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Revista Portuguesa de Filosofia

Ética e Direito: Que Diálogo?


Author(s): ANTÓNIO ARY
Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 70, Fasc. 2/3, Direito e Filosofia: Fundamentos e
Hermenêutica / Law and Philosophy: Foundations and Hermeneutics (2014), pp. 539-552
Published by: Revista Portuguesa de Filosofia
Stable URL: http://www.jstor.org/stable/43151557
Accessed: 18-09-2016 12:56 UTC

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Ética e Direito: Que Diálogo?
ANTÓNIO ARY, SJ*

Resumo

O presente texto surge do desejo de pensar a relação entre direito e ética. O diálogo
estas duas áreas, sentido como um desafio premente para os dias de hoje, coloca em
relação da própria ciência jurídica com a sociedade onde se insere. A teoria da argum
apresentada por autores como Jürgen Habermas, Chaim Perelman e Paul Ricoeur
iluminar de modo renovado esta temática clássica, superando a actual dificuldade em
belecer uma ligação entre os domínios da ética e do direito. A reflexão parte de um p
enquadramento teórico, analisando o confronto histórico entre ética e direito e apo
caminhos de conciliação para a actualidade. Em seguida, apresentam-se algumas
tizações do papel da ética na prática jurídica, pelo seu contributo para a elaboraçã
cação do direito. Por último, o texto aborda possíveis contribuições do direito par
construção ética.

Palavras-chave : argumentação, positivismo jurídico, racionalidade, valores

Abstract

This paper aims to discuss the relationship between law and ethics. The dialogue between
both areas is a pressing and current challenge, which puts into play the relationship of
legal science with the society. The theory of argumentation presented by authors such as
Jürgen Habermas, Chaim Perelman and Paul Ricoeur, illuminates in a new way this classic
issue, overcoming the present difficulties in establishing a link between the fields of ethics
and law. The reflection starts with a theoretical framework, which analyzes the historical
clash between the two approaches and points out a possible path of reconciliation. Then, it
presents some embodiments of the role of ethics in legal practice, for its contribution to the
elaboration and application of law. Finally, it discusses some possible contributions of law
for the moral discourse.

Keywords : argumentation, legal positivism, rationality, values

Introdução

constituir, infelizmente, um traço distintivo das sociedades demo-


O afastamento constituir,
cráticascráticas ocidentais
ocidentais infelizmente,
(especialmente da reflexão
de tradição jurídica(especialmente
conti- um moral traço do distintivo de âmbito tradição das jurídico sociedades jurídica parece-me demo- conti-
nental europeia), ilustrado pela máxima, tantas vezes repetida no contexto
político: "a ética republicana é a lei".

* Universidade Católica Portuguesa - Faculdade de Filosofia, antonioarysj@gmail.com

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Por um lado, a secularização


do debate público (por consid
transcendente) relegando-a pa
o direito tem vindo a afirma
lação da vida social. Por outro
dades plurais encontrarem um
o projecto da sua vida em com
conjunto de normas despidas d
Parece-me portanto oportun
contro da ética e do direito, n
sociedades com um rumo e um
tolerância. Nenhum destes doi
desligado do contexto que lhe
numa sociedade concreta, fr
A justiça constitui assim o pan
questão política da luta pelo p
nas sociedades democráticas
É portanto sobre o aspecto
Estados de direito, estados co
força,1 que desejo reflectir.

I. As bases do diálog

a) Ponto da situação

A transição do direito medie


romano, patra a modernidade
tradição anterior. A distanciaç
numa situação de vazio de le
jurídico como via para a estab
O direito passou de um siste
tendencialmente estático e fec
nalidade e segurança jurídica.
pura do direito" [Reine Rechtsle

1. Recorrendo à distinção estabelec


como elementos caracterizadores de
Ricœur, R - Do texto à acção. Porto: Rés
2. Este movimento tem a sua exp
do século XIX. A figura do Código, a
substitui o anterior edifício jurídico,

