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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO – UFMA

Centro de Ciências Humanas - CCH


Programa de Pós-Graduação em História – PPGHis
Linha de Pesquisa: Poderes, Políticas e Sociabilidades
Disciplina: Teoria da História – 2023.2
Docente: Prof. Dr. Victor de Oliveira Pinto Coelho
Discente: Doutorando Flavio Benites

O Conselho Indigenista Missionário CIMI-NE e o protagonismo indígena no Nordeste


na Assembleia Nacional Constituinte (1972-1988)1: uma Abordagem Teórica

No contexto contemporâneo, acerca dos direitos fundamentais dos povos indígenas e a


Constituição brasileira de 1988 estabeleceu a demarcação de Terras Indígenas, o direito à
cultura e identidade diversas dos ditos cidadãos brasileiros. E, só foi possível devido a quase
duas décadas de articulação e mobilização entre os povos indígenas de todo o Brasil em
assembleias discutindo as múltiplas demandas almejadas. Suas lutas e mobilizações, sobretudo,
na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/8 culminaram nos Artigos 231 e 232.
Nesse sentido, não foi somente na questão do território os direitos assegurados, no
entanto, os preceitos constitucionais garantiram aos povos indígenas o respeito à sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Assim, firmou-se no caput do artigo
231 da Constituição o direito à diferença, ou seja, de serem índios e de permanecerem como tal
indefinidamente. Rompendo com o modelo de integração a sociedade nacional, quando seriam
integrados harmoniosamente de forma lenta e gradual.
Este estudo tem o objetivo de apresentar os aportes teóricos e metodológicos para
pesquisa de doutorado, cujo tema trata de uma abordagem na perspectiva da História Social e
da “nova história indígena” para analisar a forma, o modo de como os indígenas se organizaram
e atuaram com apoio do Conselho Indigenista Missionário, em meio ao período turbulento da
Ditadura Civil-Militar (1964-1985) para as conquistas dos direitos constitucionais em 1988.
A pesquisa tem como objetivo geral a tentativa de historicizar as ações desses sujeitos
em um momento importante na democracia brasileira. No entanto, parcialmente evidenciamos
que, por quase duas décadas (1970/80), ações dos agentes indígenas, enquanto protagonistas de
seus interesses, se articularam e mobilizaram incessantemente e poucos estudos na
historiografia se debruçaram sobre o tema.

1
O título do projeto submetido ao PPGHis-UFMA em 2022 foi: O Conselho Indigenista Missionário CIMI-
NE e o protagonismo indígena no Nordeste na Assembleia Nacional Constituinte (1972-1988).
1
Temos como recorte espacial a delimitação utilizada pelo Conselho Indigenista
Missionário Regional Nordeste CIMI-NE, destacando as atuações dos indígenas na Região
Nordeste do Brasil.2 Assim, a atuação do CIMI-NE abrangeu ações com os povos indígenas da
parte norte do estado da Bahia3, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte,
Ceará, Piauí, total de 8 estados da Região Nordeste exceto o estado do Maranhão.
O CIMI-MARANHÃO tem uma Regional própria, porém, ficou enviável a inclusão
dessa instituição na pesquisa devido a extensa quantidade documental existente e o período
disponível para sua análise. Discutir esse tema é algo relevante nos estudos do indigenismo
porquê, após o período do governo de exceção, com a Constituição Federal de 1988, estabeleceu
para os povos indígenas um novo paradigma jurídico, de tutelados para sujeitos políticos,
portadores de direitos e de protagonismo.4
A instituição cujo nos ocuparemos, mediante sua documentação, é o Conselho
Indigenista Missionário Regional Nordeste (CIMI-NE), porém, dentro do organograma da
instituição sempre existiu um comando central que é o CIMI localizado em Brasília no DF.
Desse modo, o CIMI em é uma entidade vinculada à Igreja Católica Romana que atua em defesa
dos direitos dos povos indígenas, na preservação territorial e da cultura dos povos, promovendo
ações de apoio e de capacitações nas mais diversas áreas. Criado em 1972 no 3º Encontro de
Estudos da Pastoral Indígena promovido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), momento inicial do nosso recorte, findando em 1988 com a obtenção dos direitos
constitucionais.
Entretanto, a criação dessa entidade, à época, foi de encontro com a crescente
preocupação dos problemas sociais por parte de setores progressistas da Igreja Católica
Romana. Iniciou oficialmente uma pastoral indigenista, caracterizada na busca de uma
hegemonia na atividade missionária junto aos povos. Entre suas prioridades estavam: promover
a pastoral missionária, incluindo a formação teológica e antropológica dos missionários, além
do seu relacionamento com a CNBB, com os órgãos governamentais, incluindo a Fundação
Nacional do Índio FUNAI, e a integração dos missionários entre si.5

