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• ORGANIZAÇÃO •

THIAGO DE AZEVEDO PINHEIRO HOSHINO


BRUNO BARBOSA HEIM
ANDRÉA LETÍCIA CARVALHO GUIMARÃES
WINNIE BUENO

DIREITOS
DOS POVOS
DE TERREIRO
V O L U M E 2
O segundo volume de Direitos dos Povos de Terreiro surge
do mesmo impulso do primeiro: abrir caminhos para as lutas do
povo de santo e fechar corpos contra o racismo religioso.

Dedicada a três valorosas autoridades religiosas de matriz africana


– Beatriz Moreira Costa (Mãe Beata de Iemanjá), Stella de Azevedo
Santos (Mãe Stella de Oxóssi) e Valdina de Oliveira Pinto (Makota
Valdina) –, a obra apresenta 12 (doze) capítulos, em alusão aos 12 (doze)
quiabos do amalá de Xangô e a seus 12 (doze) ministros, guardiões
da justiça afro-brasileira. Ainda estampa, em sua capa, a Bandeira
Mulamba, flâmula de um Brasil em releitura diaspórica, sob o signo
do vermelho e do preto de Exu, tradutor dessas demandas históricas,
e o búzio, que veicula o saber e a vontade dos orixás e ancestrais.

Que estas páginas possam traduzir, veicular e demandar dizer, mas,


mais do que tudo, contribuir para fazer o que é preciso: justiça!

AXÉ!
9 786586

ISBN 978-65-86483-16-1
483161
DIREITOS
DOS POVOS
DE TERREIRO
V O L U M E 2
• ORGANIZAÇÃO •
THIAGO DE AZEVEDO PINHEIRO HOSHINO
BRUNO BARBOSA HEIM
ANDRÉA LETÍCIA CARVALHO GUIMARÃES
WINNIE BUENO

DIREITOS
DOS POVOS
DE TERREIRO
V O L U M E 2
Coordenação Editorial
Pedro Camilo de Figueirêdo Neto

Conselho Editorial
DOUTORES: MESTRES:
Claudia de Faria Barbosa Bruno Barbosa Heim
José Rômulo de Magalhães Filho Fábio S. Santos
Luciano Sérgio Ventim Bomfim Geraldo Calasans Silva Júnior
Maria João Guia Isan Almeida Lima
Nadialice Francischini de Souza Marcelo Politano de Freitas
Régia Mabel da S. Freitas Pedro Camilo de Figueirêdo Neto
Ricardo Maurício Freire Soares Thacio Fortunato Moreira
Sheila Marta Carregosa Rocha
Urbano Félix Pugliese do Bomfim

Programação Visual de Capa Imagem de abertura da primeira parte


Fernando Campos Ayrson Heráclito Novato Ferreira

Imagem da Capa Imagem de abertura da segunda parte


João Gabriel Silveira da Motta Miriane Figueira

Diagramação Revisão
Alfredo Barreto Joana Cunha

A reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer modo, somente será
permitida com autorização da editora.
(Lei nº 9.610 de 19.02.1998)

CIP – Brasil. Catalogação na fonte

Hoshino, Thiago de Azevedo Pinheiro,


Diritos dos Povos de Terreiro 2 / organização Thiago Azevedo Pinheiro
Hoshino, Bruno Barbosa Heim, Andréa Letícia Carvalho Guimarães e
Winnie Bueno – Salvador, Ba: Editora Mente Aberta; Instituto Brasileiro
de Direito Urbanístico, 30 de setembro de 2020.

354 p.
ISBN: 978-65-86483-16-1

1. Direito. 2. Povos de terreiro. 3. Justiça. I. Bueno, Winnie.. II.


Heim, Bruno Bargosa. III. Hoshino, Thiago de Azevedo Pinheiro.
IV. Guimarães, Andréa Letícia Carvalho. V. Título.

CDD – 340

Impresso no Brasil
Esta obra é dedicada a Beatriz Moreira Costa (Mãe Beata de
Iemanjá), a Stella de Azevedo Santos (Mãe Stella de Oxóssi) e a
Valdina de Oliveira Pinto (Makota Valdina), autoridades religiosas
de matriz africana, lideranças de terreiro, referências políticas do
movimento negro e intelectuais da diáspora africana, recentemente
chamadas à Casa Ancestral, mas cujo legado na luta antirracista é
fonte perene de axé, ngunzu, vitalidade e inspiração.
PREFÁCIO
Lúcia Xavier1

As religiões de matriz africana são uma síntese de diferentes cul-


turas, concepções e religiosidades de povos africanos que chegaram
ao Brasil na condição de escravos. As experiências desses povos em
um novo território mesclaram culturas, modos de vida, costumes,
estéticas, conhecimentos, artes e linguagens, estabelecendo, assim,
um conjunto de concepções que passaram a orientar os(as) africa-
nos(as) e seus descendentes.
Como modelos organizativos, as religiões tiveram um papel pre-
ponderante nos arranjos econômico, social e político da parcela da
população negra, criando e estabelecendo processos de enraizamen-
to de homens e mulheres, reconstruindo origens, história e ances-
tralidades, bem como restaurando, para essa população, a condição
de humanidade perdida com a escravidão. No entanto, a história des-
sas religiões está marcada pelo não reconhecimento do legado por
elas criado, pelo desrespeito e pelos conflitos causados contra essas
instituições. Elas já foram alvos sistemáticos de repressão, exclusão
e discriminação por parte do estado brasileiro, acusadas de práticas
de charlatanismo, curandeirismo e estelionato, devido às suas ori-
gens africanas. A sua história também é marcada pela resistência e
pela força organizativa dos seus adeptos e lideranças, que criaram
diferentes estratégias para poderem preservar o legado cultural e
religioso, organizando e fortalecendo a população negra durante sé-
culos em nosso país.
O complexo cultural e religioso de matriz africana enfrentou re-
pressão e violência no início do século passado, fruto de estratégias

1  Assistente social, fundadora e coordenadora de CRIOLA, organização de


mulheres negras com sede no Rio de Janeiro, e ekeji do Ilê Omiojuaro, Nova
Iguaçu-RJ
7
8 | Diversos Autores

de eliminação dessas culturas em prol de uma “identidade nacio-


nal”, baseada no padrão de civilidade ocidental. Os Códigos Penais
de 1890 e 1940 foram os instrumentos garantidores da persegui-
ção desse complexo. Muitas tradições foram atacadas, seus símbo-
los quebrados ou apreendidos e seus líderes presos. Mesmo com a
repressão, lideranças se organizaram e buscaram dialogar com dife-
rentes setores da sociedade, no sentido de ampliar os instrumentos
de defesa dessas religiões e culturas. Mas somente com a reforma da
Constituição Federal de 1988, as religiões alcançaram o direito de
existir, deixando, assim, de ser reprimidas pelo Estado.
A Constituição Federal (art. 5º) tornou inviolável a liberdade de
consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos re-
ligiosos (proteção ao território, liturgia e exercício). Esse avanço
permitiu o reconhecimento do direito ao livre exercício sem, com
isso, gerar proteção legal para essas religiosidades e culturas. Sem
contar que não estabeleceu, para essas religiões e culturas, nenhum
mecanismo de reparação dos danos causados pelas perseguições,
violência e destruição dessas religiões e criminalização de suas li-
deranças.
Os ataques contra essas lideranças e instituições foram substi-
tuídos por outras formas igualmente repressoras, voltadas para a
proteção ambiental e de costumes, o que gerou novas regras de re-
gulação do exercício religioso, inclusive obrigando à apresentação
de documentação para o funcionamento, nas delegacias de polícia,
até o período próximo à promulgação da Constituição de 1988.
Após 32 anos de reconhecimento das religiões e culturas afro-
-brasileiras, os ataques não cessaram. Nos últimos anos, as violações
aos direitos das religiões voltaram a ser tratadas como caso de polí-
cia, tornando o judiciário um palco de disputa das religiões de matriz
africana. Os crimes contra essas instituições não foram solucionados
e nem sequer reparados. E, em muitas situações, a responsabilidade
passa a ser das vítimas.
Além de continuarem discriminadas, as religiões sofrem, hoje,
novo processo de violência, de destruição dos seus símbolos sagra-
dos, causados pelas igrejas evangélicas, inclusive por aqueles adep-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 9

tos das igrejas pentecostais, oriundos ou ainda pertencentes a gru-


pos envolvidos com o tráfico de drogas. Estes últimos, além da vio-
lência física, expulsam as lideranças dos territórios, tomando os seus
bens (casa, terrenos e tudo mais que estiver na área). Só em 2019,
o Disque 100, serviço de denúncia do Ministério da Mulher, da Fa-
mília e de Direitos Humanos do Governo Federal, registrou mais de
400 (quatrocentos) ataques a terreiros.
Diante dos constantes ataques às religiões e culturas afro-bra-
sileiras, essas instituições construíram estratégias, buscaram outros
instrumentos, atuaram em redes locais, regionais, nacional e inter-
nacional em sua defesa do seu legado. Recorreram às instâncias de
poder para fazer valer os seus direitos, compreendidos aqui como
o de liberdade para o exercício religioso, o de ir e vir, o reconheci-
mento e proteção patrimonial material e imaterial, o direito à terra,
o direito a usufruir da natureza de modo sustentável, bem como o
reconhecimento social e político das lideranças religiosas.
Essa verdadeira saga de defesa do direito à existência das reli-
giões de matriz africana está traduzida nos diferentes artigos de au-
toras e autores que narram essas lutas no segundo volume do livro
Direitos dos Povos de Terreiro, organizado por Andréa Letícia Carva-
lho Guimarães, Bruno Barbosa Heim, Thiago de Azevedo Pinhei-
ro Hoshino e Winnie Bueno. O livro trata do impacto do racismo
religioso sobre as instituições e lideranças das religiões de matriz
africana, bem como de diferentes análises sobre os processos estra-
tégicos, organizativos e de outros arranjos em defesa das religiões
de matriz africana.
Dividida em duas partes, a obra oferece profunda análise dos
processos do racismo religioso, seu impacto e suas perspectivas po-
líticas, considerando seus efeitos nas futuras gerações. Trata, igual-
mente, dos diferentes processos estratégicos, organizativos e de
outros arranjos em busca de justiça, da efetivação dos direitos das
religiões de matriz africana e da ampliação da democracia brasileira.
Essas análises dão a dimensão também do envolvimento de estudio-
sos, operadores do direito, lideranças religiosas e outros profissio-
nais, interessados em sustentar o debate sobre os direitos dos povos
10 | Diversos Autores

de terreiro, assim como sobre a existência desse legado milenar que


atravessa as religiões e culturas afro-brasileiras.
A primeira parte do livro, intitulada “Abrindo caminhos: mobi-
lização política e luta pelos direitos dos povos de terreiro”, revela os
esforços estratégicos de delineamento e implementação de políticas
públicas em âmbito local, estadual e nacional, contemplando: a cria-
ção de conselhos e grupos de trabalho para a constituição de espaços
de delineamento e garantia de políticas públicas; o desenvolvimento
de estratégias de advocacy e litigância para o enfrentamento ao ra-
cismo religioso; os processos de reconhecimento institucional das
culturas e religiosidades afro-brasileiras, visando à preservação e
ao tombamento dos terreiros como patrimônio nacional; as análises
sobre patrimonialização das casas, alcançando também a disputa em
torno das salvaguardas da natureza, compreendida aqui pelas ma-
tas, rios, lagoas, fauna, flora, montanhas e territórios considerados
sagrados. Cabe ressaltar que um dos principais desafios está em ga-
rantir a liberdade religiosa para as futuras gerações, tema também
debatido na segunda parte desta obra, quando retrata o risco da per-
da do direito à liberdade do exercício religioso.
A segunda parte, intitulada “Fechando corpos: racismo religioso
e violências coloniais no Brasil contemporâneo”, retrata: as práticas
racistas expressas no cotidiano de negação do direito ao exercício
religioso de crianças; os incêndios criminosos contra as comunida-
des de terreiros; o questionamento dos ritos dessas tradições. As
inflexões no campo da justiça sobre o direito de existir e de se expri-
mir enquanto religiosidade alcança o ápice com o debate no Supre-
mo Tribuna Federal, em 2019, sobre a garantia de manutenção do
rito de imolação de animais.
As análises trazidas neste livro ajudam a compreender a for-
ça transformadora das religiões de matriz africana, a sua potência
como sujeitos políticos, capazes de romper com o isolamento e esta-
belecer estratégias de enfrentamento do racismo religioso.
SUMÁRIO
Parte 1
Abrindo caminhos: mobilização política e luta pelos
direitos dos povos de terreiro

1 Conselho do povo de terreiro do estado do Rio Grande do Sul:


protagonismo e ação política do movimento do povo de terreiro do
Rio Grande do Sul, 15
Janine “Nina Fola” Cunha

2 Advocacy e litigância estratégica em defesa dos povos de terreiro


e contra o racismo religioso em Sergipe, 45
Ilzver de Matos Oliveira
Pedro Meneses Feitosa Neto

3 Barreiras coloniais à efetividade da gestão do Estado brasileiro na


modernidade: o caso do Grupo de Trabalho Interdepartamental de
Terreiros, 63
Guilherme Dantas Nogueira
Francisco Phelipe Cunha Paz

4 Salvaguarda cultural dos territórios descontínuos dos povos de


terreiro, 87
Bruno Barbosa Heim

5 Patrimonialização dos bens culturais dos espaços religiosos


afro-brasileiros na Bahia: do tombamento ao registro especial de
terreiros, 119
Walkyria Chagas

6 O direito à liberdade religiosa da criança e do adolescente no


terreiro de candomblé da Ìyálórìsà Idjemim, 153
Paola Odònílé

11
12 | Diversos Autores

Parte 2
Fechando corpos: racismo religioso e violências coloniais no
Brasil contemporâneo

7 “Não posso ser negra. Não posso cantar pra Ogum. Não posso
ser do candomblé. Não posso nada”: infância, racismo e racismo
religioso, 189
Stela Guedes Caputo

8 Racismo religioso e os obstáculos para o exercício dos direitos das


religiões afro-brasileiras, 219
Nailah Neves Veleci

9 Reflexões sobre a discriminação étnico-racial praticada contra


povos e comunidades de terreiro e suas interações com o sistema de
justiça e segurança pública em São Luís do Maranhão, 251
Jorge Alberto Mendes Serejo

10 Fogo contra subalternizados/as: comunidades afro-brasileiras


incendiadas, 285
Mauricio dos Santos

11 As cores das/os cortes: uma leitura do Recurso Extraordinário n.


494601 a partir do racismo religioso, 303
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino
Vera Karam de Chueiri

12 Memoriais de amicus curiae no Recurso Extraordinário n.


494601, apresentado em nome da União de Tendas de Umbanda
de Candomblé do Brasil e do Conselho Estadual da Umbanda e dos
Cultos Afro-brasileiros do Rio Grande do Sul, 333
Hédio Silva Jr.
Antonio Basílio Filho
Jáder Freire de Macedo Júnior
Demetrius Barrreto Teixeira
Parte 1
Abrindo caminhos: mobilização
política e luta pelos direitos
dos povos de terreiro
1
CONSELHO DO POVO DE TERREIRO
DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
– CPTERS: PROTAGONISMO E AÇÃO
POLÍTICA DO MOVIMENTO DO POVO
DE TERREIRO DO RIO GRANDE DO SUL

Janine “Nina Fola” Cunha2

Este artigo versa sobre parte do trabalho de conclusão do curso


(TCC) de graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), apresentado em dezembro de 2017,
tendo como foco de estudo o espaço de políticas públicas que surgiu
por conta da mobilização “espontânea” do Povo de Terreiro do Es-
tado, reagindo aos sequentes atos de intolerância religiosa e racismo
no Estado do Rio Grande do Sul.
Neste texto, será abordada a mobilização anterior à constitui-
ção do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do
Sul (CPTERS) até seu decreto e posse, bem como as estratégias,
as construções conceituais e fatores importantes registrados nesse
caminho. Para tal, promove uma juntada de documentos, entrevis-
tas e narrativas, promovendo também um registro acadêmico sobre
todo o processo. Assim, convido para uma leitura como partilha de
um exemplo de possibilidade de promover as políticas públicas no
Brasil, a partir dos movimentos sociais, que aqui se autodenominam
Povo de Terreiro, numa proposta de justiça social e democracia.
O CPTERS está, hoje, instituído e vinculado à Secretaria de Jus-
tiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do
2  Egbon da Comunidade Terreira Ile Ase Iyemonja Omi Olodo. Socióloga e
doutoranda do PPG Sociologia da UFRGS. Email: ninafola@gmail.com
15
16 | Janine “Nina Fola” Cunha

Sul, compondo-se como grupo organizado politicamente para dia-


logar diretamente com o Estado em prol de sugerir ações, denun-
ciar infrações e elaborar políticas públicas, enfrentando as demandas
específicas do Povo de Terreiro, principalmente no que se refere à
intolerância religiosa, ao racismo religioso e à violência, questões
cotidianas e politicamente organizadas pelo segmento da matriz
africana e Movimento Social Negro.
Este trabalho tem, como objetivo geral, analisar a ação política
do Movimento do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul
até a formação do CPTERS – período compreendido entre os anos
2000 e 2016. Como objetivos específicos, dedica-se a: a) analisar as
suas formas de atuação, processos e perspectivas políticas utilizadas;
b) entender quais mecanismos que têm ou tiveram eficiência no diá-
logo com o Estado; c) levantar pontos para análise e compreensão
para a atuação política do povo conhecido como “tradicional”.
Através de toda a trajetória da ação, alcançam-se conquistas nas
políticas públicas de direitos humanos e coletivos para a população
negra e suas comunidades tradicionais, afirmando-se uma identida-
de e estabelecendo-se força nessa disputa de poder com o Estado e
outros segmentos dos direitos humanos. Esta força Stuart Hall de-
nomina de política de representação, que se dá justamente na cons-
trução da diferença numa sociedade multicultural.3
Portanto, ponho-me a refletir sobre até que ponto a emergência
do Povo de Terreiro na esfera pública política provoca efeitos trans-
ruptivos, “constituindo um dispositivo que representa a diferença
como unidade ou identidade” (HALL, 2009), elaborando as seguin-
tes perguntas: a) quais são as condições possíveis de inscrição da di-
ferença nessa esfera? b) De que forma podemos construir canais de
respeito para as práticas religiosas do Povo de Terreiro? c) As ações

3  O autor afirma que “A lógica da política cultural busca causar uma reconfiguração
radical do particular e do universal; da liberdade e de igualdade com a diferença.
Recompor as heranças dos discursos liberais à luz multicultural das sociedades da
modernidade. Uma abordagem com estratégias vigorosas capazes de enfrentar
e erradicar o racismo, a exclusão e a inferiorização, respeitando certos limites”
(HALL, 2009, p. 84).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 17

são eficazes para dar conta das demandas do Povo de Terreiro de se


fazer reconhecer este grupo com cidadania e dignidade?
Nesse processo, que foi de formação coletiva para o diálogo com
a política estatal, absorveram-se e desenvolveram-se os conceitos
de: intolerância religiosa, racismo institucional e religioso, Estado
laico/laicidade, controle social, diversidade e/ou liberdade religiosa,
Povo de Terreiro, comunidade tradicional de matriz africana, valo-
res civilizatórios, visão de mundo e cosmovisão da matriz africana.
Todos esses conceitos foram elaborados, apreendidos ou re-
formulados a partir de pesquisas, dissertações, artigos, teses aca-
dêmicas, textos norteadores, discursos de militantes e vivenciado-
res da matriz africana que, imbuídos da perspectiva do lugar de fala
(RIBEIRO, 2017), do protagonismo e do pertencimento, deram a
possibilidade de coletivamente formular e introduzir um arcabouço
teórico para o fortalecimento, engajamento e produção intelectual
deste vasto campo para os que, no processo, promovessem a mate-
rialização da política pública.
Inicialmente, farei algumas considerações sócio-históricas im-
portantes para a compreensão do processo a ser narrado. A contex-
tualização histórica e a prática do Movimento Negro brasileiro de
uma maneira geral; o que venho organizando como povo de terreiro
e as referências usadas; as ações políticas e características de luta e
seus meandros até chegarmos a constituição do Conselho – este é o
caminho percorrido pelo estudo.

1 MOVIMENTO NEGRO CONTEMPORÂNEO

A maior inspiração do Movimento Negro contemporâneo no


Brasil vem da luta dos direitos civis norte-americano e do pan-afri-
canismo, organizações de cunho essencialmente marxista, tendên-
cias políticas de esquerda mundialmente influenciadoras.
No final da década de 1970, no Brasil, nasceu o Movimento Ne-
gro Unificado (MNU), que tinha, como meta, a unificação das lutas
de protesto negro de todo o país, numa ótica de fortalecimento das
causas raciais, potencializando as lutas e reivindicando a identidade
18 | Janine “Nina Fola” Cunha

negra, promovendo uma identidade étnica e o resgate das raízes an-


cestrais.

2 POVO DE TERREIRO

Os africanos e seus descendentes (re)criaram espaços de resis-


tência e preservação dos seus valores e memórias no Brasil. (Re)
Construíram arcabouços de práticas filosóficas e teológicas que são
entendidas como religião/religiões de matriz africana, (re)organiza-
das em territórios – os terreiros – que demarcam a complexa sobre-
vivência dos negros e negras no solo brasileiro.
Mesmo com a imposição dos valores civilizatórios europeus pe-
los colonizadores promovidos na escravização, os africanos escra-
vizados criaram várias saídas de sobrevivência para tal violência,
principalmente com a possibilidade de recriação do mundo africano
dentro dos terreiros. O que se constata é que, em qualquer situação,
a complexidade civilizatória negro-africana perpetuou e inevitavel-
mente influenciou as outras composições de comunidades. Em ou-
tras palavras, a sabedoria ancestral dos negros e das negras, mesmo
em situação escravizada e de negação, compõe a cultura brasileira
estruturalmente, muito havendo de africano no comportamento so-
cial brasileiro, que está impregnado por complexos linguísticos, ri-
tualísticos, culinários e inclusive pela visão de mundo em práticas da
cultura popular (ou pelo menos intituladas como). Este complexo de
saberes são as “invariáveis civilizatórias” que são de ordem ontológi-
ca (noção do sentido de ser), epistêmica (produção de conhecimento)
e ética (conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral).
No Brasil e nas Américas, reconfiguram-se os saberes em ações
culturais que foram marginalizadas, desintegradas da noção civili-
zatória e de conhecimento, sendo destituídas das classificações de
conhecimento, filosofia e teologia e, principalmente, do termo valo-
res civilizatórios dos povos africanos.
Por conta da construção de uma política moderna presente nos
movimentos sociais negros contemporâneos, percebe-se um “des-
locamento” que bifurcou as pautas negras, provocando efeitos na
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 19

esfera pública e na atuação do Povo de Terreiro, a tocar este mote


da pauta da Intolerância Religiosa, construindo o CPTERS. Nesta
análise, percebe-se a presença prática de uma filosofia política na
religiosidade afro-brasileira, conforme José Carlos dos Anjos (2008)
nos diz:

[...] um outro equacionamento para o senso de equidade racial...


aproxima o modo de lidar com as diferenças nos terreiros à sofis-
ticada elaboração filosófica deleuziana de um pensamento das di-
ferenças [...] se desdobra em duas dimensões: numa primeira ex-
plora-se uma concepção de pessoa estritamente vinculada ao modo
afro-brasileiro de trabalhar as diferenças; por fim, retiram-se con-
sequências político-filosóficas desse trato sofisticado das diferenças
para uma rediscussão do significado do multiculturalismo no Bra-
sil. O argumento principal é o de que a religiosidade afro-brasileira
vem expondo outra possibilidade de articulação das diferenças ét-
nico-raciais e essa emergência se constitui como uma outra cosmo-
política divergente das que até aqui informam o sentido de nação.

O que José Carlos dos Anjos nos informa como cosmopolíti-


ca subsidia afirmações de que a filosofia da cosmovisão de matriz
africana consolida os seus valores civilizatórios em prática política.
Ao destacar esta expressão “valores civilizatórios afro-brasileiros”,
tem-se a intenção de:

[...] destacar a África, na sua diversidade, e que os africanos e afri-


canas trazidos ou vindos para o Brasil e seus e suas descendentes
brasileiras implantaram, marcaram, instituíram valores civilizató-
rios neste país de dimensões continentais, que é o Brasil. Valores
inscritos na nossa memória, no nosso modo de ser, na nossa música,
na nossa literatura, na nossa ciência, arquitetura, gastronomia, re-
ligião, na nossa pele, no nosso coração. (TRINDADE, 2005, p. 30).

E o que seriam esses valores civilizatórios na prática? Assim


explica Miriam Alves (2012, p. 176):

[...] no construto comunidade tradicional de terreiro de matriz


africana, consideramos que ele é a materialização simbólica e con-
creta do complexo cultural negro-africano que se mantém vivo e
incorporado à sociedade brasileira por meio de organizadores ci-
vilizatórios invariantes, como por exemplo: tradição oral, sistema
20 | Janine “Nina Fola” Cunha
oracular divinatório, culto e manifestação de divindades, ritos de
iniciação e de passagem. Organizadores que são fundamentais para
a inscrição. Assim, asseveramos a necessidade de compreendermos
o conjunto de organizadores invariantes que denotam a dinâmica
civilizatória das comunidades tradicionais de terreiros de matriz
africana no Brasil. Afinal, além da multiplicidade os terreiros pos-
suem uma unidade, constituindo, portanto, uma unidade múltipla.
Deste modo, torna-se imprescindível um estudo de fôlego sobre a
cosmogonia e a cosmologia das tradições culturais que constituem
os terreiros das diferentes regiões do país, tais como Batuque, Can-
domblé, Tambor de Mina e Xangô. Foi de um paradigma civilizató-
rio negro-africano nesse contexto.

A matriz africana, por seus organizadores civilizatórios inva-


riantes, preconiza que o ser negro-africano é estabelecido, desde o
nascimento, numa relação cosmogônica e, em circularidade, oralida-
de, energia vital, ludicidade, memória, ancestralidade, cooperativis-
mo/comunitarismo, musicalidade, corporeidade e religiosidade que
não são categorias estáticas ou fechadas, mas promovem uma inten-
sa e contínua dinâmica entre si. Quando se declara, por exemplo,
que a cultura negra é transmitida pela oralidade, para compreender
melhor o que isso significa, devemos considerar que não é tão so-
mente o ato de falar e ouvir que vai fazer com que haja o registro e
o aprendizado, mesmo que este ato seja várias vezes repetido. Esse
conhecimento deve passar pela memória, pela corporalidade, ludici-
dade, musicalidade e ancestralidade do indivíduo e sua comunidade,
seus sentidos, sua subjetividade e a espiritualidade com esses ele-
mentos cosmogônicos.

3 A AÇÃO POLÍTICA

As comunidades de terreiro constituem-se como espaços solidá-


rios de ajuda coletiva localizados em espaços marginais da cidade ou
de grande concentração negra. Nelas, proporciona-se acolhimento,
atendimento ou ajuda para os diversos tipos de problemas, sejam
eles de ordem particular ou coletiva. Portanto, a luta contra o sis-
tema opressor sempre esteve presente nas comunidades de terreiro
em todas as formas possíveis. E os terreiros, como afirma Muniz
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 21

Sodré (1988), além de se “constituírem como focos de resistência


territorial, física, mental e familiar negra, também funcionam como
pólos de difusão de informações e trocas de saberes que, muitas ve-
zes, não são reconhecidos pela classe dominante”.
Há, por conta da comunidade de terreiro, o entendimento dos
seus limites possíveis de atuação na esfera pública, mas também o
de que as normas podem ser sempre “contornadas” numa ginga em
favor dos interesses coletivos. Por meio da ancestralidade negro-
-africana, durante todos estes séculos, esse conhecimento foi o que
fez ser possível a organização política, imputando a filosofia política
sempre em prol da coletividade e da justiça social.
É certo que aconteceram movimentos que atuaram
historicamente em favor dos cultos afro-brasileiros e sob diversas
perspectivas políticas em nossa história. Um exemplo são os
conselhos africanos – organizados no intuito de desresponsabilizar
a polícia ao controle do calendário de culto, ocasionando a abertura
de associações e federações de culto de matriz africana em todo o
país. Estas instituições têm atuado até os dias de hoje e passaram
por várias conjunturas políticas. Também, em 1983, aconteceu, na
Bahia, a II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura. Nela,
cinco iyalorixás, entre elas Mãe Stela de Oxóssi, assinaram um ma-
nifesto que declarou o candomblé como uma religião independente e
rechaçou qualquer forma de sincretismo com as religiões cristãs. O
ato apontou uma postura de confronto com a Igreja Católica e o Es-
tado, conclamando o povo de santo a buscar conhecimentos para os
seus dogmas e liturgias. Entre os anos de 1999 e 2000, surgiram or-
ganizações mais voltadas para a temática da saúde do povo de santo,
muito mobilizadas pela epidemia da AIDS, evidenciada a vulnerabi-
lidade das comunidades tradicionais devido ao perfil social. Foi nes-
se momento que surgiu a Rede Nacional de Religiões Afrobrasilei-
ras e Saúde – RENAFRO. A rede trouxe, para dentro das discussões
nos terreiros, a importância da participação como controle social e
promoção de políticas públicas. A mobilização tomou muita força e
ainda mais depois de 2010.
22 | Janine “Nina Fola” Cunha

As conquistas do povo de terreiro são forjadas pelas lutas em tor-


no da diferença, no interior dos espaços dominantes. É precisamente
nesse meio que ocorre a emergência de um tipo de política cultural
que coloque a hegemonia cultural em jogo, que permita vislumbrar
mudanças no equilíbrio de poder nas relações da cultura e deslocar
as disposições do poder para utilização de estratégias culturais que
façam diferença, como querem Gilroy e Hall (apud COSTA, 2006).

4 POR DENTRO DO MOVIMENTO DO POVO DE TERREIRO NO


RIO GRANDE DO SUL

No Rio Grande do Sul, os números de adeptos das religiões


afro-brasileiras estão numa crescente desde o censo de 2000, quan-
do a autodeclaração aumentou em mais de 30%. Consequentemente,
estes números são divididos entre adeptos do batuque, da umbanda
e da linha cruzada, que se configuram como religiões de matriz afri-
cana e afro-brasileiras no Estado.
O batuque caracteriza-se pelos organizadores civilizatórios in-
variantes e se sedimenta no paradigma civilizatório dessa matriz
que inclui a teologia – ou afroteologia (SILVEIRA, 2016) – como
um dos seus conhecimentos e, atualmente, o grande pertencimento
do seu povo de tradição compreendido como povo de terreiro. Se-
gundo Miriam Alves (2012, p. 176), o batuque versa:

[...] sobre o construto comunidade tradicional de terreiro de ma-


triz africana, consideramos que ele é a materialização simbólica e
concreta do complexo cultural negro-africano que se mantém vivo
e incorporado à sociedade brasileira por meio de organizadores ci-
vilizatórios invariantes, como por exemplo: tradição oral, sistema
oracular divinatório, culto e manifestação de divindades, ritos de
iniciação e de passagem. Organizadores que são fundamentais para
a inscrição de um paradigma civilizatório negro-africano nesse con-
texto.

Já a umbanda caracteriza-se como uma religião peculiarmen-
te brasileira, como define o teólogo e babalorixá Hendrix Silveira
(2016, p. 91):
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 23
[...] as expressões sincréticas como a Umbanda, Omolokô, Jure-
ma, Catimbó, etc., por percebermos que, provavelmente devido ao
amalgamento de várias tradições religiosas dando origem a uma,
a teologia que orienta estas religiões não são de origem africana
(geralmente o espiritismo kardecista), logo entendemos que essas
religiões não são de matriz africana ou afro-brasileiras, mas sim re-
ligiões brasileiras, criadas em solo brasileiro.

Considerando essa diversidade teológica, querendo sair das ar-


madilhas racistas e buscando uma estratégia para o diálogo sobre as
políticas públicas para o segmento da população negra conhecido
no Brasil como “afro-religioso”, o movimento do povo de terreiro se
remete ao Decreto n. 6040/2007, que estabelece a Política Nacional
de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradi-
cionais, cujas definições e objetivos respondem às pautas colocadas
pelas lideranças de terreiros. O artigo 3º, inciso I, do referido decre-
to, define como povos e comunidades tradicionais:

[...] os “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem


como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para
sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica,
utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmiti-
dos pela tradição”. (BRASIL, 2007).

E, neste momento, que começa a se intensificar o questionamen-


to sobre a expressão intolerância religiosa, graças à ação do povo de
terreiro na Conferência Nacional de Promoção de Igualdade Racial,
oportunidade em que foi lido, por Makota Valdina, um texto de cria-
ção coletiva de lideranças religiosas de todo o país, que diz assim:

Intolerância Religiosa – expressão que não dá conta do grau de


violência que incide sobre os territórios e tradições de matriz afri-
cana. Esta violência constitui a face mais perversa do racismo, por
ser a negação de qualquer valoração positiva às tradições africanas,
daí serem demonizadas e / ou reduzidas em sua dimensão real. To-
lerância não é o que queremos, exigimos sim respeito, dignidade e
liberdade para SER e EXISTIR.
24 | Janine “Nina Fola” Cunha

Percebe-se a criticidade do movimento com a postura política


presente no excerto dessa carta que rege, ainda hoje, debates im-
portantes sobre a situação de violência a partir do que, desde então,
o movimento do povo de terreiro vem cunhando como racismo re-
ligioso.
Para além disso, o movimento reconhece que se faz necessária
a produção escrita, documental, o vem sendo realizado, em termos
de coletividade, em prol da promoção da igualdade de direitos, reco-
nhecendo a diferença das tradições e suas peculiaridades, defenden-
do-se que tais diferenças não sejam motivos de exclusão, e sim de
integração do povo de terreiro no âmbito de políticas públicas pela
democratização do país.
Assim, a postura filosófica é fundamental para que se fortaleça,
em tempos futuros, o seguimento de luta em favor das comunidades
de terreiro, e essa postura é totalmente inspiradora para a constru-
ção desse equipamento institucional de controle social em que se
constitui um conselho de políticas públicas.

5 A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA COMO LUTA

O catolicismo foi a religião que caminhou junto com a Coroa


Portuguesa para a invasão das terras (também denominada como
descobrimento). Neste processo colonial, estabeleceu-se hierarquia
social para potencializar a comercialização de mão-de-obra escra-
vizada para a construção das colônias. Assim, os africanos foram
mantidos como escravizados durante mais de três séculos. Em nome
do seu paradigma religioso, a Igreja Católica atuou de forma osten-
siva com essas propostas político-comerciais europeias, garantindo
ganhos monetários de larga escala, na fundação das cidades e seus
patrimônios históricos, culturais, imobiliários e escolares.
Quanto aos fazeres dos negros e das negras, a igreja interveio,
tentando colonizar as práticas e saberes afrorreligiosos. Um resul-
tado deste processo sócio-histórico foi o sincretismo religioso que
hierarquizou a religiosidade católica em detrimento da matriz afri-
cana. Além disso, a proibição do uso da língua, estigmatização e de-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 25

monização de suas divindades, falta de reconhecimento na constru-


ção de identidade, significação do sujeito e manutenção cultural e
civilizatória do povo negro no Brasil são consequências danosas que
temos como resultado do processo de escravização. Com certeza, foi
um processo violento e que, em muitos casos, levou à morte pessoas
que assumiam ou realizavam práticas das tradições africanas ou por
simplesmente tentarem viver a partir de uma necessária autocons-
trução de humanidade.
Tal processo, aqui apresentado de forma sintética, foi respon-
sável pelas comunidades de terreiro localizarem-se nas franjas dos
agrupamentos urbanos. Tais espaços constituíram-se e constituem-
-se como espaços solidários, de ajuda coletiva, localizados em pontos
marginais das cidades e/ou de grande concentração negra. Nestas
comunidades, proporciona-se acolhimento, atendimento ou ajuda
aos diversos tipos de problemas, sejam eles de ordem particular
ou coletiva, majoritariamente provenientes da exclusão, opressão e
marginalidade que causam diversas vulnerabilidades decorrentes,
sobremaneira, do racismo antinegro que opera nas Américas.
Atualmente, o embate que acomete o Povo de Terreiro não se
dá somente com a Igreja Católica e seus adeptos, mas também com
os neopentecostais e é como uma guerra santa, principalmente com
os iurdianos que, paradoxalmente, segundo Ari Pedro Oro (2007),
operacionalizam bricolagens religiosas estabelecendo-se como uma
igreja “religiofágica”, impondo-se como igreja da “exacerbação” e,
ao mesmo tempo, reproduzindo elementos das religiões afro-brasi-
leiras, de suas práticas, utilizando-as (os cultos de limpeza e descar-
rego, por exemplo) como saída contra o “mal” (ORO, 2007). É ainda
Oro (2002, p. 50) quem complementa:

Para eles há forças do mal no mundo com poderes sobre os homens


e estas freqüentemente [sic] são associadas às religiões afro-bra-
sileiras e, identificando-as como causadoras dos males e das des-
graças que se abatem sobre as pessoas e a sociedade em geral [...]
decretam de público a condenação eterna dos freqüentadores [sic]
dos terreiros”.
26 | Janine “Nina Fola” Cunha

O recrudescimento das políticas conservadoras e a entrada em


espaços legislativos e executivos de políticos da extrema direita e
neopentecostais mostram a fragilidade do Estado em manter-se lai-
co e, paradoxalmente, tem prejudicado, de forma radical, a liberdade
religiosa do povo de terreiro no Brasil. Por isso, há uma necessidade
de construção de um novo paradigma sobre a laicidade do Estado
brasileiro para a eliminação da intolerância religiosa experienciada
pelas tradições religiosas de matriz africana (BUENO, 2017). Sobre
laicidade, Winnie Bueno (2017, p. 6) afirma que:

Embora não exista laicidade plena, e considerando que os diferentes


processos de laicização são correspondentes aos diferentes desen-
volvimentos dos Estados, conforme a própria Declaração Univer-
sal da laicidade no século XXI, a criminalização e perseguição de
determinadas expressões religiosas é incompatível com o Estado
laico. Ademais, a laicidade pressupõe um tratamento equânime en-
tre as diferentes expressões religiosas, o que não ocorre no Brasil
pelo menos até a outorga da Constituição de 1988, onde se erige a
liberdade religiosa como princípio fundamental, mas que, não se
consolida de forma material. (BUENO, 2017. p.6)

Os casos de violência e intolerância, desde o início do século


XXI, vêm aumentando. O caso mais emblemático é o de Mãe Gilda
que, no dia 21 de janeiro de 2000, em consequência de um infarto,
morreu em seu terreiro, após este ser invadido por iurdianos que,
além de caluniá-la no Jornal “A Folha Universal”, queriam exorcizá-
-la e convertê-la. Esta fatalidade resultou na promulgação do dia de
sua morte como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religio-
sa, pela Lei n. 11.635, de 27 de dezembro de 2007.

6 CONSELHO DO POVO DE TERREIRO

O CPTERS foi construído num processo histórico de tentativas


intermitentes de inclusão e de luta antirracista e contra a intole-
rância e racismo religioso vividos pelo povo de terreiro, em espe-
cial no Rio Grande do Sul. Posto isso, o esforço neste artigo é de
demonstrá-lo (CPTERS) como uma alternativa prática usada como
ferramenta política a partir da proposta afrocentrada de terreiro, ar-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 27

ticulada na esfera pública, provocando vários efeitos, que causaram


rupturas no processo político hegemônico, mesmo sendo operado
dentro dos padrões vigentes. Conforme consta nos objetivos do De-
creto n. 51.587, de criação do Conselho:

Fica criado o Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Gran-


de do Sul, com a finalidade de desenvolver ações, estudos, propor
medidas e políticas públicas voltadas para o conjunto das comunida-
des de terreiro do Estado, caracterizando-se como um instrumento
de reparação civilizatória, na busca da equidade econômica, política
e cultural e da eliminação das discriminações”. (RIO GRANDE DO
SUL, 2015. p. 73).

Neste momento há, como salienta Baba Diba (2017):

[...] um despertamento para a questão teológica com a vinda do


teólogo professor Jayro na década de 1990 para Porto Alegre, com-
plementado com a dinamização do cenário político brasileiro, in-
cluindo o povo de terreiro nas discussões políticas.” (em entrevista
concedida em 20/12/2017)

Por isso, o Conselho não foi uma mera “concessão governamen-


tal”. Seria um particular equívoco assim supor, na medida em que
se trata do resultado explícito de um movimento que, pelo menos
desde 2011, mantém negociações constantes entre o povo de ter-
reiro e o governo do Estado do Rio Grande do Sul (TADVALD e
GONZAGA, 2017. p. 256).
Acompanhando a memória das entrevistas de Baba Diba na tra-
jetória de organizações coletivas do povo de terreiro no Estado, é
citado o Fórum das Religiões de Matriz Africana do RS (FORMA)
como um primeiro espaço de estudos e capacitação política do povo de
terreiro do Estado, por meio de reuniões periódicas que aconteciam
no Mercado Público e que reuniam, também, algumas outras orga-
nizações em defesa do povo de terreiro, a exemplo da Congregação
em Defesa das religiões Afrobrasileiras (CEDRAB). O FORMA era
motivado pela política de cestas básicas do Plano para Comunidades
Tradicionais, regulamentado pela SEPPIR, que tinha a capacidade
de mobilizar aproximadamente 800 (oitocentos) terreiros do Estado
e que, nessas reuniões, pautava discussões em torno das questões do
28 | Janine “Nina Fola” Cunha

povo de terreiro. Nisso, muitas lideranças se formaram, apareceram


e constituíram a Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa,
que se iniciou em 2008, motivando ainda mais a pauta de denúncias
contra a intolerância e racismo religioso.
No ano da terceira marcha, 2011, assumiu um governo demo-
crático, popular e de esquerda – motivando mais ainda o povo de
terreiro a consolidar a pauta de diálogo com o Estado. Foi naquele
momento, num seminário preparatório da Marcha, considerando a
nova perspectiva política, que Iyá Vera de Oyá Laja propôs que se
criasse, entre outras propostas, o Conselho do Povo de Terreiro, que
foi aceito pela maioria das lideranças e encaminhado na carta redi-
gida coletivamente e endereçada ao governante. Como descrito no
Boletim Informativo do Povo de Terreiro, foi assim escrito:

[...] representantes da tradição de matriz Africana, militantes do


Movimento Negro e demais organizações apoiadoras da III Marcha
pela Vida e Liberdade Religiosa, reuniram-se para a realização do
seminário que precedeu a Marcha cujos temas abordados foram In-
tolerância no Rio Grande do Sul, ausência da questão racial no go-
verno, ausência de representação da Matriz Africana e Quilombola
no Conselhão (CDES – Conselho de Desenvolvimento do RS) com
entrega simbólica da Carta da Marcha aos representantes do estado
e do Município, contendo as reivindicações do Povo de Terreiro.
Entrega da carta ao Sr. Winicius Wu, Secretário de Estado Chefe
de Gabinete do Governador. (RIO GRANDE DO SUL, 2015, p. 9).

O contingente mobilizado nesse contexto político é enorme,


chegando a milhares de pessoas, desfazendo a ideia de minorias,
principalmente nesse estado que se identifica com a herança euro-
peia.
A visibilização das pautas da comunidade de terreiro no estado
promove imediatamente, nas gestões populares, o reconhecimento
da força numérica e política, pela primeira vez, dentro do histórico
recente e, assim, alinha-se em algumas pautas do movimento, repre-
sentado com mais força pela Marcha Estadual pela Vida e Liberdade
Religiosa.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 29

7 “A UNIDADE SE ESTABELECEU! UNIDOS SOMOS FORTES!”

