulheres, um rapaz e


seis o sete companheiros. Estes trazem seis comedias,
três ou quatro carros, de cinco a dois Cofres/Arcas: um
com o rebanho da comédia e a outra de mulheres.
Comem bem, dormem todos em quatro camas,
apresentam de noite e dão festas de dia: jantam muito
mais saladas, porque como as comédias terminam tarde,
encontram a janta sempre fria. Eles são muito propensos
a dormir pelo caminho sobre as lareiras, apenas no caso
de estarem fartos e saciados de chouriços.

RÍOS: Solano...
SOLANO: Que?
RÍOS: Quantos anos vive um piolho?
SOLANO: Depende.
RÍOS: De que?
SOLANO: De muitas coisas.
RÍOS: Por exemplo?
SOLANO: Por exemplo, de... Porque a pergunta?
RÍOS: (Mostrando algo entre os dedos) Olha esse.
SOLANO: Sim.
RÍOS: Estás vendo?
SOLANO: Sim, estou vendo.
RÍOS: Não te parece familiar?
SOLANO: Deixe me ver....

[ 19 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: Já estava comigo da outra vez...


SOLANO: Sim?
RÍOS: ... E todas as outras vezes.
SOLANO: Que cansativo, não?
RÍOS: Muito.
SOLANO: E os demais?
RÍOS: Também.
SOLANO: Todos iguais?
RÍOS: Mais ou menos.
SOLANO: Mas, então, O que você faz quando te
despiolha?
RÍOS: Que faço?
SOLANO: Sim: o que faz com os piolhos?
RÍOS: Bem... Eu procuro por eles...
SOLANO: Sim.
RÍOS: ...Eu os pego...
SOLANO: Sim.
RÍOS: ... Eu seguro eles assim com os dedos...
SOLANO: Muito bem.
RÍOS: ... E...
SOLANO: E o que?
RÍOS: Bom, depende...
SOLANO: Não os... ? (Gesto de esmagar)
RÍOS: (Com um escalafrio) Cale a boca, por Deus!
SOLANO: Então?
RÍOS: Pobrezinhos... Que mal fazem?
SOLANO: Chupam teu sangue.
RÍOS: Sim, mas é tão pouco...
SOLANO: E te dão coceiras.
RÍOS: Tá...

[ 20 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: E tem que coçar feito um louco.


RÍOS: Isso diverte, não?
SOLANO: Você gosta de se coçar?
RÍOS: Bom, ao menos se sente algo...
SOLANO: Sentir algo?
RÍOS: Sim, sentir... Não acontece contigo que as vezes
não se sente nada?
SOLANO: Onde?
RÍOS: Em... em nenhuma lugar.
SOLANO: Sim, muitas vezes.
RÍOS: E então, que?
SOLANO: Que? Pra isso somos atores.
RÍOS: Para que?
SOLANO: Para sentir algo.
RÍOS: Não te entendo...
SOLANO: Coloque sua bunda.
RÍOS: Onde?
SOLANO: Aqui... (Faz com que Ríos se encurve para
frente e lhe um ponta pé no traseiro).
RÍOS:
SOLANO:
RÍOS: Ai! Porque?...(Esfrega o lugar atingido)
SOLANO: Sente algo?
RÍOS: Você sim vai sentir...! (Corre atrás de Solano. Ele
foge. Perseguição)
SOLANO: Espera, homem! Deixa eu te explicar!
RÍOS: O que tens pra me explicar?
SOLANO: O do piolho...
RÍOS: (Se detém) O piolho? (Busca pelo corpo e pelo
chão)

[ 21 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: Sim... Isso que você dizia de não sentir nada...