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mente o direito continental europeu.3 A ordem ju


um sistema perfeito, pois encontra em si mesmo
correcção, e independente porque imune a influên
nadoras da sua racionalidade própria. A pirâmide d
que se legitimam uns aos outros a partir de uma Gru
si mesma e não admite a influência da ética.
Esta construção de um direito auto-poiético e auto-legitimado
afastou categoricamente a reflexão moral do âmbito jurídico, como sendo
um elemento carregado de uma irracionalidade prejudicial à estabilidade
do sistema. A elaboração de uma racionalidade jurídica, entendida como
técnica, por oposição à filosofia, procurou eliminar elementos que não
tivessem no próprio sistema a sua fundamentação (designadamente axio-
lógicos e teleológicos). Perante o desaparecimento de referências como o
conceito de lei natural (uma contradição nos termos para o positivismo
jurídico), a legitimidade do direito passou a obedecer apenas a critérios
formais, tanto na sua produção como na sua aplicação. A tónica é então
posta na forma da lei geral e Abstracta e na conformidade dos procedi-
mentos e conteúdo com a norma fundamental, vértice do sistema.
Enquanto herdeiro do positivismo, embora superados alguns dos
seus radicalismos, o pensamento jurídico encara hoje o direito e a ética
como dois mundos inteiramente separados:4 o direito, como conjunto
das regras destinadas a regular a vida social, dotado de objectividade e
susceptível de aplicação coerciva por parte do Estado; a moral,5 enquanto
conjunto de princípios subjectivos que pertencem ao foro íntimo de cada
um, submetidos ao único arbítrio e censura da consciência individual.6
Esta distinção contém alguns pontos positivos, mas peca por estabelecer
uma fronteira demasiado nítida, criando e alimentando-se da ilusão de

e da tradição jurídica romana cristianizada (juntando um direito natural divino ao direito


canónico herdeiro do Corpus justiniano).
3. Cf., Rebelo de Sousa, M. & Galvão, S. - Introdução ao Estudo do Direito. Lisboa: Lex,
2000, pp. 212-213; Perelman, C. - Ética e Direito. Lisboa: Piaget, 2002, pp. 425-427.
4. Embora ambos se situem no domínio do "dever ser", por oposição ao do "ser',
enquanto ordens normativas.
5. Acolhemos aqui, sem aprofundar, a distinção de Paul Ricoeur entre moral, enquanto
conjunto normativo (proibições e deveres) de dimensão subjectiva e ética, como o âmbito
mais alargado onde simultaneamente se fundamentam e aplicam estas normas. Cf., Ricoeur,
P. - "De la morale à l'éthique et aux éthiques". In: Ricoeur, P .-Le Juste 2. Paris: Esprit,
2001, p. 56.
6. Cf., Rebelo de Sousa, M. & Galvão, S.- Introdução ao Estudo do Direito, ed. cit.,
pp. 222-224; Perelman, C. - Ética e Direito, ed. cit., p. 271; Reale, M. - "Relações e diferenças
entre moral e direito". In: AA.W .-Actas do VII Congresso Interamericano de /z/osofia.
Quebeque: Presses de l'Università Lavai, 1967, p. 207.

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uma total independência destes


as relações que não podem deixar

b) Direito e vedores

Não escapa à reflexão jurídica a


jurídica contém em si mesma u
respeito ao conteúdo da norma. A
lação está-se a dizer que ela é a
em conta objectivos e valores. A
logo, o resultado de uma decisão
legislador achou preferível criar
vazio, ou decidiu modificar uma
tente ou estabelecendo uma exc
muitas vezes não assumem os
aparência de neutralidade da ord
Numa sociedade plural, cada ve
(ou a-religiosa) torna-se problem
mento ético laico generalizado. A
o perigo do relativismo, conduce
sivamente reduzido, acaba por n
para os fundamentalismos). Urg
debate público, contra a ideia tr
moral.
Tem aqui grande relevância o conceito de comunidade histórica,
muito caro a Paul Ricoeur,8 para compreender e fomentar a intersecção
entre a reflexão ética e a construção jurídica. O direito e a ética não são
elaborações Abstractas, desligadas de circunstâncias históricas, sociais e
económicas, concretas (como a visão positivista tende a encarar). Ambos
resultam do desejo de uma determinada comunidade se afirmar enquanto
espaço de realização humana, e por isso podemos dizer que servem um
objectivo comum: a justiça. A cada comunidade histórica pertence um
projecto, permanentemente planeado e realizado, e tanto o direito como
a ética são instrumentos ao serviço desse empreendimento colectivo.9
O contexto de uma comunidade histórica, comunidade dinâmica e em

7. Cf., Rebelo de Sousa, M. & Galvão, S. - Introdução ao Estudo do Direito , ed. cit.,
p. 223; Perelman, C. - Ética e Direito, ed. cit., p. 272
8. Cf., Ricœur, P. - "Ética e política", art. cit., p. 392. Reale, M. - "Relações e diferenças
entre moral e direito", art. cit., p. 195, fala em "totalidades históricas de sentido".
9. Tal como a cultura, a economia ou a política.