Naquele ano de 2011, a Marcha Estadual pela Vida e Liberda-


de Religiosa teve a participação de aproximadamente duas mil pes-
soas. Em Marcha, o povo de terreiro entrou no Palácio Piratini para
entregar o referido documento ao governador, sendo recebido pelo
secretário de governo da época. Nesse dia, começaram as negocia-
ções e, em novembro do mesmo ano, realizou-se um encontro com o
então governador Tarso Genro, a fim de dialogar, de forma franca e
aberta, sobre a pauta de reivindicações. Para aquele momento, foi re-
digida e entregue, no dia 21 de novembro de 2011, a Carta do Povo
de Terreiro do Rio Grande do Sul, que segue copiada abaixo:

Ao descivilizacionar e conotar caráter estritamente religioso ao


continuum civilizatório afrodescendente arrolando à dinâmica so-
cial de estrutura fortemente maniqueísta e/ou dicotomizada, a so-
ciedade e o Estado acabam por direta e indiretamente corroborar
com o racismo e seu correlato mais perverso que se traduz pela
intolerância religiosa que grassa no país, nos Estados do Sul e, no-
tadamente, no Rio Grande do Sul. Desta forma, busca ontológica de
ver o mundo e com ele se relacionar.

A colonialidade do poder e das relações sociais vigentes, cujas elites


dominantes insistem na predominância eurocêntrica em detrimento
da matriz civilizatória africana, têm demonstrado forte apego ao
ideário colonialista ou neocolonial, em que pese todo discurso polí-
tico encetado de reconhecimento e valorização da Diversidade, em
que se destaca as demandas históricas das Relações Étnicas com-
preendidas e dimensionadas civilizatoriamente, sobressaindo Povos
de Terreiros.

Diante dessa análise, reafirma ritualística e da culturalização, pois


a atuação dos terreiros se manifesta como eixo estratégico para
qualquer discussão, definição e encaminhamento de políticas para
o Povo Negro.

Tendo como fundamentação o exposto, propõe-se:

Assentamento imediato de uma representação dos Povos de Terrei-


ro no Conselho Estadual de
Desenvolvimento Econômico Social – CEDES;
30 | Janine “Nina Fola” Cunha
Criação de um Conselho de Políticas Públicas para Povos de Terrei-
ro, vinculado ao Gabinete do

Governador, com o objetivo de pensar e construir ações afirmativas


e políticas públicas;

Transformação da Coordenadoria de Igualdade Racial em uma Se-


cretaria com estrutura para o desenvolvimento de políticas voltadas
para o Povo Negro, sem deixar de incluir os Povos Indígenas. (RIO
GRANDE DO SUL, 2015. p. 11).

O governador, ao receber a carta, aceitou o desafio e se compro-


meteu a atender às reivindicações feitas. No mês seguinte, concedeu
um assento de representação ao povo de terreiro no Conselho de
Desenvolvimento Social (CDES), conhecido como “Conselhão”. No
CDES, o povo de terreiro pôde iniciar efetivas ações de pauta antir-
racista, contra a intolerância religiosa, o racismo religioso e insti-
tucional, com as conselheiras Iyá Carmem de Iansã, num primeiro
momento, e, após, Iyá Sandrali de Oxum. Foi então que a materiali-
zação da ideia de se ter um conselho tornou-se forte e era tempo de
construir uma estratégia para isso.
Naquele momento, as lideranças eram articuladas em todo
o Estado por meio do trabalho da Rede Nacional das Religiões
Afrobrasileiras e Saúde (RENAFRO), mas como a perspectiva era
aglutinar mais pessoas, propôs-se a organização de uma Conferência
Estadual do Povo de Terreiro. Para tanto, fez-se necessária a criação
do Comitê do Povo de Terreiro, a fim de organizar o processo de
constituição da conferência e do conselho. O comitê ficou instalado
dentro do Palácio Piratini durante o período de maio de 2013 até
junho de 2014 e desenvolveu grandes tarefas para a organização das
pré-conferências, como descrito neste registro:

A metodologia utilizada em termos de indicadores referenciou-se


nos dados do IBGE apontando para construção de tabelas e qua-
dros que definiram tanto o número de delegados de acordo com
o percentual de domicílios autodeclarados como povo de terreiro,
quanto os 138 municípios que apresentam população com perten-
cimento nas religiões de matriz africana e afro umbandista os quais
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 31
foram atingidos pelo envio de convite de adesão ao processo de par-
ticipação.

As etapas regionais e/ou municipais ocorreram no período de 10 de


fevereiro a 10 de março com a realização de vinte e sete (27) confe-
rências com a adesão de quarenta e nove (49) municípios: Alegrete,
Alvorada, Bagé, Bento Gonçalves, Butiá, Cacequí, Cachoeirinha,
Cachoeira do Sul, Carazinho, Caxias do Sul, Campo Bom, Canoas,
Capão da Canoa, Capão do Leão, Chuí, Estância Velha, Esteio, Far-
roupilha, Formigueiro, Guaíba, Gravataí, Itaara, Imbé, Ivoti, Julio
de Castilhos, Montenegro, Nova Petrópolis, Novo Hamburgo, Osó-
rio, Passo Fundo, Pelotas, Porto Alegre, Rio Pardo, Rio Grande,
Sapiranga, Santa Cruz do Sul, Santa Maria, Santana do Livramento,
Santa Vitória do Palmar, Sapucaia do Sul, São Gabriel, São Leopol-
do, São Lourenço, São Jose do Norte, São Sepé, Tramandaí, Uru-
guaiana, Viamão. (RIO GRANDE DO SUL, 2015, p. 27).

O Comitê elaborou diversos documentos, tais como tabelas e


indicadores, para que na Conferência acontecesse um grande pro-
cesso democrático e participativo. Também textos norteadores so-
bre a proposta de conteúdo político, intelectual, epistemológico e
civilizatórios que tinham o objetivo de convencer os políticos, como
declarou o professor Jayro Pereira. Foram arregimentados, neste
momento, diversos ativistas, intelectuais e de terreiro, para assesso-
rar na construção de textos de forma qualitativa. A estratégia era,
no contato com os textos elaborados sobre a matriz africana e seus
pressupostos civilizatórios, e com o povo de terreiro mobilizado, de-
senvolver a nova proposta política desde os terreiros. Apresentava-
-se uma nova postura frente ao Estado.
Aconteceram etapas regionais e/ou municipais de pré-conferên-
cias, somando 27 (vinte e sete), com a adesão de 49 (quarenta e nove)
municípios. Cerca de 423 (quatrocentos e vinte e três) mulheres, ho-
mens e jovens, representaram esses municípios e regiões como de-
legados da I Conferência Estadual do Povo de Terreiro, convocada
pelo Decreto n. 50.932, de 27 de novembro de 2013, realizada no
período de 27 a 30 de março de 2014, em Porto Alegre, no Hotel
Embaixador, com o tema “A Matriz Africana e seus Pressupostos
Civilizatórios”. Este acontecimento significou um marco, na história
32 | Janine “Nina Fola” Cunha

do Rio Grande do Sul, de consolidação do diálogo entre um mo-


vimento social que é historicamente marginalizado – do povo de
terreiro – e o governo do Estado, servindo como instrumento de
reparação simbólica na época. Na abertura da Conferência, estavam
presentes o governador e a representação de vinte e seis secretarias
de Estado. Ao todo, contou com a participação de aproximadamente
750 (setecentos e cinquenta) pessoas, entre autoridades civilizató-
rias de matriz africana, gestores e sociedade civil, números que de-
monstram o tamanho da importância deste momento.
O processo de constituição do CPTERS foi uma ousada conquis-
ta vinda de um grupo historicamente estigmatizado, marginalizado
e folclorizado pelo senso comum racista. Para que isso fosse possí-
vel, foi necessária a vivência de um processo coletivo de elevação de
autoestima das pessoas de tradição, por meio da partilha do conhe-
cimento por dentro dos terreiros e nos encontros de mobilização
do processo político. É sabido que a baixa autoestima é resultante
de todo o processo de colonização proveniente, principalmente, da
cultura hegemônica judaico/cristã que se impregnou pelo sincretis-
mo e outras formas de repressão, como bem ressalta Grada Kilomba
(KILOMBA, 2019).
Nesses contínuos encontros, trabalhou-se com a identidade de
terreiro, o que ajudou muito na implementação dessa política, ten-
tando-se desfazer a lógica muito pronunciada num ditado popular
e colonial que diz que “religião e política não se misturam”, provo-
cando a inserção crítica e reforçando que o que o terreiro mais faz é
política, organizada em padrões localizados em África. Política en-
tendida a partir dos seus e traçada com o mesmo objetivo – o poder
–, que:

[...] se concretiza e se realiza através do exercício e da experiên-


cia em saber controlar as forças da existência genérica e abstrata,
transcendente e imanente, portanto, em tensão dialética com a exis-
tência concreta individualizada, visando propiciar a plenitude do
destino da sociedade. (LUZ, 2008, p. 103).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 33

Após a Conferência, publicou-se o Decreto n. 51.587, de 18 de


junho de 2014, que previu a criação, composição, estruturação, com-
petências e funcionamento do Conselho do Povo de Terreiro do Rio
Grande do Sul. Imediatamente, iniciou-se o processo aberto de es-
colha dos conselheiros, através de novas eleições, nos vinte e sete
municípios que sediaram as etapas anteriores às conferências nas ci-
dades, as pré-conferências, sendo a posse no dia 14 de julho de 2014.
O processo de formação do CPTERS foi muito intenso para os
participantes, pois havia a necessidade de uma intensa vigilância
epistemológica em cada palavra escrita sobre a matriz africana. Vá-
rios embates ocorreram para reforçar a necessidade de elaboração
de documentos que subsidiassem todo e qualquer passo dado adian-
te no processo que se construía. A novidade na política gerou um
terreno fértil, num campo ainda inexplorado. Exaustivas reuniões
que radicalizavam a necessidade coletiva de construção, um debate
proposto conscientemente.
Um exemplo concreto da magnitude desse trabalho foi o texto
do decreto de instituição do conselho, que, no seu início, conceitua
povo de terreiro, no parágrafo único do art. 1º, que diz:

Para efeito deste Decreto considera-se Povo de Terreiro o conjunto


de mulheres e de homens vivenciadores de Matriz Africana e Afro-
-umbandistas, que foram submetidos, compulsoriamente, ao proces-
so de desterritorialização, bem como de desenraizamento material e
simbólico, civilizatoriamente falando, de várias partes do continente
africano, cuja visão de mundo não maniqueísta e/ou dicotomizada e
por conta do rigor teórico da oralidade, ressignificaram, na disper-
são pelas Américas, sua cosmovisão de forma amalgamada devido
aos elementos culturais invariantes, onde operaram, portanto, um
“ativo interculturalismo” que se (re) territorializou geograficamen-
te, sob os fundamentos da xenofilia em que se consubstanciou toda
uma dinâmica intercultural e transcultural, e que assim o é no Esta-
do do Rio Grande do Sul, como em todo o Brasil”. (RIO GRANDE
DO SUL, 2015, p. 73).

O CPTERS explicita que a sua intenção não é tão somente reli-


giosa ou teológica, mas primordialmente política, quando segue no
documento:
34 | Janine “Nina Fola” Cunha
Falamos de um projeto político, civilizacional, emancipador e anti-
-racista que também está fundamentado nas Políticas de Ação Afir-
mativa e de Reparação, cuja aplicabilidade demanda ações compen-
satórias que tenham por finalidade a reparação de injustiças cometi-
das contra aos Povos de Ascendência Africana ao longo dos séculos
neste solo gaúcho e nesse país. Necessidade de Políticas de Repa-
ração reafirmada na III Conferência Mundial das Nações Unidas
Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância
Correlata, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, que vem
marcar junto ao Estado brasileiro o compromisso de implementar
políticas públicas voltadas para a concretização do princípio consti-
tucional da igualdade de direitos, ou ainda, de igualdade civilizató-
ria. (RIO GRANDE DO SUL, 2015, p. 41).

Portanto, nunca se teve a prerrogativa de instituir a tradição na


ação do Estado, mas sim a busca pelo reconhecimento de cidadania
do povo, assim como ter admitidas, pelo Estado, as diferenças em
prol da democratização da sociedade multicultural que é a brasilei-
ra. Essa perspectiva civilizatória do terreiro, Muniz Sodré (1988,
p. 122) descreve como “um continuum cultural. Onde a prática do
terreiro rompe limites espaciais, para ocupar lugares imprevistos na
trama das relações sociais da vida brasileira”.
Foi nesse caminho que o CPTERS atuou e atua até hoje, buscan-
do uma compreensão mais ampla, pois deseja, de acordo com Mar-
cos Luz (2008, p. 104):

Assegurar que os lugares sociais e as hierarquias sejam preenchi-


dos por aqueles que detenham o saber e o poder de controlar es-
sas forças, propiciando seus aspectos benéficos conforme a situa-
ção contextual, proporcionando o bem-estar e a expansão social, é
preocupação de toda a sociedade na aceitação de seus líderes, que se
ajustam ao poder dos Orixá e dos ancestres.

A diferença identificada nesse processo e exposta pelo CPTERS


não tem intenção de se tornar uma única forma de operar com o Es-
tado, mas indica que há, dentro das mesmas concepções sobre poder,
formas outras de dialogar com a sociedade. Assim, outros exemplos
de gestão podem aparecer. Os pressupostos ontológicos da matriz
africana não são totalitários, são apenas fundados em outra pers-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 35

pectiva. E é esta a perspectiva do povo de terreiro, que é brasileiro,


marginal, diverso, pobre, inclusivo, inovador e promissor.
O CPTERS é constituído pelas autoridades civilizatórias de
matriz africana, isto é, babalorixás e iyalorixás do batuque e can-
domblé, caciques e cacicas de umbanda, seguindo a hierarquia fun-
damental da tradição, em que o mais velho (e, neste caso, ser mais
velho não é na cronologia de nascimento, e sim o tempo de iniciação
na tradição) tem senioridade para ser representante da coletividade.
A posse aconteceu no dia 14 de julho de 2014, no Palácio Piratini e,
desde então, são realizadas reuniões mensais com pautas pertinentes
às causas a que se destina.
Uma importante meta do CPTERS é a constituição dos Conse-
lhos Municipais, relevantes para a capilarização da ação junto aos
municípios, consolidando também uma proposta “educativa” da ação
do Conselho junto ao Estado. Não diferente de como foi com o Es-
tado, cada município deflagra sua resistência maior ou menor a essa
política. Porto Alegre é um exemplo negativo, pois estamos em 2019
e não tem, ainda, o seu conselho municipal.
Desde 2014, o CPTERS realizou atividades que desencadearam
em diversas ações altamente propositivas, como políticas públicas
para o povo de terreiro, que possibilitaram marcar a diferença na pro-
moção do combate à intolerância e ao racismo religioso, tais como:
i) formação de diversos conselhos municipais e, com isso, presença
nas mesas de discussões das políticas municipais; ii) articulação com
a Defensoria Pública Estadual, realizando o projeto OUVINDO O
POVO DE TERREIRO, que denuncia casos judiciais sobre intole-
rância nos municípios e dialoga com defensores e procuradores para
o entendimento da prática livre do culto religioso, assim como o
encaminhamento correto dos processos judiciais; iii) diálogo com
diversas secretarias, a exemplo da Secretaria de Segurança Pública
e Brigada Militar, para a formação dos agentes de segurança com
vistas à abordagem em terreiros; iv) conversa com a Empresa de As-
sistência Técnica Rural (EMATER), preconizando uma parceria de
economia solidária entre terreiros e quilombos; v) participação no
Fórum da Cidade, que discute a territorialidade negra no uso livre
36 | Janine “Nina Fola” Cunha

das águas do Guaíba em Porto Alegre; vi) formulação, com técnicas


da Secretaria de Educação Estadual, de um curso de formação para
professores da Rede Pública, entre outras ações.
Nesse sentido, conforme assevera Luz (2008, p. 102):

[...] mitos da tradição nagô[...], visam o entendimento do exercício


e lugar político do culto dos ancestres e dos orixás, forças cósmicas
que regem o universo na sociedade nagô. O ato criador de Olorum
diferenciou a idéia [sic] de caos da idéia [sic] do existir. O existir
se caracteriza pela diferença entre forças em constante movimento
formando um ciclo vital. Essas forças se caracterizam pela multipli-
cidade e necessária complementação. A expressão da existência é o
resultado da complementação harmoniosa dos múltiplos e diferen-
tes aspectos gerados do existir. Assim como a natureza é regida por
forças que se manifestam nos distintos elementos que a compõem,
a sociedade também se constitui dessas forças, pois elas regem o
cosmo incluindo as sociedades. Portanto, a sociedade é um aspecto
da ordem da existência que se caracteriza pelo sentido de comple-
mentação e harmonia das diferenças que a distingue do nada, do não
existir, do caos.

Iyá Sandrali (2017) fala sobre o entendimento deste processo:

E é isso que pautou e pauta o Conselho do Povo de Terreiro; são es-


ses os princípios civilizatórios que nos conduziram e continuam nos
conduzindo no que entendemos por um projeto mítico social, em
que cada um coloca seus dons e dádivas em conexão com sua força
singular, com a comunidade, com os elementos da natureza, com
sua posição no mundo, para dar forma a um conselho de direitos, a
partir de uma brecha, no complexo sistema que enfatiza a individua-
lidade em detrimento da coletividade. Isso nos diferencia na busca
de políticas públicas, pois, se no paradigma ocidental, o conceito de
direitos humanos está forjado na diversidade e na individualidade,
no paradigma do ethos africano, ninguém está excluído, ou seja, o
conceito de comunidade inclui toda humanidade. Portanto, nessa
concepção, afirma-se a unidade valorizando a diversidade por meio
da ênfase na comunidade enquanto Ser Força - “Nós somos um”.

Como Baba Diba comenta, a política impetrada pelo Conselho


“não surge do nada, ele é decorrente de um processo histórico lon-
go pelo menos dos últimos vinte anos”, em que se organizaram di-
versos outros grupos, espaços potentes de capacitação política e de
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 37

entendimento sobre a operacionalização da política e, no Brasil, não


há instância de controle social e de promoção de políticas públicas
de similar proposta e composição. Assim nos mostra Iyá Sandrali
(2017):

Ter um Conselho de Direitos cuja composição é formada 40% de


forças diretamente das comunidades, 30% das entidades represen-
tativas e 30% de órgãos governamentais, nos faz diferentes. Isso é
levar a sério a democracia, a radicalidade da participação popular
enquanto oportunidade para efetivar mudanças e consolidar políti-
cas públicas no sentido abrangente dos princípios de solidariedade,
alteridade, autonomia e cooperação. E é isso que nos dá sustentabi-
lidade política para afirmar que o Conselho do Povo de Terreiro é
pautado pelos princípios civilizatórios da tradição africana.

Mariana Morais (2012, p. 49) afirma que:

[...] os espaços das práticas religiosas afro-brasileiras são consi-


derados o locus de resistência cultural negra, onde a ancestralida-
de africana é reinterpretada, permitindo que o passado mítico seja
ressignificado no presente não apenas por meio das práticas rituais
como também pelas relações estabelecidas entre os integrantes do
grupo e deles para com a comunidade que assistem, comunidade
essa que não se restringe ao entorno do terreno onde a religião é
praticada. Dessa forma, o terreiro também se torna um espaço de
ação política e, para tanto, é necessário capacitar seus integrantes.

Baba Diba (2017) ressalta que a grande descoberta como estra-


tégia possível foi quando:

[...] começamos a criar nomenclaturas para distinguir os processos


de exclusão na omissão do Estado pelos processos de racismo que
passamos. Conceitos que fomos criando para “o branco” entender.
Por exemplo, o conceito de igualdade racial. É óbvio que a gente
sabe que igualdade racial nunca vai existir, porque nós somos dife-
rentes, existem diferenças, existem negros e brancos e sempre vão
existir. Queremos igualdade de direitos, um conceito criado para ser
politicamente aceitável para o branco.

Nesses intensos e diversos contatos para a busca de justiça so-


cial, tomou-se consciência concreta de que a expressão intolerância
38 | Janine “Nina Fola” Cunha

religiosa não dava conta da complexidade que se enfrentava. Sendo


assim, as expressões racismo institucional e religioso foram ganhan-
do força na dinâmica social colocada, exemplar efeito transruptivo
causado pelo movimento, no qual se procuram as possibilidades de
conversação com o Estado, para que haja o entendimento da com-
plexidade da trajetória desse povo, do racismo e de como podemos
achar caminhos de combate. Todo esse conjunto pareceu perfeita-
mente entendido pelo governo da época que, em discurso de abertu-
ra da conferência, declarou:
Quando nós fazemos uma Conferência deste tipo, nós estamos na
verdade tratando de maneira desigual as religiões originárias da
matriz cultural e étnica africana; desigual, conscientemente desi-
gual porque essas religiões sempre foram segregadas, sempre fo-
ram identificadas com a religião de oprimidos, de explorados, de
do nosso Brasil. Então nós temos que tratar de maneira desigual
e promover eventos como esse para igualar, para dar igualdade de
presença na cena pública. (RIO GRANDE DO SUL, 2015, p. 30).

A declaração do governador assume a importância de toda a


construção até então feita pelo movimento. O registro desse e de
mais outros tantos discursos remonta à história daqueles que nunca
tiveram voz por conta da intolerância religiosa e do racismo em fa-
tos como os que Baba Diba (2017) relata:

[...] perceber essa coisa: o quanto a questão racial influía nesse pro-
cesso de exclusão do nosso povo... essa ausência, essa omissão do
Estado em termos de políticas públicas pra gente, em todas as ins-
tâncias, todas as instâncias... e hoje criamos uma nomenclatura nos
processos de racismo que a gente sofre, por exemplo. Hoje eu falo
em racismo comercial, quando a gente vai lá no mercado e tem um
saco de feijão todo carunchado e cheio de bichinho com uma pla-
quinha: FEIJÃO MIÚDO PARA TRABALHO. O que é isso, senão
racismo comercial? Ou um dendê ou mel escrito que é impróprio
como alimento? Onde tá o poder público que não fiscaliza isso? En-
tão a gente hoje não fala mais de intolerância religiosa, a gente fala
de racismo religioso, percebendo justamente o quanto a questão ra-
cial, o lugar que a gente vem que incomoda esta sociedade branca e
ocidental”. (em entrevista concedida em 20/12/17)

Faz-se militância a partir das insatisfações, na percepção dos


ataques neopentecostais, no processo de invisibilidade e margina-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 39

lização das práticas. Todo este desconforto fez com que o povo de
terreiro começasse a conversar mais, pois “somente o terreiro foi
e é capaz de potencializar este processo coletivo de fazer política,
porque nossos valores de ser e estar nesse mundo são elaborados a
partir de nossa matriz civilizatória africana, que é xenofílica”, com-
pleta Baba Diba.
Analisando o povo de terreiro e suas atribuições culturais e po-
líticas, pensando sociologicamente algumas questões particulares e
que têm o mérito de serem precursoras no movimento, a criação CP-
TERS foi a ferramenta para remontar o que tem potência como uma
nova proposta filosófica e política, portanto epistemológica, pois,
como afirma Jayro Pereira (RIO GRANDE DO SUL, 2015, p. 37):

Nessa convicta idéia de recomposição afroexistencial, a conferên-


cia metodologicamente se desenrolará de maneira a funcionar como
espaço de avivamento ou de renascimento de toda uma gama de
axiologia aviltada e que enfrenta a negação de toda uma afroonto-
logia provocada pelos processos de epistemicídio (Boaventura de
Sousa Santos), glotofagia (Jean-Louis Calvet) e de desafricanização
(Paulo Freire) de que preferencialmente foram alvos os Povos colo-
nialmente invadidos e subtraídos, sobressaindo nesse processo os/
as africanos/as e seus descendentes. Recomposição civilizatória me-
diante a exacerbação ontológica e axiológica valorativamente tra-
zida à tona é o imperativo da 1ª Conferência Estadual do Povo de
Terreiro do RS que deve merecer de todas e todos redobrados cui-
dados para que esses princípios sejam observados no rigor e harmo-
nia cosmológica calcados/as no pressuposto de que “eu sou porque
nós somos“ (filosofia Ubuntu). De acordo com Hans Küng (2004, p.
38-39) “[...] embora existam muitas diferenças nas características
externas, pode admitir que todos nós temos uma origem africana
comum. Por debaixo da pele somos todos africanos. A África é, pois,
nossa origem comum.

Todo este fato social amplia o entendimento dos efeitos do ra-


cismo, desde os povos originários e tradicionais até – e inclusive
com – os movimentos contemporâneos de luta antirracista. A prá-
tica política do povo de terreiro ocasionou, na cena militante social
negra do Estado do Rio Grande do Sul, um “estranhamento” no
modo de fazer política, reverberando nacionalmente, o que causou
uma desarticulação no que foi arregimentado com diversos grupos
40 | Janine “Nina Fola” Cunha

na III Marcha Estadual. Uma ruptura na pauta ou um descompasso


nos avanços exemplificados pela constituição do CPTERS fez com
que o movimento social negro, que tem um Conselho Estadual – o
CODENE –, não se alinhasse à visão com que o povo de terreiro se
constituiu. A grande audácia nesse jogo político, na estratégia de in-
serção a partir de outras formas de atuação e conhecimento, causou
estranhamento e, consequentemente, resistências. Porque, como em
todo movimento, o negro é diverso em si e apresenta suas rivalida-
des e descompassos ideológicos.
A busca por unicidade, partindo da matriz civilizatória africana,
é uma proposta diferenciada e que pode abarcar demandas também
muito diversas. A matriz africana tem a ética através da força vital,
para demonstrar isso se destaca pela sua diversidade, pois ela com-
preende a necessidade da complementariedade. Nestes pressupos-
tos, a diversidade é universal. Portanto a política de terreiro é uma
cosmopolítica, amalgamada pelos seus pressupostos epistemológi-
cos que garantem aos seus líderes a postura afinada eticamente.

Existe uma diferença entre a forma de apresentar essas religiões


no âmbito governamental, como guardiãs da herança africana, e a
forma como elas são praticadas, abertas a todas as pessoas. O desen-
volvimento de ações que buscam valorizar a cultura negra pode ser
uma tentativa de o poder público tornar relevantes os elementos
culturais negros na construção da identidade nacional. (MORAIS,
2012, p. 55).

Os avanços sobre o tema da igualdade racial nas políticas públi-


cas ainda não se concretizaram na redução do racismo, e sim aparece
como sua transfiguração e na sua continuidade. Exemplo está na
desvantagem dos negros e negras no esquema social, no qual ainda
não ocupam os lugares de poder político e financeiro no Brasil ou,
de maneira livre e democrática, não realizam as práticas religiosas
e tradicionais da matriz africana. Essa transfiguração é carregada
pela falta de entendimento das propostas sociais que ressaltam a di-
ferença para que nela se possa buscar a igualdade. Sem a compreen-
são disso, o pensamento universalista, preponderante nos esquemas
hegemônicos, deixará sempre resquícios do racismo e de outras for-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 41

mas correlatas de discriminação. E o racismo deve ser entendido por


toda a sociedade como a complexidade que é para todos.
Professor Jayro Pereira, falando sobre o que entende dos efeitos
de organizar esta política da diferença, comenta que, para realmente
fazermos a leitura sobre o tema racismos, racismo religioso e ins-
titucional, intolerância religiosa e políticas públicas, como povo de
terreiro, temos que movimentar nossa subjetividade, pois “enquanto
temos a pele preta e nossa interioridade é branca, reproduziremos
o que o estado é”. E para que o povo de terreiro assim opere, “tem
que estar de porte intrínseco na personalidade de cada uma e de cada
um, introjetada a filosofia africana, ela tem que ser cosmológica liga-
da ao processo iniciático. O ser ou não ser”.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ação política, com uma outra perspectiva civilizatória, emba-


sada nos valores civilizatórios da matriz africana, uma ontologia,
epistemologia e ética, pode fazer com que parte da população, no
caso o povo de terreiro, promova uma virada para a conquista do
lugar de poder e de humanidade almejado para todos e todas: com
igualdade a partir da diferença – equidade. Entender essa comple-
xidade é perceber a possibilidade da eficácia na implementação de
uma política das identidades nesta sociedade multicultural, que é a
brasileira.
Não tenho a intenção de desprezar a luta narrada dos 500 anos
da presença dos negros e negras em resistência no Brasil em favor
da ação política do CPTERS. Ao contrário, o que quero ressaltar é
que a proposta do CPTERS alcançou sua meta atuando consciente-
mente a partir da política de identidade, a partir da diferença, reco-
nhecendo a proposta política hegemônica e se colocando como um
novo paradigma epistemológico frente a ela.
Durante as pesquisas e, principalmente, após realizar as entre-
vistas, percebi que o processo do que é o CPTERS e da ação política
que liderou frente ao Estado está ainda em construção, assim como
a compreensão de todos os entes que operam: i) as autoridades civi-
42 | Janine “Nina Fola” Cunha

lizatórias de matriz africana – conselheiros e conselheiras que ajuda-


ram a formar o Conselho e que regionalmente o representam – ainda
precisam diuturnamente ser (re)inseridos na temática e na proposta
formulada; ii) o povo de terreiro em geral – principalmente aque-
les e aquelas que não acessam com mais facilidade às construções
e práticas sobre o que é o Conselho; iii) os operadores do Estado –
quando são surpreendidos pela capacidade que a vivência do terreiro
pode dar no que tange à discussão política.
Sobre os valores civilizatórios, a dificuldade de pesquisar e des-
crever sobre eles demonstra como o tema é novo e se mostra como
um grande desafio pessoal e desbravador, pois o seu reconhecimento
e sua implicabilidade sociológica, que revela suas possibilidades de
manejo, passam pela descolonização do saber tanto de quem opera,
quanto de quem o descreve.
A permanência do CPTERS, assim como a luta pela manuten-
ção da Lei n. 10639, da SEPPIR e da COPPIR – Coordenadoria de
Igualdade Racial do Estado (ainda que se deseje uma secretaria) –
são propostas importantes para toda a sociedade na promoção de
direitos humanos, tendo em vista a compreensão de que somente
se conquista justiça e igualdade a partir do entendimento de uma
sociedade diversa e multicultural, sem hierarquias ou privilégios.
Por fim, acredito ter sido possível alcançar os objetivos de análi-
se da pesquisa sobre as formas de atuação, entender os mecanismos
utilizados e verificar a eficiência do CPTERS, assim como elencar
como se dá a política tradicional de matriz africana. Mas ainda há
muito o que observar e experimentar: o CPTERS está no começo
de sua caminhada; as condições de inscrição na esfera pública, haja
vista que hoje dialoga com outro governo, ainda podem ser conside-
radas iniciais.
Por conta da história de formação do Conselho, posso concluir
que seria precoce responder às perguntas do problema de pesqui-
sa sobre a construção dos canais de tolerância e da eficiência das
ações, pois o CPTERS está desafiando um processo histórico longo
de racismo, violência e colonialidade. Somente o esforço coletivo é
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 43

capaz de promover mudanças e, coletividade, representar um valor


civilizatório.
Que a ancestralidade sempre continue orientando o povo de ter-
reiro.
Axé!

REFERÊNCIAS

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saúde em uma comunidade tradicional de terreiro de matriz africana.
(Tese Doutorado em Psicologia Social) - Faculdade de Psicologia,
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BUENO, Winnie. A necessidade da construção de um novo paradigma
sobre a laicidade do Estado brasileiro para a eliminação da intolerân-
cia religiosa experienciada pelas tradições religiosas de matriz africa-
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-constru%C3%A7%C3%A3o-de-um-novo-paradigma-sobre-a-laici-
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2017.
HALL, Stuart. Da diáspora Identidades e Mediações Culturais. Belo
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KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação. São Paulo: Cobogó, 2019
LUZ, Marco Aurélio. Cultura Negra em tempos pós-modernos. 3 ed.
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MORAIS, Mariana Ramos de. Políticas Públicas e a fé afro-brasileira:u-
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44 | Janine “Nina Fola” Cunha

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ORO, Ari Pedro. Religiões Afro-Brasileiras no Rio Grande do Sul: passa-
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de Terreiro, Porto Alegre, 2015.
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TRINDADE, Azoilda. Valores civilizatórios afro-brasileiros na edu-
cação. Programa 2. A cor da Cultura.
2
ADVOCACY E LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA
EM DEFESA DOS POVOS DE TERREIRO
E CONTRA O RACISMO RELIGIOSO EM
SERGIPE

Ilzver de Matos Oliveira4


Pedro Meneses Feitosa Neto5

Este capítulo aborda as estratégias jurídicas, legais, políticas e


sociais dos povos tradicionais de terreiro em demandas judiciais e
administrativas que atingem suas garantias constitucionais e legais.
Questiona-se como são traçadas essas estratégias, partindo-se do
exemplo do Estado de Sergipe, no Brasil.
Inicialmente, explica-se como se dá a relação entre racismo re-
ligioso, intolerância religiosa e a negação da existência de um direi-
to à identidade étnico-religiosa no Brasil como contraponto a uma
identidade global única e homogênea. Nesse passo, explica-se como
parcela das denominações cristãs age, demonizando as religiões
afro-brasileiras, seus adeptos e suas entidades.

4  Bolsista PDJ CNPq – PPGA/UFF. Doutor em Direito (PUC-Rio). Professor


do Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes. Mestre
em Direito (UFBA). Estágio Sanduíche no Centro de Estudos Sociais (CES/
Universidade de Coimbra). Líder e pesquisador do Grupo de Pesquisa Políticas
Públicas de Proteção aos Direitos Humanos – UNIT/CNPq. E-mail: ilzver.
matos@souunit.com.br
5  Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes. Bolsista
PROSUP/CAPES. Participante da equipe do PROMOB entre UNIT e UFF –
doutrinas, práticas e saberes locais. Integrante do Grupo de Pesquisa Políticas
Públicas de Proteção aos Direitos Humanos – CNPq. Membro da Comissão de
Direitos Humanos da OAB-SE. E-mail: pedro.gepm@hotmail.com.
45
46 | Ilzver Oliveira & Pedro Feitosa Neto

Também se analisa como o direito constitucional à liberdade


religiosa é um direito genérico, que peca por se omitir de tratar es-
pecificamente das religiões afro-brasileiras. Diante disso, o trabalho
parte da premissa de que o direito, como outrora, pode constituir um
instrumento de repressão às expressões religiosas afro-brasileiras,
como já foi, por exemplo, a medicina.
Mencionam-se processos que têm, como escopo, a limitação das
liberdades religiosas das comunidades tradicionais de terreiro, que
são veiculados sob a máscara da proteção a bens como meio am-
biente, saúde pública, sossego, direito dos animais e infância, dentre
outros.
Por fim, busca-se compreender como o povo de terreiro do me-
nor estado brasileiro tem se organizado para esse embate pelo reco-
nhecimento da sua identidade étnico-religiosa, para assim entender
que cada vitória, mesmo no menor estado da federação, simboliza
uma vitória no espectro macro brasileiro.

1 O RACISMO RELIGIOSO E A NEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE


UM DIREITO À IDENTIDADE ÉTNICO-RELIGIOSA NO BRASIL

O egbé, ou comunidade de terreiro, constitui um conjunto e o


centro reinterpretativo de um patrimônio representativo do negro
em diáspora no Brasil. Isso é explicitado em cerimônias litúrgicas,6
valores, crenças e mitos que envolvem culinária, saberes, cânticos,
técnicas corporais, língua litúrgica, como também outros costumes
e hábitos (SODRÉ, 2015, p. 194-196). Consoante Sodré (2010, p.
329):

Em termos mais concretos, a memória da Arkhé consiste de um re-


pertório cultural de invocações, saudações, cantigas, danças, comi-
das, lendas, parábolas e símbolos cosmológicos que se transmite ini-
cialmente no quadro litúrgico do terreiro e, no âmbito da sociedade
global, expande-se nas descrições e nas interpretações escritas ou

6  Nesse contexto, segundo Sodré (2015, p. 195), a liturgia é o fundamento do


relacionamento do indivíduo com o divino, com a espiritualidade, é a totalidade de regras
que regem os cultos.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 47
livrescas. A reinterpretação afro-brasileira dessa memória sempre
foi, ao mesmo tempo, ético-religiosa e política. A tradição negra in-
seriu-se historicamente na formação social brasileira para orientar
os rumos civilizatórios do escravo e seus descendentes.

Entretanto, é comumente atribuída às expressões religiosas dos


povos tradicionais de terreiro uma posição de inferioridade, por se-
rem identificadas com grupos historicamente oprimidos, indígenas,
negros, dentre outros, aproximando-as do campo lúdico e do folclo-
re e afastando-as da identificação enquanto religião (OLIVEIRA,
2015, p. 174).
Além desse aspecto da negação de um status de religião, aponta
Silva (2007) que “o desenvolvimento das religiões afro-brasileiras
foi marcado pela necessidade de se criarem estratégias de sobrevi-
vência e diálogo diante das condições adversas”, como é o caso do
sincretismo.
Como as expressões religiosas dos povos de terreiro não são
identificadas como semelhantes às expressões religiosas cristãs, que
dominaram e dominam o espectro político-religioso brasileiro, o es-
tigma de inferioridade e a falta de reconhecimento como religião
são frequentes causas para abusos de particulares e do Estado con-
tra os povos de terreiro e suas religiões.
Em discussão sobre o papel da raça nos ataques às religiões
afro-brasileiras, Wanderson Nascimento (2017, p. 52) destaca que
se deve discutir o termo racismo religioso, ao mesmo tempo em
que aponta a deficiência da categoria da intolerância religiosa para
abarcar as violências contra os povos de terreiro. Para isso, ele leva
em consideração que tanto o feitio de resistência dessas comunida-
des quanto o conjunto de problemas do racismo são essenciais para
a compreensão das atuais agressões às religiões afro-brasileiras e
seus adeptos.
Os atos de violência contra as religiões de matrizes africanas no
Brasil se caracterizam por dupla marca negativa: primeiramente,
a demonização e a exotização pelo motivo de serem religiões não
ligadas ao cristianismo ou à cultura europeia, e o racismo existente
por serem religiões que são constituídas por negros e por princípios
48 | Ilzver Oliveira & Pedro Feitosa Neto

indígenas e africanos. As duas dimensões estão atreladas, de forma


que, na maior parte dos acontecimentos, o produto do racismo vem
por meio da exotização e da demonização. Diante disso, é impres-
cindível evidenciar o entrelaçamento das relações entre as práticas
violentas e o racismo (NASCIMENTO, 2017, p. 53).
É possível observar que, atualmente, cada vez mais se pode
perceber a intolerância nas ações e falas de representantes de
igrejas católicas e evangélicas neopentecostais e dos seus adeptos,
o que ecoa na sociedade em geral. Esses atos ocultam um desejo
de superioridade política e cultural, que de algum modo estimula a
perpetuação de teorias excludentes que são destoantes em relação
ao cenário de desenvolvimento atual do estado constitucionalmente
laico (OLIVEIRA, 2015, p. 197).
Sendo assim, é comum que os emissores de doutrinação reli-
giosa a exerçam oralmente, em seus locais de cultos e templos, ou
por escrito, por meio de panfletos, livros religiosos e revistas que
são oferecidos aos seguidores de sua fé e a qualquer pessoa que se
interesse por ela. Além disso, também são rotineiras as pregações
religiosas em praças e vias públicas (SANTOS, 2012, p. 141).
Pode-se verificar que os ataques feitos por católicos e neopente-
costais, e os mecanismos de divulgação de sua doutrina, sustentam-
-se na ideia de que a existência do demônio é a causa da maioria dos
males do mundo e que essa entidade está atrelada às divindades das
religiões minoritárias, como as dos povos de terreiro (SILVA, 2007).
Desse modo, é atribuída aos fiéis, a partir dessa visão, a mis-
são de prosseguir com o combate aos demônios, iniciada por Jesus
Cristo, como interpretado em João: “para isto se manifestou o Filho
de Deus: para destruir as obras do diabo” (Jo, 3:8). As religiões dos
povos de terreiro são as mais atingidas e os principais alvos desses
ataques são, especialmente, as entidades denominadas de exus, vis-
tos por denominações cristãs e neopentecostais como o diabo (SIL-
VA, 2007).
Assim, um relevante nicho de violência que pode ser observado
no dia-a-dia é o dos ataques a templos e pessoas que praticam as re-
ligiões dos povos de terreiro, sendo também os mais complicados de
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 49

serem enfrentados, porque esse modo de violência, pautado numa


rejeição da diferença e que se fundamenta na verdade única, legiti-
ma e oferece um status salvacionista para quem a comete (NASCI-
MENTO, 2017 p. 52).
É por conta dessas ocorrências que se acredita que os atos de
intolerância praticados contra os povos de terreiro, incluindo os que
são expressos por meio de decisões jurídicas ou pela omissão legal
– como é o caso da liberdade religiosa prevista na Constituição de
1988, nunca pensada para outra religiosidade que não a cristã –
ocorrem por conta do racismo brasileiro e advêm do processo de
colonização e escravização negra ocorridos no Brasil (OLIVEIRA,
2015, p. 197). Veremos um pouco mais sobre esse tema no próximo
tópico.

2 O DIREITO COMO INSTRUMENTO DE REPRESSÃO AOS


POVOS DE TERREIRO

O direito contribuiu enormemente para a consolidação das teo-


rias racistas e para a repressão aos povos de terreiro (OLIVEIRA,
2015, p. 181).
Beatriz Góis Dantas (1988), maior antropóloga do Estado de
Sergipe, diz que há dois momentos históricos distintos sobre esse
processo de acusação legal contra os povos de terreiro: o primei-
ro, sob a égide do Código Criminal de 1830, que não incluía a per-
seguição aos feiticeiros, pois, segundo a autora, embora a religião
dos negros fosse vista como feitiçaria, não sentiram, os legislado-
res brasileiros, necessidade de controlá-la através da lei enquanto
vigorou a escravidão; e o segundo momento, quando os negros já
estavam livres e, sob a vigência do Código Penal de 1890, passaram
a ser incriminados não só o curandeiro, mas também o feiticeiro,
juntamente com outras categorias como espiritistas e cartomantes
(DANTAS, 1988).
Um dos principais fundamentos alegados para que ocorresse
tal repressão aos povos de terreiro no século XIX era a acusação
da prática de feitiçaria, motivando invasões e, consequentemente,
50 | Ilzver Oliveira & Pedro Feitosa Neto

apreensões de objetos sagrados que eram utilizados em suas litur-


gias (SERRA, 2011; DANTAS, 2014). Era proibido “praticar o es-
piritismo, a magia e seus sortilégios”, de acordo com o artigo 157
do Código Penal de 1890, porém a polícia perseguia de forma se-
letiva quem considerava praticante do “baixo espiritismo”, ou seja,
os povos de terreiro (SERRA, 2011, p. 16). A capoeira também era
considerada como crime pelo Código Penal de 1890; entretanto, com
o advento do Código Penal de 1940, ela começou a ser reconhecida
como esporte, mas o diploma legal preservou os delitos de charlata-
nismo (art. 283) e curandeirismo (art. 284), que continuaram a ser
os tipos penais imputados aos povos de terreiro (SILVA, 2017, p. 86).
Edmar Santos (2009) relata que, no início do século XX, na ci-
dade de Cachoeira, na Bahia, a imprensa demonstrava cólera contra
as diversas práticas das religiões de matriz africana, como os cân-
ticos, as danças dos orixás e o som dos atabaques. Elas eram vistas
como indecentes e obscenas, e a sonoridade dos instrumentos de
percussão era tida como “infernal”, maculadora do sossego das famí-
lias trabalhadoras do local (SANTOS, 2009, p. 30).
O jornal “A Ordem” se colocava contra as cerimônias e cultos
religiosos que não fossem cristãos, baseando-se em princípios mo-
rais e legais de proteção da família, ordem pública, sociedade e raça.
Dos povos de terreiro, era exigida civilização, pois, segundo eles, os
povos de terreiro perturbavam a tranquilidade pública “com seus
sons e cenas bárbaras, importunando e desagradando os olhos e ou-
vidos da boa sociedade” (SANTOS, 2009, p. 57-58).
Depreende-se que a repressão aos povos de terreiro interliga-
-se de forma direta com o período da escravidão e com as teorias
racistas que existiam relacionadas à figura do negro africano e afro-
-brasileiro, visto como inferior, atrasado, selvagem, não civilizado e
perigoso (OLIVEIRA, 2015, p. 181).
Silva (2017, p. 116-117) traz dados do Censo Demográfico de
2010 do IBGE para sustentar a afirmação de que as religiões afro-
-brasileiras ainda são as mais pretas do país e que isso justifica a
repressão aos povos de terreiro. Segundo os dados mencionados, o
candomblé é a religião mais preta do Brasil (29,2%), umbanda está
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 51

disposta no segundo lugar (17,4%) e, apenas de longe, são seguidas


pelos evangélicos neopentecostais pretos, que ocupam a terceira po-
sição (8,5%), e pelos católicos pretos (7,5%).
Hédio Silva Júnior (2015, p. 315) aponta que “são frequentes
as denúncias de invasão a templos, praticadas por agentes de segu-
rança pública, sem mandado judicial e a qualquer hora do dia ou da
noite”. Os povos de terreiro ainda são vulneráveis aos atores esta-
tais, mesmo tendo seu direito de liberdade de culto garantido pela
Constituição Federal.