RÍOS: (Procurando) Onde Diabos...?
SOLANO: Deixe-o. Que falta nos faz os piolhos?
RÍOS: Era um bom piolho...
SOLANO: Não o necessita. Você é um piolho mesmo...
Quero dizer: um ator.
RÍOS: Um piolho?
SOLANO: Um ator... Somo atores.
RÍOS: Atores...
SOLANO: ... Ou algo parecido.
RÍOS: Metade mendigos, metade putas.
SOLANO: Mas sentimos, não?
RÍOS: O que sentimos? Chutes no rabo?
SOLANO: Sim, e golpes e cutucadas e paixões...
RÍOS: Que paixões?
SOLANO: Todas: o amor, o ciúmes, a raiva, a dor, a
ânsia...
RÍOS: Escuta... Quando que você sente tudo isso?
SOLANO: Quando atuo. Você não sente nada?
RÍOS: Os chutes sim, mas os demais...
SOLANO: Apenas os chutes?
RÍOS: Bom, e também a fome, e a sede, o calor, o frio, o
cansaço, o sono... e os piolhos.
SOLANO: Isso é tudo?
RÍOS: Você acha pouco? (Silêncio) você acha pouco?
SOLANO: Ríos...
RÍOS: Que?
SOLANO: Ríos...
RÍOS: Que?
SOLANO: Me devolva.

[ 22 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: Te devolver. O que?


SOLANO: O chute. (Encurvando-se para a frente,
oferendo-lê o traseiro)
RÍOS: O chute?
SOLANO: Sim, anda logo. Me devolva.
RÍOS: (Depois de duvidar) Bom, já que insisti... (Lhe da o
chute) Mas não entendo o que tem a ver isso com...
SOLANO: (Como quem procura um piolho, o entrega)
Toma. Um bom piolho. Estamos em paz. E agora,
sigamos... Compañía, Farándula, Bojiganga,
Garnacha... Tua vez: Garnacha.
RÍOS: (Após inspecionar o piolho, o devolve a cabeça e
dando se de ombro, recita...) Garnacha são cinco ou seis
homens, uma mulher que faz a primeira Dama e um
moleque a segunda. Levam uma arca com... (Interrompe)
Solano... (Distraído não responde) Solano.
SOLANO: Que?
RÍOS: As vezes também sinto medo.
SOLANO: Medo?
RÍOS: Sim, medo.
SOLANO: De que? De quem? (Ríos aponta a plateia) A
plateia? Porque?
RÍOS: Olhe bem pra eles...
SOLANO: (Olha) Que?
RÍOS: Tão quietos, tão calados... Quem são eles? O que
pensam?
SOLANO: Não pensam nada.
RÍOS: Apenas/Só Assistem/Olham?
SOLANO: E escutam.
RÍOS: Mas de cara podem... (Gesto incerto)

[ 23 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: O que?
RÍOS: Não seria a primeira vez.
SOLANO: Nos atacar? Nos bater?
RÍOS: Sim... ou nos insultar. Não seria a primeira vez.
Quando algo não lhes agrada...
SOLANO: Esses, parecem ser boa gente.
RÍOS: Nunca se sabe. Olhe esse cara.
SOLANO: Qual? O de barba?
RÍOS: Sim.
SOLANO: Todos tem barba.
RÍOS: Esse tem mais.
SOLANO: Mais?
RÍOS: Mais. E ponha atenção no olhar...
SOLANO: O que será que acontece?
RÍOS: Não sei, mas... A impressão é de que não está
gostando. Esta frangindo as sobrancelhas, piscando...
SOLANO: Fique calado. Não o provoques... Acontece que
desviamos muito. Temos que seguir: com alegria, com
brio...
RÍOS: Com brio...
SOLANO: Sim... (Declama vivamente) Garnacha são
cinco ou seis homens, uma mulher que faz a Primeira
Dama... Você se da conta?
RÍOS: Tá... Assim lhes agradaria mais?
SOLANO: Claro. Prove e veras... (Ríos vai começar, mas
Solano o interrompe) Sorri.
RÍOS: Que?
SOLANO: Sorri. (Imita) Assim.
RÍOS: (O imita muito mal) Assim?
SOLANO: (Tolerante) Mais ou menos...

[ 24 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: (Com energia forçada) Garnacha são cinco ou seis


homens, uma mulher que faz a Primeira Dama e um
moleque a segunda. Levam uma arca com dois saltos, um
traje, três peludos, barbas e cabeleiras e algum vestido de
mulher. Esses trazem quatro comédias, três carros e
outras tantas entradas. A arca em um asno, a mulher nas
ancas, rosnando, e todos os companheiros atrás,
dirigindo. Passam oito dias em um povoado, dormem
quatro em uma cama, tem o vinho por adarmes (espécie
de medida), as carnes por onças, o pão por libras e a
fome por arrobas... Cambaleo!
SOLANO: Cambaleo é uma mulher que canta e cinco
homens que choram. Trazem apenas uma comedia, dois
automóveis, três ou quatros entradas e uma bagunça de
roupas que podem ser levadas por uma aranha. As vezes
carregam a mulher de costas e as vezes em cadeiras de
mãos... como fizemos este e eu quando nos juntamos
golpes de martelo... (A RÍOS) Se lembra?

