Você está na página 1de 9

TRABALHO FINAL DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

DOSCENTES: Esther Jean Langdon e Ari Ghiggi Junior


DISCENTE: Camila Mascaro Guiesi1

Neste trabalho pretendo explanar alguns pontos sobre meu projeto de


pesquisa que tem como título ‘Musicoterapia e práticas indígenas: o processo de
cura a partir do estudo da sonoridade na aldeia Tekoa Takuaty do município de
Paranaguá – PR’, com a orientação do Professor Allan de Paula Oliveira,
correlacionando com os textos lidos na referida disciplina.
Com esta pesquisa pretendo observar, identificar e interpretar como se dá a
organização e os recursos instrumentais utilizados no ritual religioso e as
características sonoras no processo de cura em rituais indígenas do povo Guarani
tendo como universo da pesquisa a aldeia Tekoa Takuaty na Ilha da Cotinga em
Paranaguá. O intuito da pesquisa é compreender como os grupos Guarani se
utilizam de fenômenos sonoros para a cura e de que maneira estes podem dialogar
e contribuir com as técnicas no campo da musicoterapia.
Para tanto, a metodologia utilizada será o levantamento e revisão de acervo
bibliográfico a respeito da temática central e o estudo qualitativo de campo, que tem
por objetivo coletar informações acerca de um problema ou uma hipótese, para
comprovação, ou obter novas respostas. Assim, a técnica utilizada em campo tem
sido a observação participante, técnica que consiste em coletar dados para obter
determinados aspectos da realidade (LAKATOS, 2003).
A técnica de observação participante realiza-se através do contato entre
pesquisador e fenômeno pesquisado, com a intenção de alcançar informações sobre
a realidade dos indivíduos em seu contexto. Com esta técnica, é possível captar
uma variedade de situações ou fenômenos que dificilmente seriam obtidos por meio
de perguntas, pois quando observados diretamente na própria realidade os
indivíduos imprimem o que é imponderável e evasivo na vida real (CRUZ NETO,
1994).
A coleta de dados ocorrerá por meio de conversas mais informais, não tendo
um roteiro fechado como no caso de entrevistas, com os moradores da aldeia e
também por meio de vídeos e gravações de áudios, e participações em rituais na