3 EXPERIÊNCIAS LOCAIS DE UMA LUTA NACIONAL: AS


ESTRATÉGIAS DOS POVOS DE TERREIRO DE SERGIPE PARA
O COMBATE À INTOLERÂNCIA E RACISMO RELIGIOSOS

Miranda, Corrêa e Almeida (2019, p. 125), ao analisarem os tra-


balhos da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa (CCIR),
mencionam que, para o povo de terreiro, “o esforço de levar à es-
fera pública fatos que são tratados como ‘cotidianos’ e ‘ordinários’
representa uma forma de redimensionar as identidades religiosas e
citadinas”.
Ao entrar numa delegacia “pela porta da frente”, um babalorixá
ou uma yalorixá pratica um ato político de afirmação de identidade e
de protagonismo em relação à busca de seu povo pela efetividade das
garantias do ordenamento jurídico brasileiro. Os membros da CCIR
chegaram à conclusão de que essa atitude deve ser cada vez mais
encorajada, porque se concluiu que apenas a positivação do direito à
liberdade religiosa na legislação não basta para assegurar tais direi-
tos (MIRANDA; CORRÊA; ALMEIDA, 2019, p. 125).
Vagner Gonçalves da Silva (2007), no mesmo sentido, mas vol-
tando mais suas pesquisas para o Estado de São Paulo, afirma que
os povos de terreiro passaram a reagir em busca do reconhecimen-
to político e jurídico de maneira mais contundente do que há duas
décadas, mas que ainda não há como comparar com o movimento
organizado das igrejas evangélicas neopentecostais. Nesse contexto,
52 | Ilzver Oliveira & Pedro Feitosa Neto

os ministros de confissão religiosa dos terreiros têm se insurgido


judicialmente contra pastores e suas igrejas (SILVA, 2007).
As ações jurídicas começam a dar resultados positivos para os
povos de terreiro, como nos acasos em que igrejas evangélicas que
produziam programas de rádio e televisão ofensivos às religiões de
matrizes afro-brasileiras passaram a ser notificados e até condena-
dos judicialmente (SILVA, 2007).
No estado de Sergipe, algumas vitórias judiciais e políticas nos
últimos anos foram marcantes para o povo de terreiro. Evidenciam-
-se os casos citados por Oliveira (2017) e seus deslindes positivos
para os povos de terreiro do Estado.
O primeiro caso a ser rememorado é o do ministro de confissão
religiosa Laércio Santos Silva, babalorixá Laércio de Obaluaê.
Houve uma denúncia de perturbação de sossego que seria advin-
da dos ruídos no terreiro do citado babalorixá. Nessa circunstância,
“uma equipe da polícia militar do Estado de Sergipe interrompeu o
culto religioso e apreendeu um atabaque sagrado, conforme termo
de apreensão e depósito dos autos” (OLIVEIRA, 2017, p. 2).
A interrupção de cultos é proibida pelo Código Penal Brasileiro
(1940), que dispõe, em seu artigo 208, que é crime “Escarnecer de al-
guém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impe-
dir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar
publicamente ato ou objeto de culto religioso”. À época do fato, o
Coletivo De Terreiros Asè Egbè Sergipano se manifestou neste tom:

Sobre a repercussão das apreensões, em uma Carta de Repúdio e Pe-


dido de Retratação do Coletivo de Terreiros, inicialmente é ressal-
tada a natureza dos atabaques sagrados explicitando que se outras
religiões possuem seus objetos ou símbolos sagrados, os atabaques
o são para os povos tradicionais de Religiões de Matrizes Africanas.
Em seguida, o manifesto explica que “os atabaques são sacralizados
e consagrados às divindades e o som que deles sai é mais que música
pura e simplesmente, é o fio condutor da ligação e comunicação com
a manifestação do divino cultuada por nós”. Destaca o documento
de denúncia que o uso ritual dos atabaques remonta há séculos e que
é através deles “que se expressa e se consagra o espiritual para nós,
eles são a própria voz da divindade, o logos da existência de nossas
práticas ritualísticas e nossas tradições”. E na sua parte final o texto
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 53
aponta os equívocos da operação policial que apreendeu atabaques
durante culto religioso, ao dizer que “tocá-los (no sentido de pegar
com as mãos), ou mesmo retirá-los de seu ambiente sagrado, [...] é
uma violação ao sagrado [...] [e] ao que estabelece o Art. 208 do
nosso Código Penal”. (COLETIVO DE TERREIROS - ASÈ EGBÈ
SERGIPANO, 2016).

O Ministério Público do Estado de Sergipe ainda ajuizou ação


criminal contra o babalorixá, imputando a ele a prática da contra-
venção penal de perturbação de sossego e de delito ambiental. Con-
tudo, em segundo grau de jurisdição, o Tribunal de Justiça decidiu
pela absolvição do ministro de confissão religiosa:

APELAÇÃO CRIMINAL. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.


DELITO CONTRA O MEIO AMBIENTE. ESTABELECIMEN-
TO DE ATIVIDADES POTENCIALMENTE POLUIDORAS.
ARTIGO 60 DA LEI 9.605/98. O ART. 60 DA LEI DOS CRIMES
AMBIENTAL PUNE A CONDUTA DE CONSTRUIR, REFOR-
MAR, AMPLIAR, INSTALAR OU FAZER FUNCIONAR, EM
QUALQUER PARTE DO TERRITÓRIO NACIONAL, ESTABE-
LECIMENTOS, OBRAS OU SERVIÇOS POTENCIALMENTE
POLUIDORES, SEM LICENÇA OU AUTORIZAÇÃO DOS ÓR-
GÃOS AMBIENTAIS COMPETENTES, OU CONTRARIAN-
DO AS NORMAS LEGAIS E REGULAMENTARES PERTI-
NENTES. NORMA PENAL EM BRANCO, A QUAL PRECISA
DE COMPLEMENTO NORMATIVO PARA SUA REGULA-
MENTAÇÃO, COMPLEMENTO ESTE QUE É A RESOLUÇÃO
237 DO CONAMA. ACUSAÇÃO QUE NÃO INDICA A LEGIS-
LAÇÃO COMPLEMENTAR E ALEGADAMENTE DESCUM-
PRIDA NA DENÚNCIA. ÔNUS QUE INCUMBIA À ACUSA-
ÇÃO. VIOLAÇÃO DA AMPLA DEFESA E DO PRINCÍPIO DO
CONTRADITÓRIO. ACUSAÇÃO QUE SOMENTE EM RE-
CURSO FAZ MENÇÃO À RESOLUÇÃO N. 237/97 DO CONA-
MA. RESOLUÇÃO QUE EM SEU ANEXO I TRAZ UMA LIS-
TA DAS ATIVIDADES CONSIDERADAS POTENCIALMEN-
TE POLUIDORAS. CONTUDO, A CONDUTA PERPETRADA
PELO ACUSADO NÃO SE AMOLDA A NENHUMA DAS ATI-
VIDADES ALI DESCRITAS. ATIPICIDADE DA CONDUTA. A
COMPLEMENTAÇÃO DO ROL DA REFERIDA RESOLUÇÃO,
FRENTE AO QUE DISPÕE O § 2º DO ART. 2º DA RESOLU-
ÇÃO 237/97, SÓ PODE SER FEITA PELO ÓRGÃO AMBIEN-
TAL COMPETENTE, ENTENDIDO ESTE COMO O CONA-
MA, A TEOR DO DISPOSTO NA LEGISLAÇÃO FEDERAL
54 | Ilzver Oliveira & Pedro Feitosa Neto
MENCIONADA. FORA DESSAS ATIVIDADES, A FALTA DE
LICENCIAMENTO AMBIENTAL EM RELAÇÃO A OBRAS,
ATIVIDADES, EMPREENDIMENTOS OU SERVIÇOS TIDOS
COMO POLUIDORES NÃO PODE SER VISTA COMO CRIME
AMBIENTAL PENAL. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO
CONHECIDO E DESPROVIDO (BRASIL. Tribunal de Justiça do
Estado de Sergipe. Processo nº 201801002760 - Apelação Criminal.
Relatora: Isabela Sampaio Alves. Apelante: Ministério Público do
Estado de Sergipe. Apelado: Laercio dos Santos Silva).

Provou-se, no processo criminal, que era impossível condenar


o líder religioso apenas com base numa resolução do Conama que
não integrava o exercício de culto religioso como atividade poten-
cialmente poluidora. Logo, o babalorixá não havia cometido crime
algum ao expressar sua fé e praticar, com os seus “filhos de santo”,
as cerimônias religiosas.
É relatada, também por Oliveira (2017, p. 5-6), a situação do
evento chamado de “I Encontro de Evangélicos da Segurança
Pública”, patrocinado pelo governo de Sergipe:

Em um novo episódio, em 26 de novembro de 2016, um grupo de ci-


dadãos ligados a movimentos sociais afrorreligiosos, impetrou uma
Ação Popular quando tomou conhecimento de que no site oficial da
Secretaria de Segurança Pública do Estado de Sergipe estava estam-
pada a seguinte notícia: “SSP convida para o I Encontro de Evan-
gélicos da Segurança Pública”. A matéria dizia que a Secretaria da
Segurança Pública (SSP) realizaria na sexta-feira, 4 de novembro,
às 18:30, o “1º Encontro de Evangélicos da Segurança Pública de
Sergipe”. O evento aconteceria no Complexo Cultural Gonzagão,
gerido pela Secretaria Estadual de Cultura do Estado de Sergipe.
Segundo o informativo, o encontro contaria com a apresentação das
bandas da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros e a ministração
da palavra. E descreve a fala de um dos organizadores, coronel An-
drade, superintendente executivo da SSP: “É um encontro de evan-
gélicos, mas toda a sociedade está convidada a participar. A entrada
será franca e o intuito é orar pelo nosso estado e pelo nosso país”.
A matéria conclui que apesar de ser a primeira edição do evento, os
organizadores estão confiantes no sucesso da empreitada por conta
do grande número de evangélicos que fazem parte da segurança
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 55
pública no estado, e que caso o sucesso seja confirmado, o encontro
será realizado mais vezes. (OLIVEIRA, 2017, p. 5-6).

A ação popular foi julgada improcedente. Contudo, a Procura-


doria do Estado de Sergipe se manifestou indicando ao Estado que
não mais realize eventos dessa natureza, de maneira a privilegiar
uma religião em detrimento das outras. Avalia-se como mais uma
vitória para os povos de terreiro de Sergipe.
Importante destacar que a assessoria jurídica a esses projetos foi
promovida por meio de projetos aprovados por fundos de filantropia
de justiça social, tais como Fundo Brasil de Direitos Humanos e
Fundo Baobá, que apoiaram ações da Sociedade de Estudos étnicos,
políticos, sociais e culturais Omolàyié, Centro de Umbanda Caboclo
Tupy e Comunidade Ojú Ifá Ni Sahara. Além da assessoria jurídica,
estes projetos promoveram formação jurídica popular para os povos
de terreiro, capacitando-os para a mobilização política em torno de
suas pautas - advocacy.
Outro caso ocorrido em 2017 foi o da negativa de emissão do
documento de habilitação para direção dada pelo Departamento Es-
tadual de Trânsito de Sergipe- DETRAN a Rita Maia, religiosa de
matriz africana. Ela foi impedida de figurar com seu torço na cabeça
na fotografia da CNH (Carteira Nacional de Habilitação), mesmo
alegando que assim o desejava por convicção religiosa (OLIVEIRA,
2017). Conforme Ilzver Oliveira (2017, p. 6):

Após justificar que a negativa era descabida, a funcionária do ór-


gão estadual permitiu a confecção do documento, mas, disse que
sua validade seria avaliada posteriormente pela instituição. O caso
foi denunciado à Sociedade Omolàiyé, que apresentou consulta à
Procuradoria-geral do Estado de Sergipe, para que se posicionasse
sobre as possíveis violações ao direito ao documento de identidade
que porventura estejam ocorrendo, advindas de atos de servidores,
normas internas ou posturas não regulamentadas, e elaborasse as
recomendações que entender pertinentes ao caso para garantir a
permissão para cobertura de cabeça nas fotografias por convicção
religiosa.
56 | Ilzver Oliveira & Pedro Feitosa Neto

No mesmo ano, foi lançada a campanha “Meu torço, minha iden-


tidade” que, através de imagens e vídeos, buscava dar atenção à im-
portância da utilização desse adereço como parte da própria identi-
dade afrorreligiosa, chamando atenção para o racismo religioso.
A campanha foi desenvolvida pelas integrantes do projeto Olo-
pe Griots, uma realização da Sociedade Omolàiyé com apoio, parce-
ria e financiamento do Fundo Brasil de Direitos Humanos e parceria
com o Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes
e com o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Univer-
sidade Federal de Sergipe.
Foi realizada uma intervenção artística e política no mercado
municipal em Aracaju, na qual foram expostos banners com imagens
de carteiras de identidade das mulheres de terreiro com seus tor-
ços, como forma de irresignação diante do que ocorreu com Rita e
de atuação política que visava a permissão integral de utilização do
adereço nos documentos de identificação.
Em 2019, de acordo com reportagem do portal G1 Sergipe, o
Instituto de Identificação de Sergipe firmou acordo com o Tribunal
de Justiça de Sergipe (TJSE) no intuito de mudar alguns procedi-
mentos de emissão de documentos de identificação. Dentre essas
mudanças, o instituto estabeleceu que, nas fotos para a identificação,
sejam aceitos adornos religiosos, culturais ou de saúde que não pre-
judiquem a visualização do rosto.
Vale também mencionar que, em 2018, com a iminência de o
Supremo Tribunal Federal (STF) julgar se a sacralização de animais
em algumas religiões afro-brasileiras era constitucional ou não, li-
deranças dos povos de terreiros de Sergipe se reuniram e fundaram
o Movimento Independente de Terreiros de Sergipe (MITS).
À época, o movimento promoveu um grande ato no Mercado
Municipal de Aracaju, no qual o povo de terreiro se reuniu para
se insurgir contra a pauta dos defensores dos direitos dos animais
e membros de outras religiões, via Ministério Público, buscando
interpretar a sacralização como sacrifícios e acabar com essa prática
ritualística afrorreligiosa.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 57

Nessa conjuntura, a então deputada estadual Ana Lúcia, do Par-


tido dos Trabalhadores, convocou uma audiência pública sobre o
tema a ser julgado no STF. Nela, participaram algumas lideranças
afrorreligiosas sergipanas e também Ilzver Matos, que assessorava
o movimento em questões técnico-jurídicas.
Membros do MITS foram a Brasília em 2018 acompanhar o
julgamento da Corte Constitucional e, inclusive, estiveram em au-
diência com o ministro Marco Aurélio, relator do processo. O jul-
gamento foi suspenso pelo pedido de vistas do ministro Alexandre
de Moraes. Em 2019, o STF concluiu o julgamento do Recurso Ex-
traordinário nº 494601 e, por unanimidade, declarou constitucional
a sacralização animal nos cultos afrorreligiosos.
Os povos de terreiro resistem. Nessa resistência, buscam uma
reinterpretação do direito. Uma reinterpretação que lhes favoreça,
ou melhor, que os reconheça efetivamente. Um direito à liberdade
afrorreligiosa.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As comunidades de terreiro são verdadeiros polos de conserva-


ção dos costumes, crenças e modos de vida africanos no Brasil e, por
isso, os ataques a povos de terreiro são de duas razões, que podem
estar interligadas: a racista e a vinculada à exotização dos seus cul-
tos.
O conceito de intolerância religiosa contra os povos de terreiro
não é suficiente para que se compreendam os ataques dos quais são
vítimas. Os estigmas atribuídos às religiões oriundas de África ou
que possuem sua forte influência são alvos do racismo contra os ne-
gros no Brasil. Por isso, é importante debater o conceito de racismo
religioso.
O Direito motivou e motiva perseguições aos povos de terreiro.
Antes, a perseguição era legalizada e os adeptos eram reprimidos
pelas supostas práticas de curandeirismo e feitiçaria. Hoje, surgem
processos contra pais e mães de santo que limitam direitos dos po-
58 | Ilzver Oliveira & Pedro Feitosa Neto

vos de terreiro sob o pretexto de assegurar outros bens como o sos-


sego, a saúde e o meio ambiente.
Os casos abordados ocorridos em Sergipe ilustram essa proble-
mática. O babalorixá Laércio de Obaluaê, acusado criminalmente
por perturbação do sossego e crime ambiental, foi absolvido; a ação
popular contra um evento de policiais evangélicos subvencionado
pelo Estado de Sergipe gerou uma recomendação da Procuradoria
do Estado para que não se realizassem mais eventos naqueles mol-
des; e, em relação à utilização de torços nos documentos de identifi-
cação, o TJSE fez acordo com o Instituto de Identificação de Sergipe
e já se admitem fotos de afrorreligiosas com o torço. Além disso,
como exemplo de advocacy, o Movimento de Terreiros de Sergipe,
na ocasião do julgamento pelo STF do recurso extraordinário acer-
ca da constitucionalidade (ou não) da sacralização de animais dos
cultos das religiões de matrizes afro-brasileiras.
Conclui-se que a organização dos povos de terreiro para a cria-
ção de novas estratégias específicas contra as ofensas que os atin-
gem é crucial para o reconhecimento da existência de um direito à
identidade étnico-religiosa no Brasil, bem como para o combate ao
racismo religioso. O direito está sendo reinterpretado pelos povos
de terreiro e eles dão ao país a oportunidade de se tornar mais es-
clarecido.

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SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: identidade, povo, mídia e
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SODRÉ, Muniz. Sobre a Identidade Brasileira. In: Revista
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Sevilla, Espanha, 2010. Disponível em: http://institucional.
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2018.
3
BARREIRAS COLONIAIS À
EFETIVIDADE DA GESTÃO DO ESTADO
BRASILEIRO NA MODERNIDADE: O
CASO DO GRUPO DE TRABALHO
INTERDEPARTAMENTAL DE TERREIROS

Guilherme Dantas Nogueira7


Francisco Phelipe Cunha Paz8

Partimos, neste artigo, de uma experiência vivida dentro de uma


organização do governo brasileiro, durante a administração da presi-
denta Dilma Rousseff. Abstraímos aqui tal experiência e a tratamos,
junto a outras, como a observação de campo de que a gestão pública
brasileira é obstaculizada por barreiras organizacionais/institucio-
nais internas e externas que dificultam fluxos de trabalho, alcance
de resultados e, no limite, a implantação/consolidação de políticas
públicas. Estas barreiras, em nossa leitura, balizada pelo campo teó-
rico sócio-político latino-americano dos estudos decoloniais, estão
diretamente relacionadas à fundação colonial – racista, classista e
patriarcal – do Estado brasileiro. Este, com efeito, foi fundado como
unidade política para ordenar a violenta matriz estrutural colonial

7  Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Integrante do Calundu


(Grupo de Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras), da Universidade de Brasília.
Pesquisador colaborador do Departamento de Sociologia da Universidade de
Brasília.
8  Historiador. Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo IPHAN
e mestre em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional pela
Universidade de Brasília. Integrante do Calundu (Grupo de Estudos sobre
Religiões Afro-Brasileiras) e do Núcleo de Estudos de Filosofia Africana Exu do
Absurdo, da Universidade de Brasília.
63
64 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

implantada por elites governantes portuguesas, herdada por elites


brasileiras e continuada após a independência do país – o que Quija-
no (2005) pioneiramente chamou de colonialidade.
A colonialidade é, portanto, um construto de longo prazo e difí-
cil solução – uma matriz estrutural que, como tal, orienta a vida só-
cio-político-econômica latino-americana (SEGATO, 2012; GESCO,
2012), pelo que, no Brasil, apresenta um desafio concreto a qualquer
governo democrático que se encarregue de administrar o Estado
brasileiro, sobretudo àqueles de postura mais progressista e com-
prometidos com a ampliação de políticas sociais, como o que contex-
tualiza a experiência debatida. Tal desafio aumenta em instituições
fundadas originalmente para aprofundar a mesma colonialidade.
Trata-se de operacionalizar, para alcançar resultados progressistas
(antirracistas, anticlassistas e antissexistas), uma burocracia pública
fundada sobre pensamento contrário. Ao estudo das Ciências Sociais
– grande área a partir da qual, de forma interdisciplinar, construí-
mos este artigo –, esse desafio interessa como material de análise
que, como neste texto, pode ser feita em forma de casos.
Assim, apresentamos como caso de estudo os debates travados
dentro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), especificamente em seu Grupo de Trabalho Interdeparta-
mental de Terreiros (GTIT). Este existiu durante o governo Dilma
com o propósito de pensar, propor, monitorar e avaliar ações a serem
realizadas com vistas à preservação de templos afrorreligiosos tom-
bados – e potencialmente tombáveis – como patrimônio nacional.
Isso, como forma de valorizar socialmente a temática afrorreligiosa,
ampliando sua visibilidade e reduzindo os estigmas e o racismo re-
ligioso que sofre.9
O GTIT foi criado pelo IPHAN, na prática, em 2014, e exis-
tiu daquele ano até 2016 – mas foi instituído legalmente em 19 de
novembro de 2015, por meio da Portaria n. 489. Representava uma

9  Como referência e leitura complementar a este artigo, ver também Nogueira


(2019).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 65

das respostas do então Ministério da Cultura (MINC)10 a uma de-


manda de 2013 do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-
2015), da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR), então ligada à Presidência da República. Objetivava mi-
tigar o racismo no Brasil – inclusive o institucional – a partir de
ações concretas, sendo que caberia a cada ministério do executivo
federal propor e executar três ações. O MINC, portanto, atribuiu ao
IPHAN a demanda de ampliar a visibilidade e valorização de terrei-
ros afrorreligiosos e modos de vida comunitário-tradicionais afro-
descendentes a eles associados.
Tendo em vista nossas observações de campo, objetivamos mos-
trar, neste texto, que o trabalho do GTIT era moroso e inefetivo,
devido, justamente, às barreiras estruturais e organizacionais da
própria colonialidade que, no limite, buscava-se mitigar. Trata-se de
um esforço em que apresentamos uma experiência concreta da ges-
tão pública brasileira, ao mesmo tempo em que tecemos reflexões a
partir dela.
Tivemos acesso aos dados aqui apresentados a partir de nossa
prática laboral, posto termos atuado profissionalmente como con-
sultores para o governo federal, em variadas pautas, durante os
governos Lula e Dilma, ao mesmo tempo em que dialogávamos e
tomávamos parte em organizações do Movimento Negro e Afrorre-
ligioso, muito atuantes no controle social daquelas administrações.
Isso envolveu, ademais, estudos/consultoria sobre/para o IPHAN e
envolvimento com o GTIT. É esta experiência vivida que aqui tra-
tamos como observação de campo,11 desde então referida como ação

10  O IPHAN recebeu diferentes nomes ao longo de sua história e fez parte da
estrutura organizacional de diferentes instituições do Estado brasileiro. Durante
os governos Lula e Dilma, fazia parte do MINC.
11  A problematização de experiências vividas por um pesquisador/observador
não logra resultados rígidos ou exatos, tais quais aqueles buscados nas Ciências
Naturais. Nas Ciências Sociais, todavia, trata-se de procedimento metodológico
aceito e frequentemente utilizado, sendo seus resultados validados no campo
de conhecimento a partir de sua confrontação com o esforço reflexivo e com a
abstração teórica, o que foi realizado neste artigo.
66 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

na segunda pessoa do plural, até por envolver o esforço e reflexões


analíticas de dois pesquisadores.
Pela ideia de efetividade em um contexto de serviços/ações es-
tatais, não tratamos de nada recente ou desconhecido nas Ciências
Sociais aplicadas. Ainda assim, cabe lembrar que, conceitualmente,
referimo-nos ao alcance de resultados concretos, que atendem não
somente a objetivos gerenciais internos, mas também ao desempe-
nho externo das ações, junto à sociedade, ou seja, a um impacto po-
sitivo sobre a vida das pessoas – o que deve ser avaliado para que se
possa pensar em êxito da gestão pública (POLLANEN, 2005).
Situamos no item que segue as noções sociológicas de Estado e
colonialidade12 que embasam nossa leitura. São essas noções que nos
permitem mostrar as barreiras organizacionais externas a que nos
referimos neste texto. No item posterior, apresentamos o histórico
do GTIT e evidenciamos as barreiras internas. Logo após, passamos
a um debate do exposto, seguido das reflexões finais deste trabalho.
Salientamos, antes de seguir, que as observações e reflexões aqui
feitas se referem a uma experiência específica e a seus desafios à ges-
tão do Estado, o que não implica dizer que não haja outras questões
que também afrontam o funcionamento da administração pública e
devem ser endereçadas em suas instituições. Pelo contrário, essas
existem e esforços diversos, mormente interpretados político-parti-
dariamente, são feitos para solucioná-las (FONTOURA, 2018).

1 ESTADO E COLONIALIDADE

A colonialidade é uma matriz estrutural (SEGATO, 2012; GES-


CO, 2012) e, como tal, tem grande impacto – fundante – sobre o
Estado brasileiro e seu governo. É precisamente da colonialidade
que surgem as barreiras que condicionaram o trabalho do IPHAN,
seu GTIT e os esforços de valorização dos terreiros afrorreligiosos

12  Embora busquemos situar conceitos, não propomos, neste texto, um debate
teórico profundo da categoria “colonialidade”, dos estudos decoloniais ou da
teoria social latino-americana como um todo. Para um aprofundamento sobre a
categoria e seu contexto, ver Quijano (2005) e Gesco (2012).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 67

no país durante o governo Dilma e, antes desse, do governo Lula.


Para explicar melhor este ponto, chamamos a atenção para o fato de
que o Estado, lido sociologicamente, é uma abstração. Uma ideia,
um construto mental, um símbolo, uma ficção (BASTIAT, 1848;
ABRAMS, 1977). Como tal, só existe concretamente na medida em
que é encarnado por alguém – o mundo simbólico orienta a vida
humana, mas são os seres humanos que efetivamente vivem e o en-
carnam. Assim, em termos coloquiais, não se pode esperar que o
Estado “bata à porta” de ninguém, como se fora uma entidade viva.
Por outro lado, pessoas encarnando o Estado podem vir fazê-lo, e.g.,
agentes de saúde, policiais e outros.
Abrams (1977) já nos alertava na década de 1970, contudo, a
não tomarmos a projeção da ficção estatal pelos processos sociais
que ela esconde. Para o autor, há em qualquer sociedade uma coesão
sólida de práticas burocráticas e uma estrutura social institucionali-
zada, que é algo extensa e operacionalizada por um governo, e forma
o que ele chama de sistema estatal. Ou seja, há ações que aconte-
cem de forma concreta e têm efeitos sobre a vida de pessoas em um
dado território, que têm sentido e significado simbólico/cultural de
longo prazo por serem estruturalmente orientadas e que são plane-
jadas, executadas, controladas, reproduzidas etc. por agentes públi-
cos. Estas são, assim, estatais. Isso, mesmo que tais ações concretas
envolvam um exercício de dominação e/ou também sejam rasas ou
falaciosas em suas propostas ou objetivos.
Ao nos referirmos à matriz estrutural da colonialidade, que con-
diciona o Estado/sistema estatal, referimo-nos à ferida aberta pela
colonização do Brasil – que, por sua vez, caracterizou-se por ampla
hierarquização social e pela racialização e marginalização de pes-
soas não brancas e de suas heranças culturais –, no presente ainda
sentida, visto que segue sustentando divisões de poder e comporta-
mentos coloniais internos, nunca superados (RESTREPO; ROJAS,
2010). Isso aponta, no limite, para a ideia de que raça e racismo estão
no centro da vida social brasileira – e do Estado também. Com efeito,
a expansão colonial da Europa, que levou à concepção e construção
dos Estados nacionais nas Américas, enxergou, nas diferentes cores
68 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

de pele, o elemento central para a diferenciação e classificação de


pessoas na hierarquia de poder dos novos países aqui criados (QUI-
JANO, 2005; MIGNOLO, 2008; MALDONADO-TORRES, 2008;
GROSFOGUEL; MIGNOLO, 2008; WALSH, 2008; RESTREPO;
ROJAS, 2010).
Quijano (2005) explica que o conceito ocidental/moderno de
raça foi construído durante a colonização das Américas e traz, em
sua origem, a noção/pretensão de superioridade das pessoas de
cor de pele (raça) branca sobre as não brancas. Isso também in-
clui uma pretensa superioridade cultural e histórica. Assim, raça,
na modernidade, supõe serem superiores as pessoas brancas/euro-
peias sobre todas as outras não brancas/não europeias, bem como
as ações, ideias, crenças, religiões, instituições etc. daquelas sobre
essas. Igualmente, a crença na superioridade do cristianismo sobre
religiosidades de matrizes indígenas, africanas etc., que serão consi-
deradas racialmente inferiores.
Concordando com Quijano (2005), Segato (2007, p. 24, em tra-
dução livre) acrescenta que:

[...] é importante lembrar que raça é efeito e não causa, um produto


de séculos de modernidade e do trabalho mancomunado de acadê-
micos, intelectuais, artistas, filósofos, juristas, legisladores e agentes
da lei, que classificaram a diferença dos povos conquistados como
racialidade. Em outras palavras, a construção permanente da raça
obedece à finalidade da subjugação, a subalternização e a expro-
priação: a ordem racial é a ordem colonial. A racialização, ou o que
defino como formação de um capital racial positivo para o branco
e um capital racial negativo para o não branco, é o que permite de-
salojar esse último do espaço hegemônico, do território usurpado
onde habita o grupo que controla os recursos da nação e tem acesso
aos selos e timbres estatais.

Raça, para Quijano (2005), é o elemento que está no centro


do processo que ele classificou como colonialidade do poder, em que
a matriz colonial foi criada nas Américas. Estabeleceu, ainda, a hie-
rarquia social nessa parte do planeta e ordenou as diferentes identi-
dades sociais, classificando-as, em sequência, como branco, mestiço,
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 69

índio e negro, sendo o branco sempre superior e o negro, sempre


inferior. O trabalho foi dividido nessa lógica, ficando brancos com a
administração colonial e negros, escravizados, com as tarefas mais
pesadas. Para Quijano (2005), esse é um sistema ainda vigente, mes-
mo após a independência dos países das Américas, pois foi também
a partir dessa lógica, violenta e antidemocrática, que os Estados-na-
ção foram fundados.
Faz parte da ideia de colonialidade, e da própria e anterior co-
lonização, o fato de que a invasão das Américas implicou em uma
ruptura completa do modo de vida dos povos ameríndios, que antes
ocupavam esta região do planeta, e dos povos africanos para cá trazi-
dos para fins de trabalho escravo. Essa quebra foi de suas vidas como
pessoas e de seus processos como coletivos de seres humanos, o que
foi catastrófico também para sua descendência como povos – catás-
trofe que segue operando de igual maneira, mesmo que com novos
senhores, no colonial/moderno presente (SEGATO, 2012).
Ampliando os debates sobre a colonialidade, Walsh (2008) de-
fende ser, a colonialidade do poder, um dos quatro pilares da mo-
dernidade/colonialidade hodierna nas Américas, particularmente
na América Latina. As colonialidades do saber, do ser e da “mãe
natureza e da própria vida” (WALSH, 2008, p. 138) são os outros.
Conforme a autora, colonialidade do saber é o processo que clas-
sifica a episteme eurocentrada – em larga medida, a ciência – como
superior e a única forma de conhecimento válida, anulando, assim,
outros saberes, outras formas de conhecimento que não sejam aque-
las dos homens brancos e europeus. Colonialidade do ser, por sua
vez, é o processo que define um arquétipo de ser humano padrão/
normativo, face a quem todos os demais são rebaixados e desuma-
nizados. E o ser humano padrão é o indivíduo racional ou racionali-
zado, ou seja, civilizado. Colonialidade da mãe natureza, por fim, é a
que representa a “divisão binária natureza/sociedade, descartando o
mágico-espiritual-social, a relação milenar entre mundos biofísicos,
humanos e espirituais, inclusive o dos ancestrais, a que dá sustento
aos sistemas integrais de vida e à própria humanidade” (WALSH,
2008, p. 138). Assim, saberes e formas de compreender o mundo não
70 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

brancos/europeus são subalternizados. Seres humanos não bran-


cos/europeus, para além do mecanismo de divisão do trabalho, são
inferiorizados, considerados bárbaros, primitivos, o que vale para a
religiosidade afro-brasileira e o modo de vida afrorreligioso, expres-
sado nos terreiros em todo o Brasil.
Finalmente, são subalternizadas também, conforme Lugones
(2008), as mulheres. Essa autora apresenta um quinto pilar da colo-
nialidade, que é o patriarcado, que, em sua leitura, foi naturalizado
por Quijano. Assim, a autora complementa o debate, recuperando o
conceito de interseccionalidade, originalmente cunhado pelo femi-
nismo negro estadunidense. Entende-se por este conceito que a vida
social é composta por processos sobrepostos, paralelos e potencial-
mente influenciáveis, mutuamente. É o que ocorre com o preconcei-
to de gênero e raça sofrido por mulheres negras, assim duplamente
subalternizadas, por serem mulheres e por não serem brancas.
Os Estados na América Latina, ademais das sociedades que or-
denam, são referidos como coloniais/modernos por trazerem a mar-
ca da colonialidade em seu processo de construção. Conforme Mig-
nolo (2008), referir-se à modernidade na América Latina é referir-se
à colonialidade. Descolonizar (o neologismo “decolonial” vem desse
verbo) é superar a matriz da colonial modernidade (colonialidade).
Construir, com isso, sociedades que incluam com igualdade a todas e
todos, independentemente de pertencimentos étnicos, gêneros, clas-
ses sociais etc.

2 O IPHAN E A INVENÇÃO DO BRASIL

A evidenciação da colonialidade nos convida a, como analistas,


pensarmos os processos da gestão pública brasileira sob sua influên-
cia. É com isto em vista que nos dedicamos, aqui, a analisar o IPHAN
e seus trabalhos com terreiros afrorreligiosos.
O instituto do patrimônio foi fundado como organização em
1937, pelo Decreto-Lei n. 25, com o nome de Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), pelo ditador Getúlio Var-
gas. Seu propósito àquele tempo – que se manteve conceitualmente
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 71

fidedigno ao longo dos anos – era o de materializar, como símbolos


nacionais – da cultura nacional –, obras, edifícios, locais etc. escolhi-
dos e chancelados por seu corpo de intelectuais. Este era original-
mente formado por pensadores brasileiros identificados com o pen-
samento modernista, tais como Rodrigo Mello Franco de Andrade
e Mario de Andrade, que conceberam o instituto como projeto e
instituição (FONSECA, 2005).
Em meio a mais de 80 anos de tombamentos patrimoniais, cou-
be ao IPHAN, desde o início, ser uma das organizações do sistema
estatal – talvez a principal – a colecionar símbolos que materiali-
zassem um projeto de nação no Brasil. As primeiras experiências de
patrimonialização serviram, ainda, para a institucionalização, pelo
então SPHAN, de critérios técnicos, estéticos e artísticos. Em outras
palavras, em dizer o que era oficialmente brasileiro, o que repre-
sentava formalmente/estatalmente o Brasil. Este objetivo político e
organizacional do instituto foi reconhecido, com orgulho, por Ma-
rio de Andrade. Conforme Chuva, “um ano antes de sua morte, em
1944, Mário de Andrade lembrava a Rodrigo M. F. de Andrade seu
orgulho de ser brasileiro. E mais, sua honra em fazer parte daqueles
privilegiados sujeitos históricos que, como agentes do poder públi-
co, ‘inventaram’ o Brasil” (CHUVA, 2012, p. 149).
Esforços no sentido de se inventar uma nação, que corresponda
a um Estado, não são novidade no mundo moderno. Buscam, por
sua vez, dar-lhe significado de unidade, reificá-lo como um proces-
so natural, lógico, consequência óbvia do curso inalterado da histó-
ria. Algo que una e dê sentido de povo ao conjunto de pessoas que
vivem em um território. Estados e nações, todavia, são invenções
modernas. Suas tradições, que lhe simbolizam e distinguem como
processos humanos, também são inventadas. Mesmo nos casos em
que encontram lastro em construtos sociopolíticos do passado de
um dado povo e território, como fenômenos políticos do mundo
atual não podem ser vistos como continuidade de um passado antigo
(HOBSBAWN, 2017).
Na América Latina, em particular, faz ainda menos sentido falar
em Estados-nação como continuidade de qualquer processo de or-
72 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

ganização social e unidade de pessoas ao longo de séculos. Isso, jus-


tamente porque todos os territórios dessa região do planeta foram
invadidos e colonizados, e os países fundados a partir dessa violência
nunca envolveram a toda a população reunida em suas fronteiras.
Nunca houve, na prática, uma ideia ampla de inclusão, de democra-
cia, de escolha de um futuro comum por todas e todos, visto que a
maioria populacional não branca permaneceu – ainda permanece –
alijada dos espaços de poder e das decisões sobre os rumos da vida
coletiva (QUIJANO, 2005; SEGATO, 2007).
Na ausência de um Brasil representativo do imaginário de
uma maioria populacional coesa, uma imagem de Brasil precisou
ser inventada e informada às pessoas (ALMEIDA, 1998). É neste
sentido e com este peso que a ideia de invenção de um Brasil pelos
intelectuais do IPHAN deve ser pensada. O IPHAN, com seus atos
de tombamento, suas publicações, valorização de um determinado
grupo de construções, obras artísticas etc., salvaguardou tudo aqui-
lo que, ao seu ver, viesse a representá-la.
Da história construída/narrada pelo IPHAN, notamos que os
símbolos escolhidos pelos pensadores do instituto para represen-
tar o Brasil foram, quase sempre, representativos da matriz popu-
lacional branca. Em outras palavras, símbolos que representavam
a passagem portuguesa por esse local do planeta, i.e., o conjunto
arquitetônico de Ouro Preto/MG; ou a presença católica no Brasil,
i.e., todas as igrejas coloniais tombadas; ou ainda a arquitetura ins-
pirada por Le Courbusier, i.e., o conjunto arquitetônico de Brasília.
Ao que pese a beleza e o apelo turístico de símbolos como esses – o
que não está em debate neste texto –, outros locais de grande rele-
vância histórica, como terreiros afrorreligiosos, como lembra Cunha
Paz (2017), quase nunca foram tombados. Igualmente, é escasso o
patrimônio tombado que relembre a escravidão ou o genocídio de
negros, indígenas e pobres. Busca-se não lembrar esses fatos na his-
tória oficial brasileira, embora também representem a passagem dos
portugueses por aqui.
A historiografia oficial da política patrimonial no Brasil e da
formação do SPHAN/IPHAN defende o seguinte:
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 73
[...] a existência de apenas um instrumento jurídico e com foco na
materialidade do patrimônio também contribuiu para que vestígios
materiais vinculados ao universo cultural negro e indígena não fos-
sem valorizados a ponto de fazerem parte do conjunto de bens cul-
turais. (LIMA, 2012, p. 40-41).

Esse argumento, todavia, é facilmente refutável. Ao contrário,


defendemos a existência de uma operação patrimoniográfica (CUNHA
PAZ, 2017), isto é, uma narrativa oficial, hegemônica, sobre os bens
culturais que poderiam compor “a lista” do patrimônio nacional e
a produção de um silêncio sobre tudo aquilo que estivesse fora dos
padrões hegemônicos.
É importante problematizar qual o lugar, nessa narrativa oficial,
destinado aos bens culturais negros, à cultura afro-brasileira, às
religiões afro-brasileiras e e outros povos tradicionais de matriz
não-hegemônica. Até o efetivo reconhecimento patrimonial por par-
te do IPHAN dos bens dessas referidas matrizes, a instituição pas-
sou por grandes mudanças em seu conjunto de pensamentos teóri-
cos e conceituais, bem como por mudanças políticas. Todavia, essas
não necessariamente foram acompanhadas de uma renovação de seu
marco legal colonial/moderno e de seus instrumentos de proteção,
o que acabou por não gerar, até bem recentemente, uma política es-
pecífica para a patrimonizalização de bens não-hegemônicos.