RÍOS: Tanto que me lembro...


SOLANO: Apresentam em casas de fazenda por um
pedaço de pão, um cacho de uva e uma panela de
repolho. Mas nos povoados chegam cobrar 6
(maravedíes), um pedaço de linguiça e o que mais
apareça/venha/chegue. Passam de 4 a 6 dias nos lugares,
alugam uma cama pra mulher e para os demais o palheiro
é sua habitação eterna... Gangarilla!
RÍOS: Na Gangarilla vão 3 ou 4 homens, um que sabe
tocar e um moleque que faz o papel da Dama.
Interpretam o Auto de “La Oveja Perdida” e dois entram

[ 25 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

de tontos, tem barba e cabeleira, buscam saias e peças


emprestadas, e as vezes esquecem de devolve-las.
Cobram um quarto do preço, pedaços de pães, ovos,
sardinhas e todo tipo de feijões que há. Quando possível,
comem seus churrascos e bebem lá seus bons tragos de
vinho. Dormem pelo chão, caminham com frequência,
apresentam em qualquer casas de fazenda e sempre
levam os braços cruzados porque uma capa nunca se
sai/cai de um ombro.
SOLANO: Ríos...
RÍOS: Que?
SOLANO: Ríos...
RÍOS: Que?
SOLANO: Não estava com fome?
RÍOS: Sim
SOLANO: E já te passou?
RÍOS: Sempre tenho fome. É de nascimento.
SOLANO: Eu também. (Pausa)
RÍOS: Porque perguntas?
SOLANO: Falas tanto de comida...
RÍOS: Que?
SOLANO: ...acordou minhas tripas.
RÍOS: Quer comer?
SOLANO: Sim.
RÍOS: Agora?
SOLANO: Sim, agora.
RÍOS: Mas, estamos atuando!
SOLANO: Atuando?
RÍOS: Sim, atuando.
SOLANO: Isso você chama de atuar?

[ 26 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RÍOS: Atuar, representar, recitar, declamar, imitar...


SOLANO: Tá bem. Mas tenho fome. (Pausa)
RÍOS: Eu também.
SOLANO: Então...?
RÍOS: ...Comemos?
SOLANO: Caminhando?
RÍOS: Enquanto atuamos?

(Tiram rapidamente comidas de seus bolsos e alforjes)

SOLANO: Só uns bocados pra enganar a fome...


RÍOS: Isso, porque: de casada e salada, dois bocados e
deixe-a.
SOLANO: E lutas com pães, são menos.
RÍOS: E o que é da vida, o comer é medicina.
SOLANO: (Tira do bolso um conto) Menino delicado,
menino mimado.
RÍOS: (Tira do bolso uma bota/garrafa de vinho) Se bem
ou mal, comer; deve três vezes beber. (Toma 3 tragos e
passa a garrafa para Solano)
SOLANO: (Tira do bolso um torresmo/bacon/toucinho)
Vinhos e Torresmo velho, são como amigos caquético.
(Bebe)
RÍOS: (Tira do bolso um queijo) Já o queijo e o melão, o
peso; leve em consideração.
SOLANO: (Tira do bolso um melão) O melão e a mulher,
se comem de colher. (Usa um gesto)
RÍOS: (Tira do bolso um pão) Deus seja louvado: o pão
comido e o curral cagado.