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constante reelaboração (porque humana), permit


minados valores e princípios, por um lado, e regr
outro, se articulam e influenciam mutuamente.
pressupõe os objectivos e os valores adequados à
histórico em que se insere.
Por exemplo, é neste quadro que tem sentid
torno do preâmbulo da Constituição da Repúblic
como narrativa deste projecto que é a comunidad
dos dias de hoje. Apesar de não possuir carácter n
é apenas um documento histórico, pois tem a for
não de forma absoluta) aquilo que os portugue
vida em comum, qual o objectivo desta polis . Ap
aparecerem como ultrapassados,10 este document
expressão simultaneamente histórica, jurídica e é
permanece actual.

c) Um caminho de convergência possív

Na encruzilhada entre ética e direito surgiu


um novo paradigma de relação e de reflexão, t
da argumentação e apresentado por autores com
Habermas e Chaïm Perelman. A partir da ideia d
possível ultrapassar os excessos da racionalidad
lecer uma ponte para a ética, substituindo o conc
razoável. O direito deixa de ser encarado como u
uma verdade objectiva, para se colocar no cam
A fundamentação dos valores e a concretização do
e procedimentos não está sujeita a uma demonst
por isso é destituída de racionalidade, não se enq
dos extremos da evidência e da arbitrariedade.11 O
obedece apenas às categorias da verdade e do err
ração, a crítica e a justificação.12
Face aos limites do critério da validade jurídi
admite parâmetros internos), o direito necessita
tação, de ter em conta o debate e o diálogo. Trata-se

10. Como a referência ao "caminho para uma sociedade soci


ser actualizada, se lida de forma abrangente, como ideal de
liberdade e igualdade.
11. Perelman, C. - Ética e Direito, ed. cit., p. 172
12. Ibidem , p. 174

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da norma jurídica, através da


para seu conteúdo. Este escrut
crático e cívico, que não pode
morais.13 A apresentação de ar
regras que regem a vida social
universal.14
Esta via contrapõe-se à visão
trilhado por John Rawls em
partir da ideia de contrato soc
conceito de justiça de forma u
o debate só tem lugar numa h
só poderia sair a solução por
recurso meramente teórico: c
situação original debaixo de u
se formaria nessa situação um
perante a alternativa verdade-er
possibilidade razoável de vária
O caminho de integração
dialéctica da justiça, conduz,
celebrado de uma vez por tod
mas que é permanentemente r
na prática diária da elaboração
sociedade. Não me parece sati
do direito e da justiça que não
comunidade histórica, dos seu
Na tentativa de "atribuir a c
num diálogo que convoca uma
do qual emerge progressivame
Perante o dilema da escolha
objectiva (logo, dogmática) e
trária), surge a possibilidade d

13. Ricoeur fala numa ética da discu


de participação), decurso do debate (ac
e decisão (levada à apreciação de um au
ou argumentation". In: Ricœur, P. -Le J
14. Este conceito é igualmente apr
racionalidade. Neste sentido, uma nor
em debate perante o auditório univers
objecções que aí se oporiam a ela. Cf., P
15. Rawls, J. - Théorie de la justice.
16. Perelman, C. - Ética e Direito , ed.

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de justificar os actos com relevância social (na e


direito) exige princípios éticos orientadores do d
defesa de razões, de escuta e integração de argum
argumentação cria portanto o terreiro para uma i
ética, no qual nenhum dos dois poios pode dispen

II. A ética na prática jurídica

a) A elaboração do direito

Na perspectiva positivista, a legitimidade para


uma atribuição exclusiva e formal da constituição,
mental. Num sistema piramidal auto-referencial,
umas às outras, num formalismo que ignora infl
o direito é direito escrito, regularmente produz
órgãos do Estado. A conformidade da lei com
único critério de validade (critério formal), quer
dimentos, quer respeite ao conteúdo material da
apreciação formal conduz ao afastamento de qualq
no procedimento de criação do direito, entend
interferência ilegítima.
A visão formalista do direito não tem plenam
timidade política democrática que num Estado c
o elemento essencial da criação do direito. A lei
vontade popular representada por órgãos políticos
e parlamentos). Esta fonte de legitimidade juríd
conferir uma dimensão ética a todo o procedime
lativa. Podemos então falar num contrato repre
representativo) que convoca deveres e obrigaçõe
previstos nos instrumentos que regulam os proce
morais, fundados na confiança depositada pelos r
sentantes.17 Um tal contrato põe em jogo pressupos
concretizar numa ética política e numa ética parla
relações internas e externas dos órgãos de produç
da sua actividade, os titulares de órgãos legislati
suas tomadas de posição e decisões, no debate en
tores, numa relação de confiança avaliada no act

17. Esta confiança deve ser entendida de forma ampla, e


formais, sociais, etc.