3 OBSERVAÇÕES DE CAMPO – OS TRABALHOS DO GTIT

A partir de sua institucionalização como Secretaria da Presi-


dência da República, em 2003, a SEPPIR determinou que cada mi-
nistério brasileiro pensasse em três propostas/projetos/ações para
a redução do racismo a partir de suas pastas. Particularmente para
os terreiros afrorreligiosos, as propostas ganharam robustez ins-
titucional com a publicação, em 2007, da Política Nacional de De-
senvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
(PNPCT) – Decreto n, 6.040, de 07 de fevereiro de 2007 (BRASIL,
2007) –, que forneceu a base para a criação, já no governo Dilma, do
Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comu-
74 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

nidades Tradicionais de Matriz Africana – plano este que foi criado,


mas que, por negociações políticas que uma vez mais refletem a co-
lonialidade do poder no Brasil, teve sua oficialização vetada e jamais
se tornou um documento do Estado (FERNANDES; OLIVEIRA,
2017). Ainda assim, algumas de suas propostas foram colocadas em
prática, como aquela de buscar valorizar terreiros, o que significou
uma continuidade da política de 2007.
Foi nesse contexto que o MINC formatou e repassou ao IPHAN
o trabalho de preservação dos terreiros (tombamentos como patri-
mônio material e registro como patrimônio imaterial), que reuniu
ações pensadas para a valorização de comunidades afrorreligiosas
e templos. Essas contaram com levantamento de informações sobre
os terreiros já tombados, demandas de suas comunidades ao Esta-
do, informações sobre outros terreiros etc. Já em 2013, a estratégia
criada pelo instituto para seguir respondendo a esta demanda foi a
contratação de uma consultoria técnica junto à UNESCO e a criação
do GTIT.
O grupo começou por recuperar os debates sobre a preserva-
ção dos templos desde sua concepção mais abstrata. Problematizou,
inclusive, se fazia sentido tombar terreiros, se tinham valor patri-
monial-histórico, se eram locais de interesse ou memória (CUNHA
PAZ, 2017), ou mesmo se deveriam ser tombados como patrimônio
material, registrados como patrimônio imaterial ou ambos. Como
princípio, o GTIT considerou ponto passivo continuar a tombar ter-
reiros, o que já era praxe. Sendo assim, o debate deveria primeiro se
centrar no cuidado com os templos já tombados.
Lembramos que, como o Estado existe como abstração, igual-
mente a SEPPIR, o MINC, o IPHAN e seu GTIT são abstrações.
Organizações públicas (concretas para a Administração, não obs-
tante ficções para a Sociologia) não podem tomar decisões por sua
própria conta, sobre o que fazer em qualquer situação. Quem faz isso
são as pessoas que as encarnam – a todo o Estado e suas instituições.
E essas pessoas se orientam por suas formas de enxergar o mundo
e alianças políticas. Decidem, assim, os rumos do Estado, ainda que
constrangidas em suas decisões por legislações e pela estrutura so-
cial – que é anterior e dita a razão de ser do próprio Estado, das leis
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 75

e da vida pública brasileira. Sobre a SEPPIR, com suas tentativas


de mitigar o racismo brasileiro – que não acabou no governo petista
–, chamamos atenção para a proximidade que sempre possuiu com
ativistas do Movimento Negro, muitos dos quais candomblecistas.
A proximidade da política estatal com terreiros passa por essas pes-
soas.
Ainda assim, a colonialidade brasileira encampa o Estado e li-
mita a SEPPIR e o IPHAN. Limitou o governo Lula e o governo
Dilma, após ele. Manifesta-se nas políticas públicas, inclusive nas
de caráter integrador, reparatório e de valorização da diversidade,
e complexifica o quadro. Fundar a SEPPIR e instituir uma agenda
inovadora de direitos humanos, ou ainda alcançar o poder executivo,
não possibilitou ao lulopetismo descolonizar o Estado.
No IPHAN, chamamos a atenção para a continuidade e poder de
seu corpo de intelectuais, mesmo no ápice das propostas progressis-
tas petistas e do GTIT. Membros desse corpo de intelectuais toma-
vam parte nos debates do grupo e obstaculizavam seu avanço. Em
outras palavras, a chegada ao IPHAN de pessoas sustentando uma
agenda com propostas decoloniais não eliminou as análises sociais e
posicionamentos conservadores do instituto. E isso torna evidente a
continuidade do racismo institucional na cultura organizacional da
instituição. Mais do que isso, leva aos holofotes a colonialidade da
organização. O mesmo grupo de intelectuais, ademais, sustentava
pontos de vista teóricos já ultrapassados sobre os terreiros – mas
que são vistos como clássicos na bibliografia da área. E isso impossi-
bilitava que o GTIT se apropriasse de compreensões mais recentes,
embasadas em pesquisas mais atuais. Além de legislações, servido-
res e cultura organizacional conservadores, processos, um corpo de
conhecimentos internos e outras barreiras marcadas pela coloniali-
dade igualmente emparelhavam o IPHAN naquele momento, o que
também pode ser visto em Nogueira (2019).
E por mais que sejam tecnicamente fundamentadas e que se
pareçam lógicas as decisões, é preciso problematizar quem são os
tomadores de decisões e qual saber fundamenta o que pensam. Por
mais participativos que se mostrem os espaços, temos que nos per-
guntar qual o seu limite. Por mais científica e neutra que pareça uma
76 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

instituição – e talvez essa seja a razão –, é preciso questionar quais


saberes são silenciados e negados nesses espaços de construção de
políticas públicas de preservação patrimonial/cultural. Nesses espa-
ços, opera uma lógica racional moderna que não reconhece ou aceita
aquilo que foge ao universo dos especialistas.
O GTIT, mesmo limitado, foi concebido com base em valores
democráticos. Assim, para além de servidoras/es e consultoras/es
do IPHAN, era composto também por representantes das religiões
afro-brasileiras, como mães e pais de santo. Esta composição possi-
bilitava que os debates fossem sempre positivos para a pauta. Ainda
assim, tinha seus limites coloniais/modernos, como uma diferença
de linguagem entre técnicos e mulheres afrorreligiosas – que mor-
mente e historicamente são as principais lideranças em seus terreiros
(NOGUEIRA, 2016). Na ausência dessas, os homens afrorreligiosos
não tomavam decisões e sempre optavam por voltar aos terreiros e
consultá-las, o que nunca era compreendido pelos técnicos.
A coordenação do grupo era feita por uma servidora do IPHAN,
que não coincidentemente era próxima/simpatizante do candomblé
e das demais religiões afro-brasileiras. Mesmo competente, sua es-
colha para liderar o GTIT passou pela ausência de apropriação da
temática afrorreligiosa internamente no instituto, com consequente
escolha de alguém que tinha identificação pessoal com ela. Aliás,
isso se repetia com outras pautas consideradas “negras”, que sempre
eram personalizadas, jamais apropriadas pelo corpo burocrático do
IPHAN naquela época. A coordenadora, por sua vez, contribuía para
os debates no GTIT e trabalhava bem em equipe com consultoras/
es e afrorreligiosas/os. Todavia, o trabalho seguiu, nos primeiros
anos, como se fora uma pauta pessoal dos componentes do grupo,
jamais apropriada pelo corpo de funcionários do IPHAN.
Outro problema da personalização são os limites que as con-
vicções pessoais exercem sobre o trabalho, não sendo superados.
Igualmente, a coordenação não tinha poder para vencer barreiras
burocráticas internas do IPHAN, em que o trabalho esbarrava. Pelo
contrário, encontrava mais dificuldades internas do que espaço para
seguir com os trabalhos.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 77

4 AS BARREIRAS DA COLONIALIDADE À GESTÃO DA


PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

O primeiro terreiro tombado foi o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, a Casa
Branca do Engenho Velho da Federação, em Salvador-BA, conside-
rado o primeiro templo da nação candomblecista Ketu. Seu acaute-
lamento foi votado e aprovado pelo Conselho Consultivo do IPHAN
em 1984, quase cinquenta anos após a fundação do instituto e em
um cenário interessado/enviesado, em que o regime militar buscava
apoio popular e tentou se aproximar e ganhar a simpatia de parce-
las da população que sempre negligenciara, como a afrorreligiosa
(NETTO, 2013; NASCIMENTO, 2016; SILVA, 2017, NOGUEI-
RA, 2019).
Em outras palavras, o Estado (leia-se, as elites que o detém),
representado pelo IPHAN, não passou em 1984 a valorizar o que
vinha negligenciando desde sempre, que era a massiva e importante
herança cultural negra no país. Apenas ofereceu salvaguardar um
símbolo cultural importante ao povo negro, em troca de popula-
ridade. Prova disso é o fato de que, até 2017, apenas dez terreiros,
contando com a Casa Branca, haviam sido tombados pelo instituto
(CUNHA PAZ, 2017) e um décimo-primeiro foi tombado em 2018.
Igualmente, poucos exemplares negros e indígenas fazem parte da
lista de patrimônios tombados pelo IPHAN, vasta em exemplares
brancos (LIMA, 2012).
No que tange a terreiros, o GTIT aspirava mudar esse quadro.
Aproximar-se ainda mais das/dos afrorreligiosas/os e dar mais des-
taque à sua história nos anais da nação. Todavia, esta não foi uma
conquista do grupo e a história permanece mal contada no Brasil.
Destacamos, nos itens acima, dois grupos de barreiras que in-
terferiram e condicionaram a administração do trabalho do GTIT
de valorização da temática afrorreligiosa, por meio de seus terreiros.
Entendemos, como indicamos anteriormente, que essas barreiras
são externas – sociopolíticas – e internas – processos de gerência e
trabalho personalistas e pouco racionais, bases de informações atra-
sadas/inexatas etc.
78 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

A colonialidade do Estado brasileiro, é em si, a grande barrei-


ra sociopolítica – que se reflete também na organização interna do
IPHAN – que condiciona a gestão pública no país. Assim, ainda que
o governo Dilma e o governo Lula, antes daquele, tenham tido cará-
ter progressista e tenham buscado, por vezes, realizar projetos, po-
líticas e ações práticas de inspiração decolonial sobre o Estado bra-
sileiro, como a criação do próprio GTIT e seu trabalho no IPHAN,
não foram capazes de romper com essa matriz estrutural. Seria, com
efeito, concordando aqui com o que antes já teorizou Walsh (2008),
necessário refundar o Estado, reconstruir suas bases desde sua pró-
pria concepção.
Refundar o Estado é um trabalho muito mais profundo do que
aquele que praticou o lulopetismo, mesmo com a criação da SEPPIR
e com a valorização simbólica da temática dos direitos humanos.
Tampouco com refundação nos referimos à realização de reformas
em legislações, instituições públicas e sua gestão, contemporização
defendida pelas administrações do presidente Fernando Henrique
Cardoso e de seu partido, o PSDB, e adotada por alguns prefeitos
petistas (FONTOURA, 2018), bem como comumente proposta na
mídia e no jogo político brasileiro, e.g., reforma política, reforma da
previdência (esta, realizada com controvérsias e exposição midiática
em 2019), reforma tributária etc. Aliás, Albernaz e Azevêdo (2011)
chamam a atenção para o fato de que esse tipo de iniciativa refor-
mista, baseada em orientações internacionais, fundadas a partir de
teorias, lógicas e/ou experiências forâneas, jamais teve fôlego para
solucionar as desigualdades fundantes do Estado brasileiro, que se
veem refletidas em seu sistema político e em sua gestão. Tampouco
teve esse objetivo, tendo mais relação com o aumento de eficiência
na gestão pública. Visto por um olhar decolonial, refundar o Esta-
do implica necessariamente, por outro lado, começar novamente sua
construção, partindo do princípio de que disparidades originais mo-
tivadas por raça, classe e gênero devem ser superadas antes da ins-
titucionalização de novas ideias. Implicaria, portanto, em um novo
concerto social em solo brasileiro, mas um que jamais foi proposto
por partidos políticos – e talvez não possa sê-lo – nos curtos anos do
recente e combalido regime democrático.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 79

É a mesma Walsh (2008), contudo, que nos informa que o esfor-


ço de refundar o Estado – ainda que com variadas críticas – não seria
pioneiro, caso proposto no Brasil. Os exemplos das fundações dos
Estados plurinacionais nos vizinhos Bolívia e Equador citados pela
autora – mesmo que fortemente questionáveis e mormente critica-
dos internacionalmente e pelas próprias populações daqueles países
– indicam haver a possibilidade de se pensar sobre isso, mesmo na
colonial modernidade latino-americana.
A leitura de que seria necessário refundar-se o Estado para er-
radicar seu racismo e, só assim, promover uma efetiva valorização
do patrimônio cultural afrodescendente, é de grande impacto sobre
o IPHAN. Como buscamos pontuar, esta instituição sempre foi –
e segue sendo – central na estrutura sociopolítica brasileira como
consolidadora da própria colonialidade. Isso ocorre porque, mesmo
que seja ocupado por um corpo burocrático progressista, o IPHAN
existe para escolher e salvaguardar símbolos nacionais – do Estado-
-nacional – que precisariam ser repensados em um novo Estado. É
nesse sentido que é problemático falar em mitigar o racismo como
barreira organizacional de uma instituição colonial/moderna. A co-
lonialidade é a própria barreira organizacional, e este é um problema
de difícil solução.
Ao nível interno, recuperamos do relato outras barreiras orga-
nizacionais que obstaculizaram a sequência de trabalhos e um maior
sucesso do GTIT. A primeira e mais óbvia foi a ausência de informa-
ções institucionalizadas para se trabalhar com a pauta dos terreiros.
Com efeito, em uma primeira leitura, causa estranheza a constatação
de que o IPHAN não possuía informações aprofundadas sobre um
conjunto de comunidades de pessoas e seus templos religiosos que
já vinham sendo considerados como patrimônio nacional desde a dé-
cada de 1980. Não se deve exigir que, em uma organização, haja in-
formações acessíveis e conhecidas por seus profissionais sobre toda
e qualquer temática. Na década de 2010, contudo, terreiros estavam
longe de ser novidades no IPHAN.
Mais do que isso, não havia no instituto um corpo de profissio-
nais que tivessem alguma especialização no tema das religiões afro-
-brasileiras. Havia uma profissional de referência, mas que entendia
80 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

do assunto por sua própria conta e como adepta, não como analista.
Conhecimento é um construto da mente humana (DAVENPORT,
1998) e, mesmo que a biblioteca do IPHAN fosse vasta de infor-
mações sobre o tema, sem pessoas que o conhecessem seria difícil
trabalhá-lo. Buscou-se, com o GTIT, contornar esta limitação com
o convite ao grupo de representantes das próprias religiões. Ade-
mais, foram organizadas capacitações para servidores do instituto
(IPHAN, 2018), em gestão do patrimônio cultural dos povos de ma-
triz africana, ministradas por lideranças e/ou representantes das
principais tradições mapeadas até o momento pela organização, com
a participação de representantes do candomblé, jarê, jurema, batu-
que, egungun e tambor de mina. Essas nos parecem ter sido propos-
tas acertadas. Infelizmente, pouco efetivas.
A questão de que havia uma única profissional com afinidade
com a temática e o fato de que a ela foi entregue a coordenação da
pauta devido a essa afinidade – e não a outro critério – também é
aqui interpretada como uma barreira organizacional. Isso indica que
a divisão do trabalho é/foi feita em função de afinidades pessoais,
sem outro critério mais cuidadoso, o que contraria os princípios da
Administração – pública ou privada – e, mais do que isso, aponta
para o fato de que o Estado – a burocracia, a coisa pública – é gerido
de forma personalista. Isso contraria, também, os princípios do pró-
prio Estado moderno que, na acepção weberiana, deve ser impessoal.
Chamamos a atenção para uma última barreira interna indicada
nas observações de campo, que é aquela de gênero. Mesmo que o
GTIT tenha envolvido, democraticamente, técnicas/os do IPHAN,
consultoras/es e afrorreligiosas/os, foi difícil para as/os técnicas/os
entenderem que as decisões tomadas junto aos homens dos terreiros
deviam ser validadas/confirmadas pelas mulheres – mais especifica-
mente por suas mães de santo. E isso implicava em voltar ao terreiro
e debater o assunto internamente, só retornando com uma posição
em um segundo momento. Essa não é a forma como os profissionais
do Estado colonial/moderno trabalham. Mas o Estado brasileiro
deveria se adaptar às comunidades com que se relaciona, jamais o
contrário. O GTIT, mesmo especializado em terreiros e entenden-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 81

do essa especificidade, não conseguiu fazer a instituição entender a


questão.
Mesmo com todas essas barreiras e sem solução à colonialidade
que estrutura o Estado e assola o IPHAN, o trabalho apresentou
alguns resultados. Terreiros tombados foram visitados por técnicos
e as eventuais demandas de suas comunidades puderam ser ouvidas/
atendidas. Ainda que com limites, houve trabalho pela continuidade
de sua preservação.
Cada superintendência estadual do IPHAN (são vinte e sete, de
todos os Estados da federação e do Distrito Federal) propôs ações de
preservação e salvaguarda de terreiros em suas regiões de atuação,
o que possibilitou a iniciação e/ou continuidade (quando já iniciado)
de um esforço de mapeamento de terreiros, mesmo que sem objeti-
var tombamento. Este contribuiu para a reunião de informações pelo
instituto e conhecimento por seus servidores das diferentes casas
afrorreligiosas e suas religiões, o que já endereça uma das barreiras
mencionadas acima. Com isso, diferentes terreiros de candomblé,
umbanda, batuque, tambor de mina etc., puderam ser visitados por
equipes de pesquisadores, que passaram a conhecer e documentar
suas especificidades. Novos livros e outros textos foram escritos e
publicados sobre as religiões afro-brasileiras, o que é reconhecido no
IPHAN como parte de sua razão de ser. Cabe problematizar, todavia,
até que ponto a publicação de livros não interessa mais ao próprio
IPHAN do que a povos e comunidades que mantém e reproduzem
suas tradições pela oralidade. Ou seja, até que ponto este tipo de
ação, ainda que bem-intencionada – e, neste contexto, qualificadora
da gestão pública –, não reflete a mesma colonialidade.
Reconhecendo, mais adiante, suas barreiras de limitações de
compreensão dos terreiros e suas comunidades, o IPHAN se uniu
com representantes destas e com a Universidade Federal da Bahia
em convênio para a realização do projeto Gestão e Salvaguarda do
Patrimônio Cultural dos Povos e Comunidades de Terreiro – este
tratava da complexidade das demandas de proteção e salvaguarda
dos terreiros, pensando territorialidade, sustentabilidade e tradi-
ção. E criou e realizou o I Prêmio Patrimônio Cultural dos Povos e
82 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

Comunidades Tradicionais de Matriz Africana no âmbito do Pro-


grama Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI), com o objetivo de
reconhecer ações de preservação, valorização e documentação do
patrimônio cultural dos povos e comunidades tradicionais de matriz
africana.
Ainda como produtos do GTIT, foram publicadas, em 2016,
duas portarias, a saber: a Portaria n. 188, que diz sobre aprovação
das ações para preservação de bens culturais dos povos e comunida-
des tradicionais de matriz africana, e a Portaria n. 194, que dispõem
sobre diretrizes e princípios para a preservação de seu patrimônio
cultural, considerando os processos de identificação, reconhecimen-
to, conservação, apoio e fomento.
Todas essas ações, em conjunto, resultaram do trabalho do
GTIT. Não obstante, cabe problematizar que foram tímidas e ine-
ficazes em mitigar a colonialidade que o próprio IPHAN reflete.
Não alteraram a lógica da operação patrimoniográfica. Relaciona-
ram-se mais proximamente com um aprendizado pelo instituto, in-
terno, sobre a temática afrorreligiosa – o que reduz uma barreira
organizacional, mas não mais do que isso. Tampouco resultaram no
acautelamento e proteção jurídica a mais terreiros, o que seria de se
esperar/desejar – novos terreiros não foram tombados por resul-
tado do trabalho do GTIT. Também não houve uma mudança de
paradigmas, com elevação de seu status ao mesmo de outros templos
religiosos, como as igrejas barrocas. Pelo contrário, terreiros afror-
religiosos e suas comunidades seguem sendo violentados e sujeitos
a amplo racismo religioso no Brasil – tanto institucional quanto em
suas relações com a sociedade englobante nacional –, e sua história
segue ocupando páginas de uma alteridade excluída (NOGUEIRA;
MATHIAS, 2017), que se busca esquecer, muito mais do que reco-
nhecer, respeitar e preservar.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Objetivamos, com este texto, mostrar que o trabalho do GTIT


era moroso, truncado e inefetivo para a ampliação da preservação/
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 83

patrimonialização de terreiros afrorreligiosos no Brasil e, conse-


quentemente, na valorização de suas comunidades, em função de
barreiras estruturais e organizacionais que refletem a colonialidade
presente no Estado brasileiro que, no limite, trabalhos como o do
GTIT buscam mitigar.
Comunidades de terreiro possuem um longo histórico de mar-
ginalização no Brasil, razão pela qual a maior parte dos terreiros
de candomblé, umbanda, tambor de mina, jurema, terecô etc. se en-
contram nas periferias urbanas brasileiras. Não obstante, a prática
da afrorreligiosidade, ademais de outras práticas e traços culturais
afrodescendentes, é parte fundante da cultura brasileira – ou do que
se pode, com maior ou menor aproximação, afirmar sobre ela. Vida
cultural, todavia, não significa vida política. Ou seja, a divisão/orga-
nização do poder em um dado território não precisa refletir o arran-
jo cultural ali vigente.
O IPHAN foi fundado e, ao longo de sua história, sempre existiu
como instituto responsável por criar símbolos – patrimoniais – que
representassem uma ideia de nação no Brasil, que valorizassem a
cultura do país, mas isso jamais pôde ser feito, a despeito das barrei-
ras organizacionais criadas pela lógica da divisão do poder, pelo que
sua operação patrimoniográfica sempre o levou a valorizar um único
sentido de cultura no Brasil, que reflete traços brancos. E mesmo
com a criação do GTIT, durante um governo progressista e que tra-
balhou pela igualdade racial, essa lógica não foi alterada. Demandas
de terreiros já tombados foram ouvidas e alguns livros foram publi-
cados, mas nenhum novo templo foi tombado e nenhuma outra ação
de valorização externa – e nenhuma de grande impacto social, i.e.
grande e positiva exposição midiática – foi executada. Isso mostra/
reitera que o planejamento e a avaliação de ações organizacionais e
seus objetivos na gestão pública devem sempre ser contextualizados
no Estado e na sua estrutura. Evidencia-se, enfaticamente, que é
esta estrutura que precisa ser refundada, para que propostas e polí-
ticas reformistas possam ser efetivas – jamais o contrário.
Finalmente, lembramos que este trabalho apresenta um estudo
de caso, o que implica que suas conclusões apresentam indícios de
84 | Guilherme Nogueira & Francisco Paz

uma situação mais geral, mas não devem ser generalizadas. Ou seja,
o estudo de barreiras coloniais/modernas à gestão do sistema esta-
tal brasileiro pode se beneficiar de outros trabalhos. Estes podem
reiterar ou refutar os resultados que aqui alcançamos. Em todos os
casos, ampliam o arcabouço de informações e valorizam o trabalho
de análises sociopolíticas e gerenciais do Estado brasileiro.

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4
SALVAGUARDA CULTURAL DOS
TERRITÓRIOS DESCONTÍNUOS DOS
POVOS DE TERREIRO

Bruno Barbosa Heim13

Este texto apresenta o resultado de reflexões acerca do seguinte


problema: é possível proteger os territórios descontínuos dos povos
de terreiro,14 especialmente os espaços tidos como naturais, através
da utilização de instrumentos de salvaguarda do patrimônio cultu-
ral?
Em trabalho pretérito, discorremos sobre a importância do ter-
ritório para os povos de terreiro e apresentamos os limites das polí-
ticas de regularização fundiária, geralmente adotada para proteção
dos territórios tradicionais, para serem aplicadas no perímetro ur-
bano, em especial ao nos depararmos com territórios descontínuos e
sobrepostos aos territórios de outros sujeitos sociais. Nesses casos,
atribuir um direito real, cuja característica inclui a exclusividade do
bem para seu titular, é praticamente impossível sem implicar na la-
tência de graves conflitos territoriais (HEIM, 2018). Por essa razão,
impusemo-nos a refletir sobre a possibilidade de adoção de outros
instrumentos para proteção dos territórios desses sujeitos, neste
caso, os instrumentos de salvaguarda do patrimônio cultural.
Tomamos como referência para este estudo os povos praticantes
do candomblé de tradição Iorubá, uma vez que, entre a vasta diversi-
dade dos povos de terreiro, esta é a tradição mais familiar ao autor e

13  Mestre em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental. Professor de Direito


da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Advogado e consultor.
14  Entende-se por territórios descontínuos os espaços ambientados para rituais
complementares àqueles do templo (DIAS, 2003).
87
88 | Bruno Barbosa Heim

pela disponibilidade de fontes de pesquisa. Esta opção metodológica,


contudo, não impede que as reflexões sobre territórios tradicionais
possam ser aplicadas à diversidade dos povos de terreiro.

1 CULTURA E NATUREZA

Natureza e cultura são temas interpretados pelo senso comum e


por boa parte das ciências como situações diacrônicas, em que a cul-
tura, inerente ao ser humano, estabelecer-se-ia a partir do momento
em que se rompe com a condição do natural. Natureza e cultura
seriam situações opostas, sendo que cultura é o não natural e a na-
tureza, o não cultural.
Entre os significados atribuídos ao termo natureza encontra-
mos, no Dicionário Aulete Digital: “Todo o mundo material ao re-
dor do homem e no qual ele está inserido, mas independente dele” e
“Condição do homem antes da civilização” (NATUREZA, 2020, p.
1). Ou seja, natural é o estado que precede a ação humana, não do
ser humano isolado – aquele supostamente criado por lobos –, mas
do humano civilizado. A cultura é, por sua vez, em primeiro mo-
mento, a intervenção homem no solo, “ação, processo ou resultado
de cultivar a terra, ou certa planta”, ou, em perspectiva antropológi-
ca, “tudo o que caracteriza uma sociedade qualquer, compreendendo
sua linguagem, suas técnicas, artefatos, alimentos, costumes, mitos,
padrões estéticos e éticos”.
Essa compreensão do senso comum é também ratificada por
muitas ciências. Não é em outro sentido que Paulo Bessa Antunes
transcreve o conceito de Whitehead (1994, p. 07 apud ANTUNES,
2011, p. 7):

[...] [natureza é] aquilo que observamos pela percepção obtida


pelos sentidos. Nessa percepção sensível, estamos cônscios de que
algo que não é pensamento e que é contido em si mesmo com relação
ao pensamento. Essa propriedade de ser autocontido em relação ao
pensamento está na base da ciência natural. Significa que a natureza
pode ser concebida como um sistema fechado cujas relações mútuas
prescindem da expressão do fato de que se pensa das mesmas.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 89

Segundo Antunes (2011), tomando o conceito supra, é da cons-


ciência da natureza como realidade externa ao homem que se dá
início ao mundo da cultura. Não nos parece que assista razão a Whi-
tehead, pois, segundo estudos de Lévi-Strauss (2009), a passagem
do natural para o cultural residiria na proibição do incesto. O antro-
pólogo estruturalista não apresenta natureza e cultura de forma di-
cotomizada; aceita que exista natureza e cultura, mas em um porvir,
com possíveis entrelaçamentos de ambas. Desenvolveu estudos so-
bre o incesto, ou melhor, sobre a proibição do incesto, e reconheceu
na proibição uma regra universal. Para o autor, tudo que é universal
e instintivo encontra-se no campo da natureza, e o que for subme-
tido ao caráter das leis e instituições está no campo da cultura. Não
haveria grupos sem proibição a qualquer tipo de casamento, pois
nunca o é autorizado para todos os parentes próximos, mas só para
algumas categorias, nestes casos, com caráter ritualístico e tempo-
rário ou com caráter oficial e permanente, mas privilégio de algu-
mas categorias específicas. Em todas essas sociedades, a proibição é
sancionada, seja com a execução imediata dos culpados, seja apenas
mediante zombaria.
A proibição seria, por si só, produto cultural, mas seu caráter
universal a inclui como fenômeno também natural. Seu fenômeno
não tem origem puramente cultural ou natural, mas constituiu o
movimento de passagem da natureza para a cultura. Foi a proibição
do incesto que permitiu ao homem transpor o instinto, o natural, e
atingir a cultura (PONTES, 2004).
Se não podemos concordar com Whitehead quanto à noção de
natureza, há algo passível de interpretação na posição de Antunes –
para quem da consciência da natureza como realidade externa dá-se
início ao mundo da cultura – que deve ser registrado: a concepção de
natureza é eminentemente cultural.
A ideia de algo distinto do ser humano é fruto de ato reflexivo do
homem. Seria necessário perguntar: um animal, por exemplo, uma
abelha, percebe uma flor da mesma maneira que um ser humano? A
flor seria, para a abelha, algo natural, distinto de si? Parece-nos que
não.
90 | Bruno Barbosa Heim

Vale trazer, também, a concepção de Leach (1989, p. 15), para


quem:

No conjunto, o modo de representarmos o ambiente em que vive-


mos não é uma simples “cópia” da “realidade”, mas contém em si
próprio a possibilidade de articularmos livremente essa represen-
tação. Através da utilização da linguagem, somos capazes de trans-
formar os input sensoriais (as “percepções”) em “representações do
espírito”, com as quais se podem elaborar diferentes jogos imaginá-
rios, independentemente das operações que se verificam no mundo
exterior (LEACH, 1989, p. 15).

Assim, Leach também compreende ser, a noção de natureza, um


produto cultural, defendendo que essa noção será distinta entre os
povos, pois a percepção sobre o ambiente é construída na junção
daquilo captado pelos sentidos e pela interpretação que lhes damos.

2 NATUREZA E O SOBRENATURAL PARA POVOS DE TERREIRO

O candomblé é uma religião cujo corpo doutrinário, oriundo de


mitos, foi trazido ao Brasil junto com negros africanos traficados
como escravos. Na África, o culto aos orixás, divindades dos povos
de língua iorubá, é eminentemente um culto aos antepassados que
abandonaram o corpo e se transmutaram em pura energia, de tal
forma que os orixás são cultuados em famílias ou cidades (VER-
GER, 1997). No Brasil, a cruel realidade do tráfico dividiu os afri-
canos e seus descendentes, separando-os de suas famílias consan-
guíneas. Nas senzalas ou nos centros urbanos, eram misturados a
outros negros, de diferentes origens, muitas vezes desconhecida ou
inimiga. Mas mesmo diante das mais diversas dificuldades para o
exercício da prática religiosa, foram sendo engendradas alternativas
que a viabilizassem, tal como o sincretismo das divindades africanas
com os santos católicos, o que permitia, sob a vista dos senhores de
escravos, tocar os tambores e dançar para seus deuses nos dias de
festejos católicos.
Essa realidade também impôs uma nova dinâmica ao culto, di-
ferente da encontrada na África. No barracão das senzalas ou nas
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 91

habitações coletivas urbanas, diferentes divindades africanas passa-


ram a ser cultuadas em um único rito, característica marcante para
constituição do candomblé já no século XIX. Em um único culto
passaram a ser cultuadas diversas entidades, tal como mantém o
candomblé até hoje. Ademais, na impossibilidade de se agruparem
famílias de sangue, novos laços familiares se consolidaram, tornan-
do-se, os iniciados no candomblé, filhos e filhas de santo, ou seja, são
famílias de santo (SILVA, 2005).
Outrossim, a constituição do candomblé sofreu influência dos
povos originários que mantiveram contato com os povos negros,
inserindo no seu culto entidades que não são oriundas do panteão
africano, como os cablocos da terra.
Como religião, seus membros são imbuídos de fé – fé no so-
brenatural. A fé representa a crença, ter algo como verdade porque
parte de enunciados daqueles que têm a competência para dizê-la
(MELLO, 2011).
No candomblé, o corpo doutrinário que dá consistência à reli-
gião é oriundo dos mitos, itãs, transmitidos oralmente através de
gerações, o que reflete uma significativa variação na interpretação
dos orixás, fenômenos e objetos sagrados de região para região, de
terreiro para terreiro. Outrossim, a verdade também pode ser re-
velada pelo ifá, o jogo de búzios, ou através dos próprios orixás e
entidades, quando incorporados.
O sobrenatural, objeto da fé, pode dela decorrer ou ratificá-la.
Mello (2011, p. 391), sustentando a relevância do sobrenatural para
os crentes, afirma que “o sobrenatural é uma dimensão da vida e, por
sinal, a mais importante, a mais humana de todas”.
Esse elemento, o sobrenatural, é de extrema relevância para o
entendimento do candomblé, pois estabelecerá uma ligação entre as
noções de natureza e cultura. Para Lévi-Strauss (1963), o sobre-
natural é uma terceira categoria que pode ser inserida ao lado da
natureza e cultura:

[...] a noção de natureza manifesta sempre um caráter ambíguo: a na-


tureza é pró-cultura e é também subcultura; mas é sobretudo o terreno
sobre o qual o homem pode esperar entrar em contato com os antepas-
sados, os espíritos e os deuses. Na noção de natureza há, portanto, um
92 | Bruno Barbosa Heim
componente “sobrenatural”, e esta “sobre-natureza” é tão incontesta-
velmente uma supra-cultura, quanto a própria natureza é subcultura.
(LÉVI-STRAUSS, 1963, p. 362, apud LEACH, 1989, p. 5).

No candomblé, o sobrenatural habita a natureza, dando um novo


significado a esta, que passa a ser “sagrada”,15 pois os orixás são as-
sociados a diversos elementos naturais, fenômenos e lugares.
Exú é o orixá que, entre outras funções, atua como mensagei-
ro, intermediário entre os orixás e os homens. Qualquer comunica-
ção com orixás precisa passar por ele e, para isso, deve ser presen-
teado. Galinha, farofa e cachaça são comumente ofertados para Exú
na forma de despacho, que deve ser realizado em encruzilhadas, mas
Exú também se encontra em outros lugares, como as feiras, locais de
trocas, conflitos e socialização. Em muitas explicações, o axé de Exú
é força vital que viabiliza todas as formas de vida.
O sobrenatural, para os praticantes do candomblé, não preci-
sa necessariamente estar relacionado às suas divindades, desde que
integre sua cosmologia. Exemplo interessante aconteceu em ritual
de consumo da Jurema, entidade cultuada por povos indígenas do
Nordeste e também pelo candomblé. A Jurema é ao mesmo tempo
uma entidade e uma planta de origem caatingueira. O chá prepara-
do com a Jurema-preta, mimosa tenuiflora, ou com a jurema-branca,
piptadenia stipulacea, produz efeitos enteógenos em quem a consome,
em processo que permite acessar dimensões espirituais bloqueadas
pelas atividades cotidianas. Em meio ao ritual, uma pessoa foi “mon-
tada” por Exú, que se dirigiu a diversos dos presentes e, em especial,
a uma pessoa que trabalhava com a coleta de flores para estudo e
catalogação, afirmando ser necessário pedir permissão para entrar
nas matas e pegar as flores, e também ser necessário perceber as flo-
res como mãos dos espíritos oferecidas aos homens. A mensagem de
Exú produziu, nos presentes que creem em entidades do candomblé,
uma nova visão acerca das flores do mundo.

15  Os Babalorixás Sidnei Nogueira e Juracy Junior criticam a utilização da


categoria sagrado para os povos praticantes do candomblé, uma vez que não
haveria dissociação entre sagrado e profano, noções oriundas do catolicismo.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 93

Oxalá é o orixá da criação e seu axé encontra-se na terra, na


água e no ar. Xangô, um dos orixás mais cultuados no Brasil, é a di-
vindade dos fogos, pedreiras e trovões, rei de Oyó, filho de Iemanjá.
Iemanjá é considerada mãe de diversos outros orixás, seu domínio
se estende pelas águas salgadas e, no dia 02 de fevereiro, em diver-
sas cidades litorâneas, são para ela realizadas oferendas. Em outras
localidades, na ausência do mar, as oferendas são lançadas aos rios,
pois se sabe que todas as águas descem ao mar. As águas doces, po-
rém, são domínio de Oxum, que era orixá de um rio com este mesmo
nome na África, sendo, no Brasil, rainha de todas as águas doces.
Oxossi é orixá caçador, senhor das matas e animais, mas as ma-
tas também são especialidade de outro orixá, Oassain, o orixá das
folhas e ervas, em especial do axé que elas contêm.
As ervas têm um papel fundamental no candomblé, quase to-
das as cerimônias delas necessitam, seja para evocar um orixá, seja
para fazer a limpeza de um filho de santo ou na sua iniciação, ten-
do uso tanto litúrgico quanto medicinal (BERKENBROK, 2007).
Albuquerque e Andrade (2012, p. 27) são categóricos quanto à sua
relevância:

[...] no sistema de crenças das religiões afro-brasileiras, as plantas


representam o papel de mediadoras entre os dois planos de exis-
tência onde se firmam as criaturas e todas as coisas: o ayié, mundo
dos vivos e das representações físicas; e o orún, mundo sobrenatu-
ral, onde habitam os eguns (espírito dos mortos, ancestrais) e as
divindades (orixás). O uso de plantas no candomblé constitui, sem
sombra de dúvida, uma peculiaridade da vida social e religiosa das
pessoas que se congregam nessas comunidades.

Todas as folhas possuem donos e algumas são, elas próprias,


moradas de orixás, enquanto outras detêm grandes virtudes. Al-
gumas podem ser cultivadas para fins sacros, como as oferendas
alimentares, mas na liturgia das folhas é indispensável que elas se-
jam coletadas em espaços não cultivados. Na ritualística, as folhas
assumem papel fundamental, cada orixá tem sua folha, e a liturgia
demanda folhas não cultivadas, que necessariamente deveriam ser
colhidas (SERRA, 2001). A devastação de áreas verdes tem motiva-
do a adoção de medidas alternativas, como o plantio ou aquisição de
94 | Bruno Barbosa Heim

folhas em mercados populares, prática criticada, pois a coleta em si


corresponde a um rito que, inobservado, pode prejudicar o êxito das
ações religiosas e terapêuticas (SERRA et. al., 2002).
Em outro trabalho, já sustentamos que as matas onde são
encontradas as folhas não cultivadas compõem o território do povo
de terreiro, seus “territórios descontínuos”, e devem ser protegidas,
sob pena de, perdendo-se o território, deixar de existir enquanto
povo (HEIM, 2013). Como afirmam os movimentos sociais organi-
zados pelo povo de terreiro, suas lideranças e adeptos, “Kó si ewé, kó
sí Òrìsà”, expressão iorubá que significa “sem folha, não há orixá”.
Neste sentido, é sempre relevante relembrar Bastide (2001), que na
década de 1950 já afirmava não descerem mais algumas entidades,
como o Xangô de Ouro, pois as ervas necessárias à sua encarnação
não eram mais encontradas.
O mapa realizado com a comunidade do terreiro Ilê Axé Ala-
gbede Olodumare, pelo projeto Nova Cartografia Social dos Povos e
Comunidades Tradicionais do Brasil para apresentação de seu ter-
reiro, é bastante representativo, uma vez que demonstra nitidamen-
te como as áreas de coleta de ervas estão localizadas em espaços de
“mato”.
Figura 1 - Mapa Ilê Axé Alagbede Olodumare (adaptado).

Fonte: MARTINS et al., 2009.


Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 95

As folhas deixariam, para Léo Neto e Alves (2010), de ser ape-


nas associações entre orixá e natureza, e passariam ser a mesma
coisa, orixá igual a natureza, mesmo sentido que é empregado por
Souza (2011, 10), para quem “os orixás são feitos da natureza e são
a natureza”.
Melo (2007) vai mais além: não seriam apenas, os orixás, natu-
reza, mas a própria sociedade iorubá se veria como natureza, sendo
a materialidade do homem o resultado do somatório de todos os
elementos que compõem a natureza; as diferenças seriam insuficien-
tes para colocá-los em mundos distintos, só se podendo distinguir o
mundo da cultura e o mundo natural.

3 SALVAGUARDA DA “NATUREZA” COMO PATRIMÔNIO


CULTURAL

O direito adota de forma explícita, no plano internacional, a di-


cotomia natureza e cultura, como pode ser observado na Convenção
Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da
UNESCO, de 1972, aprovada pelo Congresso através do Decreto
Legislativo n. 74/77 e promulgada pelo Decreto n. 80.978/77, que
distingue o que seria patrimônio cultural do patrimônio natural. Na
legislação pátria, em diversas passagens, também se encontram refe-
rências à natureza como estado de ausência de interferência humana,
como nas unidades de conservação “monumento natural” e “área de
relevante interesse ecológico” que, respectivamente, objetivam “pre-
servar sítios naturais raros, singulares ou de grande beleza cênica”
e “manter os ecossistemas naturais de importância regional ou local
e regular o uso admissível dessas áreas, de modo a compatibilizá-lo
com os objetivos de conservação da natureza”, constituída, esta, em
áreas geralmente pequenas, sem ou com pouca ocupação humana,
cujas características naturais sejam extraordinárias ou abriguem
exemplares raros da biota regional.
Essa afirmação do natural como ausência ou pouca interferên-
cia do homem tem, entretanto, conotação mais prática e didática do
que propriamente teórica, não importando uma radical separação
96 | Bruno Barbosa Heim

para fins de tutela jurídica, pois se as unidades de conservação acima


exemplificadas se destinam precipuamente a áreas não radicalmente
modificadas pelo homem, onde a natureza ainda se encontra aparen-
temente imodificada, não é verdade que os instrumentos próprios
para tutela de bens cultuais não sirvam igualmente para tutela dos
bens da natureza.
Seguindo os passos de José Afonso da Silva (2001), com base na
filosofia kantiana, haveria duas categorias de ciências, as ciências da
realidade e as do valor. As primeiras se dividiriam em naturais, psi-
cológicas, matemáticas e lógicas, distinguindo-se umas das outras
em face do seu objeto: se natural ou ideal. Os objetos naturais pode-
riam ser: a) “físicos”, ou “concretos”, caracterizados pela existência
de temporalidade e extensão; ou “psíquicos”, que se diferenciariam
dos físicos pela ausência de extensão, uma vez que lhes falta corpo.
Já os objetos ideais englobariam a matemática e a lógica, por serem
frutos das ideias, sem extensão ou temporalidade. Assim, a realidade,
que englobaria as coisas corpóreas e incorpóreas, porém existentes,
como os sentimentos e abstrações matemáticas e lógicas, opor-se-ia
aos valores: o mundo do ser em face do mundo do dever ser. Ainda
que os valores possam ser reais e também careçam de temporalidade
e extensão, não se confundem com os objetos ideais, pois, diferente
destes, só são concebidos em decorrência de algo existente, as coisas
que possuem valor.
Modelada a dicotomia kantiana, José Afonso da Silva passa a
desconstruí-la, afirmando ser um falso dualismo, pois entre a reali-
dade e valor, ser e dever ser, existe uma categoria intermediária de
juízos relativos a valores; entre a natureza e o valor, existiria a “cul-
tura”. Os valores não se oporiam à realidade nem tão pouco estariam
fora dela. São projeções humanas que dão sentido, valoram o objeto
do mundo do ser. Assim, a cultura seria a realidade compenetrada
por valores.
Adotando o posicionamento do autor, é forçoso reconhecer que
todos os itens tidos como naturais – lembrando, como observado
anteriormente, que a própria ideia de natureza é oriunda da cultura
– e que, nessa condição, seriam dignos de proteção, são na verdade
objetos culturais, pois nada mais são do que realidade preenchida
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 97

de valores. Nas palavras de Silva (2001, p. 26), os objetos ou bens


culturais são:

[...] coisas criadas pelo homem mediante projeção de valores, “cria-


das” não apenas no sentido de produzidas, não só do mundo cons-
truído, mas no sentido de vivência espiritual do objeto, consoante se
dá em face de uma paisagem natural de notável beleza, que, sem ser
materialmente construída ou produzida, se integra com a presença
e participação do espírito humano.

Em outra obra, o mesmo autor é também explícito sobre esse


ponto, ao comentar que a distinção jurídica entre meio ambiente
natural, artificial e cultural se justifica apenas pela imposição de re-
gimes jurídicos distintos, mas tende à superação, uma vez que não
existem, por exemplo, bens ambientais naturais: todos os bens se-
riam sempre próprios da atividade humana, ao se tornarem objeto de
desejo e deles usufruírem. O “meio ecológico, natural, se transforma
em meio ambiente cultural, como vida humana objetivada, na medida
em que se lhe reconhece um valor que, assim, lhe dá configuração de
um bem de fruição humana coletiva” (SILVA, 2011, p. 22).