[ 27 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: Dieta e cabeção, e sete nós no calçolão. (Come


algo)
RÍOS: (Mordaz) O Catalão muito bem se come... quiçá
não morra de fome.
SOLANO: (É interrompido) Mas... o que se caga, alguém
por ai, certamente; o traga...
RÍOS: (Incomodado) Em um almofariz muitos alhos, mal
se esmagam ou trituram; servem, de quebra-galho.
SOLANO: (Agressivo) Mesmo com nariz grande, não se
olfatea tão bem feito um gigante.
RÍOS: (Idem) A mula, o burro e a potranca, a carregam
pela anca.
SOLANO: Eu não pago de Gabacho, Nem de Cafetão
Macho. GABACHO - USO. (Gíria pejorativa usada para descrever estrangeiros
de diferentes origens)
RÍOS: Porcos com frio e que bebem agua pura, são
homens de vinho e com grande loucura.
SOLANO: A cada porco chega seu San Martín.
(Agressividade crescente). SAN MARTÍN - USO. (General Argentino,
Primeiro conquistador da América do Sul que obteve sucesso na
independência Espanhola)
RÍOS: (Depreciativo) Chove e apedreja, ou nossa moça se
urina de Amargosa carqueja.
SOLANO: (Doloroso) Muito sabia quem pensava ser
cornudo, mais ainda o legitimo chifrudo.
RÍOS: (Idem) O que no leite se mama, na mortalha se
derrama.
SOLANO: Não existe geração sem puta e sem ladrão.
RÍOS: As putas e ao Menestrel, a velhice lhes chega como
Féu.
SOLANO: Você cadela me vê e aceite que é você!

[ 28 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

(Empunhados se preparam para uma briga, mas Ríos


estoura um tomate que leva em uma das mão salpicando
polpas em ambos. Se acalmam. Riem e voltam a
cordialidade inicial)

RÍOS: Não existe melhor espelho que um amigo velho.


SOLANO: Em uma estreita taberna e longo caminho, um
homem conhece o caminhante.
RÍOS: Palavras e plumas, o vento as derruba.
SOLANO: Insensato é o que pensa que o outro não pensa.
RÍOS: Simplório convém que seja, quem comunidade
deseja.
SOLANO: Por isso aquele é cornudo, porque podem dois
muito mais do que um e a menudo.
RÍOS: Solano!
SOLANO: Que? (Ríos aponta a plateia) Que há? Algum
cornudo?
RÍOS: Não, homem de Deus: a Platéia.
SOLANO: A plateia?
RÍOS: Sim, nossa atuação: Bululú, Ñaque, Gangarilla,
Cambaleo...
SOLANO: Certo! Havia me esquecido... (Por conta da
comida) Segue você com isso. (Incorpora o personagem e
segue à atuação enquanto Ríos corta e prepara os
alimentos e os mistura em uma tigela/cuenco) Ñaque...
Ñaque são dois homens que levam um sino, uma barba
de pele de carneiro, tocam um tamborim e cobram por
Ochavo. Fazem um pouco de carro, acompanhamento e
dizem umas oitavas e dois ou três elogios. Vivem felizes,

[ 29 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

dormem de roupa e caminham pelados, comem famintos,


se limpam no verão entre os trigais e no inverno não
sentem com o frio seus piolhos ...
RIOS: (Incorpora-se e mima sua própria narração,
enquanto SOLANO vai comer) Assim andamos este e eu
quando saímos da cidade de Valencia por certa
desgraça, ele a pé e eu andando. E foi assim que
chegamos já de noite a um lugar, cansados e com 8/4
entre os dois. Fomos a uma taberna pedir pouso mas nos
disseram que não havia, e tão pouco encontraríamos
naquele dia. Havia feira na cidade... Percebendo que não
tínhamos para onde correr, usamos um velho barracão de
uma indústria abandonada. Depois fui a uma boa
hospedaria e disse que era um Mercador Indiano, e como
prova tinha minha própria cara... vê como pareço?
SOLANO: E ainda na maneira de falar...
RIOS: (Reparando que SOLANO por não estar atuando,
está acabando com a comida) Por ele não falar vou ficar
sem comida e sem salada, a menos que teus dentes
desapareçam...
SOLANO: É que meu pai morrer de súbito...
RÍOS: Que disse?
SOLANO: Não conhece o conto daqueles dois amigos que
compartiram uma galinha?
RÍOS: Não, não sei. E pra me dar a vez de comer algo,
conte tu.
SOLANO: Então, a história conta que dois amigos
chegaram em uma barraco e a única coisa que havia pro
jantar era uma galinha. Então um deles que era morto de
fome, também; homem muito astuto, disse: Enquanto