2
Doravante, será referido aos “indígenas na Região Nordeste do Brasil” somente como “indígenas no Nordeste”;
“indígenas na Região Nordeste”.
3
A parte sul do estado da Bahia pertence aos limites de atuação do CIMI-Leste que compreende os estados de
Minas Gerais; Espírito Santo e extremo sul da Bahia.
4
PACHECO DE OLIVEIRA, João; QUINTERO, PABLO. Para uma antropologia histórica dos povos indígenas:
reflexões críticas e perspectivas. Horizontes Antropológicos (online), v. 26, p. 7-31, 2020.
5
MELO, Ana de. O Conselho Indigenista Missionário na trajetória dos Movimentos Indígenas no Brasil
(1972-1988). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Rio de Janeiro,
2020. (Tese em História); SIMÕES, Maria Cecília dos Santos Ribeiro. Identidade e militância no CIMI: um
2
Por outro lado, para compreendermos a instituição devemos conhecer seus antecedentes,
a historicidade de suas origens, pois, está relacionada aos desdobramentos do Concílio Vaticano
II6, convocado no dia 25 de dezembro de 1961, iniciado em 11 de outubro de 1962 e finalizado
no dia 8 de dezembro de 1965. As recentes normas da Igreja Católica, á época, foram reajustadas
ao contexto Latino Americano juntamente com as experiências da Conferência Episcopal de
Medellín (Colômbia, 1968) e Puebla (México, 1979), quando os bispos da Região abordaram a
situação econômica e política dos excluídos da América Latina no sistema capitalista e o papel
da Igreja Católica Romana. Definiram sobre o dever de agir para humanização das estruturas
sociais, condenando os usos da violência para libertação.7
A entidade CIMI proporcionou um relevante suporte para realização das Assembleias
Indígenas entre 1974 a 1984, realizadas em diversos estados do Brasil, embrião do movimento
indígena solidificado nos dias atuais8. A pastoral auxiliou no suporte nos mais diversos níveis
de organização, hospedagens, auxílios financeiros, capacitação de lideranças e também para
articulações dos segmentos da sociedade civil solidárias as causas indígenas a partir década de
1970.
Pensar a relevância dos estudos acerca da temática indígena na historiografia
contemporânea brasileira nos impõe a refletir sobre a escrita da História. Problematizar essa
questão nos remete a observar de qual o lugar da emergência de uma nova consciência de
temporalidade, mas como alerta o renomado historiador da América Latina, o Professor Elias
José Palti (2008, p. 30) quando adverte que “o futuro não resulta das lições do passado” como
a muito se pensou em uma época, porque na própria História da Historiografia evidenciamos
diversos paradigmas diferenciados entre si cujo representavam o espírito de cada época e
sociedade. Estes paradigmas fizeram parte de um modo de se ter pensado a História, porém,
superado nos dias atuais.