3.1 PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À CULTURA

A Constituição Federal (BRASIL, 1988) estabeleceu uma seção


especialmente dedicada à cultura, em que afirmou compor o patrimô-
nio cultural brasileiro os bens de valor material e imaterial, que por-
tam referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes gru-
pos formadores da sociedade brasileira, exemplificando suas “formas
de expressão”, “modos de criar, fazer e viver”, “criações científicas,
artísticas e tecnológicas”, “obras, objetos, documentos, edificações
e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais” e
“os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artís-
tico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”, o que não
exclui outros bens da possível inserção na qualidade de patrimônio.
Também impôs ao Estado o dever de proteção das “manifestações
das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
98 | Bruno Barbosa Heim

Logo se vê que a Constituição não adota uma teoria erudita da


cultura, como aquela própria de uma classe ou segmento social, in-
cluindo na sua concepção abrangente a cultura popular, negra, in-
dígena e de outros grupos que, em regra, não compõem a casta da
elite política ou econômica do país. Também não se limitou aos bens
vinculados a “fatos memoráveis da história do Brasil” ou de “excep-
cional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”,
como persiste a redação do Decreto-Lei n. 25/37, ainda em vigor,
que regulamenta o tombamento. Tão pouco se ateve à proteção de
coisas materiais, já que estende, à cultura imaterial, a mesma perti-
nácia.16
No entanto, se o conceito antropológico de cultura apontado no
início deste trabalho é inevitavelmente amplo e abrangente – abar-
cando toda a produção do espírito humano, desde a linguagem aos
padrões estéticos, tecnologias e artefatos –, a proteção da cultura não
pode ser tão abrangente, ou se impediria a dinâmica de mudança e
desenvolvimento cultural (SOUZA FILHO, 2005). Na prática, tudo
proteger significaria nada proteger. É por isso que a proteção de
determinados bens sob a ótica cultural se faz com sua identificação
e individualização através de por meio dos instrumentos de prote-
ção do patrimônio cultural, ou seja, só se torna patrimônio cultural
algo que foi individualizado como bem cultural por um determinado
instrumento jurídico. Se, do ponto de vista teórico que adotamos, a
partir de José Afonso da Silva, todos os bens, pela simples condição
de “bem”, são bens culturais, do ponto de vista do direito só se qua-
lificam como bens culturais aqueles previamente individualizados,
defendendo a doutrina que, antes disso, seriam bens potencialmente
culturais (MIRANDA, 2006).
No que tange à competência, todos os entes federais gozam,
de acordo com a dicção do artigo 23 da Constituição Federal, de

16  Apesar de a Constituição se referir a bens de natureza material e imaterial,


adotando classificação própria do direito civil ao tratar dos bens, o que se protege,
em verdade, é a cultura, esta sempre imaterial. Ocorre que os bens materiais são
protegidos por seu sentido de representação, lembrança, evocação, ou seja, pela
dimensão não material que agrega a ele a qualidade de bem cultural. Protegem-
se os bens materiais através de sua individualização, por serem suporte de uma
cultura imaterial nele contida (SOUZA FILHO, 2005).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 99

competência comum para: proteção do meio ambiente, conceito que


inclui a dimensão da natureza e da cultura; proteger documentos,
obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural; impedir a
evasão, destruição e descaracterização de obras de arte e outros bens
de valor cultural. Isso quer dizer que União, Estados, municípios
e o Distrito Federal devem atuar conjuntamente, pois a todos foi
atribuída esta responsabilidade. Sob a ótica legislativa, o artigo 24
atribui a União, Estados e Distrito Federal competência para legis-
lar concorrentemente sobre: proteção ao meio ambiente; proteção
ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;
responsabilidade por dano ao meio ambiente e bens de valor artísti-
co, estético, histórico, paisagístico e turístico. A União deverá, nesta
competência, editar normas gerais, podendo os Estados e Distrito
Federal suplementá-las. Aos municípios, no artigo 30, II, é atribuída
competência de suplementar a legislação federal e estadual no que
couber.

3.1.1 Tombamento

Tombar significa inscrever determinado bem, móvel ou imóvel,


no livro do tombo. Trata-se do mais antigo e utilizado instrumento
para proteção do patrimônio cultural brasileiro, instituído pelo De-
creto-Lei n. 25/1937. Sua função era individualizar bens móveis e
imóveis, que assim passariam a ser considerados parte do patrimô-
nio histórico e artístico nacional, definido pela lei como o “conjunto
dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja
de interesse [sic] público, quer por sua vinculação a fatos memorá-
veis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueoló-
gico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Ocorre que, com a
significativa ampliação da concepção de patrimônio cultural (gênero
do qual histórico, artístico, arqueológico, etnográfico, bibliográfico,
científico e outros passaram a ser espécie), a utilização do tomba-
mento foi também ampliada, não mais se restringindo a fatos memo-
ráveis ou a bens de excepcional valor.
Uma vez tombado o bem, são produzidos diversos efeitos para
proprietário, poder público e vizinhos. O proprietário passa a ser
100 | Bruno Barbosa Heim

obrigado a realizar obras necessárias à conservação, porém só po-


derá repará-lo, pintá-lo ou restaurá-lo com autorização do órgão
que instituiu o tombamento; deverá garantir preferência ao poder
público na alienação onerosa, com prioridade para União e subse-
quentemente Estados e municípios, sob pena de nulidade do negó-
cio; não pode retirar os bens do país, salvo com autorização do órgão
instituidor; deve permitir a fiscalização do poder público. Quanto
ao poder público, deverá fiscalizar e exercer seu poder de polícia
na proteção do bem tombado, inclusive com a aplicação de sanções
administrativas; promover obras de conservação, caso o proprietário
não possa fazê-lo às suas expensas; promover o registro no cartório
de imóveis para tornar válido o direito de preferência na aquisição.
Os vizinhos do bem tombado não poderão fazer construções que
impeçam ou reduzam sua visibilidade, como também estão proibi-
dos de alocar cartazes e anúncios, sob pena de destruição da obra,
retirada do objeto e multa de cinquenta por cento desse objeto (MI-
RANDA, 2006).
Ao estabelecer um regime jurídico especial para o bem, com inú-
meras limitações ao direito de propriedade, o tombamento atinge
seu caráter absoluto – amplitude dos poderes do proprietário em
relação à coisa –, mas não atinge o caráter exclusivo desse direito,
característica que permite ao proprietário afastar qualquer tentativa
de ingerência de terceiros (SILVA, 2001). Isso porque o tombamen-
to não gera direito ao Estado ou à coletividade de usar, gozar ou
dispor do objeto, poderes que continuarão reunidos no proprietário.
Também não se constitui objeto do tombamento o uso específico do
bem, cabendo apenas definir determinados usos que possam ser ade-
quados ou inadequados à sua necessária conservação (MIRANDA,
2006).

3.1.2 Inventário

Relacionado no artigo 216, §1º da Constituição Federal entre
os instrumentos hábeis à proteção do patrimônio cultural brasileiro,
o inventário ainda não foi regulamentado por lei de âmbito nacional,
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 101

mas apenas por iniciativa de alguns Estados e municípios no exercí-


cio de sua competência supletiva na matéria.
A União, através da Lei n. 11.904/2009, que instituiu o Esta-
tuto dos Museus, define o inventário e registro como instrumentos
hábeis a documentar os bens culturais integrantes de acervos de
museus. Essa lei definiu, em seu artigo 39, § 2º, que “os bens in-
ventariados ou registrados gozam de proteção com vistas em evi-
tar o seu perecimento ou degradação, a promover sua preservação e
segurança e a divulgar a respectiva existência”. Concordamos com
Miranda (2018), para quem, a partir da teoria do diálogo das fontes,
a norma protetiva dos museus pode ter seu alcance ampliado para
o conjunto do patrimônio cultural, sendo, inclusive, de aplicação em
âmbito nacional. Esta norma é incipiente e não define questões como
procedimentos para o inventário, regras específicas para os bens in-
ventariados e tantas outras questões necessárias a uma sistemática
integral de proteção de bens culturais, mas afirma categoricamente
a necessidade de proteção do bem inventariado.
A ausência de lei que regulamente o instrumento faz fervilhar
debates acerca de sua utilização e efeitos. Soares (2009) entende que
o inventário tem por finalidade produzir conhecimentos que subsi-
diem ações de proteção dos bens culturais, afirmando que os efeitos
para o proprietário não são o enfoque principal do instrumento e
não se trata de intervenção estatal sobre a propriedade. Souza Fi-
lho (2005) defende a utilização do inventário para que se tenha uma
fonte dos bens que portam referência à identidade, segundo a dicção
constitucional, mas entende necessária a especificação dos efeitos
do inventário através de lei; até lá, o inventário serviria de prova do
valor cultural do bem em juízo, fundamentando a necessidade de sua
preservação.
Ambas as posições anteriores nos parecem aquém das possibi-
lidades de uso e dos efeitos oriundos do inventário. Primeiramente,
caso os órgãos e entidades com competência para promover a pro-
teção dos bens culturais persistam com o entendimento de que o
tombamento só deve ser utilizado para tutela de bens que estejam
vinculados a fatos memoráveis da história do Brasil ou por seu ex-
102 | Bruno Barbosa Heim

cepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artísti-


co, o inventário poderá ser utilizado para proteger os bens que reú-
nam, em si, características culturais merecedoras de tutela, mas não
se enquadram nos requisitos do tombamento. Em segundo lugar,
devemos concordar com Marchesan (2007) quanto à competência de
Estados e também de municípios para disciplinarem o instrumento
em lei própria, o que lhes permitirá definir o regime jurídico dos
bens inventariados: os Estados terão competência plena para legis-
lar sobre a matéria, até que seja editada lei federal a respeito;17 já os
municípios poderão suplementar essa legislação no que couber.
Há ainda de se reconhecer que, uma vez inventariado, o bem
passa a integrar o patrimônio cultural brasileiro, o que opera uma
mudança de regime jurídico: de simples propriedade pública ou par-
ticular, passa a ser considerado bem cultural, com regime jurídi-
co especial, que José Afonso da Silva denomina “bens de interesse
público” (2001, p. 154). Isto agrega ao bem toda a proteção legal
destinada ao patrimônio cultural brasileiro, passando a ser obje-
to material dos crimes contra o patrimônio cultural (MIRANDA,
2006), bem como das infrações administrativas ao patrimônio cul-
tural. Entre os referidos tipos penais e administrativos encontram-
-se “destruir, inutilizar ou deteriorar” bem especialmente protegido;
“alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente
protegido [...] sem autorização da autoridade competente ou em
desacordo com a concedida”; e “promover construção em solo não
edificável, ou no seu entorno em razão do seu valor [...] sem auto-
rização da autoridade competente ou em desacordo com a concedi-
da”. Nestes termos pode-se perceber que, independente de marco
legal federal que regulamente o inventário, os bens inventariados
não poderão ser destruídos ou sequer deteriorados, como não se po-
derá alterar aspecto de bem imóvel ou localização, nem edificar em
local não edificado. O poder público deverá fiscalizar e garantir que
tais condutas não sejam realizadas e, constatando o ocorrido, deverá

17  O Estado da Bahia regulamentou o inventário através da Lei Estadual n.


8.895/03. Segundo artigo 18 dessa lei, o inventário para preservação poderá ser
utilizado para bens culturais móveis e imóveis, individualmente ou em conjunto,
inclusive coleções, tomando por referência o caráter reiterativo.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 103

aplicar as sanções administrativas cabíveis e comunicar a autoridade


competente para promover a responsabilização penal do agente, sem
descurar da devida responsabilização civil, que impõe o dever de re-
paração do bem, com restabelecimento do status quo anterior sempre
que isto for possível.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, no
Recurso Especial n. 1.547.058 – MG, que o inventário é instrumen-
to hábil à proteção dos bens de valor histórico e cultural e assegura
proteção legal, devendo ser salvaguardado pelo Estado, sociedade e
proprietário. Por questões recursais formais, o STJ não apreciou a
questão de o inventário estabelecer limitação administrativa à pro-
priedade, mas transcreve o acórdão recorrido que decidiu pela pos-
sibilidade de limitações, tomando por fundamento o artigo 216, §1º
da Constituição Federal.

3.1.3 Desapropriação

A desapropriação é uma forma de intervenção do Estado no di-


reito de propriedade que, calcada na supremacia do interesse públi-
co, extingue aquele direito ao retirar o bem do patrimônio do titular,
transferindo-o para o patrimônio público mediante prévia e justa
indenização em dinheiro. O bem – até então particular, em regra –
tornar-se-á bem público, incidindo sobre ele o regime jurídico pró-
prio do direito público, o que o torna inalienável, imprescritível, in-
suscetível de usucapião, impenhorável e não onerável.
Em que pese estar relacionada entre os instrumentos hábeis
à proteção do patrimônio cultural, a desapropriação não foi pro-
priamente formulada para tal fim, como o tombamento ou o regis-
tro, haja vista que pode ser efetivada por múltiplos fundamentos,
como aqueles encontrados nos Decreto-lei n. 3.365/41 e nas Leis n.
3.924/61, n. 4.132/62, n. 8.629/93 e o Estatuto da Cidade, funda-
mentos estes que variam desde a segurança pública, passando pela
utilização de áreas apropriadas ao desenvolvimento do turismo, até
a desapropriação para fins de reforma agrária. Ocorre, porém, que o
poder público não pode livremente desapropriar bens sem o devido
fundamento legal, conforme entendimento majoritário da doutrina
104 | Bruno Barbosa Heim

jurídica. Ou seja, só é válida a desapropriação cuja finalidade tenha


respaldo legal, não podendo, a Administração Pública, promover a
retirada forçada de bens para qualquer fim que não aqueles expres-
samente previstos.
Nas leis supramencionadas, em especial no Decreto-lei n.
3.365/41, que estabelece casos de utilidade e necessidade pública
para fins de desapropriação, encontra-se a possibilidade de desapro-
priar imóvel para:

k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artís-


ticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem
como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspec-
tos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens
e locais particularmente dotados pela natureza;

Esse dispositivo permite, sem dúvidas, a possibilidade de se de-


sapropriarem bens para fins de proteção cultural, podendo ser ma-
nejado para proteção da natureza sagrada do candomblé. Porém, sua
redação é restritiva aos “monumentos históricos e artísticos”, “pro-
teção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza”,
o que exclui possíveis outros locais que compõem os territórios do
candomblé.
Nesse sentido, parece-nos indispensável realizar uma interpre-
tação do instituto à luz da dicção constitucional. Quando o artigo
216, §1º, da Constituição Federal, relaciona a desapropriação como
meio de proteção do patrimônio cultural brasileiro, ela estabelece
que a desapropriação será instrumento hábil para tutela dos mais
diversos bens culturais materiais – não se adequando, por óbvio, à
tutela dos bens imateriais –, inclusive aqueles oriundos da cultura
popular, negra, indígena ou de outros grupos formadores da socie-
dade brasileira, independente de se enquadrar na categoria de mo-
numento histórico. Assim, entendemos ser o próprio dispositivo do
artigo 216, §1º, fundamento para desapropriações que pretendam
proteger o patrimônio cultural brasileiro, sem necessidade de outro
lastro infra-constitucional, o que garantirá sua necessária amplitu-
de, tão ampla quanto o conceito de patrimônio cultural de ordem
material.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 105

3.1.4 Zoneamento urbano



O zoneamento urbano é um instrumento previsto no Estatuto
da Cidade, largamente utilizado no país, mesmo antes do advento
da referida lei. Na definição de José Afonso da Silva (2010, p. 238),
zoneamento urbano constitui:

[...] um procedimento urbanístico que tem por objeto regular o uso


da propriedade do solo e dos edifícios em áreas homogêneas, no in-
teresse do bem-estar da população. Ele serve para encontrar lugar
para todos os usos essenciais do solo e dos edifícios na comunidade
e colocar cada coisa em seu lugar adequado, inclusive as atividades
incômodas.

Quase todos os municípios adotam o zoneamento para estabe-


lecer, em seu território, distintas zonas que serão destinadas às ati-
vidades habitacionais, industriais, comerciais e mistas, cabendo ao
poder público definir os índices urbanísticos – como tamanho do
lote, gabarito e taxa de ocupação – para cada zona prevista em lei.
Através do zoneamento, podem ser definidas também zonas es-
peciais, como aquelas destinadas à preservação de recursos naturais
ou à preservação cultural e, na prática, como salienta Souza Filho
(2005), o zoneamento é um dos instrumentos mais eficazes de pro-
teção do patrimônio cultural.
O município de Salvador, segundo Oliveira (2010; 2018), foi
o primeiro do Brasil a utilizar o zoneamento com a finalidade espe-
cífica de proteção dos territórios do candomblé, ao editar a Lei n.
3.515/85, que delimitou a área do terreiro Ilê Axé Apô Afonjá sob
a modalidade de zoneamento “área de proteção cultural e paisagísti-
ca”, presente na Lei n. 2.403/72. Mais tarde, as Leis nº 3.590/1985 e
3.591/1985 definiram a área de outros cinco terreiros nesta mesma
modalidade de zoneamento. Em 2000, mais uma área de terreiro foi
assim protegida, e novamente com a Lei n. 7.400/08, que instituiu
novo plano diretor do município, mais dois terreiros foram zoneados
como área de proteção cultural e paisagística. O atual plano diretor
de Salvador, Lei n. 9.069/16, estabeleceu as “áreas de proteção cul-
tural e paisagística” para onze terreiros. O novo PDDU submeteu
106 | Bruno Barbosa Heim

a regulamentação dessas áreas à legislação específica, valendo, na


ausência de regulamentação, a normatização em vigor, ou seja, a Lei
n. 3.515/85.
O zoneamento protecionista desses terreiros envolveu áreas
muito maiores do que o espaço físico do próprio terreiro, engloban-
do áreas contíguas, como áreas verdes que compõem seu território,
como pode ser percebido na comparação do zoneamento que envol-
ve o Ilê Axé Apô Afonjá e uma foto de sua aérea.

Figura 02: Área de Preservação Cultural e Paisagística do Ilê Axé Opô Afonjá,
trecho do Mapa 07

Fonte: Lei n. 9.069/2016 do Município de Salvador.


Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 107
Figura 3 – Foto de satélite correspondente à Área de Preservação Cultural e
Paisagística do Ilê Axé Opô Afonjá.

Fonte: Google Mapas.

A Lei n. 3.515/1985 definiu, como subcategorias para o zonea-


mento da área, uma “Área de Proteção Rigorosa” (APR) e uma “Área
Contígua à Área de Proteção Rigorosa” (ACPR); a APR se subdivi-
de em “Área de Proteção Rigorosa 1” (APR-1), que compreende “as
edificações de uso religioso e seu entorno, as árvores isoladas e seu
entorno e a área verde contínua”, e “Área de Proteção Rigorosa 2”
(APR-2), “que compreende as áreas de uso residencial e se compõe
de três subáreas: APR-2a, APR-2b e APR-2c”.

Art. 6º - Aplicam-se as seguintes restrições à Área compreendida


pela APR-1:

I - Fica proibido o desmatamento e/ou corte de árvores de médio e


grande porte;
108 | Bruno Barbosa Heim
II - Fica proibido qualquer nova edificação ou empreendimento que
não sejam destinados exclusivamente às atividades de caráter reli-
gioso e necessário ao funcionamento dos ritos do Candomblé;

III - As novas edificações ou empreendimentos de caráter exclu-


sivamente religioso deverão adequar-se à tipologia das edificações
existentes, integrando harmoniosamente o conjunto.

Art. 7º - Na Área compreendida pela APR-2a, b e c aplicam-se as


seguintes restrições:

I - Somente serão permitidos usos uniresidenciais dos grupos R-1 e


R-2, constantes da tabela IV.1 do Anexo 4 da Lei nº 3.377/84;

II - Cada nova edificação e/ou reforma com ou sem ampliação, não


poderá ultrapassar 1 (um) pavimento;

Art. 8º - Para a área compreendida pela ACPR além das restrições


zonais e não zonais de uso e ocupação previstas pela Lei nº 3.377/84
para a ZR-16, na qual a referida área está contida, fica estabelecido
que o número máximo de pavimentos permitidos é igual a 3 (três).

Para essas áreas, foram impostas restrições que conformam a
necessária proteção do terreiro, suas áreas verdes e entorno, ao proi-
bir, por exemplo, na extensa área verde que envolve o terreiro, o
desmate e o corte de áreas de médio e grande porte ou construções
que não sejam destinadas a atividades religiosas necessárias ao can-
domblé.

3.1.5 Registro

O registro de bens culturais de natureza imaterial, ou simples-


mente “registro”, é o instrumento hábil para a individualização de
bens imateriais, tornando-os patrimônio cultural. Segundo o Decre-
to n. 3.551/00, o registro é realizado com a inscrição do bem em um
livro: de Registro de Saberes, Registro de Celebrações, Registro de
Formas de Expressão ou Registro de Lugares, de modo similar ao
ato de inscrição no livro do tombo.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 109

Ao inscrever o bem em um livro de registro, ele passará a in-


tegrar o patrimônio cultural brasileiro, gozando do status jurídico
desses bens. Em que pese a regulamentação legal do instrumento
datar o ano 2000, sua utilização é mais antiga. Isso porque, nas pala-
vras de Lemos (1987, p. 29 apud SOARES, 2009, p. 322), “registrar
é sinônimo de preservar, de guardar para amanhã informações liga-
das a relações entre elementos culturais que não têm garantias de
permanência”. Ainda hoje ocorre desse modo: ao inscrever o bem no
livro específico, o poder público deverá também promover atos de
registro desse bem em suporte físico, como livros, vídeos ou arqui-
vos digitais, de modo a catalogar informações, preservando e propa-
gando o conhecimento sobre o bem cultural.18
No estado da Bahia, a Lei n. 8.895/03 estabeleceu cinco livros
próprios para o registro, entre eles os Livros do Registro Especial
dos Eventos e Celebrações e do Registro Especial dos Espaços des-
tinados a Práticas Culturais Coletivas. Em 2014, através da inclu-
são neste último, foram registrados dez terreiros nos municípios
de Cachoeira e São Félix,19 os primeiros terreiros de todo o país a
receberem registro.
Além dos terreiros, alguns territórios descontínuos dos povos
de terreiro passaram a integrar o patrimônio cultural brasileiro com
a utilização do instrumento. Cite-se o registro do Bembé de Mer-
cado no Livro de do Registro Especial dos Eventos e Celebrações20
pelo estado da Bahia, em 2012, que em 2019, também foi registrado
18  Como exemplo de produções que reúnem informações sobre bens imateriais
para instrução de processos e propagação ao público, tomamos o Patrimônio
Cultural Imaterial Bembé do Mercado: Cadernos do IPAC – Bembé do Mercado
(PELLEGRINO FILHO, 2014), Instrução Registro Bembé do Mercado (BRASIL,
2019) e “Bembé do Mercado (BA) ganha reconhecimento como Patrimônio
Cultura do Brasil” (BEMBÉ, 2019).
19  Aganjú Didê, Viva Deus, Lobanekum, Lobanekum Filha, Ogodó Dey, Ilê
Axé Itayle, Humpame Ayono Huntóloji e Dendezeiro Incossi Mukumbi, em
Cachoeira; Raiz de Ayrá e Ile Axé Ogunjá, em São Félix.
20  Em que pese não ser conceitualmente preciso, o Bembé do Mercado é
popularmente conhecido como candomblé de rua. Um festejo realizado a mais de
130 anos no município de Santo Amaro, promovido por diversas comunidades
de terreiro para celebrar o fim da escravidão, no dia 13 de maio. Após obrigações
que ocorrem nos terreiros, os povos de terreiro percorrem pontos simbólicos da
cidade e realizam cerimônias no mercado.
110 | Bruno Barbosa Heim

pelo IPHAN, com inscrição no Livro de Registro de Celebrações.


Em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, o Bará do Mercado21 foi ins-
crito no Livro de Registro de Lugares.
Em que pese não estar previsto no Decreto n. 3.551/00, para
todos os bens registrados pelo IPHAN são realizados planos de sal-
vaguarda, que visam “apoiar e fomentar o patrimônio cultural, bus-
car meios de contribuir para sua continuidade de modo sustentável,
atuar para a melhoria das condições sociais e materiais de transmis-
são e reprodução, que possibilitam a existência do bem” (BEMBÉ,
2019).

3.2 AVALIAÇÃO DOS INSTRUMENTOS

O tombamento é, indubitavelmente, importante instrumento


para proteção dos monumentos do candomblé, como os terreiros,
seus templos sagrados. Também é útil à salvaguarda dos locais de
natureza sacralizados ou que compõem seu território, em especial
quando contíguos ao templo. Nas palavras precisas de Oliveira
(2010, p. 115):

O valor do tombamento dos Terreiros é notório e necessário uma


vez que, além de impedir a invasão das roças pelo adensamento dos
espaços urbanos, possibilita um controle da sua área vizinha (limi-
tação de gabarito dos lotes vizinhos, conservação da mata, etc.),
elemento fundamental para o exercício das práticas religiosas: ma-
nutenção do sigilo ritualístico e dos elementos sagrados para as
práticas litúrgicas .

21  No Mercado Popular Central de Porto Alegre, encontra-se assentado Exu


Bará, tendo tornado o mercado um local permanentemente sagrado para os
diversos povos de terreiros locais. Na história oral, conta-se que o assentamento
foi realizado para se garantir o sustento dos negros que ali conviviam. Alguns
dizem que o assentamento teria sido realizado pelo príncipe Custódio, de
Benin, Nigéria, exilado no Brasil nos fins do século XIX. Outros falam que o
assentamento foi realizado por negros que construíram o mercado. Hoje, diversas
comunidades de terreiro realizam obrigação no passeio do Mercado.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 111

Ocorre, porém, que o tombamento de determinado local, inte-


grante do território de um povo de terreiro ou de vários deles, com a
proteção à sua imodificabilidade, não significa que seus integrantes
poderão desfrutar do espaço preservado.
O tombamento de determinado local impõe sua imodificabili-
dade, o que pode ser positivo, no sentido de garantir que áreas do
“mato” não sejam profundamente antropizadas, porém, como uma
faca de duplo gume, pode impedir que modificações no espaço, ne-
cessárias à dinâmica do candomblé, como aquelas alterações no ter-
ritório ou edificações realizadas a pedido de determinado orixá, pos-
sam ser realizadas.
Outrossim, ainda que garanta proteção a determinado local, não
é capaz de garantir ao povo de terreiro o desfrute do espaço para
suas práticas litúrgicas, colheita de folhas e outros usos. Isso porque
o tombamento é indiferente ao caráter exclusivo do direito de pro-
priedade e, diante da dogmática estabelecida, não constitui direito
de acesso para uso ou fruição do bem. Poderão ser preservadas áreas
utilizadas pelo povo de terreiro, porém se o proprietário do imóvel
manifestar oposição ao ingresso dos praticantes em seu imóvel, a
dogmática do tombamento não será capaz de impedir o exercício do
seu direito de exclusividade sobre a coisa.
O inventário dos territórios do candomblé, inclusive sua na-
tureza sacra, é perfeitamente viável. Ao inventariar determinado lo-
cal, este integrará o regime do patrimônio cultural brasileiro, com
a proteção decorrente dos tipos penais e infrações administrativas
previstas em lei. A inércia da União em legislar sobre esse instru-
mento impõe vantagens ao seu uso, como uma possível menor rigi-
dez à imodificabilidade. Consequências decorrentes do inventario,
inclusive a previsão de regime especial para o inventário de templos
e territórios do candomblé, poderão ser previstas em legislações es-
taduais e municipais, o que amplia o horizonte de utilização do ins-
trumento. Não obstante, tal como o tombamento, o inventário não
garante ao povo de terreiro acesso aos bens inventariados.
O Decreto n. 3.551/00, ao regulamentar o registro, instrumen-
to concebido para proteção da cultura imaterial, não prevê regras
112 | Bruno Barbosa Heim

que impactem o direito de propriedade dos bens imóveis, ou seja,


não vincula uso, não restringe o direito de modificação do bem, não
transfere a propriedade do bem para o poder público.
Entendemos, porém, que ao integrar o patrimônio cultural, es-
ses bens gozam da tutela jurídica especial, especialmente da prote-
ção contra o crime ambiental previsto no 62 da Lei n. 9.605/98 e a
infração administrativa ambiental prevista no artigo 72 do Decreto
n. 6.514/08, impedindo intervenções no território que destruam,
inutilizem ou deteriorem o próprio território ou as manifestações
culturais que necessitam do suporte territorial.
Ao tempo em que concluímos a redação deste texto, aguarda-
mos o desfecho de processos que tramitam no Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul e no Tribunal de Contas desse mesmo estado,
avaliando a possibilidade de concessão do Mercado Público, local
registrado pela tradição do Bará do Mercado. O edital de concor-
rência pública publicado pelo município visa a concessão do espaço,
com possibilidade de realização de obras e exploração econômica,
impactando diretamente na tradição do povo de terreiro do esta-
do. Entre os principais argumentos para suspensão da concessão,
está a manutenção do patrimônio cultural, além de aspectos formais.
No momento, ambos os tribunais suspenderam a concessão, com-
preendendo que a legislação local exige aprovação da concessão pelo
Poder Legislativo, de tal sorte que a tutela do patrimônio cultural
não foi fundamento das decisões, matéria que deve ser analisada nas
sentenças.
A desapropriação, diferentemente dos instrumentos menciona-
dos, não inclui o objeto no rol do patrimônio cultural brasileiro e,
consequentemente, não será objeto material dos crimes e infrações
administrativas contra o patrimônio cultural. O bem, contudo, pas-
sará a integrar o patrimônio público, podendo ser afetado à pre-
servação cultural das religiões afro-brasileiras, garantindo o livre
acesso dos adeptos do candomblé à área.
O zoneamento, diferentemente do tombamento, que não pode
tombar o uso do imóvel, por excelência vincula os usos dos imóveis
urbanos. Porém, também não é capaz de viabilizar o acesso de tercei-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 113

ros ao bem contra a vontade do proprietário. É inegável, entretanto,


sua relevância para a proteção dos territórios do candomblé. Nas
precisas palavras de Oliveira (2010, p. 117):

[a] APCP, decerto, permite a preservação de outros elementos sim-


bólicos na leitura da excepcionalidade do bem, quer pela possibili-
dade de proteção as áreas verdes, importantes elemento litúrgico;
quer pela possibilidade de alteração estrutural, quando da necessi-
dade ou vontade dos Orixás, Voduns, Inkisis e Caboclos (2010, 84-
85). […] a proteção aos Terreiros de Candomblé através de Áreas
de Proteção como ocorre no município de Salvador, facilita a pre-
servação do bem, uma vez que não atende às limitações impostas
pelo tombamento, permitindo a construção de uma política e ação
preservacionista mais livre, ampla e próxima da realidade do bem
monumento, enxergando-o numa visão mais totalizante, engloban-
do suas características materiais e imateriais.

O zoneamento é instrumento capaz de salvaguardar o terreiro


de candomblé, como também outros locais importantes para o povo
de terreiro. A experiência do município de Salvador demonstra sua
eficácia na salvaguarda dos territórios do candomblé, como pude-
mos perceber com o exemplo do Ilê Axé Opô Afonjá. A região onde
o terreiro está situado foi amplamente ocupada de forma desorde-
nada, restando pouquíssimas áreas verdes, geralmente encostas ou
locais impróprios para construção de moradia. O território protegi-
do do terreiro é um dos poucos remanescentes de mata atlântica do
bairro. Não apenas a família de santo do Opô Afonjá goza, hoje, do
seu espaço de “mato”, como toda a cidade desfruta desse resquício
de área verde.

4 CONCLUSÃO

Territórios descontínuos dos povos de terreiro, incluindo as ma-


tas onde são coletadas as folhas necessárias às atividades de cura e
ao culto evocativo de orixás, inquinces, voduns ou guias, devem ser
devidamente protegidos, sob pena desse povo perder seu elemento
referencial e sua identidade. Para tal mister, o poder público poderá
114 | Bruno Barbosa Heim

manejar instrumentos próprios para proteção do patrimônio cultu-


ral, uma vez que a “natureza” é, para esses sujeitos, valorada como
algo sagrado – habitada pelo sobrenatural –, morada de orixás e,
muitas vezes, caracterizando-se como o próprio orixá; natureza que
não é distinta de si e, portanto, não é simplesmente “natureza”, que
rompe com a dicotomia natureza/cultura e as funde em um único
elemento; objeto que nitidamente se configura bem cultural, na li-
ção de José Afonso da Silva, e que poderá ser individualizado para
qualificar-se como bem jurídico cultural, integrante do patrimônio
cultural brasileiro.
Respondendo à pergunta que motivou o presente estudo, os es-
paços naturais que compõe os territórios do povo de terreiro podem
ser individualizados e protegidos como patrimônio cultural. Da aná-
lise do tombamento, inventário, registro, desapropriação e zonea-
mento urbano, pudemos constatar que todos são capazes de garantir
algum nível de proteção jurídica aos territórios descontínuos dos
povos de terreiro, inclusive os espaços “naturais”, ainda que não se
amoldem plenamente a proteger a área, vincular seu uso e garantir
o acesso do povo de terreiro. Caberá à gestão pública, em parceria
com a comunidade, manejar esses e outros instrumentos presentes
no ordenamento jurídico brasileiro, conforme as especificidades de
cada situação, para a salvaguarda dos territórios do povo de terreiro.
Além disso, ainda que os instrumentos supramencionados não
sejam plenamente eficazes na proteção dos territórios descontínuos,
entendemos que, no caso de uma ameaça concreta aos territórios, o
estado, que, conforme dicção constitucional, tem o dever de proteger
os bens culturais, precisará adotar medidas para tutela desses bens, o
que pode envolver a utilização do poder de polícia administrativa, a
polícia judiciária, articulação com órgãos públicos e privados, enfim,
ações efetivas diante do conflito para que os bens protegidos não
sejam impactados e se preserve o território dos povos de terreiro.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 115

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118 | Bruno Barbosa Heim

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5
PATRIMONIALIZAÇÃO DOS BENS
CULTURAIS DOS ESPAÇOS RELIGIOSOS
AFRO-BRASILEIROS NA BAHIA: DO
TOMBAMENTO AO REGISTRO ESPECIAL
DE TERREIROS22
Walkyria Chagas da Silva Santos23

Eu estou aqui, você mandou chamar


Agora vai ouvir eu cantando pra curar!
Eu sou juremeira, sou nego juremá,
Sou forte curandeiro, de aruanda eu vim cá!

(“Canto e Danço Pra Curar”, Os Tincoãs -)

As religiões afro-brasileiras nascem da simbiose ocorrida entre


as religiões africanas trazidas pela diáspora, bem como das inter-
relações com os demais povos que compõem a nação brasileira, em
especial os indígenas. Várias são as denominações utilizadas para
identificá-las, como xangô, batuque, umbanda, jurema, jarê, entre

22  As discussões apresentadas fazem parte da tese que será apresentada


ao Programa de Pós-graduação em Estado e Sociedade, da Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB). A pesquisa é financiada pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
23  Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Estado e Sociedade, da
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Doutoranda pelo Programa de
Pós-graduação em Direito, da Universidade de Brasília (UnB). Professora da
Universidade Federal do Tocantins (UFT). Integrante do Grupo de Pesquisa
MARÉ – Cultura Jurídica e Atlântico Negro. Integrante do Coletivo Dandaras.
E-mail: kyriachagas@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
3515-0311
119
120 | Walkyria Chagas da Silva Santos

outras. Na Bahia, o termo mais popular para designar essas religiões


é candomblé.24
Essas religiões foram fortemente perseguidas pelo Estado e
pela sociedade durante o período colonial e imperial, e continuam
sendo alvo de várias ações que violam os direitos dos seus adeptos.
A abolição da escravidão e a Proclamação da República25 poderia
trazer novos ventos de liberdade e igualdade, porém não foi o que
aconteceu e acontece na prática, visto que as religiões afro-brasilei-
ras são perseguidas na atualidade, com a vigência da Constituição
de 1988, do Estado Democrático de Direito e dos direitos humanos
e fundamentais.
As violações aos espaços sagrados das religiões afro-brasileiras,
os discursos de ódio e a demonização das práticas e dos praticantes
trazem reflexos para o exercício do direito à liberdade religiosa e
24  Sobre o termo candomblé, Yeda Castro (2001, p. 196, apud SODRÉ, 2010,
p. 10) informa que “[...] candomblé (expressão banto) seria: “local de adoração
e práticas religiosas dedicadas às divindades africanas (santos); a cerimônia
pública festiva. [...] Para Juana Elbein dos Santos (1986, p.32), esse elemento
fundamental do complexo cultural africano pode ser definido como: “Associações
bem organizadas, EGBÊ (comunidade, terreiro de candomblé) onde se mantém e
renova a adoração das entidades sobrenaturais, os Órisà e os ancestrais ilustres,
os Égun.” (SODRÉ, 2011, p. 10). Segundo Oliveira (2018, p. 258), “os terreiros
de candomblé, construção baiana, pela sua singularidade ou excepcionalidade,
são uma reunião resistente de imaterialidade e materialidade de uma cultura
afro-brasileira”. (OLIVEIRA, 2018, p. 258).
25  A Constituição de 1891 separou formalmente o Estado e a Igreja Católica
e aboliu, do texto constitucional, a religião católica apostólica romana como
religião oficial do país. Porém, apesar da garantia de igualdade de tratamento
entre as religiões, na prática, o Estado continuou utilizando os Códigos de
Posturas Municipais (CPM) para perseguir e impedir o culto das religiões
afro-brasileiras (SANTOS, 2015). Mas o que são os CPM’s? Tânia Regina Sá
(2011, p. 277), ao analisar os CPM’s de Salvador, informa: “Códigos de Posturas,
enquanto composição metódica e articulada de disposições legais e coleção de
preceitos e regras autorizadas pelo poder dos legisladores, designam regras de
convivência em sociedade que acompanharam, desde o período colonial (1500-
1822), a organização da cidade do Salvador. A Metrópole portuguesa recorria a
esses códigos com o intuito de impor a autoridade e de zelar pela ordem e “bons
costumes” nas colônias que estavam sobre sua jurisdição”. E como estratégia de
política de vigilância, foi instaurada, em 1930, a Delegacia de Jogos e Costumes
no Centro Histórico de Salvador. Nela, havia uma listagem dos hábitos incivis e
de prostituição, e, segundo, a autora todos os itens da listagem de alguma forma
possuíam ligação com as práticas do candomblé.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 121

dos direitos culturais, assim como revelam a ausência de ações efeti-


vas que visem coibir os ataques aos direitos dessa população e a bai-
xa incidência de proteção dos bens culturais pertencentes aos povos
da diáspora africana.
O presente artigo objetiva realizar uma breve análise da patri-
monialização dos espaços religiosos afro-brasileiros no Estado da
Bahia, desde o primeiro tombamento, ocorrido na década de 1980,
até às ações de registro especial realizadas em 2014. A patrimonia-
lização é utilizada para reconhecer identidades consideradas hege-
mônicas e, em poucos casos, ela também reconhece identidades que
passaram/passam pelo processo de colonialismo26/colonialidade,27
processo este cujas consequências reverberam na atualidade.
No Estado da Bahia, há terreiros tombados pelo Instituto do Pa-
trimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), pelo Instituto do
Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) e por órgãos muni-
cipais.28 Atualmente, há 11 (onze) terreiros tombados pelo IPHAN
em todo Brasil. São eles: Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Terreiro da Casa
Branca), Ilê Axé Opô Afonjá, Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê (Terreiro do
Gantois), Manso Banduquenque (Bate Folha), Ilê Maroiálaji Alakê-
to, Ilê Axé Oxumaré, e o Tumba Junsara, todos localizados na cida-
de de Salvador, Bahia; em outras cidades baianas, tem-se Zoogodo

26  Para compreensão do conceito de colonialismo, citamos Ramón Grosfoguel


(2008, p. 126): “Eu uso a palavra “colonialismo” para me referir a “situações
coloniais” impostas pela presença de uma administração colonial, como é o caso
do período do colonialismo clássico”.
27  A colonialidade “pode ser compreendida como uma lógica global de
desumanização que é capaz de existir até mesmo na ausência de colônias formais”
(MALDONADO-TORRES, 2018, p. 36).
28  Como exemplo, é possível citar os municípios de Camaçari, Salvador e
Ilhéus. “Terreiro de Lembá é tombado como Patrimônio Cultural de Camaçari”
(Disponível em: http://www.sepromi.ba.gov.br/2016/05/940/Terreiro-de-
Lemba-e-tombado-como-Patrimonio-Cultural-de-Camacari.html. Acesso em: 28
ago. 2019); “O mais antigo terreiro Ijexá do Brasil agora é patrimônio cultural
de Salvador” (Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/
nid/o-mais-antigo-terreiro-ijexa-do-brasil-agora-e-patrimonio-cultural-de-
salvador/. Acesso em: 28 ago. 2019); “O Terreiro de Candomblé de Pai Pedro, foi
tombado no dia 18 de fevereiro de 2004, pelo Decreto n° 010/04” (Disponível em:
http://www.uesc.br/cursos/pos_graduacao/mestrado/turismo/dissertacao/
dissertacao_julianna_torezani.pdf. Acesso em: 28 ago. 2019).
122 | Walkyria Chagas da Silva Santos

Bogum Malê Seja Undé (Terreiro Roça do Ventura), em Cachoeira


e Omo Ilê Agbôula, na Ilha de Itaparica; e há um terreiro no Mara-
nhão (o Casa Grande de Minas ou Casa das Minas Jejê ou Quereben-
tã de Zomadonu) e um terreiro em Recife (o Ilê Obá Ogunté – Sítio
de Pai Adão).
Até o ano de 2015, o IPAC havia tombado, provisória ou defini-
tivamente, 20 (vinte) terreiros, todos localizados na Região Metro-
politana de Salvador e no Território do Recôncavo Baiano; em 2014,
implementou o Registro Especial de Terreiros, registrando 10 (dez)
terreiros do Território do Recôncavo Baiano. Além dos tombamen-
tos e dos registros, em 2012 foram realizados dois mapeamentos, o
“Mapeamento dos Espaços de Religiões de Matrizes Africanas do
Recôncavo” e o “Mapeamento dos Espaços de Religiões de Matrizes
Africanas do Baixo Sul”.29
É importante ressaltar que as ações de proteção foram
implementadas a partir da forte pressão do movimento negro, dos
espaços religiosos afro-brasileiros e dos adeptos/praticantes de
tais religiões. O patrimônio cultural negro originário da diáspora
e guardado nos espaços religiosos afro-brasileiros são símbolos de
resistência às posturas colonizadoras do Estado e, no processo de
tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, mais uma vez a resistência
se fez necessária para superar os ranços do eurocentrismo presente
nos discursos de alguns conselheiros do Conselho Consultivo do
IPHAN e de alguns técnicos do órgão.
Apesar das demandas por tombamento e dos possíveis pontos
positivos trazidos por tal instrumento, o povo de terreiro, os órgãos
de proteção e acadêmicos têm questionado se este é o melhor instru-
mento para salvaguardar o patrimônio cultural dos terreiros. Um
dos motivos é a aplicação do tombamento apenas para terreiros de
candomblé e, na maioria, da nação Keto, assim como a necessidade
de pensar em formas de proteger o patrimônio imaterial, rezas, ri-
tuais, festas, orikis, modos de fazer, entre outros, presente nos espa-
ços religiosos afro-brasileiros (SANTOS, 2015).

29  No Território do Recôncavo, há 420 (quatrocentos e vinte) espaços mapeados


e, no Território do Baixo Sul, há 116 (cento e dezesseis) espaços mapeados.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 123

Para abordagem do tema do presente artigo, a primeira sessão


pretende apresentar um panorama geral sobre o início da patrimo-
nialização dos espaços religiosos afro-brasileiros no Brasil. Na se-
gunda, será analisado o novo instituto implementado pelo Estado da
Bahia, o registro especial de terreiros. Os dados serão apresentados
a partir da análise das informações sobre proteção do patrimônio
cultural encontradas em sites, processos administrativos, livros e
pesquisa empírica.