1
Mestranda do programa de pós-graduação em música da Universidade Estadual do Paraná
(Unespar) na linha de pesquisa em música, cultura e sociedade desde julho de 2021.
casa de reza (opy). Após este período os dados serão analisados e catalogados,
tendo em vista a história musical do grupo em questão. E em seguida, será feito
uma devolutiva para a aldeia, apresentando os resultados que foram alcançados
durante a pesquisa.
Atualmente a pesquisa encontra-se no momento de coleta de dados
resultante de constantes viagens a aldeia e em paralelo tenho analisado alguns
dados coletados por meio de gravações de áudio e também em anotações no
caderno de campo.
A pesquisa está estruturada em três capítulos da seguinte maneira, no
primeiro capítulo, pretendo realizar uma breve contextualização sobre saúde e
doença do ponto de vista biomédico, com o intuito de compreender como a visão
biomédica sobre a saúde foi se desenvolvendo até tornar-se o pensamento
hegemônico em saúde em nossa sociedade, para então compreender o corpo em
relação à saúde e doença e por fim pensar como as emoções e relações de afeto
impactam na saúde desse corpo.
No segundo capítulo pretendo trabalhar a partir da perspectiva da ritualística
musical guarani, iniciando com a história da aldeia pesquisada, para em seguida
abordar o tema sobre o universo sonoro Guarani e por fim realizar uma descrição da
música nos rituais Guarani.
Para então, no último capítulo estabelecer paralelos entre os elementos
sonoros produzidos pelo povo guarani e o fazer musicoterapêutico, baseando minha
escrita em autores da musicoterapia que afirmaram que uma das vertentes de
surgimento da musicoterapia é o xamanismo e finalizar abordando o tema de
estados alterados de consciência e transe através da música tanto sob a ótica da
musicoterapia quando do fazer musical Guarani.
Com o desenrolar da história humana os indivíduos estabeleceram
abordagens que os auxiliaram na compreensão do complexo processo saúde-
doença. Inicio essa discussão relatando a forma como os processos de saúde e as
maneiras de obter cura eram realizados na Idade Média, pois foi deste contexto que
surgiu nossa medicina atual.
No início da Idade Média as invasões dos povos Bárbaros e o predomínio do
cristianismo foram decisivos para que as práticas de saúde realizadas tivessem um
caráter mágico-religioso, embasado no uso de amuletos, orações e culto de santos,
já que o principal objetivo era a salvação das almas, ficando o corpo em caráter
secundário. As ações coletivas em saúde se restringiam ao tratamento de epidemias
e pragas. Os pobres dependiam da caridade de religiosos e de boticários, barbeiros,
cirurgiões profissionais e/ou leigos, enquanto os aristocratas tinham médico
particular que em muitos casos era um cortesão com habilidades em praticar
envenenamentos (ALMEIDA FILHO & BARRETO, 2019).
O Renascimento, período histórico que sucedeu a Idade Média, em essência,
foi um momento histórico no qual resgatou-se “elementos filosóficos, estéticos e
ideológicos mais avançados da cultura greco-latina” (ibidem, p. 08). Nesse contexto
a doença começou a ser relacionada a situações ambientais elencando suas causas
a um fator externo ao organismo. Por conta da conservação de textos clássicos
hipocráticos e galênicos e de escritos aristotélicos em bibliotecas árabes tornou-se
possível a recuperação e revalorização da tradição racionalista grega. Esse fato é o
grande responsável pela emergência da ciência moderna.
O pensamento renascentista articulado ao surgimento de um novo modo de
produção, futuramente denominado de capitalismo, proporcionou embasamento
para uma compreensão racional da realidade na construção das ciências modernas,
que durante os séculos XVI e XVIII gerou grande produção de dados, informações e
conhecimentos em todas a instâncias possíveis, refletidos na expansão da
civilização ocidental (ibidem).
Em consequência deste pensamento, buscava-se então “demarcar objetos de
conhecimento empírico e [desenvolver] métodos e técnicas para produção de
conhecimento sistematizado e de tecnologias e práticas de intervenção” (ibidem, p.
08). O método científico de Descartes estipula regras que até os dias de hoje
mantém-se hegemônicas no pensamento médico: 1) que a verdade não pode deixar
nenhuma dúvida perante a razão; 2) que cada dificuldade deve ser analisada em
quantas partes forem necessárias para solucioná-la; 3) o conhecimento deve ser
conduzido de maneira ordenada, partindo-se do pensamento mais simples ao mais
complexo; 4) que é fundamental realizar uma extenuante revisão das várias partes
de um argumento (BARROS, 2002).
Essa influência cartesiana sobre o modelo médico atual estimula um formato
de visão que gera uma separação entre o observador e o ‘objeto’ observado. Barros
(2002) entende que a adesão em massa ao raciocínio e às práticas biomédicas se
deve principalmente ao fato de que as soluções que propõem alcançar ocorrem de
forma paliativa, não atuando nas causas das doenças, mas sim nas ‘partes’ de um
sistema ou processo muito mais complexo.
A abordagem médica se mantém focada na doença e divide o corpo em
pequenas partes, minimizando assim a saúde a um funcionamento mecânico. Na
visão biomédica o cuidado está atrelado a esse funcionamento mecânico e
compartimentado do sujeito (DA CRUZ, 2011).
Segundo compilado realizado por Barros (2002), alguns estudos 2 apontam
para o fato de que a medicalização exacerbada e a sofisticação tecnológica reflete a
decorrente industrialização da saúde e que esse fato pode acarretar prejuízos à
saúde e vida dos sujeitos atuantes dentro da lógica capitalista de produção e
consumo. Essa relação entre produção e consumo flerta com a associação de que a
aquisição de bens materiais pode proporcionar bem-estar e felicidade. O impacto
deste pensamento na saúde gerou uma falsa ideia de que para se alcançar níveis
eficazes e efetivos de bem-estar e saúde é preciso ter acesso às melhores e mais
sofisticadas tecnologias diagnóstico-terapêuticas (BARROS, 2002, pg. 76).
2
Estudos realizados por lllich (1975), Navarro (1975) e Giovanni (1980).
O pensamento cartesiano extremado e o uso excessivo dessas tecnologias na
área médica passou a tratar questões fisiológicas e/ou de cunho econômico-social
como doença, fazendo com que o indivíduo demande mais exames, mais consultas,
mais medicamentos e, até mesmo, mais procedimentos cirúrgicos. Como exemplo
pode-se citar a gravidez e o parto: mesmo a gravidez não sendo de risco e a
gestante não tendo histórico de complicações de saúde durante a gestação, esse
sistema de saúde impõe que mensalmente a gestante precise passar por exames e
acompanhamento do aparato médico. Outro ponto dentro do mesmo exemplo é o
número exacerbado de partos cesarianos sem justificativa técnica que embasem sua
necessidade.
Em suma, no modelo biomédico o homem é visto “como corpo-máquina; o
médico, como mecânico; e a doença, o defeito da máquina” (pg. 25). Desta forma, “a
intervenção de cuidado é baseada numa visão reducionista e mecanicista, em que o
médico especialista é o mecânico que tratará da parte do corpo-máquina defeituosa
ou do ambiente para o controle das possíveis causas de epidemias” (DA CRUZ, pg.
25, 2011).