[ 30 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

preparo a galinha me conte como morreu teu pai. O outro


amigo já com lagrimas e sentido começou o conto, por
sinal grande e tardio; contava com detalhes todo processo
da doença e sofrimento que passou o velho e chegou a
tardar tanto que quando se deu conta o outro amigo já
havia comido quase toda a galinha. Se sentindo burlado e
com ganas de devolver da mesma maneira a trapaça do
amigo, disse: agora me conte tú como morreu o teu. O
amigo para não perder a divisão da parte que ainda
sobrava, disse: Senhor, o meu pai morreu de súbito.
RÍOS: Bom é a história, mas, melhor é que sigamos com o
nosso ... (Prossegue com à atuação) Então, fui a uma boa
hospedaria e disse que era Mercados Indiano. A dona me
perguntou se vinhamos a cavalo e respondi que não.
Estávamos de carro. Logo fui falar com o prefeito da
cidade e lhe disse que estávamos alí. Uma Cía. Respeitada
e com bons atores. Falei que estávamos de passagem e
que se podia nos dar Licença/autorização para apresentar
a obra. Me perguntou se era obra sacra e eu respondi que
sim. Então me deu a licença para apresentarmos e eu
voltei correndo avisar a SOLANO que repassasse o texto
“O AUTO DO SACRIFICIO DE ABRAHAM” e que fosse
logo começar a cobrança porque apresentaríamos aquela
noite. Eu fui buscar um tamborim. Fiz uma barba com
pele de carneiro e sai no meio do povoado pregando a
obra e chamando todos para que vissem o grande
espetáculo (Tira do baú o tamborim e a barba. Põe a
barba segura o tamborim e começa a chamada dentro do
cenário) O famoso Alto de Abraham, de muita devoção e
entretenimento. O famoso Alto do Sacrifício de Abraham.

[ 31 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

Estejam lá, no coreto da prefeitura esta noite. Será


representada por uma ilustre companhia. Já que havia
feira muitos se interessaram onde estava cobrando
Solano. Feito isso, guardei o tamborim, tirei a barba e fui
ate a hospedaria; subi ao meu aposento, tirei o lençol da
cama, uma almofada velha e duas ou três cortinas, que
era tudo que necessitamos de adorno para o cenário e
figurino da obra. Bem, como ninguém podia me ver
descendo com nada disso, fiz uma bola de pano grande
com tudo dentro e sem pensar lancei pela janela do
quarto pro meu da rua e desci feito uma bala. O dono
estava no pátio; me chama e diz: Senhor Indiano, Não
gostaria de assistir um espetáculo hoje a noite de uma
ilustre Cia? Dizem que é muito boa. Eu digo que sim, e
saio com tremenda pressa em busca da trouxa de panos
que havia lançado pela janela. Cheguei tarde. Já não
estava lá. A procurei por toda parte e nada. Vendo a
desgraça feita e o que estava por acontecer; corro até
onde se encontrava Solano, conto todo o ocorrido e
sugiro: pare com a cobrança, junte o que temos e nos
mandamos daqui com o dinheiro.
SOLANO: Já imaginou como ficarão. Uns sem Mercadante
e sem lençóis e outros burlados, sem dinheiro, e sem
comédia. Aquela noite andamos pouco, porém fora dos
caminhos. Pela manhã fizemos as contas do que havíamos
cobrado e chegamos num total de 3 reais e meio, todo em
dinheiro. Bem, como podem ver, estávamos ricos porem
algo assustado e com medo. Naquela noite, íamos chegar
a um outro povoado e já tínhamos ideia de como ganhar
mais dinheiro e o que comer. Pedi autorização ao prefeito,

[ 32 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

busquei dois lençóis velhos, pregamos a comédia,


procuramos um violão, começamos a cobrança e convidei
todos os donos de hospedarias. No fim, a casa cheia,
começo a cantar o romance de “COMPAÑERO,
COMPAÑERO”...