estudo sobre a identidade dos missionários do CIMI-Leste. Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora,
MG, 2010. Tese (Doutorado em Ciência da Religião).
6
Na perspectiva dos dogmas da Igreja Católica Romana um Concílio é uma série de reuniões de autoridades
eclesiásticas com a finalidade de examinar e decidir sobre questões que envolvem a fé e os dogmas da Igreja
Católica. Desse modo um, devido sua complexidade doutrinal pode demorar anos para ser finalizado. A respeito
do tema um dos Concílios mais importantes na história da Igreja foi o Concílio de Trento (1545 e 1563) à época
integrantes da Igreja se reuniram para reafirmar os dogmas de fé questionados pelos protestantes na figura de
Martin Lutero, portanto, esse Concílio marcou a entrada da Igreja Católica na Era Moderna no mundo ocidental.
7
RUFINO, Marcos Pereira. O Código da Cultura: O CIMI no debate da inculturação. In: MONTERO, Paula.
(Org.) Deus na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. P. 246.
8
Entre as organizações destacamos: APIB: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil; APOINME: Articulação
dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais E Espirito Santo; ARPIN-SUL: Articulação dos
Povos Indígenas da Região Sul; ARPIPAN: Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal; COIAB: Coordenação
das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira; FOIRN: Federação das Organizações Indígenas do Rio
Negro; CIR: Conselho Indígena de Roraima; ATIX: Associação Terra Indígena Xingu entre outras organizações.
3
Nisso ressaltamos algumas perspectivas desdobradas ao longo do tempo no Ocidente,
conforme o Professor Luiz da Costa Lima, para o historiador da Grécia Antiga Tucídides “a
longo de suas histórias há um tipo de narrativa a que chamaria exemplar (...) a incerteza que
cerca a vida humana é dilatada pela ambiguidade dos deuses”, ou seja, a História inicialmente
funcionava com um ferramenta desveladora da relação ambígua do humano com o divino quase
com uma perspectiva trágica, muito satisfatório para o período dava conta para as demandas
daquele ethos9.
Já o panorama do século XIX, em meio ao nascimento das ciências, os intelectuais do
período tentaram responder a respeito do sentido da escrita da História, momento quando
surgiram as filosofias da história desse período, na tentativa de decifrar o sentido implícito
relacionado a própria lógica objetiva cientifica no entendimento do desenvolvimento dos
acontecimentos das ações humanas alinhando-as com perspectiva teleológica da História. No
entanto, pensar o sentido da História como um fenômeno plural sobre o devir dos homens é
algo da modernidade, configurando-se assim alguns aspectos: a História como ciência,
surgimento da Filosofia da História e as seguintes similaridades compatíveis entre a teleologia
e progresso, governo e liberdade junto ao plano fático com os dos valores morais.10
Essas questões nos levam a reflexão acerca da pergunta da pesquisa, porque uma
pesquisa não surge do nada, mas por meio do levantamento de questões. Não devemos nos
esquecer que na pesquisa não há neutralidade somente imparcialidade, porque dentro dos
problemas de ordem social a sociedade coloca questões e a academia tenta reponde-las.
Assim, a escrita da História é uma engrenagem bastante complexa, composta pelo fato,
teoria, narração, interpretação, imaginação e a temporalidade em si. Nessa escrita envolvem
questões filosóficas e morais, por exemplo: se é politicamente correto ir além do que as pessoas
acreditam na interpretação da História? Nesse conjunto de situações sobre a escrita da história
podemos definir de forma provisória (até que se encontre algo mais crível) que o sentido da
História é a indagação permanente sobre seu sentido.
Por isso quando diferenciamos o historiador do poeta, segundo Humboldt, faz com que
o estudioso que labuta com o tempo, ao contrário do artista não deve submeter o elemento
material aos domínios da forma da necessidade, porém, deve submeter-se as ideias que lhe

9
LIMA, Luiz da Costa. Perguntar-se pela escrita da história. VARIA HISTÓRIA, Belo Horizonte, vol. 22, nº
36: p. 395-423, Jul/Dez, 2006. P. 398.
10
PALTI, Elias José. Pensar Históricamente em uma era postsecular. O de fin de los Historiadores despues del fin
de la História. SÁNCHEZ LEÓN, Pablo y IZQUIERDO MASTÍN, Jesús (eds). El fin de los historiadores. Pensar
historicamente en siglo XXI. Madrid: Siglo XXI, 2008.
4
servem de leis e se preservaram não corruptíveis ao espírito. Assim, o historiador atravessado
pelas ideias pode encontrar seus vestígios durante a pesquisa da realidade tateando as fontes.11
Na tentativa de atingirmos nossos objetivos na pesquisa cujo tratamos mais acima serão
respaldados pelos estudos da “nova história indígena” que tem como finalidade redimensionar
o papel dos índios na História, recuperando o protagonismo dos mesmos. Com a historiografia
diversa desse paradigma a dita historiografia “tradicional12” concebeu os indígenas em uma
categoria genérica, sem considerar às diferenças étnicas e socioculturais. Não foram vistos,
como sujeitos históricos incidindo sobre as experiências sociohistóricas as quais se inseriam.
Esse quadro começou a mudar a partir da emergência de uma nova compreensão histórica a
respeito dos povos indígenas entre as décadas de 1980 e 1990.
Assim, a historicidade dos estudos da História do Brasil, na perspectiva de trazer os
excluídos da História iniciou um processo de renovação na década de 1970,13 o com a inclusão
de novas abordagens e novos temas. As novas perspectivas teóricas e conceituais foram
elaboradas com a incorporação cada vez maior de novas fontes e o crescente diálogo, por parte
dos historiadores, com outros especialistas das Ciências Humanas e Sociais, isto propiciou
novas leituras sobre o passado brasileiro que está intimamente relacionado com os povos
indígenas de diversas maneiras.
Entretanto, em um dos momentos importantes nesse período, isto na década de 1980,
ocorreu com o gradual abandono de marcos teóricos generalizantes, ampliando o quadro
profissionalizante de historiadores nas universidades. Por meio dessas condições propiciou uma
uma explosão de estudos sobre a escravidão negra, cristão novos, mulheres, pobres e entre
outros, com novas perspectivas sobre a História Social, demográfica, econômica e cultural.
Alguns excluídos da história começaram a saltar dos arquivos, por outro lado os indígenas
permanecerem ignorados pelos historiadores, não sendo temas de estudos em História.14