1.2 O CORPO EM RELAÇÃO À SAÚDE E DOENÇA

A doença pode ser compreendida tanto como uma experiência individual


quanto social,3 portanto torna-se difícil discernir se saúde e doença pertencem à
esfera privada ou pública. Não obstante pode-se afirmar que o corpo pertence mais
ao domínio privado que público, mesmo que em muitos momentos da existência
humana algumas tradições religiosas hegemônicas tentaram exercer controle sobre
os corpos tornando as sensações advindas dele um tabu.
Durante muito tempo a compreensão da saúde e da doença esteve ligada à
esfera pública no qual o pensamento vigente manteve-se focado na compreensão
da evolução das epidemias, na constituição de instituições assistenciais e nas
políticas de saúde com base nas principais fases da “saúde coletiva”. Em
consequência disto, as experiências privadas e pessoais de saúde e doença foram
sendo colocadas em segundo plano, entretanto os pacientes têm utilizado suas

3
Segundo o antropólogo francês Marc Augé (1984) citado por Claudine Herzlich (2004) em seu
trabalho intitulado “Saúde e doença no início do século XXI: entre a experiência privada e a esfera
pública”.
experiências pessoais como auxílio para a elaboração de políticas de saúde
(HERZLICH, 2004).
Dentro desse pensamento biomédico percebe-se que a medicina atua não só
como um conjunto de técnicas específicas de atuação em saúde, mas também como
uma forma de controle e regulação social, no qual o processo saúde-doença é
estabelecido a partir de fenômenos definidos por profissionais sob a
responsabilidade da medicina e dos médicos e os pacientes assumem o papel de
consumidores desses cuidados de saúde seguindo as prescrições médicas. Por trás
da medicina está o Estado que impõe metas normativas à saúde dos sujeitos e
possui grande interesse no controle dos corpos que a medicina exerce (HERZLICH,
2004).
Segundo Herzlich (2004), nos anos 1970 as pesquisas e estudos sobre esta
temática demonstravam a movimentação dos pacientes perante a recorrente
medicalização dos corpos e reinvindicação para que suas vozes fossem ouvidas na
sociedade enfatizando um crescente interesse em tópicos como gênero, corpo e
emoções atraindo, desta forma, mais atenção para experiência da doença no âmbito
privado e individual.
Neste sentido é importante abordarmos a experiência da doença e a maneira
como os sujeitos a vivenciam no cotidiano. No caso de pacientes com doenças
crônicas ocorre uma mudança na autoestima devido ao “estigma” sofrido pelos
pacientes no sentido de não se reconhecerem mais em seus corpos, ocasionado
pela sensação de “perda do self”. Quando o sujeito vivencia uma doença duradoura
isto incide em uma importante reconsideração em sua biografia e seu conceito de si
enfatizando a importância do bem-estar corporal (HERZLICH, 2004).
Le Breton (2011) afirma que na ausência de um corpo é impossível que o
indivíduo exista. Sendo este indivíduo identificado a partir de seu corpo,
apresentando características que elucidam qual a comunidade e os aspectos sociais
no qual ele está inserido, reforçando-se desta maneira, a noção de construção
simbólica do corpo, como efeito de uma construção social e cultural.
Esse simbolismo social é o resultado do efeito de uma construção social e
cultural, e chama a atenção para o fato de que cada sociedade constitui sua forma
distinta de compreender o corpo e que lugar este “ocupa” dentro de determinado
grupo, em resumo, é atribuído ao corpo posições determinadas específicas de cada
cultura e para se compreender essas posições sociais é preciso conhecer a cultura
da qual esse “corpo” faz parte e vice-versa.
O cuidado exacerbado com o corpo evidencia como o “sujeito” moderno tem
frequentemente vivenciado a individualidade, percebendo-se como possuidor de um
corpo e desta forma, tornando-se “refém” deste corpo. “A noção moderna de corpo é
um efeito da estrutura individualista do campo social, uma consequência da ruptura
da solidariedade que mescla a pessoa a um coletivo e ao cosmos por meio de um
tecido de correspondências no qual tudo se entrelaça”. Resultando assim na noção
moderna que temos sobre o corpo, desta forma, “(...) ele implica o isolamento do
sujeito em relação aos outros (...), em relação ao cosmo (...) e em relação a ele
mesmo (ter um corpo, mais do que ser o seu corpo) ” (LE BRETON, 2001, pg 21).
Isto implica na importância de se compreender o quão prejudicial pode ser
este afastamento do sujeito do social, afinal este é reflexo das relações sociais.
Como afirma Bourdieu (1989), “durante sua vida, cada sujeito só existe em suas
relações com os outros. O homem é apenas um reflexo” (BOURDIEU, 1989, pg 24).
A partir disto, Bourdieu (1989) nos apresenta como em outras sociedades o
modo de existir e ser um corpo é muito diferenciado da forma com a qual o sujeito
ocidental tem vivido atualmente, elucidando maneiras nas quais o corpo se dissolve
no mundo simbólico em que vivem, o corpo não é visto como algo individual, o
sujeito, muitas vezes não se vê como possuidor de um rosto e características físicas
específicas que o diferenciem dos outros integrantes de seu grupo social.
Como exemplo ele cita um indiano que a partir de sua experiência descreve,
“eu estava dissolvido na água do grande rio, eu jamais estive separado, com uma
vida minha, mas eu me comtemplei em um espelho e decidi ser livre” (ibidem, pg
68), foi desta forma que este indivíduo percebeu que possuía um corpo e que teria
que, a partir disto, cuidar, alimentar e vestir esse corpo. Segundo Bourdieu, “se a
existência se reduz a possuir um corpo à maneira de um atributo, então, com efeito,
a própria morte não tem mais sentido: ela não é senão o desaparecimento de um
ter, isto é, pouca coisa” (ibidem, pg 30).
REFERÊNCIAS