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todo o mandato. Um exemplo


democrática é o "juízo polític
vezes invocados para retirar a
actuações conformes à lei mas tid
De um outro ponto de vista,
actuação legislativa parece pres
negativa. Poder-se-á conceder
prevenir e dirimir conflitos, ent
sofra uma interferência ética m
o objectivo do Estado é defin
não visa apenas resolver confli
políticas, levando a cabo opçõe
ração do direito está portanto a
ciação não pode caber apenas ao
um escrutínio de carácter verd
turno, exige que o legislador f
uma justificação razoável. A teo
um terreno fértil para trazer um
ração das regras jurídicas.
É igualmente a própria exigê
elaboração do direito uma dim
mente invocado.19 Só pode ser
que se dote de um Estado const
a um critério de oportunidade
lidade convoca a dimensão do razoável e a necessidade de submissão do
direito produzido ao auditório universal. Uma reflexão que tem particular
actualidade devido à crescente invocação de uma racionalidade técnico-
científica no âmbito da produção legislativa. A complexidade das socie-
dades actuais constitui o fundamento de decisões justificadas com recurso
a critérios científicos e económicos irrefutáveis.20 Perante esta aparente
inevitabilidade é imprescindível manter firme a necessidade de argumen-

18. A título de exemplo, basta recordar o caso de um deputado que determinou o seu
voto, em sentido oposto ao do partido que integrava, contra a promessa de contrapartidas
para a sua região (um critério de oportunidade muito duvidoso). A sua actuação foi censurada
por grande parte da comunidade política e pela opinião pública. A valorização moral desta
"quebra de confiança" (juridicamente válida) não deixou de ter consequências na carreira
política deste deputado.
19. A racionalidade é geralmente associada à total objectividade, com a consequente
desvalorização do contributo ético.
20. Estas justificações criam o perigo de instalação de uma verdadeira tecnocracia, em
que os cidadãos são incapazes de se pronunciar acerca de assuntos cuja especificidade e

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tação, e de um escrutínio ético, para fundamentar


que regem a vida social, que nunca podem ser ap
fatalidade.
A abertura do direito à ética está também ligada a uma perspectiva
abrangente sobre as fontes do direito. Uma visão que supere a hegemonia
positivista permite ultrapassar o totalitarismo do direito escrito, abrindo
o direito a fontes auxiliares como a jurisprudência, o costume, a doutrina
e a própria equidade. Estas fontes de direito alternativas, se conveniente-
mente enquadradas, não afectam a segurança e racionalidade jurídicas,
antes conferem uma base de sustentação que enraíza o direito na comu-
nidade histórica que o produz.

b) Aplicação do direito

A interacção entre ética e direito não termina com a produção das


normas jurídicas, mas ganha ainda maior relevância na sua aplicação,
momento em que o texto legal ganha vida e força, ao ser trazido para a
realidade concreta das situações que regula. A aplicação do direito exige
uma operação hermenêutica, que implica interpretação das normas
e interpretação da realidade.21 O tema da interpretação jurídica suscita
largamente a atenção dos estudiosos do direito mas, uma vez mais, a
tendência é para manter a reflexão dentro dos limites estritos do sistema
jurídico.22 Esta parece ser a própria pretensão do legislador, que no
artigo 9.° do Código Civil fixa as regras para interpretação das leis.23

complexidade lhes escapa, sendo excluídos do escrutínio das razões que fundamentam a
actividade legislativa.
21. Cf., Ricœur, P. -Op. cit. p. 78 ; Ricœur, P. -"La conscience et la loi. Enjeux
philosophiques". In: - Ricœur, P .-Le Juste, ed. cit., pp. 217-218.
22. Rebelo de Sousa, M. & Galvão, S. - Introdução ao Estudo do Direito, ed. cit.,
pp. 55-75.
23. Diz o Código Civil:
Artigo 9.° (Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos
o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as
circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é
aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não
tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente
expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador
consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termo
adequados.