11
CALDAS, Pedro. Sobre a tarefa do historiador (1821). Tradução. In: A História pensada: teoria e método na
historiografia europeia do Século XIX/Organizador Estevam de Rezende Martins. São Paulo: Contexto, 2010. P.
84.
12
Os principais autores e obras são: Carl Friedrich Philipp von Martius “Como se deve escrever a História do
Brasil” (1845); Francisco Adolfo de Varnhagen “História Geral do Brasil” (1854/57); João Capistrano de Abreu
“Capítulos de História Colonial: 1500-1800” (1907) adentrando o século XX Manoel Bomfim publicou “O Brasil
na América” (1929).
13
Com o surgimento da chamada “nova História Cultural”, terceira geração da “Escola dos Annales”, fortalecida
em 1974 com a coleção editada pelo historiador francês Jacques Le Goff e Pierre Nora, “História: novos problemas,
novas abordagens, novos objetos”. Com a premissa de se redefinir o campo do social para se renegociar as relações
entre a História e as Ciências Sociais. Com isso os historiadores redimensionaram o foco e os olhares nos estudos
acerca da presença humana e o fazer histórico, passagem da história global para uma “história em migalhas”.
(REIS, 2007, p. 80-84; LE GOFF; NORA, [1974]1976).
14
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na história do Brasil: revisões historiográficas.
Revista Brasileira de História, vol.37, n.75, pp.17-38, 2017. P. 18-19. MONTEIRO, John Manuel. Unidade,
5
Portanto, só no final dos anos de 1980 e início de 1990 começou a se firmar a renovação
dos estudos sobre a temática indígena, surgindo a perspectiva de uma “nova história indígena”
inaugurando novas possibilidades interpretativas na História a partir de diálogos com a
Antropologia. Nesse contexto, o conceito de Cultura foi relevante para os estudos sobre a
temática indígena na História, tendo em vista que nos estudos antropológicos da época os
processos de mudanças como fator explicativo e transformadores para a cultura estavam sendo
discutidos e incorporados nas pesquisas.
Por meio das análises do conceito de “etnicidade” proposta por Frederik Barth, que por
meio dela ocorreu uma importante mudança para se analisar e compreender os grupos étnicos
quanto ao caráter organizacional, ao que diz respeito às fronteiras e as concepções de identidade
étnica e etnicidade. Assim, os estudos de Barth contribuíram com as pesquisas dos historiadores
para uma compreensão mais ampla das sociedades indígenas em situação de contato. Para esse
autor a etnicidade de um grupo se define justamente com o contato com outro grupo, tanto pela
autoatribuição, mas também com reconhecimento do outro sobre si. Desse modo a identidade
reconhecida com a auto identificação como também pelos pares e o grupo no geral é
reconhecido por sua identidade diferenciada em face da sociedade majoritária15
Assim, “nova história indígena” tendo como objetivo evidenciar ações e interpretações
de sujeitos e povos indígenas diante das experiências diversas ao logo da história do contato
entre indígenas e não-indígenas o fator de um entendimento melhor definido foi extremamente
relevante.
Por outro lado, durante muito tempo a historiografia discutiu as populações indígenas
como vítimas passivas ou meros expectadores do processo histórico. Com as novas abordagens
superou-se um modelo de historiografia elitista ao descrever os indígenas a partir dos seus
lugares de fala e não das experiências vividas devido ao contato com o colonizador.
No entanto, até a consolidação dos paradigmas da “nova história indígena” havia uma
tendência de um modelo historiográfico de enxergar os povos indígenas por dois pontos de
vistas entanques: a ótica da “extinção” e com o paradigma da “resistência cultural”. Nessa
perspectiva temos a seguinte situação: alguns povos indígenas resistiram as investidas
colonizadoras e mantiveram-se “puros” e “verdadeiros”. Com esse raciocínio, em uma das
versões os povos indígenas deixaram de existir ao longo da História e, os que conseguiram