(Tiram de dentro do baú todo cenário e o montam em um


pequeno tablado: com dois cajados e uma manta velha;
constroem toda decoração. Solano se sente e com um
velho violão canta)

- Compañero, compañero,
se casó mi linda amiga;
se casó com um villano,
que es lo que más me dolía.
irme quiero a tornar moro,
allende la morería,
y Cristiano que me encuentre
yo le quitaré la vida.
- no lo hagas compañero,
no lo hagas por tua vida;
de tres hermanas que tengo,
te daré la más garrida;
el cuello tiene de garza,
la piel es de maravilla:
si la quieres por mujer,
si la quieres por amiga.
- no la quiero por mujer,
ni la quiero por amiga,
compañero, compañero,

[ 33 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

me voy a la morería.

RÍOS: (Em cima do Baú) Terminado o Romance, Solano


entra na coxia, não importando com a plateia. E então,
saio e começo a declamar um Mito/Poema para remendar
a falta de música. O Mito era “LAS CUATRO EDADES
DEL MUNDO”, que diz:

Antes que dieran las aguas


que ahora riegan el suelo
fertilidade a los campos
y tributo al mar soberbio,
y antes que el viento veloz
tuviera forma ni asiento,
eran el aire y el mar
lo mismo que tierra y fuego;
todo era confusión,
caos y dudoso estrueno.
Entonces quiso el Creador,
el hacedor de los cielos,
formar este nuevo mundo
y dijo: vamos a hacerlo.
Hizo fuentes, ríos, mares,
sierras, montes, llanos, cerros;
creó plantas y animales
tan vários y tan diversos;
creó el hombre, y para él sólo
hizo la tierra y el cielo;
lo creó a su semejanza,

[ 34 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

le dió buen entendimento,


y sobre esto, compañia,
que es el mayor bien del suelo.
Hizo la mujer, gran bien
de nuestros Padres primeiros;
tuvieron hijos queridos,
viviendo en paz y sosiego.
No hubo nadie que buscase
más que sólo su sustento,
y éste fue común a todos.
Mirad qué tiempo tan bueno!

Fue nuestra segunda edad


la plata; en este tiempo
empezó la indústria humana
a romper y abrir cimientos,
a labrar casas reales,
fabricar suntuosos templos,
levantar soberbios muros
y alzar edificios belos.

(SOLANO abandona o palco e desce ate a plateia)

De esta nueva confusión,


de labirinto nuevo,
creció em los pechos el hambre
y en los hombres el esfuerzo.
Hubo justicia sin jueces,
Porque no los consintieron,
ni rey, que todos son reyes

[ 35 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

donde todos son sujetos,


los bienes se repartían
entre todos con respecto,
com tanto amor, que ninguno
pidió más ni llevó menos.
Mirad qué dichoso tiempo!

(Interrompe ao advertir SOLANO está entre a plateia)

RIOS: Solano... (Silêncio) Solano!


SOLANO: (Da Platéia) Que?
RIOS: O que estas fazendo?
SOLANO: Eu? Nada...
RIOS: Nada?
SOLANO: Nada.
RIOS: Estava Galanteando a moça!
SOLANO: Eu? Que moça?
RIOS: Essa.
SOLANO: Essa?
RIOS: Não, aquela.
SOLANO: Galanteando, tu diz?
RIOS: Bem, e se não?
SOLANO: Uma cortesia...
RIOS: Cortesia? De tão perto?
SOLANO: É que ta escuro demais por aqui...
RIOS: Tens razão. (Desce do baú e caminha até o
proscênio)
SOLANO: Razão, de que?
RIOS: Para que não chegue tão perto.
SOLANO: Estas exagerando...

[ 36 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

RIOS: Exagero? Não lembra que te passo com aquela


Dama em Sevilla
SOLANO: Era casada.
RIOS: E com aquela monja de Toledo?
SOLANO: Foi culpa do ciúmes da prioresa...
RIOS: E aquele comediante, Iñigo de Velasco?
SOLANO: O que aconteceu?
RIOS: Não te lembras? O enforcaram por andar
galanteando como qualquer cidadão comum, por esquecer
sua condição...
SOLANO: Sua condição....
RIOS: Sim. A nossa! Não somos nada.
SOLANO: Nada? Somos atores.
RIOS: Igual a menos que nada.
SOLANO: Exageras...
RIOS: Olhe pra você mesmo: Agustín Solano, vândalo
de notável gênio... Quem sabe algo de ti? Anda,
pergunta... Você não é ninguém, te das conta?
SOLANO: (Volta ao Palco) Bem, e você: Nicolás de los
Ríos, famoso representante... Quem te conhece? Menos a
polícia, claro, por certos excessos que .....
RIOS: Ninguem. Não sou nada e ninguém me conhece.
Igual que tu. Por isso.
SOLANO: Por isso, o que?
RIOS: Por isso mesmo é que podemos fazer o que
fazemos e dizer o que quisermos. Por que não somos
nada fora daqui.
SOLANO: E é por isso que não posso fazer dois elogios se
quer a uma moça?
RIOS: Daqui de cima, sim. E se for em verso, melhor.