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No entanto, a interpretação qu
o regime jurídico adequado não
neutra. Interpretar a realidade
hierarquia entre eles. Do mesm
permanentemente em competiç
ração particular em cada situaç
ideia de argumentação, pois o a
determinado regime a uma real
aplicação perante o auditório un
tação e aplicação do direito ver
adoptada tem de obedecer ao
sentar as razões das escolhas ef
Surge então a distinção tradi
Uma perspectiva do direito fec
duas faces da norma jurídica,
elemento exterior e objectivo.
superado se as duas dimensões f
mento abrangente do texto é p
da intenção e objectivos atribuído
norma jurídica, que recorre ao
se integrar esta intenção no quad
dos valores e objectivos da com
No contexto de um Estado so
concretas e abrangentes, tem e
pública na aplicação do Direit
vinculada a um critério de legal
que determina que os órgãos ad
lei, nem sem a injunção desta (c
competência). A legalidade que v
um papel determinante da ét
Uma dimensão ética encontra-
nistração do direito aplicável a
relações que estabelece com os
lares de normas jurídicas, os ór
chamados a fazer a ponderação de
resolve. Por outro lado, na sua re
suas opções, bem como permit
interessados e tidas em conta as

24. Ricœur, P. - "Interpretação e/ou ar


25. Para tal parece, inclusive, apontar

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Ética e Direito: Que Diálogo ? 549

Num outro plano, também a actividade jurisdic


racção entre direito e ética. Na resolução dos confl
justiça" a que são chamados os tribunais, o papel d
toda a sua amplitude. O "silogismo jurídico" que r
um conjunto de factos a um determinado regime
exercício de interpretação dos factos apresentado
dicas relevantes. Esta operação convoca, uma vez
mentação. Por um lado a descoberta da verdade
de subjectividade (permanece sempre verdade par
no debate entre as partes envolvidas, devendo ain
elementos que formaram a sua convicção. Ao dar d
provados, o juiz está a realizar uma interpretação
foi apresentada no processo, devendo dar conta d
a valorizar certos aspectos em detrimento de outr
de direito, deve o juiz, tal como as partes, manifes
sua decisão que é sempre eticamente implicada po
diversos princípios e normas.
O recurso crescente a uma justiça arbitral co
coloca novos desafios ao poder jurisdicional, amplia
da ética. O caminho, que parece estar a ser trilhado
lismo em nome de uma justiça mais célere e efica
papel da ética na aplicação do direito. A redução do
um maior apoio nos princípios, valores e mesmo n
sociedade. Parece assim definitivamente abandonad
cional distinção entre o domínio ético, puramente
do direito, totalmente objectivo.

III. O direito ao serviço da ética

a) Racionalidade

O que foi dito até aqui coloca a ética no horizonte do direito, mas
esta relação é também, em sentido inverso, uma contribuição do direito
na estruturação da própria ética. O sistema jurídico contém uma racio-
nalidade própria que pode servir de modelo também para a reflexão
ética. Numa perspectiva utópica, o direito é muitas vezes encarado como
ligado à imperfeição da sociedade e do homem. Na cidade ideal não seria
assim mais necessário o direito pois bastaria a razão.26 Esta desconfiança

26. Cf., Perelman, C. - Ética e Direito, ed. cit., pp. 335-336.

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perante a racionalidade jurídica


opiniões, interpretações e decisõ
No entanto, talvez este model
justificada, não seja menos vá
numa racionalidade pura.27 Pod
nalista, levado ao extremo na d
onde em vez de verdades defini
borar constantemente, no deba
O direito, tal como a moral, situ
refere-se portanto não a uma d
de posição perante o real.28 O
pode constituir um auxílio teór
tenha a pretensão de uma unive
opção ponderada de uma comun
e princípios, uma opção consta
debate filosófico. Os mecanismo
aplicação constituem um mode
dialéctica do juízo moral em situ
A reflexão jurídica acumulada a
contém ela mesma elementos qu
para a reflexão ética. Os prin
tradição milenar de conteúdo m
para uma reflexão ética, tendo
Exemplos de tais princípios s
(necessidade de ouvir as duas par
(respeito pela palavra dada). Este
jurídica, independentemente da
para a ética, no sentido de susc
subjazem à sua vigência.

b) Estabilidade e peda

Toda a norma jurídica possui,


decisão da sua elaboração e no se

27 . Modelo este que vigora na filosofia


no pórtico da Academia "ninguém entra
Direito, ed. cit., p. 335
28. Cf., Perelman, C. - Ética e Direito, e
29. Ricœur, P. - "La conscience et la loi"
30. Cf., Perelman, C. - Ética e Direito, e