diversidade e a invenção dos índios: entre Gabriel Soares de Sousa e Francisco Adolfo Varnhagen. Revista de
História. 149 (2º - 2003), p. 109-137.
15
BARTH, Frederik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras variações
antropológicas. (Org.) Tomke Lask. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, p. 25-67.

6
resistir bravamente tiveram êxito de manter a cultura do mesmo modo dos primórdios do
contato com os europeus.
O problema ficou postado da seguinte forma, em ambas perspectivas historiográficas
não existe a possibilidade de transformações, mudanças, adaptações, ressignificações,
reelaborações socioculturais, somente a exclusão dos sujeitos não se encaixando em nenhuma
das opções, sendo desconsiderado o movimento da História, pois, as ações humanas e os
sentidos da existência eles estão em constantes transformações.16
Assim, para exemplificar essas situações, o historiador John Monteiro problematizou os
Tupinambá analisados por pelo sociólogo Florestan Fernandes, quando este sustentou que os
indígenas somente sobreviveriam aos impactos da colonização por meios da migração, ou seja,
por meio da fuga, expelindo as possibilidades do contato, a exemplo de outros grupos egressos
da Capitania de Pernambuco reconstituindo a coesão tribal em lugares distantes da presença dos
europeus. Portanto, concluiu Monteiro que este tipo de visão consagrou a ideia que os indígenas
deram as costas à história para não ser vítimas dela.
Apresentamos as principais obras e autoras no contexto da renovação nas pesquisas
sobre os indígenas que construíram essa possibilidade de uma “nova história indígena”.
Considera-se pioneira coletânea organizada pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha
(CUNHA, 1992) “História dos índios no Brasil” publicado em 1992, é um marco da “nova
história indígena” no Brasil, termo assinalado pelo falecido historiador John Monteiro na Tese
de Livre Docência, apresentada na Universidade de Campinas (UNICAMP) em 2001.
Mas, temos que fazer uma observação a compreensão do termo “nova história indígena”
porque “a percepção de uma política e de uma consciência histórica em que os índios são
sujeitos e não apenas vítimas, só é nova eventualmente para nós” e não para os indígenas em
experiências ao logo do movimento da História.17
Esta coletânea organizada por Manuela Carneiro da Cunha, contribuiu de forma
inestimável para os avanços das pesquisas acerca do tema em questão, apontada novos
paradigmas em estudos como também as fontes para pensar os indígenas como protagonistas
‘da’ e ‘na’ História. Nessa obra, foi apresentado e sistematizado de forma consistente diversas
pesquisas com pesquisadores e pesquisadoras de diversas nacionalidades e áreas, como

16
SIMÕES JUNIOR, Roberto Carlos. A nova história indígena e a educação para as relações étnico-raciais:
construindo caminhos para sala de aula. Campinas, SP: 2019. (Dissertação Mestrado Profissional em Ensino de
História – Universidade de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. P. 25.
17
CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1992. P. 18.