1 BREVE PANORAMA DA PATRIMONIALIZAÇÃO DOS ESPAÇOS


RELIGIOSOS AFRO-BRASILEIROS NO ESTADO DA BAHIA

O Estado brasileiro iniciou a política de patrimonialização em


1937, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), posteriormente Secretaria do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional (SPHAN), atualmente IPHAN, através
do Decreto-Lei n° 25, e apresentou, como único instituto jurídico
para conservação dos bens de interesse público, o tombamento. A
despeito de diversas contestações, a preservação priorizou o patri-
mônio da cultura branca e elitizada e a estética barroca (RUBIM,
2007).
O SPHAN foi criado para materializar a história nacional, au-
xiliar na “construção da nação brasileira”, e o tipo de patrimônio
escolhido para representar essa história e nação constituía a produ-
ção artística e arquitetônica do período colonial, com ênfase para o
patrimônio da região de Minas Gerais, tendo sete cidades tombadas.
Foi o movimento modernista que mobilizou a construção dessa
história. Até aquele momento, a produção arquitetônica e artística
do período colonial era pouco conhecida e valorizada, assim como as
expressões brasileiras do estilo barroco não recebiam atenção e pro-
teção do Estado. E foi atualizando a linguagem artística em relação
às vanguardas europeias, que assumiram a missão de construir uma
tradição cultural brasileira, e o estilo barroco das edições e obras de
artes coloniais foram considerados o primeiro estilo artístico genui-
namente brasileiro (FONSECA, 2007). Portanto, a atuação estatal
124 | Walkyria Chagas da Silva Santos

estava pautada no tombamento de patrimônio cultural que Fonseca


(2003) denominou de patrimônio de “pedra e cal”.
Assim, foi priorizada a cultura material, com ênfase no patrimô-
nio de origem/inspiração portuguesa, que “[...] é explicada em fun-
ção da força da sua cultura material, em detrimento da fragilidade
material da cultura indígena ou da presença africana, em função da
sua condição escrava” (CHUVA, 2011, p. 44). Mas será que a pre-
terição do patrimônio de origem indígena e africana reside na sua
fragilidade material, ou seria a permanência dos efeitos do colonia-
lismo, da colonialidade e branquitude30 tão presentes na sociedade
brasileira?
A partir de tal concepção, a maioria dos bens arquitetônicos es-
colhidos foram e são as construções religiosas de origem católica,
visto que tais construções atendiam/atendem aos critérios que nor-
teavam a ação do SPHAN e atualmente atendem aos critérios que
norteiam o IPHAN, haja vista que as construções religiosas repre-
sentam a “beleza e a verdade”, por apresentarem qualidade constru-
tiva (FERREIRA; SANTOS, 2018).
Foi na década de 1980, no âmbito da Fundação Nacional Pró-
-Memória (FNPM), órgão operacional que funcionou ao lado da
SPHAN e visava a preservação do patrimônio cultural, que começa-
ram, ao nível estatal, as ações para reparar o etnocentrismo e euro-
centrismo das políticas culturais brasileiras, com o projeto “Etnias
e Sociedade Nacional”, do antropólogo Olympio Serra. As ações
da FNPM e do Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC)
aproximaram a política da SPHAN dos setores até então marginali-
zados, como, por exemplo, o patrimônio cultural negro, e os concei-
tos surgidos foram incorporados ao Texto Constitucional de 1988.
Por inspiração de Olympio Serra, em 1981, Ordep Serra e Orlando
Ribeiro de Oliveira elaboram o Mapeamento dos Sítios e Monumen-

30  Lia Vainer Schucman (2014, p. 135-136), ao revisar o medo branco no século
XXI, informa: “Entendemos neste trabalho que a identidade racial branca –
branquitude - se caracteriza nas sociedades estruturadas pelo racismo como um
lugar de privilégio materiais e simbólicos construído pela ideia de “superioridade
racial branca” que foi forjada através do conceito de raça edificado pelos homens
da ciência no século XIX delimitando assim fronteiras hierarquizadas entre
brancos e outras construções racializadas”.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 125

tos Religiosos Negros da Bahia (MAMNBA), que tinha como obje-


tivo “identificar os principais monumentos do culto afro-brasileiro
e definir uma política de proteção eficaz que a eles se adequasse”
(SERRA apud QUEIROZ, 2015, p. 24).
Quando, na década de 1980, ocorreu o requerimento de tomba-
mento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, várias discussões foram apresen-
tadas para justificar a ausência de beleza e interesse em tombar o
bem. Para os conselheiros do Conselho Consultivo do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, o terreiro seria “[...] desprovido de
edificações de tivessem valor artístico, posto que [sic], não apresen-
tava a mesma suntuosidade das ‘edificações religiosas, militares e
civis da tradição luso-brasileira” (VELHO, 2012, p. 55).
Havia o reconhecimento da necessidade de preservar o terrei-
ro, porém não era pacífico o entendimento de que seria cabível o
tombamento, pois muitos questionavam o que um terreiro possuía
enquanto beleza arquitetônica que merecesse ser resguardado pelo
Estado brasileiro. Um dos grandes debates estava assentado no fato
de que alguns conselheiros entendiam que não era possível tombar
uma religião, porém tal fato não foi impedimento para o tombamen-
to dos espaços religiosos católicos durante as décadas que sucede-
ram a criação do SPHAN, fato relatado por Gilberto Velho (2012),
parecerista do processo de tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká.
Porém, no momento da votação para aprovação do pedido de
tombamento, os conselheiros questionaram se o tombamento era
a melhor escolha e apresentaram alternativas, pois, para eles, a ga-
rantia da posse do imóvel resolveria a questão da insegurança, um
dos motivos que desencadeou o pedido de tombamento. A alterna-
tiva apresentada foi a aplicação de outro tipo de intervenção estatal
para auxiliar a comunidade sem especificar qual intervenção seria a
adequada. Após longo debate, o tombamento foi aprovado com duas
abstenções, um voto contrário, um voto pelo adiamento e três votos
favoráveis (VELHO, 2012, p. 171-176).
Os conselheiros do Conselho Consultivo do SPHAN seguiram
o entendimento dos técnicos e debateram que o tombamento de um
terreiro não era possível, visto que o bem era desprovido de edifica-
ções que tivessem valor artístico, que fossem suntuosas. Assim, as
126 | Walkyria Chagas da Silva Santos

construções dos templos religiosos afro-brasileiros eram considera-


das inferiores. Ou seja, a decisão pelo tombamento não configurou a
visão consensual, e o tombamento, que representava a requisição de
auxilio do Estado para preservação da cultura que, durante séculos
foi perseguida pelos agentes estatais, transformou-se em mais uma
“luta de resistência” (FERREIRA, 2018).
E foi assim, preservando o patrimônio relacionado às memórias
do poderio europeu, que o Brasil chegou à década de 1980 com ape-
nas um tombamento relacionado à cultura negra. Porém, o tomba-
mento da Coleção de Magia Negra31 representou e representa mais
um capítulo da violência sofrida pelos negros escravizados em solo
brasileiro. Portanto, foi na década de 1980, a partir de demanda e
não espontaneamente, que o Estado brasileiro iniciou o primeiro
processo de individualização de um monumento negro para declará-
-lo patrimônio cultural nacional. Nas páginas do Processo n. 1.067-
T-82, processo administrativo de tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô
Oká, é possível perceber as tensões e contradições que permeiam a
sociedade brasileira, as ideias de branquitude, o racismo religioso,32
o colonialismo e a colonialidade.
A fissura na concepção de patrimônio cultural foi iniciada com
o tombamento definitivo do Ilê Axé Iyá Nassô Oká em 1986, mas
a sua garantia só foi formalizada na Constituição de 1988. O Texto
Constitucional assegurou não só a igualdade e a liberdade religiosa
(de culto, crença e organização religiosa), mas também o direito fun-
damental à cultura e à proteção do patrimônio cultural dos grupos
que participaram da formação da sociedade brasileira. Vale ressaltar
que a inserção da proteção e preservação do patrimônio cultural das
31  Vale ressaltar que, a inscrição da Coleção do Museu de Magia Negra no Livro
do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em 1938, representou o
período de repressão do Estado contra as religiões afro-brasileiras, visto que é
composta por instrumentos ligados ao culto que foram apreendidos pela polícia
(SANTOS, 2015).
32  wanderson nascimento (o autor grafa seu nome com letras minúsculas)
explica que “[...] um dos primeiros gestos do racismo religioso é reduzir toda
a complexidade dos modos de vida africanos que se mantém e se reorganizam
nesses povos e comunidades a um caráter religioso, como se apenas fizessem
rituais. Também fazem rituais, mas não é só isso!” (NASCIMENTO, 2017, p. 55).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 127

religiões afro-brasileiras e demais direitos relacionados à igualdade


no exercício dos direitos foi resultado de séculos de lutas do povo
negro, do povo de santo, povo de terreiro.
A Constituição de 1988 amplia o significado de patrimônio cul-
tural, o seu âmbito e os instrumentos de proteção, pelo menos na
esfera formal. No capítulo III, que trata “Da educação, da cultura e
do desporto”, encontramos artigos que disciplinam o entendimen-
to sobre o que são direitos culturais, patrimônio cultural e a forma
de sua proteção. No art. 215, a Constituição garante que o Estado
protegerá todas as manifestações culturais e inclui, nesse rol, as ma-
nifestações afro-brasileiras (BRASIL, 1988).
A partir da leitura do art. 215, compreende-se que o Estado
garantirá os direitos culturais e protegerá as manifestações cultu-
rais dos grupos participantes do “processo civilizatório nacional”.
Portanto, reconhece que a sociedade brasileira é multicultural e que
a contribuição dos povos que participaram da formação da nação
brasileira, de maneira forçada ou não, deve ser preservada para que
as futuras gerações possam usufruir da sua memória e identidade.
Em sequência, o art. 216 apresenta quais são os bens que se
constituem em patrimônio cultural brasileiro. Ademais, define que a
proteção do patrimônio não será feita apenas pelo Estado, mas com a
colaboração da comunidade. A Constituição amplia os instrumentos
de proteção do único instrumento estabelecido no decreto-Lei n°
25/37, o tombamento. A Constituição inova e traz os inventários, os
registros, a vigilância, a desapropriação e outras formas de acautela-
mento e preservação, mantendo o tombamento. Outro ponto impor-
tante abordado na Constituição foi o tombamento dos documentos e
sítios remanescentes dos quilombos (BRASIL, 1988).
A regulamentação da proteção do patrimônio imaterial ocor-
reu em 2000, com a publicação do Decreto n° 3.551, que instituiu o
Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem
patrimônio cultural brasileiro e cria o Programa Nacional do Patri-
mônio Imaterial. Segundo Fonseca, “o Registro dos bens culturais
de natureza imaterial, voltado para a preservação de manifestações
culturais de caráter processual, como os saberes, as celebrações, as
128 | Walkyria Chagas da Silva Santos

formas de expressão e os lugares” (FONSECA, 2007, p. 161). Tanto


a Constituição de 1988 quanto o Decreto n° 3.551/2000 informam
que a preservação do patrimônio cultural brasileiro não cabe apenas
ao Estado, mas também à sociedade. Ocorre que o Estado conti-
nua sendo o grande protagonista das políticas culturais no Brasil.
A partir de tal contexto, surge o seguinte questionamento: quem
determina o que é ou não é patrimônio cultural no Brasil? A partir
de quais parâmetros?
Quanto à baixa participação da sociedade no ciclo das políti-
cas culturais, Aloisio Magalhães já apontava, nas décadas de 1970 e
1980, os possíveis caminhos para aproximar a sociedade brasileira
do patrimônio cultural. São eles: “buscar instrumentos para incluir
no conjunto dos bens legalmente protegidos testemunhos das cul-
turas indígenas e afro-brasileiras e abrir a prática política para a
participação da sociedade” (FONSECA, 2007, p. 168).
Após mais de 30 anos da ocorrência do primeiro tombamento
“ainda há dificuldade para que a questão da preservação dos Ilês
Axés conquiste a agenda governamental. Houve janelas de opor-
tunidades em 1986, 2000, 2005, 2008, 2013, 2014 e 2015,33 mas na
verdade poucos terreiros são tombados de forma definitiva pelo
IPHAN, em todo Brasil” (FERREIRA, 2018, p. 81). Em 2018, mais
uma janela foi aberta, resultando no tombamento de terreiros que
lutavam pelo reconhecimento estatal quanto à sua importância reli-
giosa e cultural. São eles: o Tumba Junsara (Processo n° 1517-T-04)
e o Ilê Obá Ogunté – Sítio de Pai Adão (Processo n° 1585-T-09).
Os processos foram iniciados, respectivamente, em 2004 e 2009, e
a aprovação do tombamento só ocorreu em 2018, o que demonstra
que, para se ter um espaço religioso afro-brasileiro tombado, o pro-
cesso não é simples e rápido.
Portanto, é baixa a incidência de proteção dos bens culturais
pertencentes aos povos da diáspora africana. Moassab (2016) infor-
ma que, dos quase mil bens culturais arquitetônicos protegidos pelo
IPHAN, aproximadamente 40% traz como referência estruturas re-
ligiosas de matriz católica. Em contrapartida, os bens arquitetôni-
33  Fazem referência aos anos em que os tombamento ocorreram.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 129

cos relacionados à memória dos afrodescendentes representam ape-


nas 1%34 dos bens tombados. Fica evidente que o IPHAN continua
priorizando a preservação de “edifícios de Estado e religiosos, de
recorte colonial e elitista” (MOASSAB, 2016).
A partir da leitura dos processos35 de tombamento, é possível
observar que a decisão quanto ao tombamento ou não dos terreiros
de candomblé não obedece a critérios claros, haja vista que alguns
terreiros que requisitaram o tombamento e tiveram o pedido ne-
gado possuíam as mesmas características de alguns terreiros com
tombamento deferido. A ação discricionária tem instigado o ques-
tionamento do povo de santo quanto aos critérios utilizados para o
deferimento ou indeferimento do pedido de tombamento. A partir
da leitura dos processos, foram encontrados alguns critérios, vale
destacar: terreiros de candomblé antigos e tradicionais (casas matri-
zes); relevância histórica, etnográfica e paisagística; ter personalida-
de jurídica; regularidade fundiária do imóvel; constar no MAMNBA
(SANTOS, 2015).
Além dos critérios apresentados acima, vale citar a “pureza”
que, apesar de constar nos processos, não tem claros os modos para
seu aferimento. Outro ponto que merece destaque é que, em 2009,
no “Seminário Internacional Políticas de acautelamento do IPHAN
para templos de culto afro-brasileiro”, foi discutido que a União só
tombaria casas matriciais: os Estados seriam responsáveis por tom-
bar as casas de interesse regional e os municípios, as casas de inte-
resse local. Não foi encontrado documento que comprove tal pac-
tuação, mas a sua aplicação poderá resultar em jogo de empurra em
que, embora todos os entes federativos tenham o dever de proteger,
nenhum deles realizará as ações de proteção (SANTOS, 2015).

34  Em 2016, fazia referência a dois quilombos, seis terreiros, uma senzala e um
museu da magia-negra (MOSSAB, 2016).
35  Dos seis terreiros tombados definitivamente até o primeiro semestre de 2014,
na Bahia, foram analisados os dados dos seguintes processos: Ilê Axé Iyá Nassô
Oká (Terreiro da Casa Branca), Ilê Axé Opô Afonjá e Terreiro do Alaketo. O
processo da Roça do Ventura, tombado provisoriamente, não foi disponibilizado
pelo IPHAN, mas foram analisados os documentos referentes ao tombamento,
que foram disponibilizados pelo órgão.
130 | Walkyria Chagas da Silva Santos

É possível perceber, a partir da leitura dos processos


administrativos dos terreiros tombados no Estado da Bahia, que há
forte apego à burocratização, exigência de documentos (a base das
religiões afro-brasileiras é a oralidade), ausência de conhecimento
dos servidores quanto à sequência dos atos do processo administra-
tivo de tombamento e baixo investimento estatal para implementa-
ção da política que inicialmente era uma política de governo.
Ainda sobre o panorama de patrimonialização no Estado da
Bahia, merecem destaque as ações implementadas pela Prefeitura
Municipal de Salvador que, nos últimos anos, a partir de ações da
Fundação Gregório de Mattos, tem realizado a patrimonialização de
bens culturais das religiões afro-brasileiras em Salvador. É impor-
tante informar ao leitor que, paralelamente às questões ocorridas
na esfera federal, o debate do povo de santo com o poder público
também ocorria no âmbito municipal, em busca de ações que garan-
tissem os seus locais de culto.
Assim, é importante o estudo realizado por André Luiz de A.
Oliveira, que analisa as ações de preservação voltadas aos espaços
religiosos afro-brasileiros no município de Salvador no período de
1981 a 2010. O autor informa que os instrumentos de proteção se
resumem ao tombamento e às Áreas de Proteção Cultural e Pai-
sagística (APCP),36 e que, entre os dois, a APCP é o melhor ins-

36  A Lei nº 9069/2016 disciplina o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano


do Município do Salvador e, no § 5° do art. 126, informa que “O Sistema de
Áreas de Valor Ambiental e Cultural – SAVAM é constituído por conjunto
de espaços de relevante interesse e qualidade ambiental e pelo conjunto de
edificações de valor histórico, arquitetônico e paisagístico, configurando-
se como marcos referenciais da cidade, compreendendo também parques
e praças para o convívio da população”. As SAVAM são áreas localizadas no
município de Salvador que contribuem para a qualidade ambiental urbana
e, visando garantir a proteção ambiental e cultural, o município estabelecerá
planos e programas de gestão, ordenamento e controle. As Áreas de Proteção
Cultural e Paisagistica (APCP) são SAVAM e sua regulamentação ocorrerá a
partir de lei especifica em que constem os itens elencados no art. 264, entre
eles: a delimitação da área; o zoneamento, quando couber; e os critérios para
proteção dos elementos naturais ou bens culturais inseridos na área. O art.
268 define as APCP da seguinte forma: “são áreas especialmente protegidas
que se associam ao meio ambiente cultural, seja por vincularem-se à imagem
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 131

trumento, uma vez que “enxerga” o bem numa visão que engloba
características materiais e imateriais. Muitos terreiros que se cons-
tituem em APCP são terreiros tombados pelo IPHAN e/ou IPAC
(OLIVEIRA, 2018).
O tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, ocorrido em 1986,
bem como a posterior promulgação da Constituição de 1988, que
traz diversas garantias às minorias étnicas que representam uma
estética rechaçada pelo Estado, trouxeram novas possibilidades e lo-
cais de disputa por reconhecimento. Mas o tombamento de terreiros
não é um instituto pacífico, sendo questionado desde o “nascimento”
da sua aplicação. Assim, novos institutos estão sendo pensados e
aplicados no Estado da Bahia, conforme será explanado a seguir.

2 CHEGOU, CHEGOU, CHEGOU.... REGISTRO ESPECIAL DE


TERREIROS: PODEMOS COMEMORAR?

Apesar de todas as dificuldades, a partir das lutas e resistência


empreendidas pelos negros em diáspora foi possível reconstruir e
remodelar as estruturas sociais na “África em miniatura”.37 Ou seja,
a construção dos espaços religiosos afro-brasileiros implicou na

da cidade e caracterizar monumentos históricos significativos da vida e


construção urbanas, seja por se constituírem em meios de expressão simbólica
de lugares importantes no sistema espacial urbano, seja por se associarem
ao direito à manutenção de uma cultura própria de certas comunidades”. Há
algumas APCP que estão relacionadas ao povo de axé. São elas, dentre outras:
i) APCP Ilê Iyá Omin Iyámassê (Terreiro do Gantois); ii) APCP compreendendo
os candomblés Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca do Engenho
Velho), Ipatitió Gallo (Terreiro São Jerônimo) e Zoôgodô Bogun Malê Rundô
(Terreiro do Bogun); iii) APCP Ilê Axé Opô Afonjá (Terreiro de São Gonçalo
do Retiro); iv) APCP Ilê Asipá; v) APCP Terreiro de Candomble do Bate Folha
Manso Banduquemqué; vi) APCP Onzó Ngunzo Za Nkisi Dandalunda Ye
Tempo (Terreiro Mokambo); vi) APCP Candomblé Ilê Axé Oxumarê (Terreiro
Oxumarê); vii) APCP Candomblé Ilê Odó Ogé (Terreiro Pilão de Prata);h)
APCP Candomblé Mansu Dandalungua Cocuazenza; e, viii) APCP Hukpame
Savalu Vodun Zo Kwe (Rua do Curuzu, 222, Vila Braulino).
37  Nome utilizado para identificar os espaços de vivência das tradições africanas
no Brasil. Outro nome utilizado é “Pequenas Áfricas” (PINHO, 2010; QUEIROZ,
2013).
132 | Walkyria Chagas da Silva Santos

“autofundação de um grupo em diáspora”(SODRÉ apud RAMOS,


2018, p. 25).
Assim, os espaços religiosos afro-brasileiros são também espa-
ços de resistência e luta por igualdade no acesso a direitos, e é desse
entrecruzamento de significados que os terreiros se tornaram lo-
cais de compartilhamento de dores e alegrias, de auxílio mútuo, de
renascimento. Para Ramos (2018, p. 37), “É justamente a (re)cons-
trução dessas estratégias nesses “entre-lugares” como estratégia de
sobrevivência, a partir de novos olhares e padrões da realidade, que
as religiões afro-brasileiras desenham e constroem como espaços de
luta por direitos”.
Ou seja, um espaço religioso afro-brasileiro não pode e não deve
ser analisado apenas em sua dimensão material, mas também imate-
rial. O local é sagrado não só pela sua edificação, mas também por
tudo que representa, por todo axé que emana, pelas rezas, músicas,
formas de fazer e de viver do povo que circula e circulou naquele
espaço. Por isso, concordamos com Oliveira (2018, p. 258) quando
afirma que “os terreiros de candomblé, construção baiana, pela sua
singularidade ou excepcionalidade, são uma reunião resistente de
imaterialidade e materialidade de uma cultura afro-brasileira”.
Sendo, portanto, um local que guarda bens materiais e imate-
riais, o tombamento seria o melhor instituto para resguardá-lo en-
quanto patrimônio nacional, estadual ou municipal? Desde a década
de 1980. há questionamentos sobre qual seria a melhor forma de
proteger, a partir de ações do poder público, os espaços religiosos
afro-brasileiros, que são verdadeiros guardiões dos bens da diáspora
africana no Brasil. Nós citamos anteriormente a opinião de Oliveira
segundo a qual, no município de Salvador, o melhor instituto seria a
APCP. Contudo, quanto aos instrumentos estaduais disponíveis, há
vantagens na aplicação do registro especial?
O que é o registro especial de terreiros? Quais os seus efeitos?
Como surgiu? Antes de respondermos a tais perguntas, é necessário
entender o que é o registro, como ele é disciplinado ao nível federal,
para, assim, ser possível compreender se se trata do mesmo institu-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 133

to ou se realmente foi uma inovação implementada pelo Estado da


Bahia, conforme informações do IPAC.

2.1 ENTENDENDO O INSTITUTO DO REGISTRO

Se o Decreto-Lei n° 25/37 apresentou apenas o tombamento


como instituto capaz de proteger o patrimônio cultural, a Constitui-
ção de 1988 disciplinou os direitos culturais (patrimônio cultural)
enquanto direitos fundamentais, ampliando os institutos para sua
proteção (SANTOS, 2015).
O § 1º do art. 216 da Constituição Federal apresenta um rol não
exaustivo de institutos de que o poder público dispõe para proteger
o patrimônio cultural brasileiro com a colaboração da comunidade,
que são: o tombamento, os inventários, os registros, a vigilância,
a desapropriação e outras formas de acautelamento e preservação
(BRASIL, 2018).
Desses instrumentos, o tombamento foi disciplinado no Decre-
to-Lei n° 25/37 (BRASIL, 1937), e o único instrumento regulamen-
tado foi o registro, através do Decreto n° 3551/2000 (TELLES,
2007). É necessário salientar que o surgimento do instituto do
registro, seja no texto constitucional, seja no Decreto n° 3551/2000,
contou com ativa atuação de grupo de estudo do IPAC que, entre os
anos de 1987 e 1988, foi integrado por Márcia Sant’Anna, Carlos
Amorim, Paulo Damasceno, Rosário Carvalho, Luís Viana Queiroz,
Ordep Serra e Paulo Ormindo, entre outros. Assim, foi na década
de 1980 que a expressão “registro especial” foi forjada (QUEIROZ,
2015).
Segundo Mário F. de Pragmácio Telles (2007), a dimensão ima-
terial do bem é diferente da dimensão material, em especial quanto
à dinamização do bem imaterial (constante mutação) e quanto à sua
intangibilidade. Segundo o autor, o registro pode ser definido como:

[...] uma ação do Poder Público com a finalidade de identificar, re-


conhecer e valorizar as manifestações culturais e os lugares onde
estas se realizam, os saberes e as formas de expressões dos diferen-
tes grupos formadores da sociedade brasileira, levando-se em con-
134 | Walkyria Chagas da Silva Santos
sideração o binômio mutação-continuidade histórica do patrimônio
cultural imaterial. (TELLES, 2007, p. 51).

Beatriz Muniz Freire (2005, p. 15), servidora do IPHAN, apre-


senta uma definição mais abrangente para o registro de bens ima-
teriais,

[...] é um instrumento que propõe a documentação e a produção de


conhecimento como formas de preservação. O reconhecimento con-
siste na inscrição do bem cultural em um dos 4 Livros de Registro
que foram abertos. [...] Resulta, também, na definição de políticas
de salvaguarda adequadas à realidade em questão. O conhecimento
produzido sobre o bem a ser registrado subsidia a escolha das for-
mas de proteção. O Registro significa, então, a identificação e pro-
dução de conhecimento sobre o bem cultural. Registrar implica em
conhecer, por meios técnicos adequados, o passado e o presente da
manifestação cultural e suas diferentes versões. Implica, ainda, em
tornar essas informações amplamente acessíveis ao público.

Mas qual a finalidade do registro? Identificar e reconhecer o


bem é suficiente para protegê-lo e valorizá-lo? Para Telles (2007),
apesar da Constituição incluir o registro como instrumento de pro-
teção, o decreto acabou por transformá-lo em ferramenta de iden-
tificação, o que limita o poder de proteção do instituto. Assim, o
registro necessitaria de outros instrumentos de salvaguarda para
proteger o bem. Portanto, ele diverge das ideias de Freire. Segundo
Telles (2007, p. 52-53):

Isso é ocasionado, principalmente, pela inexistência no Decreto de


restrições à propriedade intelectual, principalmente ao registro de
saberes, que seria o modo mais contundente de proteção, tal como
ocorre com o tombamento. Entretanto, principalmente ao Estado,
destacam-se alguns efeitos advindos do registro. São eles: a obriga-
ção pública de documentar e acompanhar a dinâmica das manifes-
tações culturais registradas; o reconhecimento da importância do
bem e valorização mediante o título de Patrimônio Cultural do Bra-
sil; e ações de apoio, no âmbito do Programa Nacional de Proteção
do Patrimônio Imaterial.

O ex-consultor jurídico do IPAC, no período de 2012 a 2014,


época da elaboração dos documentos que subsidiaram o registrou
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 135

especial de dez terreiros no Recôncavo Baiano, Hermano Fabrício


Oliveira Guanais e Queiroz,38 diverge quanto ao registro ser um
instrumento limitado. Para o autor, é necessário analisar o registro
e o decreto que o disciplina, à luz dos axiomas constitucionais e, por-
tanto, dos efeitos garantistas do registro como um instrumento con-
cretizador do direito fundamental à cultura e à memória.39 Assim, a
partir da teoria geral dos direitos fundamentais, não cabe ao Estado
apenas abster-se de violar os direitos, devendo proteger seus titula-
res contra todo tipo de violação, cumprindo seu dever de proteção
do Estado, e as normas definidoras dos direitos fundamentais e as
garantias fundamentais deverão ter aplicabilidade imediata. Assim:

[...] quaisquer deficiências e omissões formais ou materiais nas le-


gislações que tratam dos instrumentos constitucionais ou até mes-
mo a inexistência de arcabouço legislativo próprio oportunizará o
operador do direito a lançar mão de mecanismos jurídicos, judiciais
e extrajudiciais, de proteção e defesa ao patrimônio cultural, as
ditas formas de acautelamento e preservação, a exemplo da Ação
Civil Pública, a Ação Popular, a Ação Declaratória de Valor Cultu-
ral, ações ordinárias, medidas cautelares, termos de ajustamento de
conduta, entre outros, sem olvidar a possibilidade de manuseio de
atos administrativos. (QUEIROZ, 2013, p. 07).

Nesse sentido, para Queiroz (2013), o registro produz efeitos


também no aspecto físico do espaço territorial. O bem imaterial tem
um suporte material e precisa ser protegido, porém o registro é um
instrumento mais elástico que o tombamento e possibilita que o lu-
gar seja alterado a partir das necessidades do culto, diferente do que
acontece nos casos de tombamento. A Constituição não fez diferen-
ciação entre os instrumentos de proteção; neste caso, o órgão de

38  Foi diretor de Preservação do Patrimônio Cultural do IPAC, em 2016.


Atualmente é Diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) do
IPHAN.
39  Segundo Santos, “Os direitos culturais consagrados no art. 215, da
Constituição Federal, é direito fundamental, posto que, decorre do regime e
princípios constitucionais e de tratados internacionais que o Brasil é signatário”
(SANTOS, 2015, p. 78). Os direitos culturais exigem atuação positiva do Estado,
que se traduz em ações de política cultural oficial, as políticas culturais, que
deverão ser elaboradas e executadas com a participação da sociedade civil.
136 | Walkyria Chagas da Silva Santos

execução da política poderia diferenciá-los? Ambos possuem o status


constitucional de instrumento de proteção do patrimônio cultural
brasileiro. Tomando a acepção genérica do registro, este equivaleria
ao tombamento, porém os efeitos jurídicos são diferentes, haja vista
que os bens imateriais possuem dimensão diferente dos bens mate-
riais (QUEIROZ, 2013).
O art. 2º do Decreto n° 3.551/2000 indica quais são as partes
legítimas para provocar a instauração do processo de registro. São
elas: o Ministro de Estado da Cultura; as instituições vinculadas ao
Ministério da Cultura; as secretarias de Estado, de município e do
Distrito Federal; e, também, a sociedade ou associações civis (BRA-
SIL, 2000). Portanto, não são aptas as pessoas físicas, os dirigentes e
demais adeptos, assim como os terreiros sem personalidade jurídica,
que dependerão da atuação dos órgãos ou instituições externas para
requisitar o registro.
Telles (2007) apresenta que são necessários requisitos materiais
e formais para a instauração do registro. São requisitos materiais:
a continuidade histórica e a relevância nacional. Já os requisitos
formais são aqueles disciplinados no § 2º do art. 3º do Decreto n°
3.551/200: “A instrução constará de descrição pormenorizada do
bem a ser registrado, acompanhada da documentação correspon-
dente, e deverá mencionar todos os elementos que lhe sejam cultu-
ralmente relevantes” (BRASIL, 2000). Também devemos mencio-
nar os “dispostos na resolução 001/2006, aprovada pelo Conselho
Consultivo do Patrimônio Cultural, em sua 49ª reunião, resumindo
toda a práxis administrativa e documentação e informações necessá-
rias à instrução” (TELLES, 2007, p. 61).
Além de tais informações, Freire afirma que o IPHAN desen-
volveu uma metodologia específica para proceder ao registro, o In-
ventário Nacional de Referências Culturais. O inventário pode ser
utilizado tanto para bens imateriais quanto materiais, sendo realiza-
do por historiadores e antropólogos, resultando na reunião de infor-
mações sobre o bem. Todo o conhecimento produzido é público, ou
deveria ser; por isso, requer-se a concordância explícita dos grupos
envolvidos. Para a autora, os dois instrumentos ampliam a parti-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 137

cipação da sociedade civil nas questões de proteção ao patrimônio


cultural (FREIRE, 2005).
Para Telles (2007), o registro não é capaz de proteger o patri-
mônio cultural imaterial, assegurando a efetiva proteção à proprie-
dade coletiva dos saberes (propriedade intelectual), sendo necessário
utilizar outros instrumentos concomitantemente para salvaguarda
do bem imaterial. Segundo o autor, “Urge, portanto, a criação de um
novel instrumento de proteção da dimensão imaterial do patrimônio
cultural que resguarde, dentre outras coisas, a propriedade intelec-
tual coletiva e seja, quanto ao seu alcance, auto-suficiente na missão
de proteger” (TELLES, 2007, p. 66).
Os primeiros registros realizados pelo IPHAN foram: no Livro
de Registro dos Saberes, “O Ofício das Paneleiras de Goiabeiras”; no
Livro de Registro das Formas de Expressão, “A Arte Kusiwa, Pintu-
ra Corporal e Arte Gráfica do povo Wajãpi” e “O Samba de Roda no
Recôncavo Baiano”; no Livro de Registro das Celebrações, “O Círio
de Nazaré”.
Queiroz (2013, p. 7) afirma que “Era quase pacífico entre os es-
tudiosos do patrimônio cultural que o tombamento é o instrumento
ideal à proteção dos valores enraizados nas práticas culturais pre-
sentes nos terreiros de candomblé. Até o momento poucas vozes
ecoam no sentido de repensar essa postura, inclusive dentro do pró-
prio IPHAN”. O IPHAN começou a repensar a forma de proteger
os espaços religiosos afro-brasileiros, inclusive com a aplicação do
tombamento combinado com o registro.40 Em dissertação, Santos
(2015) informou sobre os avanços na política de proteção, os pontos
positivos e negativos do tombamento e a necessidade de repensar a
aplicação desse instituto para proteção dos espaços religiosos afro-
-brasileiros, questionando se ele seria o ideal ou se seria o novo ins-
trumento que naquele momento surgia, o registro especial.
40  De acordo com Queiroz (2013, p. 10-11), “A pesquisadora Sant’Anna (2012) vem
defendendo que um dos desafios da contemporaneidade é fazer essa articulação
entre Tombamento e Registro. Ela propôs, dentro do IPHAN, que todos os
terreiros tombados fossem também registrados como lugar, independentemente
de identificar qual a prática a ser registrada, o que poderá ser feito. [...] No caso
dos terreiros, os processos de tombamento destes já trazem farta documentação
138 | Walkyria Chagas da Silva Santos

À primeira vista, um grande diferencial do registro é que o Estado


reconhece os bens que foram apontados pela comunidade envolvida
como relevante. Portanto, não será o órgão estatal que delimitará
sozinho quais são os bens que são merecedores de proteção estatal.
Assim, o registro especial abre a possibilidade de participação da
sociedade na construção de políticas culturais e aplicabilidade dos
instrumentos de proteção. Nas palavras de Queiroz (2013, p. 10),
“A comunidade, portanto, é protagonista neste processo e o Estado
partícipe fundamental”.

2.2. REGISTRO ESPECIAL: INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DO


ESTADO DA BAHIA

Após análise breve do registro dos bens imateriais ao nível na-


cional, passaremos à análise do registro especial, instrumento utili-
zado pelo IPAC para patrimonializar 10 (dez) terreiros de candomblé
do Recôncavo Baiano. Para subsidiar os dados apresentados, serão
utilizados: processo administrativo de registro especial, publicação
do IPAC e legislação do Estado da Bahia.
O art. 1° do Decreto n° 10.039 de 2006 apresenta quais são os
institutos aptos a proteger o patrimônio cultural baiano, que são: o
tombamento, o inventário para a preservação, o espaço preservado
e o registro especial do patrimônio imaterial. O capítulo V do de-
creto trata especificamente sobre o registro especial do patrimônio
imaterial. Consta, no seu art. 44, que “O Registro Especial será apli-
cado aos bens culturais de natureza imaterial, comumente designa-
dos como manifestações, passíveis de verificação no plano material”
(BAHIA, 2006).
Assim como o registro federal, o registro especial do IPAC só
poderá ser requisitado por representante do poder público ou pessoa
que pode subsidiar as ações dos órgãos de preservação quando da instrução do
registro, atentando-se para o fato de que este último implica na indispensável
condução de um processo específico, construído entre Estado e comunidades,
numa relação dialógica[...]. Como visto, é uma metodologia, uma sistemática
que vai muito além do tratamento que hoje é dado ao patrimônio material,
garantindo mais amplamente os direitos culturais das comunidades envolvidas.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 139

jurídica, ou seja, “o processo será aberto por ato do Governador do


Estado, do Secretário da Cultura e Turismo, do Diretor do IPAC
ou qualquer membro do Conselho Estadual de Cultura, de vontade
própria ou, ainda, atendendo à solicitação de Secretarias Municipais
ou sociedades civis regulares e devidamente registradas”41 (BAHIA,
2006).
No ano seguinte à realização do registro especial de 10 (dez)
terreiros de candomblé do Recôncavo Baiano, o IPAC lançou, a par-
tir da coleção “Cadernos do IPAC”, publicação sobre a preservação
do Patrimônio Cultural, com o título Terreiros de Candomblé de Ca-
choeira e São Félix.42 A publicação43 é iniciada informando ao leitor
que o IPAC, de maneira paradigmática, após 30 anos da patrimonia-
lização do primeiro terreiro, ou seja, do reconhecimento pelo Estado
brasileiro da importância religiosa e cultural dos espaços religiosos
afro-brasileiros, através do tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká,
aprovado em maio de 1984, inaugurava ali o instrumento de Regis-
tro Especial de Práticas Culturais Coletivas. (FERNANDES, 2015).

41  Ainda sobre o registro especial, vale citar o art. 47: “Os bens culturais
protegidos pelo Registro Especial serão documentados e registrados a cada
5(cinco) anos, sob responsabilidade do IPAC, por meio das técnicas mais adequadas
às suas características, anexando-se, sempre que possível, novas informações ao
processo. Parágrafo único - O IPAC promoverá a ampla divulgação e promoção,
sob a forma de publicações, exposições, vídeos, filmes, meios multimídia e outras
formas de linguagem promocional pertinentes, das informações registradas,
franqueando-as à pesquisa qualificada” (BAHIA, 2006).
42  Este caderno, segundo o IPAC, é resultado de pesquisa e elaborada pela
equipe da Gerência de Patrimônio Imaterial (GEIMA) e organizado pela
Coordenação de Articulação e Difusão (COAD), departamentos da Diretoria de
Preservação do Patrimônio (DIPAT) do IPAC, e busca refletir sobre os processos
administrativos, de forma séria e respeitosa, apresentando um conteúdo denso e
esclarecedor sobre a trajetória dos povos de terreiro nas lutas para consolidar a
sua religiosidade em território baiano.
43  O livro Terreiros de Candomblé de Cachoeira e São Félix, do IPAC, contempla
“a divulgação e promoção dos bens culturais patrimonializados, traduz-se nessa
ação de Salvaguarda, comemorando mais uma vitória dos povos do candomblé,
que souberam driblar o preconceito social e a perseguição religiosa, cultuando
seus deuses, com grande sabedoria, sem perder a sua essência e os seus valores
ancestrais, contribuindo para a formação da memória da sociedade brasileira e
reafirmando a identidade baiana” (FERNANDES, 2015, p. 15).
140 | Walkyria Chagas da Silva Santos

Assim, a finalidade do Registro é a:

[...] proteção não somente da simbologia que envolve o lugar, mas


da inclusão das práticas exercidas no local, a exemplo de ritos, cele-
brações, manifestações culturais e religiosas, rituais e até mesmo a
culinária, e, ainda, do seu aspecto material que está associado inse-
paradamente de tais práticas. (QUEIROZ, 2015, p. 27).

Foram registrados dez terreiros. Localizados em Cachoei-


ra, Bahia, temos o: Terreiro Aganjú Didê- Ici Mimó (Processo n°
06071200026056); Terreiro Viva Deus – Asepò Erán Opé Olùwa
(Processo n° 06071200025998); Terreiro Loba’Nekun – Casa de
Oração (Processo n° 06071200026080); Terreiro Loba’Nekun Filha
(Processo n° 06071200026005); Terreiro Ogodô Dey (Processo n°
06071200026064); Ilê Axé Itaylê (Processo n° 06071200026048);
Humpame Ayono Huntólogi (Processo n° 06071200026099); e
Inzo Nkosi Mucumbe Dendezeiro (Processo n° 06071200026072).
Localizados em São Félix, Bahia, temos o Terreiro Raiz de Ayrá
(Processo n° 06071200025998) e o Ile Axé Ogunjá (Processo n°
06071200026013), em São Felix.
Inicialmente, onze terreiros requisitaram o registro, porém
não foi concluído o processo do Ilê Oyo Ni Becê – Terreiro da Cajá
(1870), situado na cidade de São Félix, visto que apresentou proble-
mas de sucessão e, por conta de tal fato, não realizava rituais há cer-
ca de 18 anos. A ausência das práticas rituais impediu o IPAC de rea-
lizar a documentação necessária para o registro.44 Para a realização
do registro dos dez terreiros, os técnicos do IPAC elaboraram um
documento denominado Dossiê de Registro. Os dez decretos de regis-
tro especial foram assinados pelo governador do Estado da Bahia no
Salão de Atos Baianas de Acarajé, no dia 19 de novembro de 2014,
com a participação de representantes dos terreiros (PELLEGRINO
FILHO, 2015).
O registro especial de terreiros nasceu a partir de um referen-
cial jurídico composto pela Constituição de 1988, pelo Decreto Fe-

44  O processo não estava disponível para leitura na sede do IPAC. Foi alegado
que o processo estava em diligência.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 141

deral nº 3.551/2000, pela Lei Estadual da Bahia nº 8.895/03 e pelo


Decreto nº 10.039/06. Além do referencial jurídico, durante o ano
de 2011, foram realizados encontros temáticos para discutir sobre
a salvaguarda do patrimônio cultural material e imaterial baiano,
ocorrendo o “Conversando sobre Patrimônio”, com a participação
social e a construção coletiva. Nesse contexto, foi discutida a salva-
guarda de terreiros de candomblé, do patrimônio imaterial e das fes-
tas populares, bem como a preservação de sítios urbanos (PAULA,
2011). Ainda no ano de 2011, no mês de maio, o tema do encontro
foi a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Afro-brasileiro, que visava
discutir respostas para várias perguntas sobre como salvaguardar o
patrimônio e se ele seria material ou imaterial (CULTURA, p. 2011).
Segundo Antonio Roberto Pellegrino Filho (2015, p. 18):

A partir disto, o Prof. Ubiratan Castro, então Diretor Geral da


Fundação Pedro Calmon, além de militante histórico das questões
concernentes a afrodescendência, iniciou uma interlocução com o
Gabinete do então Governador da Bahia, Jaques Wagner, visando a
inscrição de onze terreiros de candomblé do Recôncavo Baiano, no
Livro do Registro Especial dos Espaços Destinados a Práticas
Culturais Coletivas (oito terreiros localizados na cidade de Ca-
choeira e três localizados na cidade de São Félix). Foi então, aberto
o Processo Doc. Nº 0607120002114, datado de 31/01/2012, atra-
vés do qual o Chefe do Gabinete do Governador, Sr. Edmon Lucas,
inicia o procedimento de Registro Especial, anexando também os
respectivos Inventários de Conhecimento45, elaborados pelo antro-
pólogo Vilson Caetano de Sousa Junior e pelo arquiteto Fábio Vela-
me. Estava, portanto, oficialmente, deflagrado o processo pioneiro
de Registro Especial de Terreiros de Candomblé como Patrimônio
Imaterial, que deverá, inclusive, servir como referência para futuros
Registros nesta matéria.

Diferente do que acontece com o tombamento, para cuja conces-


são ainda não há uma definição clara de critérios (SANTOS, 2015),
para o registro especial dos espaços religiosos afro-brasileiros fo-
ram estabelecidos critérios a partir de reuniões interdisciplinares.
Tais reuniões contribuíram para a elaboração do dossiê apresenta-
45  Apesar dos inventários serem instrumentos de salvaguardo públicos, não foi
autorizado pelo IPAC a reprodução dos documentos para análise da pesquisa.
142 | Walkyria Chagas da Silva Santos

do para aprovação do registro especial. São critérios adotados pelo


IPAC para registro especial de espaços religiosos afro-brasileiros:

[...] densidade e continuidade histórica; singularidade arquitetôni-


ca adotada como padrão de referência na África Centro-Ocidental e
trazida para o Brasil a partir dos setecentos, um modelo conventual
encontrado na Costa da Mina e, em especial, na área gbe – do con-
junto entre espaço físico e práticas e linguagens rituais (fundamen-
tos); representatividade do terreiro no contexto onde está inserido;
autodenominação da nação; inserção política do terreiro na comuni-
dade e vinculação entre a história dos seus fundadores e a “vida da
cidade”. (PELLEGRINO FILHO, 2015, p. 19, grifos do original).