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lador de formalizar determinados princípios e no


de direito constituem portanto uma forma de in
no campo da ética. Esta intervenção constitui an
uma comunidade histórica escolher de entre os s
entende erigir em regras dotadas de maior forma
assimilação no sistema jurídico. A escolha por
legislativas confere assim maior estabilidade a cert
subjacentes.
A recepção por parte do direito de conteúdos éticos determina uma
dialéctica entre o sistema jurídico e o âmbito moral, onde ambos os poios
se influenciam mutuamente. Ao jurisdicizar certas normas morais, o
direito dá preferência a valores em detrimento de outros que podem vir a
desaparecer. De modo oposto, o surgimento de novos valores na sociedade,
ou a maior atenção a certas situações constituem uma forma de pressão
para serem incorporados juridicamente. Esta influência recíproca atinge
a sua maior amplitude no âmbito do direito penal, onde os pressupostos
éticos das normas são mais evidentes. Assim, um dos aspectos relevantes
do debate sobre o aborto é o sinal que a despenalização de uma conduta
constitui na auto-compreensão ética da sociedade portuguesa, na ponde-
ração que faz dos valores contrapostos da liberdade individual e da vida
humana intra-uterina. Ao invés o aumento de atenção mediática em torno
de casos de pedofilia levou a uma maior severidade na penalização destes
crimes.
Esta influência do direito sobre a ética mais não constitui do que uma
perspectiva actual sobre o efeito pedagógico da lei, descrito por muitos
na história da filosofia moral. Para Aristóteles, a aquisição da virtude
enquanto hábito supõe o papel formador da obrigação exterior.31 Podemos
dizer que o direito, dotado da coercibilidade que lhe confere o uso legítimo
da força, contribui para a formação moral dos cidadãos.32 Uma função
que não deve ser confundida com um propósito paternalista de imposição
legal de uma conduta moralmente correcta em todos os aspectos. Através
das suas imposições e proibições, o direito constitui um elemento na
aprendizagem da cidadania, enquanto pertença e identificação com uma
comunidade histórica, através dos seus valores e princípios.

31. Cf., McIntyre, A. - "A visão de Aristóteles sobre a justiça". In: McIntyre, A- Justiça
de quem? Qual racionalidade?. São Paulo: Loyola, 1991, pp. 1 17-137.
32. Cf. , Ricœur, P. - "La conscience et la loi", art. cit., p. 2 14. 0 autor fala numa dialéctica
de interiorização da norma.

Vol. 70

Fases. 2-3 Q RPF 2

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552 António Ary, SI

Conclusão

Nesta reflexão procurei mostrar uma variedade de pontos de contac


entre os domínios do direito e da ética. A ciência jurídica, enquant
disciplina autónoma, é para muitos desligada de influências extern
encaradas como ameaças à coerência que lhe é própria e interferênc
seus objectivos. Consequentemente, também se torna difícil à filoso
em especial à filosofia moral, penetrar no âmbito do direito e efectuar
crítica saudável dos valores e princípios envolvidos.
No entanto, num estado constitucional, o direito não pode s
encarado como desligado dos valores e crenças da comunidade hist
que o fundamenta anterior e posteriormente. O direito é simultan
mente resultado da convivência social e instrumento da sua constr
no sentido de uma realização da justiça cada vez maior. Neste contex
direito não pode ser pensado como desligado da ética, sem no entant
estar submetido. Na dificuldade de recorrer sem mais ao antigo m
de um direito natural, prévio ao próprio direito e racionalmente intuíd
relação entre ética e direito assume a forma de dois círculos que se i
sectam sem se confundir, ou melhor de dois poios em constante tensão
cuja conjunção de forças se vai formando a sociedade justa.
O recurso à noção ética de argumentação, com a sua racionalida
própria, e o enraizamento do direito e da ética numa comunidade histór
determinada permitem construir um sistema dinâmico em que nen
dos elementos elimina ou submete o outro, mas ambos se entreaju
para alcançar os seus fins próprios. O terreno fértil da hermenêut
a necessidade de justificar as decisões éticas e jurídicas colocam a é
no âmago da ciência do direito e permitem levar a formalização pa
estrutura moral. Ética e direito não se opõem mas antes caminham
mãos dadas, no dia-a-dia de comunidades que se vão construind
direcção à justiça.

Vol. 70

Fases. 2-3 Q ŘPF 2014

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