ALMEIDA FILHO, Naomar. BARRETO, Maurício L. Epidemiologia e saúde:


fundamento, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2019.

BARROS, José Augusto C. Pensando o processo saúde doença: a que responde o


modelo biomédico? Saúde e Sociedade, n. 11, v. 1, p. 67-84, 2002.

BOURDIEU, Pierre. A cultura somática. In: [BUSCANDO REFERÊNCIA]

DA CRUZ, Marly Marques. Concepção de saúde-doença e o cuidado em saúde.


Gestores do SUS, p. 21-33, 2011. Disponível em:
<https://moodle.ead.fiocruz.br/modulos_saude_publica/sus/files/media/
saude_doenca.pdf>. Acesso em 20 jun 2022.

HERZLICH, Claudine. Saúde e doença no início do século XXI: entre a experiência


privada e a esfera pública. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, n. 14, v. 2, p. 383-394,
2004.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Trad: Fábio


dos Santos Creder Lopes. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
REFERÊNCIAS

ALMEIDA FILHO, Naomar. BARRETO, Maurício L. Epidemiologia e saúde:


fundamento, métodos, aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2019.

BARROS, José Augusto C. Pensando o processo saúde doença: a que responde o


modelo biomédico? Saúde e Sociedade, n. 11, v. 1, p. 67-84, 2002.

BOURDIEU, Pierre. A cultura somática. In: [BUSCANDO REFERÊNCIA]

CRUZ NETO, Otávio. O Trabalho de campo como descoberta e criação. In:


MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 23.
ed. Petrópolis: Vozes, 1994. Cap. 3. p. 51-66.

DA CRUZ, Marly Marques. Concepção de saúde-doença e o cuidado em saúde.


Gestores do SUS, p. 21-33, 2011. Disponível em:
<https://moodle.ead.fiocruz.br/modulos_saude_publica/sus/files/media/
saude_doenca.pdf>. Acesso em 20 jun 2022.

HERZLICH, Claudine. Saúde e doença no início do século XXI: entre a experiência


privada e a esfera pública. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, n. 14, v. 2, p. 383-394,
2004.

LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 5. ed. São Paulo:


Atlas, 2003. 310 p.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Trad: Fábio dos Santos


Creder Lopes. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.

Você também pode gostar