7
Arqueologia, Antropologia, História, especialistas em Genética, Biologia, entre outras. Os
estudos possibilitaram uma nova postura para pensar a respeito dos indígenas na História no
Brasil, reconhecendo-os enquanto agentes históricos a partir de estudos de múltiplas fontes e
áreas.
A coletânea está dividida em cinco partes, dialogando entre si: fontes da história
indígena; política e legislação indigenista; a Alta Amazônia; a Amazônia Meridional; o
Nordeste, Leste e Sul. Esse detalhamento diz muito sobre o contexto do período, porque
apresentava uma diversidade de fontes e temas para recontar e integrar os indígenas na História,
ou seja, a história social com uma diversidade de documentos possíveis, ampliado a visão do
“como” escrever a história indígena diversa do que vinha sendo narrada, como apresentamos
acima.
Nesse contexto de renovação, o historiador John Monteiro com o livro “Negros da terra:
índios e bandeirantes nas origens de São Paulo” (MONTEIRO, 1994a), este livro corresponde
a Tese de Doutorado apresentada na Universidade de Chicago em 1985. O estudo estabeleceu
um novo lugar na história para o indígena – o “negro da terra” no período colonial – na
engrenagem do sistema produtivo paulista durante os séculos XVI ao XVIII. Monteiro
evidenciou na pesquisa que os trabalhadores indígenas, escravizados ou não, ocuparam um
papel central na formação sociocultural e no desenvolvimento econômico de São Paulo, até
aquele momento nada havia sido estudado nessa perspectiva.
O foco da pesquisa de John Monteiro se assentou sobre as relações escravistas na região
paulista, esmiuçando em detalhes algumas das principais características dessa sociedade, com
recorte temporal entre os séculos XVI e XVIII. Desse modo, a tese em “Negros da Terra” foi
compreender que as incursões bandeirantes tinham como objetivo principal o abastecimento de
trabalhadores indígenas escravizados, como expedições de apresamento para a própria região
com o objetivo de alimentar o circuito mercantil do Atlântico meridional, e não apenas para o
litoral canavieiro do Nordeste.
No entanto, Monteiro com a interpretação crítica da história social de São Paulo
evidenciou que as populações nativas ao ocuparem um lugar central focalizando a estrutura e
dinâmica da escravidão indígena, dialogando com três problemas centrais da História do Brasil:
1) o papel do indígena na história social e formação econômica na Colônia; 2) questionamento
do mito bandeirante, a partir de uma supervalorização desses sujeitos; e 3) a importância das
economias não exportadoras na composição histórica do país.

8
Outra obra organizada pelo mesmo autor, em muito contribuindo para a renovação dos
estudos é o “Guia de fontes para a história indígena e do indigenismo em arquivos brasileiros”
(MONTEIRO, 1994b), tornou-se um singular instrumento de pesquisas, reunindo o conteúdo
de mais de 500 conjuntos documentais com informações sobre o passado dos grupos indígenas
em arquivos públicos nas capitais brasileiras, para se pensar as novas perspectivas de
abordagens sobre os nativos enquanto sujeitos da/na História a partir desse conjunto de fontes.
Na mesma década, o também historiador, Ronaldo Vainfas publicou; “A heresia dos
índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial” (VAINFAS, 1995) analisando a
documentação produzida pelo Inquisidor na Primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia,
defrontou-se com a denominada Santidade de Jaguaripe, um movimento de tipo milenarista,
composto na maioria por indígenas rebeldes à situação colonial em 1565. A questão central do
livro foi interpretar a situação enquanto um fenômeno mais geral e abrangente de resistência
indígena à colonização.
Nesse sentido, o estudo recuperou o que muitos historiadores e antropólogos antes de
1990 insistiram em negar: a atividade e participação dos índios enquanto sujeitos ‘da’ e ‘na’
História em face da colonização portuguesa no Brasil. Sendo possível pensar também a partir
desse estudo, a questão da fluidez das fronteiras socioculturais entre indígenas e não-indígenas
no contexto narrado.
Outro estudo relevante para pensar a identidade indígenas dos índios da Região Nordeste
é tese para Professor Titular do antropólogo João Pacheco de Oliveira; “A viagem de volta:
etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena” (OLIVEIRA, 1998). Essa tese
marcou de modo decisivo o entendimento acerca das mudanças ocorridas nos estudos sobre os
povos indígenas no Nordeste e também para as regiões mais antigas da colonização, porque foi
problematizado a partir da perspectiva das teorias antropológicas com um franco diálogo com
com o campo da História.
Oliveira expôs de modo introdutório, a problematização das pesquisas sobre os
denominados “índios misturados” no Nordeste, a partir de conceitos como “territorialização”,
“territorialidade”, “emergência étnica”, etc. Evidenciando, assim, as peculiaridades étnicas dos
indígenas nessa Região do Brasil, confrontou as teses sobre “aculturação” ao qual advogava a
inexistência dos povos indígenas no Nordeste devido ao processo de “assimilação”, abrindo
uma nova discussão no campo antropológico brasileiro com visões diametralmente oposta,
percebendo os povos indígenas pelo viés de uma fixidez da identidade mesmo após o contato.