[ 37 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: (Já no cenário) Acredita mesmo?


RIOS: Indubitavelmente.
SOLANO: (Depois de pensar na espectadora cortejada)
Melhor duas boas tetas, que dez cortes de cana.
RIOS: Isso é. E agora se não te importas, seguimos com o
nosso... (Sobe outra vez no baú e declama)

Ya voy llegando a lo hondo.


Aquí de Dios, que me niego!
Al tercer tiempo llegué,
y de cobre es el tercero.
Em este tiempo hubo reyes
que gobernaron sus reinos
juzgando com rectitud
y siendo juzgados ellos.
Hubo comercio, hubo tratos,
hubo soberbia em los necios
y hubo avaricia en los ricos.
En este tiempo tercero
hubo ingratitud en muchos
que se fueron al infierno
por vivir con doble cara.
Ved qué tiempo fue el tercero!

(Desce do baú ao mesmo tempo que Solano se esconde


atrás dele)

La cuarta y ultima edad


es la que ahora tenemos;
de hierro la llaman todos

[ 38 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

y bien lo dicen sus yerros.


En esta edad comenzaron
las traiciones, los enredos,
las muertes, los latrocínios,
los insultos, desafueros,
juzgar por el interés,
dar lo hecho por no hecho,
irse las hijas de casa,
matar los hombres durmiendo;
saber decir a las mujeres:
adórote, eres mi cielo,
peno, rabio, desconfio,
suspiro, lloro; y tras eso:
ay, señor, que me has perdido!
Muchos comen por callar
su opinión como discretos,
y otros prefieren ser ciegos
por no descobrir entuertos.
Todo este mundo es fingir,
todo interés y embelecos,
todo, en fin, desdichas: todos
mirad si es errado tiempo
aqueste tiempo de hierro!

SOLANO: (Aparecendo com o figurino de Abraham nas


mãos) Ríos.
RIOS: Que?
SOLANO: Ríos.
RIOS: Que?

[ 39 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: Se aquela quarta idade era a de ferro....


RIOS: sim.
SOLANO: Ou seja, então...
RIOS: Então?
SOLANO: Sim, fazia 1600...
RIOS: Mais ou menos.
SOLANO: Faz 400 anos...
RIOS: Sim, e que?
SOLANO: Se aquele era um tempo de ferro... (Calcula)
Ouro, prata, cobre, ferro...
RIOS: Aí acaba!
SOLANO: De que será o tempo agora?
RIOS: Qual?
SOLANO: Agora. O de agora, de agora.
RIOS: O de agora?
SOLANO: Sim. (Fala o ano atual)
RIOS: (Calcula) Ouro, prata, cobre, ferro... (Olha ao redor
e também a plateia. Cheira o ambiente. SOLANO faz o
mesmo. E finalmente concluem); Mas, vale não
mencionar...
SOLANO: Será melhor.
RIOS: Depois de tudo e afinal, nós...
SOLANO: .... Não somos daqui. Quero dizer: de agora.
RIOS: Estamos de passagem.
SOLANO: Isso mesmo.
RIOS: Lá cada qual no seu tempo.
SOLANO: Com seu pão, coma... se é que pode.
RIOS: Cada galo canta no seu poleiro.
SOLANO: E cada coisa no seu tempo, e nabos na chegada
RIOS: Nós...

[ 40 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

SOLANO: Estamos de passagem


RIOS:
SOLANO:
RIOS:
SOLANO:

[ 41 ]
[Ñaque de Piolhos ou Atores] releitura do original [Ñaque o de Piojos y Actores]

Dicionário de Cores:

© Nomes Próprios
© Vocabulário Extensivo
© Sugere comportamentos de cena

[ 42 ]

Você também pode gostar