Como visto, alguns defendem a aplicação do registro combinado


com o tombamento. O registro especial de espaços religiosos afro-
-brasileiros realizado pelo IPAC não traz tal combinação de institu-
tos. O registro foi aplicado sozinho, o que, segundo Queiroz (2013),
poderia gerar discussões quanto aos seus efeitos jurídicos. O autor
defendeu que o registro produz efeitos jurídicos concretos para pro-
teção do bem e que, em caso de ameaça ou violação, poderiam ser uti-
lizados instrumentos judiciais e administrativos (QUEIROZ, 2013).
Apesar de não explicitado na publicação do IPAC, o Conselho
Estadual de Cultura (CEC), por meio do Ofício n. 123/2014, sugeriu
que juntamente com o registro fosse aplicado o tombamento aos dez
terreiros citados, localizados em Cachoeira e São Félix, haja vista
que, para a Câmara de Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológi-
co e Natural do CEC, o registro não teria jurisprudência para prote-
ger os aspectos materiais e imateriais dos terreiros, sendo necessário
que os bens fossem inscritos também “nos livros de tombo histórico,
etnográfico e paisagístico do IPAC com vistas à plena garantia da
preservação de sua estrutura física e dos elementos materiais im-
prescindíveis ao desempenho das atividades culturais tradicional-
mente desenvolvidas no seu espaço” (BAHIA, 2012, p. 13).
Em reportagem do Jornal A Tarde, de 18 de setembro de 2014,
foi noticiado que 10(dez) terreiros de candomblé dos municípios de
Cachoeira e São Félix seriam tombados e receberiam um registro
especial, a partir de proposta da Câmara de Patrimônio Histórico,
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 143

Artístico, Arqueológico e Natural do CEC, presidida pelo conselhei-


ro de cultura Ordep Serra. Consta que:

Inicialmente, o Conselho de Cultura deveria apreciar a solicitação


do registro especial desses espaços como patrimônio imaterial, mas
a Câmara de Patrimônio decidiu que o tombamento seria o melhor
instrumento de proteção desses terreiros e a conservação dos seus
espaços físicos”. (REDAÇÃO, 2014).

Assim, visando responder a tal demanda, foi elaborado o Pare-


cer Técnico n° 010/2015 (IPAC), datado de 17 de agosto de 2015,
portanto, após a publicação dos decretos de registro especial dos
terreiros, que ocorreu em 19 de novembro de 2014. O referido pare-
cer é encerrado com as seguintes palavras:

Neste sentido, após vários estudos e discussões realizados pela


equipe técnica do IPAC, e ainda, de acordo com o Art. 49 da Lei
n° 8.895/03, que equipara ao tombamento, para que se produzam
os efeitos legais necessários, os demais institutos previstos nesta
Lei; e conforme demonstrado e fundamentado no Ofício GAB n°
479/2014 – IPAC, essa Gerência conclui que o Registro Especial
dos Espaços Destinados a Práticas Culturais Coletivas reúne em
um único instrumento as especificidades intrínsecas aos bens cul-
turais em questão e opina pelo indeferimento do pedido. (BAHIA,
2012, p. 49).

Logo, os terreiros registrados na Bahia não foram patrimo-


nializados também com o tombamento, com exceção do terreiro
Humpame Ayono Huntólogi, que já era tombado em decorrência
do Processo n° 002/06, Decreto n° 10.147, de 07 de novembro de
2006 (SANTOS, 2015). Ao dissertar sobre a “escolha” pelo registro
especial por parte dos terreiros, Queiroz (2015, p. 32) informa que:

A opção do IPAC e das comunidades de santo pelo Registro Espe-


cial está pautada na ideia de que, no caso dos terreiros, a aplicação
do Registro vai ter um sentido, e não é o sentido puro e simples de
registrar-identificar, reconhecer e valorizar, no âmbito do próprio
grupo, determinada prática que está se perdendo e que os mestres,
detentores, valorizam.
144 | Walkyria Chagas da Silva Santos

Assim, será o próprio grupo que definirá quais aspectos e práti-


cas devem ser valorizadas. Eis uma grande diferença entre o tomba-
mento e o registro especial: a prática posterior ao tombamento não
vem implicando na adoção do plano de preservação ou salvaguarda;
no caso do registro, a sua aplicação implicará na adoção do plano.46
Vale informar que Pellegrino Filho (2015a), em publicação do
IPAC na qual consta o texto de Queiroz (2015), aponta que o re-
gistro especial poderá vir a ser o instrumento mais adequado para
proteger os terreiros de candomblé, mas não elimina a possibilida-
de de utilização conjunta com o tombamento. O IPAC continua os
estudos para aplicação do registro especial para outros terreiros.
Exemplo disso é o estudo realizado por equipe multidisciplinar com
os terreiros de Babá-Egum, da Ilha de Itaparica, o Omó Ilê Agboulá
e o Ilê Olokotum. Apesar das notícias de que o dossiê seria analisado
pelo CEC em janeiro de 2017, não foi encontrada informação sobre
a conclusão do processo de registro especial dos terreiros (CULTU-
RA, 2016).
Das questões mais recorrentes quanto às recomendações dos
espaços religiosos afro-brasileiros para salvaguarda dos bens regis-
trados, vale citar o apoio a ações de conservação, manutenção e re-
forma dos espaços e construções que permitam a continuidade das
práticas religiosas; orientação e capacitação dos segmentos sociais
integrados aos terreiros de candomblé, para projetos e programas
específicos de fomento à cultura; e promoção de ações de educação
patrimonial e ambiental no âmbito dos terreiros de candomblé e co-
munidades envolvidas (PELLEGRINO FILHO, 2015a).
A partir de tais recomendações, em novembro de 2015, o Go-
verno do Estado da Bahia anunciou o investimento de R$ 140 mil
(cento e quarenta mil reais) para obras emergenciais de salvaguarda
dos dez terreiros registrados no Recôncavo Baiano e lançou o livro
Terreiros de Candomblé de Cachoeira e São Félix, que é uma adaptação
do Dossiê de Registro Especial, documento produzido pelo IPAC
para subsidiar as ações de proteção oficial (NOTÍCIAS ,2015).

46  Na publicação do IPAC, consta a sistematização de recomendações construídas


juntamente com os terreiros, que deverão compor o plano de salvaguarda.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 145

Em reportagem de 17 de março de 2016, o Jornal Correio da


Bahia traz a informação sobre a assinatura de termo entre o IPAC
e a prefeitura de Cachoeira para realização de ações que visavam a
reforma dos dez terreiros registrados:

Os serviços de reforma predial constituem a terceira ação promovi-


da pelo Ipac para a preservação dos terreiros Aganjú Didê (conhe-
cido como Ici Mimó), Viva Deus, Lobanekum, Lobanekum Filha,
Ogodó Dey, Ilê Axé Itayle, Humpame Ayono Huntóloji e Dende-
zeiro Incossi Mukumbi, em Cachoeira; além de Raiz de Ayrá e Ile
Axé Ogunjá, em São Félix. Eles pertencem às nações nagô, nagô-
-vodum, jeje-mahi e angola e possuem até 200 anos de existência.
(REDAÇÃO, 2016).47

Vale citar, ainda, o Projeto Terreiros Criativos, que tem foco na


economia criativa voltada à cultura, que integra “o Programa de
Fomento e Valorização dos Terreiros Patrimonializados e trabalha
com três eixos – a educação (capacitação), o turismo (sinalização)
e a comunicação (informação e impressos)”. Segundo João Carlos
de Oliveira, diretor geral do IPAC, “O projeto é inédito e inovador
na Bahia, já que até hoje não se tinha implantado um programa de
política pública continuada para beneficiar terreiros tombados ou
registrados pelo Estado” (NOTÍCIAS, 2018).
Percebe-se que, diferente do que ocorre no tombamento, em que
as comunidades reclamam pela adoção posterior de ações por parte
do poder público (SANTOS, 2015), no caso do registro especial, al-
gumas ações foram implementadas.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme demonstrado, apesar do grande número de espaços


religiosos afro-brasileiros existentes no Brasil, há baixa incidência

47  Segundo informações da Secretaria de Cultura, em maio de 2016 foram


realizadas vistorias em terreiros registrados de Cachoeira e São Félix, por
arquitetos, engenheiros, antropólogos e fotógrafos do IPAC. Foi a segunda
vistoria para elaboração do plano de trabalho de execução das obras prediais nos
terreiros (SECRETARIA DA CULTURA, 2016).
146 | Walkyria Chagas da Silva Santos

de proteção a partir de ações estatais, havendo uma grande contra-


dição quanto à quantidade de terreiros existentes e terreiros patri-
monializados.
Algumas ações48 foram implementadas nos últimos anos, com o
objetivo de proteger os espaços religiosos afro-brasileiros e, assim,
resguardá-los para que as futuras gerações possam acessar a heran-
ça ancestral. As ações são resultado de grandes lutas empreendidas
pelo povo de axé em busca do reconhecimento, por parte do Estado
brasileiro, do seu valor enquanto guardiões da cultura e da religio-
sidade originárias da diáspora e da formação da sociedade brasileira.
Cumpre destacar o papel da agência negra no contexto de lutas
pela garantia de direitos e ressaltar que os avanços alcançados não
são decorrentes de ações espontâneas do Estado, mas sim resultado
da articulação, do comprometimento da agência negra e do povo de
axé. Cabe mencionar que a baixa proteção do patrimônio cultural
do povo negro, em especial das religiões afro-brasileiras, é resultado
dos séculos de espoliação, do colonialismo/colonialidade, da bran-
quitude, do racismo, das teorias que inferiorizaram os negros, entre
outros fatores.
Diante das dificuldades para patrimonializar os espaços religio-
sos afro-brasileiros a partir do tombamento, o IPAC lançou um novo
instrumento que possibilita maior participação da comunidade nas
ações de preservação dos terreiros, o registro especial. Assim como
ocorreu no momento de implementação do tombamento, ainda há
dúvidas sobre se o registro especial é o melhor instrumento para
proteger os espaços religiosos. Isso porque ainda não ficou claro se
o registro especial aplicado sozinho, sem o tombamento, é suficiente
para proteger os terreiros a partir de ações estatais, judiciais e ad-
ministrativas.
A primeira aplicação do registro especial ocorreu em 2014; por-
tanto, ainda é um instrumento novo e temos um caminho a percor-

48  Exemplo: mapeamento de terreiros, registro especial e o projeto Perguntando


a Onilê – produção de conhecimento para instrução de processos de Tombamento
de Terreiros. O projeto é realizado pela Universidade Federal da Bahia em
parceria com o IPHAN. Site: http://www.edgardigital.ufba.br/?p=11156.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 147

rer para compreender se ele atende ao que se pretendeu no momento


de sua concepção. Os membros do Conselho Estadual de Cultura
não entendem o registro especial como apto para proteger, sozinho,
os espaços religiosos afro-brasileiros, e ainda não ficou claro se, para
os espaços religiosos, o registro especial é suficiente, pois há espa-
ço registrado demandando tombamento. É preciso pensar se ins-
trumentos articulados resultam em melhor proteção; por exemplo,
tombamento, registro especial e APCP.
O registro especial tem possibilitado ações posteriores pensadas
e realizadas em parceria com os espaços religiosos afro-brasileiros,
segundo informações do IPAC. Porém, é preciso analisar as ações de
salvaguarda a partir do olhar dos terreiros registrados.
Os resultados após o entrecruzamento das discussões e dados
apontam que ainda não há consenso sobre qual o melhor instru-
mento para proteger os espaços religiosos afro-brasileiros a partir
da patrimonialização. Contudo, seja qual for o instrumento, ele deve
possibilitar a ativa participação do povo de axé para sua elaboração
e aplicação.
Enquanto “novos sujeitos”49 que demandam direitos do poder
público, estes não podem ocupar o lugar de objeto, mas de sujeitos
que constroem, juntos, um novo caminho para proteção do patrimô-
nio material e imaterial dos espaços religiosos afro-brasileiros.

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150 | Walkyria Chagas da Silva Santos

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6
O DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA
DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
NO TERREIRO DE CANDOMBLÉ DA
ÌYÁLÓRÌSÀ IDJEMIM

Paola Odònílé50

Foram os povos africanos, escravizados e trazidos ao Brasil,


que instituíram a religião dos òrìsàs, como fenômeno de resistência,
sonhos e memórias (CAPUTO, 2012), criando, assim, o chamado
candomblé, ao mesmo tempo fortalecendo territórios e cosmovisões
particulares, além da multiplicidade étnica.
Por ter uma herança escravista, o candomblé, historicamente
perseguido, resiste. Todavia, suporta uma série de violações que
atinge identidades étnicas, tradições e o modo de viver. No que se
refere à presença de crianças e adolescentes em terreiros, a perse-
guição torna-se mais intensa. Por isso, este trabalho consiste em
analisar como o direito garante a liberdade religiosa desses sujeitos.
A liberdade religiosa da criança e do adolescente é um instituto
de direito internacional positivado por diversos instrumentos, leis e
normas ao longo de séculos em diversos países. Aqui no Brasil, esse
direito é elencado pela Constituição Federal de 1988, também estan-
do presente na Lei n. 8.069/90, que institui o Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA). Nele, o Estado materializa seu dever de
proteção integral a esses sujeitos e o compartilha com a família e a
sociedade.
O Estado, ao dedicar parte da proteção da criança e do adoles-
cente ao poder familiar, promove o direito de compartilhar aspectos

50  Bacharel em direito pela Universidade do Estado da Bahia.


153
154 | Paola Odònilé

particulares como a religiosidade, assim como princípios éticos e


morais. No caso da religião afro-brasileira, esta não deveria se dife-
renciar de nenhuma outra, todavia acontecem violações de natureza
racial, mesmo com legislações que resguardam o direito à liberdade
religiosa, como será analisado neste trabalho, que nem sempre são
aplicadas.
Há, portanto, necessidade de aprimorar formas eficazes de ga-
rantir o exercício das leis que protegem a religiosidade afro-brasi-
leira e o combate ao racismo institucional. São exemplos a Lei Fede-
ral n. 12.288/10, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, e a Lei
Ordinária, que traz o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à
Intolerância Religiosa do Estado da Bahia. Tais leis elencam concei-
tos importantes para a fundamentação da defesa do direito à liberda-
de religiosa da criança e do adolescente em terreiros.
Esta pesquisa analisou, como estudo de caso, a presença de
crianças e adolescente no terreiro de candomblé de Mãe Edneusa
(Ìyálórìsà Idjemim), denominado Abassà da Deusa Òsùn de Idje-
mim, através de pesquisa de campo, observação com bases etnográ-
ficas, coleta de dados, estudo bibliográfico e das legislações brasilei-
ras e internacionais.
Para alcançar os resultados, na primeira seção após esta intro-
dução, enumeram-se diversos marcos legais que instituem direitos
e apontam as condutas que devem ser adotadas pelo Estado afim de
garantir a sua efetivação, discutindo suas problematizações (CF/88;
Lei n. 8.069/90; Convenção n. 169 da OIT). Em seguida, o estudo
aponta o caráter familiar na presença de crianças e adolescentes de
candomblé e o instituto do poder familiar como suporte para es-
colhas religiosas desses sujeitos. Por fim, a penúltima seção, antes
das considerações finais, expõe os entraves que atravessam a parti-
cipação de crianças e adolescentes no candomblé, criminalizando as
religiões afro-brasileiras.
O candomblé, como espaço de integração familiar e comunitá-
ria, vivencia a participação de crianças e adolescentes que, como su-
jeitos de direito, têm liberdades, momentos específicos de interação
e orientações para o seu próprio desenvolvimento humano.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 155

1 PERCURSOS LEGISLATIVOS

A instituição de uma religião oficial no Império foi, entre outras


violações, o que abriu um precedente para práticas de intolerância
religiosa por parte dos agentes do Estado. Afinal, se a própria Fe-
deração instituía determinada crença e a adotava com primazia, não
era de se estranhar que aqueles que representavam esse mesmo ente
e agiam para fazer cumprir suas leis e normas também o fizessem,
impregnados de valores religiosos. Daí ser importante trazer à luz
a relação contínua e intrínseca que se estabeleceu, historicamente
e de maneira confusa, entre os valores morais-sociais, religiosos e
jurídicos, norteando o comportamento político-jurídico do Estado
a todo tempo.
Um importante instrumento jurídico, o Decreto n. 119-A, de
1890, proibia a intervenção de qualquer autoridade federal em tema
religioso, quer na tentativa de instituir uma religião oficial, quer
com o intuito de proibir, destinando plena liberdade de culto e ex-
tinguindo a relação que existia entre igreja e Estado:

Art. 2º A todas as confissões religiosas pertence por igual a facul-


dade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não
serem contrariadas nos actos particulares ou públicos, que interes-
sem o exercício deste decreto.

Art. 3º A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos nos


actos individuais, sinão também as igrejas, associações e institutos
em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito de
se constituírem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a
sua disciplina, sem intervenção do poder público.

Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições,


recursos e prerrogativas. (BRASIL, 1890).

Eis um marco na busca da laicidade como prática dentro da Fe-


deração. A esse respeito, Oliveira (2010) destaca a neutralidade ar-
raigada do Estado laico, em que o principal aspecto a ser compreen-
dido é o respeito a uma pluralidade religiosa, que por isso, não deve
156 | Paola Odònilé

permitir a reprodução do modelo descrito anteriormente, no qual


uma única religião era imposta sobre as demais.
A Constituição Federal de 1988 foi uma das diversas Consti-
tuições inspiradas pela Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos (DUDH) de 1948 que, por sua vez, reflete a busca internacional
por um padrão mínimo de proteção dos direitos humanos no âmbito
mundial. A DUDH, de acordo com Mazzuoli (2011), pode ser consi-
derada um marco no surgimento de uma nova ideia de vida interna-
cional, atribuindo voz aos povos e indivíduos, incentivando um direi-
to que preza pelo bem-estar da pessoa humana e prevê o tratamento
igualitário a todos os seres humanos, inclusive no que diz respeito à
liberdade de crença e culto religiosos. Desse modo, reconhece Sena
que os Estados-membros se comprometeram com a promoção e o
estímulo ao respeito à liberdade religiosa e sua livre manifestação,
apresentados no artigo 18º da DUDH:

Artigo XVIII - Todo ser humano tem direito à liberdade de pensa-


mento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mu-
dar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou
crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em
público ou em particular. (DUDH, 1948).

Face às necessidades específicas de crianças e adolescentes, em


1959 foi adotada, pela Assembleia das Nações Unidas (ONU), a
Declaração Universal dos Direitos da Criança, como um documen-
to que intenta a orientação dos países no respeito às condições da
criança enquanto seres em desenvolvimento físico e intelectual e que
também define a liberdade de crença e culto religiosos como estado
a ser respeitado:

Princípio 10 - A criança gozará proteção contra atos que possam


suscitar discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra nature-
za. Criar-se-á num ambiente de compreensão, de tolerância, de ami-
zade entre os povos, de paz e de fraternidade universal e em plena
consciência que seu esforço e aptidão devem ser postos a serviço de
seus semelhantes. (DUDC, 1959).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 157

Para chegarmos ao direito à liberdade religiosa no Estado bra-


sileiro, é fundamental a compreensão de que, assim como a concep-
ção histórica do candomblé se constrói num processo constante de
resistência, de luta por respeito e liberdade, no direito positivo são
essas características que formarão a raiz e darão sustentação às ga-
rantias e direitos fundamentais, o que proporciona ao ordenamento
jurídico uma concepção que admite a soberania popular e que, como
bem atesta Silva (2005), é composto de princípios e entendimento
de mundos, oriundas de lutas populares para a conquista categórica
desses direitos. Neste aspecto, o art. 5º, VI, da CF/88, dispõe sobre
três formas de expressão de liberdade: crença, culto e organização
religiosa.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na-
tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo asse-


gurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

A Constituição consolidou a conquista da liberdade de crença,


segundo a qual as pessoas não poderão ser constrangidas por mo-
tivos de crença religiosa ou ter embaraçado o seu livre exercício.
No que se refere à liberdade de culto, esta se amplia e desautoriza
a atuação do poder público com intervenções arbitrárias. Quanto
à liberdade de organização religiosa, de fato, a CF/88 reconhece o
Estado como sendo laico, para não discriminar as várias religiões
(SILVA, 2005).
Conquistados esses direitos sob a égide social de luta e interesse
religiosos, pergunta-se se estariam, de fato, garantidos. É o poder
público o responsável por restaurar o status quo de direito indivi-
dual e coletivo. O Estado, representado por seus agentes públicos,
em caso de inobservância, só atuará com sucesso na restituição dos
direitos violados reconhecendo os processos históricos. No caso das
religiosidades afro-brasileiras, muitas situações de cerceamento de
158 | Paola Odònilé

direito foram historicamente violadas, exigindo do poder público a


observância cuidadosa para a efetiva garantia do direito à liberdade
religiosa.
No que se refere à participação de crianças e adolescentes no
candomblé, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n.
8069/90, criado para elencar e assegurar os direitos da infância e da
juventude, também garante a liberdade religiosa. No capítulo II, que
trata sobre liberdade, respeito e dignidade, o art. 16, inciso III, pon-
tua que, entre essas liberdades, encontra-se “a liberdade de crença e
culto”. E ainda acrescenta, no art. 17:

O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade fí-


sica, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a
preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores,
ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Foi em 1990 que o Brasil sancionou a lei que institui o Estatuto


da Criança e do Adolescente e ratificou a Convenção sobre os Direi-
tos da Criança, documento importante que, de acordo com Lamen-
za (2012), representou mudanças fundamentais na imagem dada às
crianças e adolescentes no âmbito das leis, posicionando-os como
sujeitos de direitos e convocando a sociedade, a família e o Estado
para uma atuação de cooperação.
É intrigante que mesmo assegurado em tantas leis, decretos
e declarações, o direito à liberdade religiosa da criança e do
adolescente ainda necessite ser constantemente fundamentado, um
aspecto vicioso da prática social que teima em descumprir deveres e
infringir direitos. Imperiosa a ressalva para o recorte que interpela
as questões raciais, já que, desde o princípio, o direito à liberdade
religiosa no candomblé é originalmente um direito do povo negro.
A Convenção sobre os Direitos da Criança é documento ofi-
cializado como lei internacional, no Brasil, enquanto o Decreto n.
99.710, de 1990, reúne os dispositivos sobre os direitos humanos
mais aceitos na história universal. Por isso, merece uma leitura de-
dicada em seus dispositivos que dizem:
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 159
ARTIGO 2.º 1 – Os Estados Partes comprometem-se a respeitar e
a garantir os direitos previstos na presente Convenção a todas as
crianças que se encontrem sujeitas à sua jurisdição, sem discrimina-
ção alguma, independentemente de qualquer consideração de raça,
cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra da criança, de
seus pais ou representantes legais, ou da sua origem nacional, étnica
ou social, fortuna, incapacidade, nascimento ou de qualquer outra
situação. [...]

ARTIGO 14.º 1 – Os Estados Partes respeitam o direito da criança


à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. [...]

ARTIGO 30.º Nos Estados em que existam minorias étnicas, re-


ligiosas ou linguísticas ou pessoas de origem indígena, nenhuma
criança indígena ou que pertença a uma dessas minorias poderá ser
privada do direito de, conjuntamente com membros do seu grupo,
ter a sua própria vida cultural, professar e praticar a sua própria
religião ou utilizar a sua própria língua.

O candomblé é uma comunidade que se autodefine como povo,


que possui língua, modos particulares de viver e tradições, entre
outros elementos culturais importantes para a formação individual
e coletiva. Nesse sentido, o direito internacional contempla aspectos
particulares da religiosidade específica das minorias.
Nesse panorama de dispositivos nacionais e internacionais que
cuidam do direito à liberdade religiosa de crianças e adolescentes, o
Estado brasileiro positivou o reconhecimento das agruras étnicas
sofridas pelo povo negro, dedicando-lhe um ordenamento específico
frente à necessidade de proteção e de políticas públicas específicas
capazes de envolver e salvaguardar a propriedade de suas tradições
hostilizadas ao longo de anos. A importância desse aspecto fica clara
quando examinado o conteúdo da lei, em especial os dispositivos a
seguir indicados:

CAPÍTULO III - DO DIREITO À LIBERDADE DE CONS-


CIÊNCIA E DE CRENÇA E AO LIVRE EXERCÍCIO DOS CUL-
TOS RELIGIOSOS [...]

Art. 24. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre


exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende: [...]
160 | Paola Odònilé
II - a celebração de festividades e cerimônias de acordo com precei-
tos das respectivas religiões; [...]

IV - a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e


materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas
na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por le-
gislação específica; [...]

VIII - a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação


penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos
meios de comunicação e em quaisquer outros locais. (BRASIL,
2010).

Foi preciso romper os limites do texto constantemente repetido


nas linhas das leis que ao tratar de liberdade religiosa, sempre se
atém a promovê-la sem adentrar às especificidades. Destaque-se o
tratamento adotado dentro do capítulo que trata do culto e da cren-
ça protegidos pelo Estatuto da Igualdade Racial e que, ao descrever
a intolerância religiosa, as cerimônias e os artigos religiosos no seio
do mesmo artigo, reafirma a tese de que a imprescindível tutela da
religiosidade afro-brasileira manifesta-se, do passado até a atualida-
de, sendo alvo de uma variedade de violências, motivadas pelo racis-
mo instituído desde o descobrimento.
Por sua vez, a Bahia foi o primeiro Estado a instituir, em sua lei
estadual, um estatuto semelhante ao do país, o Estatuto da Igualda-
de Racial e de Combate à Intolerância religiosa do Estado da Bahia
– Lei n. 13.182, de 06 de junho de 2014. Mas, de maneira eficiente,
reforçou a clareza na conceituação de algumas definições em seu
texto e na proteção à religiosidade afro-brasileira. Para tanto, assim
definiu intolerância religiosa:

VII - intolerância religiosa: toda distinção, exclusão, restrição ou


preferência, incluindo-se qualquer manifestação individual, coletiva
ou institucional, de conteúdo depreciativo, baseada em religião, con-
cepção religiosa, credo, profissão de fé, culto, práticas ou peculiari-
dades rituais ou litúrgicas, e que provoque danos morais, materiais
ou imateriais, atente contra os símbolos e valores das religiões afro-
brasileiras ou seja capaz de fomentar ódio religioso ou menosprezo
às religiões e seus adeptos. (BAHIA, 2014).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 161

A criação de normas e políticas públicas afirmativas específicas


para o povo negro segue reforçando a lógica da necessidade de re-
sistência enfrentada por esses sujeitos, em que o aspecto religioso se
posiciona, ao lado de outros enfrentamentos, como um mecanismo
político de afirmação. Nesse curso, Araújo (2018) afirma que a luta
das religiões afro-brasileiras por reconhecimento contribuiu para a
construção de direitos no âmbito público e situou o racismo como
uma realidade que permeia as relações sociais no Brasil.
Talvez por isso, a necessidade cada vez mais presente de uma
proteção e garantia, em seu máximo de clareza para as práticas reli-
giosas do candomblé, conseguiu se fortalecer no desenvolvimento e
criação de normas específicas, como se pode ler no art. 24 do mesmo
Estatuto:

Art. 24 É assegurado aos alunos adeptos de religiões afro-brasi-


leiras o direito de realizar atividades compensatórias, previamente
definidas em ato normativo, sob orientação e supervisão pelos res-
pectivos professores, na hipótese de necessidade de faltar às aulas
em função de atividade religiosa devidamente comprovada, tendo
em vista o cumprimento dos deveres escolares e o aproveitamento
dos conteúdos programáticos. (BAHIA, 2014).

Nos passos dos reconhecimentos do Estado para com os po-


vos de terreiro, a Convenção n. 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) se destaca como documento de empoderamen-
to dessas comunidades, ao reconhecer as religiões afro-brasileiras
como povos tradicionais (RAMOS, 2018), promovendo o respeito
às especificidades de suas tradições em qualquer situação em que
estejam inseridas:

Artigo 5o - Ao se aplicar as disposições da presente Convenção:

a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas so-


ciais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos mencio-
nados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos
problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como indivi-
dualmente. (OIT, 2004).
162 | Paola Odònilé

Baseado na e reconhecido pela Convenção n. 169 da OIT, o culto


da religiosidade afro-brasileira também é designado como pratica-
do por um povo tradicional. Esse aspecto semântico revela muito,
quando alcançamos a compreensão de que, no candomblé, a estrutu-
ra da dinâmica que os adeptos vivenciam, seja em sua interação com
os espaços e divindades sagrados, seja entre si, é equivalente à de
uma família. Desde sempre, o candomblé se organiza reunindo seus
diferentes.

2 O ENCONTRO DE ÁGUAS: O PAPEL DA FAMÍLIA

A iminência da discussão dos direitos à liberdade religiosa da


criança e do adolescente é um encontro de águas, onde a constru-
ção e a conquista de cada verso destacado nos textos das leis acima
explanadas se deparam com o exame do usufruto exercido pelos
sujeitos, aos quais cabe o direito em questão.
A família, a sociedade em geral e o Estado compartilham o dever
e o interesse em uma série de questões jurídicas para proporcionar a
crianças e adolescentes um ambiente sadio e seguro. Mesmo atuan-
do em tríade, o poder público destina aos pais ou aos responsáveis
certa parcela da tarefa pública do poder familiar. Esse instituto con-
siste em normas a respeito de direitos e deveres que os pais têm
sobre os filhos e seus bens, determinadas em lei (MENEZES; PON-
TES, 2015).
Por outro lado, o conceito de família, que já passou por diver-
sas transformações, é trazido por Menezes e Pontes (2015) como
sendo uma instituição que, de maneira democrática, compartilha a
responsabilidade entre todos os membros, que se unem através de
laços de afetividade. Nessa dinâmica, ainda segundo os autores, cada
indivíduo deve encontrar seu espaço para construir sua identidade e
exercer responsabilidade pelo outro.
De maneira semelhante, também no candomblé, crianças e ado-
lescentes se unem através de laços de afetividade e seguem expe-
rienciando seu culto, baseados no preceito importante de que a reli-
gião é iniciática, fator que determinará a atuação de todo praticante
dentro da religião afro-brasileira.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 163

A esse respeito, Caputo (2012) expõe que, num terreiro, adultos,


crianças e adolescentes misturam-se e tratam-se de maneira igual-
mente respeitosa. Agregá-los não é apenas uma condição religiosa,
mas um incentivo para a socialização e solidariedade, pois na comu-
nidade de candomblé também participam indivíduos da população
onde se insere cada terreiro. Também é a autora quem traz o de-
poimento da Ìyálórìsà Palmira de Yànsàn, que se posiciona a favor
de que as crianças possam ser educadas o mais cedo possível nos
padrões da religião, pois isso significaria ensiná-las, o quanto antes,
o respeito aos mais velhos, à família e à natureza.
Já foi dito que o Estado passou a compartilhar, com a família,
a proteção à criança e ao adolescente. No campo da liberdade reli-
giosa, o poder familiar pode ser naturalmente motivador de grande
influência, e grande parte das crianças e adolescentes de terreiros
são da família dos dirigentes (ìyálórìsà e/ou bàbálórìsà) ou estão co-
nexas às filhas e filhos de santo do lugar (CAPUTO, 2012). O que
soa como um desenrolar natural da convivência entre família, em
que filhos comumente tendem a seguir a escolha religiosa dos pais.
Uma família, por exemplo, em que todos os seus membros são
do candomblé (pai, mãe e as duas filhas), reforça a tese de que o
parentesco é a unidade mais determinante para a iniciação de uma
criança no candomblé. Mesmo que existam outros, muitos filhos e
filhas de santo chegam ao terreiro ainda muito pequenos, por meio
dos pais ou de algum parente (CAPUTO, 2012). Nesse liame, a au-
tora destaca:

Em 1992, para a reportagem de O Dia, Mãe Regina Lúcia Fortes


dos Santos, a mãe de santo do Ilé Àse Òpó Àfonjá* afirmou que não
aprovava a iniciação de crianças, mas não se julgava no direito de
ir contra a vontade dos pais que a procuravam e também contra a
determinação dos Òrìsà. [...] Quase 20 anos depois, em nova entre-
vista, Mãe Regina diz que é favorável à iniciação de crianças, mas
que estas precisam ser lembradas de que a vontade dos pais teve
muita influência na iniciação. “Assim elas sempre estarão refletindo
se querem ou não permanecer no culto. É preciso sempre reafirmar
a necessidade da consciência da responsabilidade que é se tornar
um filho ou uma filha de santo, principalmente quando se trata de
crianças”, diz a Ìyálórìsá. (CAPUTO, 2012, p.124).
164 | Paola Odònilé

Mais uma face desse direito entre o poder familiar e a escolha


da criança e do adolescente é a possibilidade que se demonstra de
poder sair da religião quando o sentimento de não identificação com
a prática religiosa se fizer existente. Na ocasião em que a ìyálórìsà
afirmou sobre a responsabilidade de se iniciar na religião, notou-se
que essa consciência também deve estar presente no adulto e que
eles não estão livres de eventualmente escolher sair da religião, no
futuro.
A função educativa do poder familiar deve ser examinada com
rigor, para que não entre em conflito com os demais institutos tam-
bém tutelados pelo Estado. No campo da formação religiosa, entre a
crença e a descrença, muitos fatores influenciam ao longo da vida, é
uma decisão de muitas condições que, para crianças e adolescentes,
estão bastante relacionadas com a educação familiar. Essa influência
não dá, aos pais ou seus responsáveis, a liberdade de imposição, pois
o exercício do poder familiar nesse processo deve primar pelo diálo-
go e pelo respeito à evolução da autonomia dos sujeitos, mesmo na
infância e na adolescência (MENEZES; PONTES, 2015).
Isso quer dizer que o exercício do direito à liberdade religiosa
da criança e do adolescente necessita do amparo da família, de ma-
neira que se busque a medida de suas capacidades para compreender
o efeito de suas decisões, cabendo à família o suporte a suas escolhas
religiosas. Menezes e Pontes (2015) sinalizam uma compreensão
fundamental de que o regime adotado para as incapacidades vem de
uma estrutura patrimonialista e que, mais recentemente, as ações
da vida civil podem tocar direitos do campo do ser, exigindo uma
hermenêutica diferenciada.
Mesmo sendo considerados incapazes na forma da lei, crianças e
adolescentes podem apresentar potencial condição de compreensão
das circunstâncias que permeiam suas decisões – os adolescentes,
talvez, com maior faculdade, mas todos devem ter isso levado em
conta na busca pela mediação entre o poder familiar e a autonomia
desses sujeitos, bem como na condução do Estado frente a questões
relativas a essa decisão.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 165

Ademais, a solução inerente às possibilidade de conflito na dinâ-


mica da liberdade religiosa da criança e do adolescente e a respon-
sabilidade compartilhada em tríade por Estado, família e sociedade,
mostra-se equilibrada quando adotada com bom senso, em que pese
os pais ou responsáveis possuírem, no exercício do poder familiar,
a possibilidade de conduzir os filhos pelo caminho religioso que se-
guem de maneira orgânica e natural, apresentando-lhes sua fé para
que, no curso da maturidade, possam escolher o que querem, sem
desconsiderar a capacidade de discernimento de escolha ou impor
certos comportamentos.
Depreende-se que, se num conjunto de pertencimentos, é o Es-
tado que reúne todos em sua esfera, cabendo-lhe leituras e julga-
mentos sobre capacidades e poderes, pois à sua sombra descansam
direitos fundamentais da criança e do adolescente; e se dentro des-
se conjunto, é a outorga do poder familiar, pelo Estado, que tem
a finalidade de garantir o perfeito desenvolvimento de crianças e
adolescentes (já que se espera, em família, seu crescimento e desen-
volvimento saudável enquanto seres sociais); então, é natural que se
fortaleça a tese de que fica livre aos pais ou responsáveis, no exercí-
cio do poder familiar, o gozo completo da influência espontânea que
surge da dinâmica da convivência, deixando para o Estado a míni-
ma intervenção, sem excluir seu dever de permanente assistência e
ferramenta de garantias sempre que se desenhar a possibilidade de
violação de algum direito.
É absurdo perceber que a existência da Constituição como
ferramenta de organização da dinâmica e do equilíbrio social, não
supre a necessidade a que se destina, sua exegese ainda precisa
ser reivindicada, principalmente pelos grupos populacionais,
que são subjugados por um contexto histórico de perseguição e
criminalização, a exemplo dos povos de terreiro. Por isso, o cuidado
no cumprimento das garantias constitucionais é essencial, podendo
acarretar riscos profundos para a permanência das tradições e da
cultura religiosa afro-brasileira, quando não conhecidas previamente.
166 | Paola Odònilé

3 RITUAL DE CRENÇA E A VIOLAÇÃO DE DIREITOS

Cabe aqui a inquirição que sustenta o direito à liberdade reli-


giosa de crianças e adolescentes no candomblé. Isto porque, obser-
vamos os altos níveis de intolerância às religiões afro-brasileiras,
considerada uma das faces do racismo no Brasil – nada obstante o
racismo ter sido alçado à categoria de crime imprescritível e inafian-
çável na Constituição de 1988 –, que resiste ao tempo e agride de
morte o processo de democratização.
O dia a dia revela a existência de um verdadeiro hiato entre
os direitos internacional e os constitucionalizados no Brasil, num
cotidiano de violações que vitimizam os templos, os sacerdotes e os
praticantes do candomblé na atualidade. Neste lugar de subalterni-
dade ocupado ainda hoje por tais religiões, a presença de crianças e
adolescentes ainda se mostra controversa.
O caminho que as normas e leis percorreram para chegar até
um porto de lacunas mínimas na proteção dos direitos à liberdade
religiosa do candomblé cruzou um oceano histórico de intolerâncias
e violações. Tais direitos foram conquistados graças à força de re-
sistência de negros e negras, que ainda hoje se mantêm em vigília
para garantir seu exercício. Por isso, o toque do direito no candom-
blé nem sempre produz belas harmonias e, por vezes, conduz-se de
forma a violentar a riqueza das tradições religiosas afro-brasileiras
que tanto dizem sobre a formação do nosso país.
Em consulta à jurisprudência do Tribunal de Justiça de São
Paulo, encontra-se o seguinte julgado:

CRIME CONTRA A LIBERDADE INDIVIDUAL - Cárcere pri-


vado - Artigo 148, § 1º, inciso III e § 2º, do Código Penal - Ca-
racterização - Iniciação em prática religiosa - Candomblé - Menor
mantido numa tenda por 3 meses - Submissão a maus tratos físicos
e psicológicos - Fatos absolutamente incontroversos - Condenação
- Recurso provido. (PEREIRA, 2015).

A condenação se baseia, de maneira cristalina, na ritualidade vi-


venciada na iniciação ao candomblé. Por mais que tente o escudo da
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 167

dúvida fazer alguma provocação, um estudo rápido sobre o processo


de iniciação na religião é suficiente para revelar que, por vezes, o Es-
tado continua reproduzindo o histórico de intolerância que violenta
essas religiões.
No dia 24 de outubro de 2018, o advogado das religiões afro-
-brasileiras no STF, Hédio Silva Jr., em sua página de rede social,
veiculou um vídeo informando sobre a condenação de uma ìyálórìsà,
pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por crime de maus-
-tratos a uma Criança. O conteúdo completo do trâmite processual
corre em segredo de justiça, mas o que se sabe, segundo Cipó (2017),
é que, desde o início, a juíza do caso decretou a prisão da ìyálórìsà e
utilizou-se da alegação de envolvimento de uma criança em “rituais
religiosos”.
Quando não resultam na insistente perpetuação da intolerân-
cia racial, casos como esses acabam por pressionar a burocratização
do candomblé que, diferente de algumas religiões afro-brasileiras,
constrói-se e mantém-se na tradição da oralidade, questionando sé-
culos de resistência e preservação cultural. Se, de um lado, o tex-
to da lei enumera a proteção das peculiaridades afro-religiosas, por
outro, atua de modo dispare e nega o que se propõe no Estatuto da
Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado
da Bahia, ao definir intolerância religiosa.
A presença de crianças e adolescentes no candomblé não é dife-
rente da presença desses sujeitos em outras religiões, como afirma a
mãe de duas crianças de candomblé:

Dentro da minha realidade talvez você perguntasse assim “porque


você levou seu filho pra ser feito no Candomblé?”. Aí assim, Can-
domblé pra mim é a minha fé, o que é fé, né? É meu porto seguro
que eu recorro pra tudo que acontece na minha vida, tudo! Não é
que é a minha explicação pra tudo que acontece na minha vida, é o
meu porto seguro, é onde eu me oxigeno, onde eu me revigoro, é
onde eu desabafo, onde eu sinto dor e sinto alegria, né, Candomblé
pra mim é isso, minha família de axé. É a minha fé, eu penso em
cuidar dos meus filhos de tudo que eu tenho de melhor e o Can-
domblé é uma das coisas que eu tenho de melhor na minha vida.
[...] A gente ensina pros filhos o que a gente tem, não tem como.
“Ah eles vão escolher...”, eles vão escolher diante de um arsenal que
168 | Paola Odònilé
eu já construí, que ele já recebeu, uma herança, é inevitável, nós
somos sujeitos coletivos, nós temos as continuidades, as heranças
né? Meus filhos vão aprender português porque é a língua que eu
falo, eles vão aprender a rezar a reza dos Òrìsà porque é a reza que
eu canto, entendeu? Eles vão aprender, se eles vão continuar ou não
isso é até uma liberdade que eu também tenho [...]. (CERQUEIRA,
2018).