9
Em nosso estudo utilizaremos o conceito de “territorialização”. Esse conceito deve ser
entendido na perspectiva da identidade indígena e suas respectivas transformações. Assim,
“territorialização” é definido como um processo de reorganização social que implica: i) a
criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade
étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a
redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e
relação com o passado.18Desse modo, este conceito se tornando central nas pesquisas acerca
dos indígenas no Nordeste, porque os indígenas nessa Região enfrentaram e ressignificaram as
identidades de acordo com as situações de contato, elaborando as próprias leituras do mundo
enquanto estiveram em contato com os europeus.
Na construção da tese utilizaremos também o conceito de “demanda” de Ernesto Laclau
(2006; 2005; 1996; 1993), para pensar as aspirações dos povos indígenas quanto suas questões
e direitos. Nesse sentido, “demanda” é compreendido como as expectativas pelas quais sujeitos
lutam no processo político e com que negociam, levando em conta a produção de um projeto
que alcance a legitimidade tornando-o hegemônico. Constituem-se, portanto, importantes
unidades de análise no processo de articulação e produção de políticas.19
Na perspectiva das mobilizações dos povos indígenas no Nordeste, animados pelo
CIMI-NE, nos orientaremos, também, por meio do conceito de “movimentos sociais” dos
movimentos latino-americanos de Maria da Glória Gohn (2014). Assim, a estudiosa dos
movimentos sociais sustenta que não há um conceito sobre movimento social, mas, vários
conceitos variando o paradigma utilizado. Dentro dessas múltiplas teorias cada um tem um
entendimento sobre o que eles são e à qual tipo de manifestação social se referem.20
Desse modo, estaremos centrados no paradigma latino americano, pois, concentrou-se
os estudos sobre movimentos sociais libertários ou emancipatórios dos índios, negros,
mulheres, minorias em geral. Centrados nas lutas populares urbanas para angariar bens e

18
OLIVEIRA FILHO, J. P. Uma etnologia dos 'índios misturados'? Situação colonial, territorialização e fluxos
culturais. MANA (UFRJ), Rio de Janeiro, v. 4, n.1, p. 47-77, 1998.
19
LACLAU, E. Inclusão, exclusão e a construção de identidades. IN: BURITY, Joanildo & AMARAL, Aécio.
Inclusão social, identidade e diferença: perspectivas pós-estruturalistas de análise social. São Paulo: Annablume,
2006. pp.21-37; LACLAU, Ernesto. La Razón Populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2005;
LACLAU, Ernesto. Emancipación y diferencia. Buenos Aires: Difel, 1996; LACLAU, Ernesto. Poder y
representación IN: Politics, Theory and Contemporary Culture, editado por Mark Poster, Nueva York: Columbia
University Press, 1993. Tradujo Leandro Wolfson.
20
GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo:
Edições Loyola, 2014.
10
equipamentos coletivos, ou espaços para habitação urbana, seja nas associações de moradores
e nas comunidades de base da Igreja Católica Romana e nas lutas pela terra na área rural.21
Pensar a teoria da história juntamente com os conceitos apresentados possibilitará
discutir acerca do protagonismo dos indígenas no Nordeste articulado com a instituição CIMI-
NE para historicizar os enfrentamentos na Assembleia Nacional Constituinte, momento em que
os indígenas estiveram angariando direitos que posteriormente foram reconhecidos na
Constituição Federal. Este fato histórico nos faz pensar como ao longo da história os direitos
dos povos indígenas constantemente são ameaçados e tais situações ocasionam tensões entre
os representantes do poder e povos indígenas, pois sempre se mobilizaram por direitos
historicamente negados pouco discutido na historiografia brasileira.

Referências
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na história do Brasil: revisões
historiográficas. Revista Brasileira de História, vol.37, n.75, pp.17-38, 2017.

BARTH, Frederik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. (Org.) Tomke Lask. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, p.
25-67.

CALDAS, Pedro. Sobre a tarefa do historiador (1821). Tradução. In: A História pensada:
teoria e método na historiografia europeia do Século XIX/Organizador Estevam de Rezende
Martins. São Paulo: Contexto, 2010.

CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia
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