A convivência familiar é natural quando proporciona, a crianças


e adolescentes, a mesma realidade experimentada pelos adultos. E
é uma capacidade dada pelo Estado, através do poder familiar, que
já entendemos, anteriormente, que deve ser exercido plenamente
dentro do que a família tiver a oferecer, desde que os sujeitos se
mostrem capazes e interessados em escolher. Existem, na mesma
proporção de autenticidade, por exemplo, os pais que levam seus fi-
lhos às missas, à catequese, aos rituais de iniciação religiosa católicos
como o batismo, a eucaristia, como os pais que levam seus filhos ao
terreiro de candomblé.
Por isso, mantém-se sem sentido a estranheza com que por ve-
zes se trata a presença de crianças e adolescentes no candomblé. A
esse respeito, Caputo (2012) elenca, em sua pesquisa de quase vinte
anos, a chegada e caminhada de diversas crianças de terreiro, ficando
claro que todas tinham algum parentesco consanguíneo com alguém
que já frequentava aquele lugar – por vezes eram filhos, irmãos, ne-
tos, algumas outras se ligavam diretamente aos líderes religiosos ou
através de seus pais, mas todas convergiam para o mesmo momento,
o que os unia através da religião, passando a fazer parte direta da-
quela família de candomblé, daquela comunidade.
O que atravessa esse pertencimento são entraves que tocam o
direito à liberdade religiosa de crianças e adolescentes de candom-
blé, aspectos da tradição das religiões afro-brasileiras que são sus-
citados pela sociedade, pelo Estado e pelo Judiciário como ofensa à
integridade física e moral desses sujeitos, quando na verdade atin-
gem a autonomia da liberdade religiosa da criança e do adolescente,
a autonomia do poder familiar e, sobretudo, o respeito e a integri-
dade social, histórica, religiosa e cultural do candomblé e de toda a
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 169

conjuntura que envolve a dinâmica da formação das religiões afro-


-brasileiras.
Uma série de notícias foi veiculada pelo portal G1 (2016) tra-
tando de crianças que teriam sido apreendidas sob suspeitas de
maus-tratos em um terreiro de religião afro-brasileira no Piauí. A
esse respeito, o site divulgou que a juíza da 1ª Vara da Infância e
da Juventude de Teresina, após confirmado óbito de uma criança
por intoxicação e que havia passado por rituais de cura no referido
local, determinou a apreensão posterior de outra menor no mesmo
espaço, autorizando o Conselho Tutelar a recolher toda criança que
apresentasse as mesmas características da segunda vítima: cabeça
raspada e cicatrizes em forma de cruz.
A iniciação religiosa no candomblé compreende o ritual de ras-
pagem da cabeça, como maneira de simbolizar, entre outros aspectos,
o renascimento para o Òrìsà e para a religião. Caputo (2012) coloca
que, em geral, a criança não raspa a cabeça, mas que quem vai deter-
minar isso é o Òrìsà através do jogo de búzios feito pela ìyálórìsà ou
bàbálórìsà. A tradição na condução dessa ritualidade pode variar de
terreiro para terreiro, mas, sempre que presente, a raspagem surge
como um elemento de transformação positiva na vida daqueles que
a vivenciam, sem apresentar qualquer elemento que coloque em ris-
co a integridade física, moral ou psicológica desses sujeitos. Ainda
sobre isso, Berkenbrock (2007) reafirma que, para se tornar membro
de um terreiro, o participante deve se iniciar. A consequência desse
processo é revelar-se parte de um todo, gozando de todos os “direi-
tos e deveres em uma casa de candomblé”.
Se uma das questões que caracterizam os maus-tratos é a raspa-
gem de cabelo e esse é, na verdade, um elemento próprio da tradição
religiosa afro-brasileira do candomblé, por meio do qual os adeptos
adentram a religião, o que se demonstra é o uso intolerante da tra-
dição religiosa para tipificar conduta de maus-tratos a crianças e
adolescentes e criminalizar a prática da religiosidade afro-brasilei-
ra. Ainda que nos pareça absurdo reconhecer e concluir com tanta
nitidez que esse processo de criminalização acontece independente-
mente de a Carta Magna do país defender a proteção da liberdade
170 | Paola Odònilé

religiosa, ou que existam tantos outros instrumentos normativos,


trazidos anteriormente, destinados a salvaguardar o culto das reli-
giões afro-brasileiras e a liberdade de culto e de crença de todos os
sujeitos, incluídas crianças e adolescentes dessas religiões.
Similarmente, percebe-se, ante o exame de outro aspecto, que
as cicatrizes em forma de cruz são conhecidas no candomblé como
cura e compõem a ritualidade da religião. Sobre elas, o advogado
Hédio da Silva Jr. afirma, em entrevista ao blog Olhar de um Cipó
(2017), que são referidas como escarificações. O advogado argumen-
ta que as curas são menos invasivas do que outros processos aos
quais crianças e adolescentes são submetidos por tradição religiosa,
como a circuncisão, por exemplo, que é praticada pelos judeus como
dogma religioso. As crenças sociais também se servem naturalmen-
te da escarificação na infância e na juventude: o furo na orelha é roti-
neiramente feito em recém-nascidos, bem como em adolescentes; na
saúde, o exame obrigatório do pezinho, todos envolvendo cicatrizes
no corpo com o uso de instrumento cortante ou perfurante.
A pesquisa acerca das situações de tensão que permeiam a dis-
cussão sobre a liberdade religiosa da criança e do adolescente no
terreiro de candomblé resulta por comprovar a criminalização im-
posta às religiões afro-brasileiras. Através da intolerância religiosa
e racial, a sociedade e o Estado reproduzem o contexto de violência
contra o candomblé e utilizam o aparelho estatal para coibir as re-
ligiões afro-brasileiras e seus filhos, embora devessem protegê-los.
Resta saber se nesse caminho eurocêntrico, a mais grave das conjun-
turas seria a ignorância sobre a construção que fundou o país, pois
o cenário que envolve as questões religiosas e culturais dos povos
de terreiro é o mesmo onde se dá a formação da sociedade brasileira
(TOMÁS, 2013), com a violação estarrecedora dos direitos fixados
no corpo de uma diversidade de dispositivos nacionais e internacio-
nais já mencionados.
Há outra inquirição que deve ser feita quando elencamos as
dificuldades a que crianças e adolescentes candomblecistas podem
enfrentar na garantia de usufruto de sua liberdade religiosa. A pre-
sença desses sujeitos em ritualidades de sacralização animal é ques-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 171

tionada, pois se supõe que podem ter impacto negativo sobre eles.
Nesse sentido, durante o julgamento do Recurso Extraordinário n.
494601, que trata da sacralização de animais em rituais religiosos, o
advogado Hédio da Silva Jr. Argumentou o seguinte:

Eu ouço falar na ideia de modernização de culto religioso e fico


pensando, qual é a instituição jurídica no Brasil que em nome da
modernização do culto religioso mandaria uma carta para o Vati-
cano reivindicando que o sangue representado na eucaristia fosse
substituído por suco de uva, sim, em nome da modernidade! E quem
sabe até alguns amigos que eu tive que começaram a carreira etí-
lica nas sacristias, porque o padre associa o vinho a alguma coisa
sagrada, não tivessem em nome do princípio da proteção constitu-
cional absoluta integral da criança, alguns amigos meus não tives-
sem começado com a carreira etílica nas sacristias. Entretanto, em
nome da liberdade de culto, em nome da liberdade de crença, nós
respeitamos o uso do vinho naquelas liturgias que utilizam bebida
alcoólica pública na presença de crianças. É este mesmo respeito
que as religiões afrobrasileiras vem postular hoje nesta corte. [...]
(BRASIL, 2018).

É Caputo (2012) quem descreve o ritual de sacralização animal


para a Òrìsà Yánsàn. Na cena, além da compreensão de que todos os
reinos (animal, vegetal e mineral) são possuidores de energias e que,
na religião afro-brasileira, podem ser utilizadas para auxiliar na vida
daqueles que necessitem, o cuidado e a sacralidade através de rezas,
cantos e zelos com o animal estão presentes em todos os instan-
tes. De igual maneira é que flui a presença das crianças ali, naquele
terreiro: as portas permanecem abertas às crianças e adolescentes,
quem se faculta a escolha de permanecer no espaço ritual ou não.
Assim, o que a autora parece descrever é muito mais a compreensão
de que, para esses sujeitos, a liberdade de vivenciar a religiosidade
dentro do candomblé é plena e respeitosa, de tal maneira que o fun-
damental, entre o sim e o não, é manter o respeito pelo culto que
estiver acontecendo.

As crianças participam de tudo né, então, elas participam de tudo!


Que elas quiserem... porque por exemplo assim, “ah o corte...”, o
corte, feito o processo de cada bicho, limpeza, arrumação, pererê
172 | Paola Odònilé
pererê... espera, né, de cada bicho é feito no espaço, nos quartos e
tal, não é feito de uma forma que se chama atenção né, mas é feito
com muita naturalidade, assim como minha avó matava as galinhas
no fundo do quintal pra gente comer, assim: viu, viu e viu, [risos],
assim como eu via matando carneiro no Crenguenhem pra gente
comer. (CERQUEIRA, 2018).

O exercício da liberdade religiosa dentro do terreiro de can-


domblé vai se revelando, assim, como uma maneira familiar de
transmitir a crianças e adolescentes os saberes da comunidade em
que convivem, onde se resguardam conceitos e normas de convi-
vência e respeito aos sujeitos sociais e à natureza. Esse aspecto é tão
profundo que, em seu estudo, Caputo (2012) descreve que o próprio
Òrìsà também se apodera da função de amparar seu filho, de modo
muito semelhante ao dever compartilhado entre família, sociedade
e Estado.
Se, por um lado, já ficou provado que o direito à liberdade re-
ligiosa da criança e do adolescente pode englobar a orientação dos
pais – e essa é a maneira como acontece no candomblé, analogamen-
te às outras religiões –, por outro, ainda resta expor a condição de
sujeito de direitos da criança e do adolescente, como um passo do
direito internacional que promoveu esses indivíduos a uma posição
ativa, de tal forma que se criaram mecanismos para garantir o exer-
cício desse direito.

4 SISTEMA DE GARANTIAS DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE E O DIREITO À RELGIOSIDADE DO CANDOMBLÉ

Constitucional e infra-constitucionalmente, o direito à liberdade


religiosa na infância e na adolescência tem um horizonte vasto, não
há uma pré-concepção do que pode ser feito na religiosidade (LA-
MENZA, 2012). Não existe receita para o exercício efetivo desse di-
reito pelos sujeitos objeto do presente estudo, e já ficou clara a ten-
dência incoerente e intolerante que o Direito assume ao se ausentar
ou diminuir quando a religiosidade em questão é a do candomblé. O
único aspecto fundamental apontado nessa direção é que a escolha
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 173

seja feita baseada na maior “sintonia com o eu” de cada criança e


adolescente (LAMENZA, 2012).
O ECA deixou claros os meios de controle das políticas públicas
e de participação social no apoio à infância e à adolescência. Diante
da criação de uma tríade (Estado-sociedade-família) para reorgani-
zar o dever de proteção da criança e do adolescente, surge a siste-
matização de uma estrutura de garantia desses direitos (FARINEL-
LI; PIERINI, 2015), chamada Sistema de Garantias dos Direitos da
Criança e do Adolescente (SGDCA), que pode ser assim compreen-
dido:

O SGDCA tem a finalidade de promover, defender e controlar a


efetivação integral de todos os direitos da criança e do adolescente
(direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos e
difusos). Trata-se de um sistema estratégico, para além de um sis-
tema de atendimento, complexo em sua estruturação, que deve pro-
mover ações que viabilizem a prioridade do atendimento à infância
em qualquer situação. (FARINELLI; PIERINI, 2016, p. 63).

Isso se traduz numa estruturação entre setores da sociedade


e do Estado, instituições, secretarias, municípios, entre outros, de
modo que suas capacidades se completem face às carências que pos-
sam surgir no andamento da resolução de determinadas demandas.
Quando a função de cada um é sabida mutuamente, fica mais fácil
fazer articulações que consigam alcançar uma solução mais rápida
e certeira (FARINELLI; PIERINI, 2016). Assim, a necessidade de
intervenção de outros setores, como uma soma de esforços para o
encontro de soluções em questões envolvendo o direito da criança
e do adolescente, é potencializada dentro de um sistema integrado.
Importante frisar que o entendimento dado ao SGDCA está
dentro de uma ótica que prima pela “promoção, defesa e proteção
dos direitos humanos”, ou seja, a significação que o sistema ganhou
extrapola o seu caráter estruturador institucional (FARINELLI;
PIERINI, 2016). A principal reflexão que se pretende alcançar nessa
seara de organizações sociais e estatais é o peso que o conhecimento
a respeito do candomblé pode ter na condução legal de casos que
envolvam o direito à liberdade religiosa da criança e do adolescente.
174 | Paola Odònilé

Não basta haver um sistema, a relevância da capacitação dos


agentes que atuam movimentando a engrenagem desse sistema so-
bre a cultura e as práticas afro-religiosas é um marco divisor que,
quando ausente, incentiva a intolerância religiosa e racial, que in-
corre na criminalização das práticas religiosas do Candomblé. Por
outro lado, agentes devidamente capacitados colaboram na garantia
do exercício do direito à liberdade religiosa de culto e crença das
religiões afro-brasileiras por seus adeptos. Nesse sentido, lembra
Ramos (2018, p. 38-39),

Duas iniciativas foram importantes para avançar nesta questão: pri-


meiro a elaboração de procedimentos para atendimento dos casos
de intolerância religiosa e racismo para a Polícia Civil; e a outra foi
um curso para agentes de segurança pública, civil e militar, sobre
intolerância religiosa, ministrada por pais e mães de santo.

Posto isso, o SGDCA deve entrar no debate para legitimar a au-


tonomia das crianças e dos adolescentes, ao decidirem permanecer
no candomblé, em virtude de restar provado que o que provoca a
tensão na liberdade religiosa nesta seara é a ação da violenta intole-
rância perpetrada pelo Estado e pela sociedade.
O Direito não pode usar a incapacidade designada para crianças
e adolescentes como justificativa do cerceamento do gozo pleno da
liberdade religiosa desses sujeitos. Isso ofende a tutela dada à famí-
lia, pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Ado-
lescente, no exercício do poder familiar, de dedicar aos menores as
tradições que a família comunga, como verdadeira herança cultural.
Assim, também se ofende a autonomia da criança e do adoles-
cente como sujeitos de direitos, o que levou séculos para ser con-
quistado. Compreende-se que esses indivíduos estão em processo de
formação, mas tal realidade não os retira ou isola da influência social
e familiar.
Por último, e essencialmente, ofende-se a integridade do can-
domblé e das religiões afro-brasileiras que, como atestado anterior-
mente, desde que atravessaram o Atlântico até os dias de hoje, pre-
cisam lutar para resistir ao racismo do colonizador.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 175

5 A PRESENÇA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO TERREIRO


DE CANDOMBLÉ DA ÌYÁLÓRÌSÀ IDJEMIM

O Abassà da Deusa Òsùn de Idjemim é a denominação do terrei-


ro de candomblé de Mãe Edneusa, situado no bairro da Barroca, pe-
riferia da cidade de Paulo Afonso, Bahia. O terreiro possui cerca de
dez anos de funcionamento e agrega diversos adeptos de diferentes
lugares, que compõem o que se chama povo de terreiro, de tradição
afro-brasileira, traçada entre as nações Angola51 e Kétu.52 No terrei-
ro, a ìyálórìsà possui filhos de santo abiyan (participantes não inicia-
dos), ìyàwó (iniciados) e cargos como: ìyá kékeré, bàbá kékeré, adagan,
èkejì, ogan alágbè, kota etc., suspensos e também iniciados que ocu-
pam funções de organização própria da comunidade de terreiro.
Como informa Parés (2007), “cada casa tem o seu regime”. Mes-
mo dentro de uma tradição, há adaptações, rituais e divindades espe-
cíficas que se diferenciam de outros lugares. Tomáz (2013) aponta o
terreiro da Ìyálórìsà Idjemim como exponencial, com característica
próprias com o lugar da casa dos òrìsà e do terreiro da Jurema, onde
se assentam os fundamentos da religião do candomblé.
A trajetória da Mãe Edneusa, denominada no candomblé como
Ìyálórìsà Idjemim, é a trajetória da criação do próprio terreiro -
Abassà da Deusa Òsùn. Isto porque sua história no candomblé come-
çou quando ainda criança, filha de sangue de uma das ìyálórìsàs mais
antigas de Paulo Afonso, conhecida como Mãe Neta, Mãe Edneusa
foi iniciada aos doze anos de idade, tendo se criado no regime de ter-
reiro. Somente depois de 30 anos como ìyálórìsà, conseguiu fundar
o seu próprio candomblé.

51  A nação Angola se constitui por etnias Bantu, originalmente de regiões da


África na linha abaixo do Equador, que no Brasil se misturam a diversas outras
nações e etnias, com línguas como kimbundu, umbundu e kigoongo, entre outras”
(KONMANNANJI, 2018).
52  “A nação Ketu passou a significar o rito de todos os nagôs. De origem da cidade
Ketu assolada por guerras, muitos habitantes vendidos aos negreiros da Costa,
muitos sacerdotes dos orixás vieram para a Bahia. Por isso, muitos elementos
das diversas nações iorubanas e daomeanas vizinhas a Ketu, juntaram-se aos
que chegaram aqui, com conhecimentos do ritual de sua região. Aqui na Bahia a
palavra Ketu ganhou significado de reunião, acordo, grupo” (LIMA, 1974).
176 | Paola Odònilé

A estrutura orgânica do terreiro da Ìyálórìsà Idjemim tem as-


pectos não só espirituais, mas também sociais e políticos, ao definir
a dinâmica de interação relacionada às tradições e regras orientadas
não apenas pela mãe de santo, mas também pelas entidades cultua-
das. As regras instituídas levam a éticas de vida assumida pelos pró-
prios adeptos.
O Abassá da Deusa Òsùn de Idjemim tem a participação de crian-
ças e adolescentes que, ao chegarem na companhia de suas famílias,
integram-se à comunidade de terreiro. Percebe-se que a condição
familiar se apresenta no exercício dessa religiosidade, reafirmando a
condição instituída pelo Estado ao poder familiar, como demonstra-
do na seção anterior. Para tanto, o exercício do direito à liberdade
religiosa da participação das crianças e adolescentes no terreiro de
candomblé acontece e passa a ser parte integrante da comunidade
segundo os regramentos da casa.
O que impera, nesse sentido, é o desejo de transmitir aos filhos,
sobrinhos, irmãos etc., o que é experienciado por quem participa do
culto afro-religioso. O candomblé proporciona bem-estar, respeito e
humildade, aprendidos por meio da vivência de regras e disciplinas.
As crianças e adolescentes de terreiro têm uma formação individual
fundamentada no coletivo, em que as diferenças são aspectos natu-
rais e importantes para o mundo: como cada um possui processo
único de evolução, o coletivo auxilia nesse processo, como demons-
tra a Mãe Kota do Abassà,

Eu vejo a participação das crianças no terreiro como uma coisa


natural e importantíssima, porque se todas as crianças tivessem
a vivência que o Candomblé proporciona pra gente de respeito e
humildade, essa hierarquia que é estabelecida e que a gente preci-
sa entendê-la como importante nesse processo do Candomblé, se
as Crianças vivenciassem isso, se tornaram seres mais respeitosos,
mais humildes, sabendo de comportar, sabendo falar na hora certo,
com essa consciência da importância que cada um tem no seu espaço
[...] a presença é importante na formação individual, tornando-se
seres melhores, que aprende a respeitar e a tolerar. (ILEBOMIM,
2018).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 177

No auge da participação de crianças e adolescentes no candom-


blé de Mãe Edneusa, a festa de Cosme e Damião é a que melhor os
envolve. Após se tornar uma tradição do terreiro e da comunidade,
essa festa criou vínculos de animação próprios para crianças, como
presentes, brinquedos, brincadeiras, doces e caruru, além de sorteios
de cestas-básicas que envolvem as famílias, danças e músicas da ri-
tualidade afro-brasileira.
No depoimento da Ìyálórìsà Idjemim sobre sua própria iniciação
quando criança, nota-se que sua mãe, ao se tornar ìyálórìsà, perce-
bendo os problemas de saúde da filha, recorreu à iniciação como for-
ma de lhe propiciar cura, embora sem discernimento e maturidade
quanto aos conhecimentos do candomblé: somente baseada em sua
experiência de vida, foi possível reconhecer no òrìsà os ensinamen-
tos. Seu aprendizado, hoje, é transmitido como conhecimento:

O Candomblé significa tudo, foi onde eu me encontrei, onde eu tive


estabilidade, fui reconhecida. Tenho a minha vidência que é dada
pelos Òrìsà. Então eu tive tudo, meu caminho mudou quando eu me
assumi como Ìyálórìsà e aceitei o que estava predestinado. Ai eu só
tenho a agradecer. Os Òrìsà são orientadores, estão para nos ajudar
como pais, mães, amigos, família. Vejo os Òrìsà como família porque
eles só querem levar agente para o caminho bom. Eles são tudo pra
mim. Por isso, o Candomblé é religião é Àse e é Òrìsà. (IDJEMIM,
2018).

Nesse sentido, o candomblé é um espaço de família. No terrei-


ro da ìyálórìsà, as pessoas, assim como crianças e adolescentes, são
livres para participar. Ali, os ensinamentos são transmitidos, a fé é
estimulada, as regras são instituídas e os limites são postos para que
encontrem o discernimento de vivenciar ou não essa prática religio-
sa.
Importante mencionar as duas experiências vivenciadas pelo
abassà quanto à iniciação de adolescentes: a iniciação de um alágbè
aos 15 anos e de uma ìyàwó aos 13 anos de idade. O Ogan Alágbè
Kitaualé, filho de sangue e de santo da Ìyálórìsà Idjemim, aceitou
participar do rito de iniciação no candomblé, confirmando-se ogan
– cargo que pode desempenhar várias tarefas, entre elas a de animar
as festas e liturgias:
178 | Paola Odònilé
Eu sempre quis e gostei, é uma coisa de família. Eu quando come-
cei nem sabia o que era música, mas, entendi que estava tocando o
atabaque para o Òrìsà e achava isso interessante e importante. Eu
conhecia um pouco da religião, não lembro se já tinha visto alguém
ser iniciado, mas, lembro bem da minha iniciação. Era bom está lá.
Eu já estava suspenso e a iniciação foi para confirmar no Santo.
Gostei de tocar e queria levar adiante. Fique um pouco com vergo-
nha quando me recolhi, mas, depois passou aí de lá pra cá mudou o
que eu fui aprendendo e levando mais a sério. (KITAUALÉ, 2018).

A Ìyàwó Miluajè, adolescente de 13 anos de idade, foi iniciada,


uma vez que sua mãe Iberelossì, como participante do candomblé,
deu-lhe o consentimento e era essa sua vontade. Sua mãe relata que
trouxe a filha entre seus nove e dez anos, desde então já havendo
uma convivência com outras crianças e também nas atividades or-
ganizativas do abassà. Conforme seu desenvolvimento e orientações,
a adolescente foi vivendo seu processo de iniciação:

Então ela é minha filha, de início eu nunca quis levar ela para o
Terreiro. Deixava-a com minha mãe, mas em casa sempre fazíamos
momentos de partilha sobre espiritualidade e Leticia ia vivenciando
tudo e sempre quis ir participar, mas eu resistia e não queria levar.
Até que acabei levando e ela gostou, começou a frequentar, fez lim-
pezas, deu buri, enfrentamos desafios no nosso relacionamento de
mãe e filha. Então, a Cabocla Jurema tem junto com minha Iyá Idje-
mim me ajudado nesta árdua tarefa de amadurecer como mãe [...]
minha filha, hoje adolescente, passou por etapas e segue evoluindo
a seu tempo, foi aí que em 27 de dezembro de 2017 foi iniciada. Até
este momento eu não acreditava que ela teria coragem e fé sufi-
ciente para esta missão, de “raspar no Santo”, mas enfim eu sempre
pensei assim: que o Terreiro, a iniciação seria a experiência de fé,
maturidade e de fortalecimento, que se ela não estivesse bem ali, na
sua vivencia religiosa, onde estaria? eu sou candomblecista , logo
ela poderia ter ou não ter a escolha de ser também. De livre desejo
escolheu ser. E me sinto feliz por isto. O hoje não me dará a garantia
de que será pra sempre, mas seguimos aprendendo. (IBERELOSSÌ,
2018).

Para a Ìyàwó Miluajè, o candomblé representa “amor, alegria,


paz, união e sinceridade”. Todo processo de iniciação possui dois
princípios norteadores: o querer familiar, que envolve o querer do
adolescente, nos casos acima concretos, e a vontade dos òrìsà. “Se
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 179

tem a vontade dos òrìsàs, tudo se resolve” (IDJEMIM, 2018). A von-


tade dos òrìsàs é revelada através do jogo dos búzios, pela vidência
da mãe de santo ou mesmo da pessoa interessada, devidamente con-
firmada nas regras estabelecidas pelo próprio candomblé. A inicia-
ção envolve um processo de sociabilidade em termos de identidade
étnica, pelos quais a condução ocorre exclusivamente pela mãe de
santo e seus auxiliares, mas, no caso dos adolescentes, é permitida à
família o acompanhamento em todos os processos litúrgicos.
A iniciação é a consagração da pessoa às suas divindades, cons-
tituindo-se como característica principal do candomblé, que com-
porta uma mudança de papel do indivíduo em relação à comunidade
de terreiro. O sujeito adquire uma nova “identidade espiritual”, for-
mada a partir do seu recolhimento, recolhendo-se ao huncó durante
um período que culmina com sua apresentação pública – “a festa de
saída do santo” –, na qual lhes é revelado um novo nome ou djina
(PARÉS, 2013).
O Candomblé de Mãe Edneusa possui regras de cuidados e pre-
servação das crianças e adolescentes. Para aquelas, há restrição de
participação em alguns rituais litúrgicos, como limpezas espirituais,
sacralização de animais, uso de bebidas e cigarros etc. Isto porque,
para o candomblé, esses são momentos de forte circulação de ener-
gias em relação às quais criança figura como vulnerável, devendo
ser preservada. Como explica o Íyàwó Kebonijé (2018):

Existem alguns rituais que inclusive até adultos que não estão no
processo iniciático não podem participar como sacralização, alguns
momentos de limpezas e os toques pra Èsù, que é uma entidade que
lida com todo tipo de energia, geralmente as Crianças não partici-
pam, nossa Mãe não permite que elas participem tendo em vista que
um dos elementares de Èsù é o álcool, pra que não tenha o contato
da Criança, do Adolescente com o álcool é necessário que ela não
participe, então isso é muito ético, muito coerente.[...] É a Mãe de
Santo que decide, algumas regras que já estão pré estabelecidas e
ela segue essas regras, isso já vem desde a casa de onde ela veio e ela
também tem essa sensibilidade de não permitir que isso aconteça,
que as Crianças tenham esse acesso a absolutamente tudo, então já é
uma tradição que ela segue. Tem coisas que não é necessário nem o
Encanto chegar e dizer que não pode, existe uma tradição e a gente
sabe que é necessário perpetuar essa tradição [...].
180 | Paola Odònilé

A tradição transmitida entre terreiros garante certa linearida-


de nos aspectos que fundam os cultos afro-religiosos, mesmo que
cada casa se constitua única e peculiar. Sobre isso, Vallado (2010)
explica que a mãe e pai de santo representam o grau hierárquico do
topo da pirâmide do candomblé, apenas o òrìsà suplanta isso; mesmo
assim, se vale da figura dos dirigentes para fazê-lo. Portanto, em
cada terreiro valerá a palavra de sua mãe ou pai de santo enquanto
representante do òrìsà. Esse “terreiro-mãe”, por sua vez, está acima
do “terreiro-filho”, mas a mãe ou pai de santo, que é autoridade na
“casa-mãe”, não interfere na condução dada na “casa-filha” (VALLA-
DO, 2010). As tradições são transmitidas e organizadas assim, ga-
rantindo certa homogeneidade, mas mantidas e agregadas conforme
a condução de seus dirigentes, o que pode variar, aspecto ressaltado
na fala da filha de santo, a Èkejì Lembakatulasì (2018):

Com relação às Crianças, principalmente a iniciação, não é diferente.


Os Òrìsà orientam, a Iyá recomenda, o filho e a família decidem se
fará ou não. Ressalte-se que não é imposto ou obrigado às pessoas,
todos os seres são livres e lá não é diferente, podendo optar por
seguir ou não o que lhe é recomendado.

No sistema da ritualidade do candomblé, tudo acontece como


mecanismos de promoção do equilíbrio e da harmonia individual e
coletiva (BERKENBEROCK, 2007). Neste sentido, a sacralização
dos animais, assim como o recolhimento no processo iniciático e
aspectos como raspagens da cabeça e escarificação, são processos
cuidadosamente realizados no candomblé de Mãe Edneusa, consen-
suados com a família. A tradição e a transmissão de conhecimentos
são repassados de forma a garantir o bem-estar, a integridade e a
dignidade da pessoa no seio coletivo.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Historicamente, a religiosidade afro-brasileira tem uma herança


de subjugação, discriminação e intolerância racial, que levou o Bra-
sil, em seu ordenamento jurídico, a estabelecer várias normas legais
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 181

que asseguram aos povos de terreiros, como tradicionais, o direito


de existirem. O direito à liberdade religiosa é desses dispositivos.
Os ordenamentos internacionais e nacionais, ao longo da histó-
ria, surgem junto às primeiras discussões sobre direitos humanos.
Enquanto religiosidade, o candomblé é tutelado por esse direito,
conquistado arduamente no mesmo processo de resistência e luta
pela liberdade do povo negro. O exercício do culto afro-brasileiro se
depara com conflitos sociais e jurídicos, no que se refere principal-
mente a participação de crianças e adolescentes.
Inúmeras violações que criminalizam terreiros de candomblé
ocorrem, sob a justificativa de que as práticas da ritualidade afro-
-brasileira “ofendem a integridade da criança e do adolescente”, im-
pedindo muitas vezes a iniciação e a livre participação destes no
candomblé, o que representa altos níveis de racismo institucional,
também tipificado em lei. No entanto, a legislação garante o exercí-
cio da liberdade religiosa da criança e do adolescente como sujeitos
de direitos.
Crianças e adolescentes do terreiro de candomblé da Ìyálórìsà
Idjemim exercitam sua liberdade religiosa de modo natural, ao vi-
venciarem o cotidiano da religiosidade afro-brasileira. Com sua fa-
mília consanguínea, a grande maioria frequenta o candomblé e goza
da liberdade de escolher entre permanecer ou não na religião. Nessa
convivência, aprendem não apenas sobre òrìsà, encantados, hierar-
quia e tradição, como também conseguem experenciar ensinamen-
tos transmitidos pela ìyálórìsà e por todos que compõem o terreiro,
no que se refere ao respeito, humildade e bem-estar. Isso que de-
monstra o poder familiar, como instituto jurídico, é respeitado nessa
tradição religiosa.
A rota percorrida demonstra que a criança e o adolescente fo-
ram reconhecidos como sujeitos de direito, o que lhes permite usu-
fruir da liberdade de escolher por manter-se ou não na religião. A
conduta adotada pela família em compartilhar com esses indivíduos
sua crença, neste caso o candomblé, além de natural, fundamenta-se
no exercício do poder familiar, que reafirma o desejo da família de
transmitir, como herança, as tradições e saberes adquiridos dentro
182 | Paola Odònilé

do culto afro-brasileiro. Além disso, é nessa perpetuação familiar


que eles ganham conhecimento a respeito do candomblé e, conse-
quentemente, clareza sobre suas práticas.
Durante a observação participativa no Terreiro de Mãe Edneu-
sa, o candomblé se mostrou através de seu povo de terreiro como
uma religião que busca a preservação da criança e do adolescente,
pois compreende suas fragilidades e se interessa por garantir sua
proteção, seguindo regras seculares da tradição afro-brasileira.
Além disso, esses mesmos sujeitos também representam a continui-
dade da religião, na medida em que, ao participarem dela desde pe-
quenos, é possível que desejem permanecer.
Assim, o que se conclui é que não há, no candomblé, qualquer
aspecto que possa configurar risco a crianças e adolescentes. O exer-
cício do direito à liberdade religiosa desses sujeitos se mostrou pro-
tegido e garantido pelo próprio povo de terreiro do Abassà da Deusa
Òsùn de Idjemim.
Mesmo em face de uma diversidade que cedeu certas diferenças
aos regimes construídos em cada terreiro, o que se demonstra é que
o candomblé traz, em sua tradição, um arcabouço de regras próprias
consonantes ao direito positivado e que mantém direitos e deveres
dos seus participantes, semelhantes aos instituídos pelo Estado bra-
sileiro. Assim, a multiplicidade não aparece como risco ao Direito,
pois não viola a lei, muito menos expõe seus adeptos a qualquer ris-
co. Pelo contrário, reserva-lhes uma ética própria, que lhes ensina, o
quanto antes, sobre a preservação da natureza e dos seres humanos,
individual e coletivamente.
O que resta ao Estado é a compreensão dessa perspectiva para
uma condução diferente nas situações de tensão que envolverem as
temáticas de iniciação, raspagem, escarificação e sacralização de ani-
mais no candomblé, cuidando para não reproduzir a intolerância e o
racismo que violentam as religiões afro-brasileiras e, assim, garantir
o exercício da liberdade delas conforme propõe nossa Constituição e
outras legislações do país.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 183

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186 | Paola Odònilé

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Parte 2
Fechando corpos: racismo
religioso e violências coloniais
no Brasil contemporâneo
7
“NÃO POSSO SER NEGRA. NÃO
POSSO CANTAR PRA OGUM. NÃO
POSSO SER DO CANDOMBLÉ. NÃO
POSSO NADA”: INFÂNCIA, RACISMO E
RACISMO RELIGIOSO53

Stela Guedes Caputo54

O título desse texto é uma fala de Eduarda de Souza Santos Fa-


ria, de 6 anos. Ela foi dita em uma conversa que tivemos, no dia 1º de
maio de 2019, em seu terreiro, o Ile Axé Opô Afonjá, em Coelho da
Rocha, na Baixada Fluminense. Eduarda, ou Duda, como é chamada
por seus familiares, é filha de Tauana dos Santos, 29 anos. Já pontuei
em outros textos que conheci Tauana quando ela tinha 2 anos. Ela
faz parte da primeira geração de crianças de nossas pesquisas. Foi
com ela que aprendi, entre tantas outras coisas, por exemplo, o que é
ser uma ekede no candomblé. “Eu sou ekede e a ekede não incorpora
o orixá, mas ela tem muitas responsabilidades, uma delas é cuidar do
próprio orixá quando ele está no terreiro. O orixá é nosso ancestral
divinizado, é também uma força da natureza”, ensinou-me Tauana
ao longo de nossas muitas conversas. Assim como muitas crianças
de terreiro, Tauana amou, desde muito cedo, sua religião. Mas, tam-
53  Este texto foi produzido no Contexto do Programa de Internacionalização
CAPES-PRINT, equanto atuava como professora visitante sênior no Instituto
de Educação da UMINHO, em Braga,Portugal.
54  Doutora em Educação e professora do Programa de Pós-graduação em
Educação da UERJ. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Kekéré (pequeno, em
iorubá), com ênfase em pesquisas com crianças de terreiros brasileiros. Também
pesquisa sobre racismo, racismo religioso, ensino religioso, laicidade e educação
antirracista.
189
190 | Stela Guedes Caputo

bém como a maioria dessas crianças, sofreu muito, principalmente


nas escolas onde estudou. “Na escola é muito ruim, muita zoação,
não dá para aguentar”, dizia-me aos 12 anos, quando revelou que
também participou de grupos jovens da igreja católica e chegou a
fazer primeira comunhão para não ser discriminada. Tauana narra-
ria os mesmos sentimentos por muitos anos ainda. “O problema não
é só a religião. É a cor da nossa pele”, diria sete anos depois, aos 19
anos.
Já em uma conversa, no dia 13 de outubro de 2017, falamos so-
bre a nova onda de agressões aos terreiros. “Os terreiros são ataca-
dos pelos mesmos motivos de sempre: porque somos negros e ne-
gros de candomblé, porque os neopentecostais mais fanáticos acham
que o povo do candomblé é do diabo. Ninguém coloca na cabeça
deles que Exu não é diabo e que cultuamos sim nossos ancestrais,55
nossos orixás. A gente nasce com orixá, renasce, cultua, cuida e vive
com a sua força, a força ancestral”, avaliou Tauana. Naquela tarde
de sexta-feira, ela estava com seus dois filhos: Eduarda, com 4 anos,
e Enrico de Souza, com 2 anos. No mesmo dia, Tauana diria, ainda,
que temia ter problemas na escola dos filhos, como ela mesma teve
na infância e adolescência, e relatou já as primeiras experiências de
racismo vivida por Eduarda, na creche.

O amor pelo ancestral não acaba. Ele passa de um para o outro e,


assim como herdei, já passo aos meus filhos e eles já cultuam, amam
e passarão aos filhos e filhas deles. Isso nos junta e ajuda a gente a
ser forte. Eu aprendi assim e gosto assim. Respeito todas as crenças,
mas nenhuma delas faz sentido para mim. O sentido da minha vida
é o candomblé. Meus filhos respiram candomblé e falam disso o dia
todo. Ninguém tem o direito de querer dar outro sentido para a
minha vida, eu já tenho. A escola não respeitou isso e eu temo que
a escola de meus filhos não respeite isso. Quer ver um exemplo? A
Duda tem 4 anos e já fui na creche dela duas vezes. Uma porque ela
chegou em casa dizendo que a amiguinha não queria mais brincar

55  Beniste (1997, p.189-190) afirma que o yorubá, como os demais grupos
africanos, acreditam na existência ativa dos antepassados. Os antepassados ou
ancestrais são denominados òkú òrun e àgbagbà, ou ainda pelo título ésà, usado
para reverenciar os ancestrais nos ritos de ìpàdé, nos candomblés do Brasil. Um
antepassado é alguém de quem a pessoa descende, seja através do pai ou da mãe,
em qualquer período do tempo, e que o ser vivente conserva relações afetuosas.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 191
com ela porque ela tinha cabelo duro. Fui lá e falei com a diretora, a
professora e a mãe da aluna. Disse que ninguém nasce racista e que
era dever dos pais e da escola cuidarem para que cada criança não
fosse racista. A outra vez tive que ir também porque a Duda chegou
dizendo que a professora pediu para ela cantar uma música e o que
ela cantou? Ògún a jó è màrìwó.56 Fui lá, a professora falou que não
podia e eu disse: Ela é de Ogum quer que a menina cante o quê?
Deixa ela cantar Ògún a jó è màrìwó na creche! Olha... não é fácil
lidar com a escola sendo negra e macumbeira. (Tauana dos Santos,
13 de outubro de 2017).

Na época da conversa, no dia 13 de outubro, minha preocupação


maior era refletir sobre o que vinha chamando de terrorismo con-
tra os terreiros praticado pela Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD) e por traficantes de Jesus. Era também pensar na ênfase
cada vez mais sinalizada por praticantes de religiões de matrizes
africanas ao limite do conceito de intolerância religiosa como mo-
tivador desse terrorismo e de outras violências, bem como o enten-
dimento de que racismo e racismo religioso estão na origem das
perseguições desse tipo (CAPUTO, 2018).
Neste texto, continuarei pensando as mesmas questões; contu-
do, seguirei o tempo todo com o que foi pontuado por Duda, aos 6
anos, quando conversávamos naquele feriado de 1º de maio de 2019.
“Não posso ser negra. Não posso cantar pra Ogum. Não posso ser
do candomblé. Não posso nada”.

1 PENSANDO O RACISMO ESTRUTURAL

O refogado de cebola e dendê perfumava todo o Ile Axé Opô


Afonjá.57 Mesmo sem estar na cozinha, dava para saber quando o

56  Cantiga para Ogum, divindade guerreira, senhor dos metais e das ferramentas.
No movimento de suas danças, revela ação de luta, de abrir novos caminhos,
desbravar matagais (BENISTE, 2001, 107).
57  O Ilê Axé Opô Afonjá foi fundado em1886, por Mãe Aninha de Xangô
Afonjá, na Pedra do Sal, bairro da Saúde, Rio de Janeiro. Em 1947, Mãe Agripina
(sucessora de Mãe Aninha) construiu o novo Axé, que hoje está localizado na
Rua Florisbela n. 1029, Coelho da Rocha, São João de Meriti. O nome do terreiro
significa: casa da força sustentada por Xangô.
192 | Stela Guedes Caputo

quiabo e o camarão foram acrescentados. O 1º de maio de 2019 caiu


numa quarta-feira. O amalá58 cozinhava. Já, já, Xangô comeria. De-
pois do orixá, Iyá Regina59 almoçaria com seus filhos e filhas de san-
to na grande mesa que fica na parte de trás de seu terreiro. Eu, que
o visitava mais uma vez, almocei com Tauana, Eduarda e Enrico,
que comiam mais à vontade nas esteiras distribuídas pelo chão do
barracão.60

E se o candomblé fosse branco? E se orixá fosse branco? Nossas


roupas de branco? Se terreiro fosse igual igreja? Acho que não
sofreríamos. Mas somos negros. Os orixás são negros. Os ances-
trais são negros. Nossa música negra. Nossa dança é negra. Nossos
cabelos são crespos, nossa pele é negra. Quem trouxe o culto aos
ancestrais para o Brasil? Os negros e negras trazidos escravos. O
candomblé é negro. Não somos igreja. É mais que intolerância. É
racismo e racismo religioso. Minha mãe sofreu. Eu sofri na infância,
sofri na adolescência. Fui entendendo que o problema era minha
cor e não só minha religião. Eu também não me aceitava. É isso
que o racismo faz, faz você não se aceitar. Depois me fortaleci e mu-
dei, mas foi muito duro. Agora é fortalecer minha filha, meu filho.
(Tauana dos Santos, 1º de maio de 2019).

Apesar de estar na conversa do dia 13 de outubro, quando Taua-


na relatou o racismo61 já sofrido por ela na creche, Duda não fez
58  Amalá é uma comida ritual oferecida para o orixá Xangô (e outros orixás
também). Xangô foi rei na cidade de Oyó. Ancestral divinizado, é o orixá da
justiça, dos raios, do trovão e do fogo.
59  Mãe Regina Lúcia Fortes dos Santos – iyalorixá do Axé Opô Afonjá. Maior
autoridade civil-religiosa dessa casa.
60  Os terreiros também são conhecidos como barracões. Barracão (ou salão)
também pode denominar a parte interna do terreiro onde acontecem as festas
públicas.
61  Destacamos, desde já que, para Guimarães (2002, p. 50-51), raça é, “não
apenas uma categoria política necessária para organizar a resistência ao racismo
no Brasil, mas é também categoria analítica indispensável: a única que revela
que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de ‘cor’ enseja
são efetivamente raciais e não apenas de ‘classe’. Não há raças biológicas, ou
seja, na espécie humana nada que possa ser classificado a partir de critérios
científicos e corresponda ao que comumente chamamos de ‘raça’ tem existência
real. O que chamamos de raça tem existência nominal, efetiva e eficaz apenas no
mundo social e, portanto, somente no mundo social pode ter realidade plena. O
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 193

qualquer comentário. Ouviu calada, olhos baixos. No encontro do


dia 1º de maio, quase dois anos depois, ela também estava conosco e
ouviu a mãe relembrar a experiência. Em um dado momento, Duda
entra na conversa e diz: “Na minha escola não brincavam comigo
por causa do meu cabelo. Eu não tinha amigos lá”. Um silêncio pesa-
do tomou conta de nossa pequena roda. Estávamos as três, sentadas
no chão do quintal do terreiro. A própria Duda, de novo com os
olhos baixos, se encarregou de quebrar o silêncio: “Não posso ser
negra. Não posso cantar pra Ogum. Não posso ser do candomblé.
Não posso nada”. Depois da frase da filha, Tauana me olhou e disse:
“Tá vendo só? É um racismo entranhado em tudo e que atinge ge-
ração após geração. Troquei ela de escola, vamos ver o que acontece
nessa”.
De acordo com o filósofo Sílvio de Almeida (2018, p. 25), o ra-
cismo “é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça
como fundamento, e se manifesta por meio de práticas conscientes
ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para
indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”. O mes-
mo filósofo também pensa como Tauana e entende que a concepção
institucional62 do racismo significou um importante avanço teórico
no campo dos estudos das relações raciais.

Sob essa perspectiva, o racismo não se resume a comportamentos


individuais, mas é tratado como o resultado do funcionamento das
instituições, que passam a atuar em uma dinâmica que confere, ain-

problema que se coloca é, pois, o seguinte: quando no mundo social, podemos,


também, dispensar o conceito de raça? A resposta teórica parece ser bastante
clara: primeiro, quando já não houver identidades raciais, ou seja, quando já não
existirem grupos sociais que se identifiquem a partir de marcadores direta ou
indiretamente derivados da ideia de raça; segundo, quando as desigualdades,
as discriminações e as hierarquias sociais efetivamente não corresponderem
a esses marcadores; terceiro, quando tais identidades e discriminações forem
prescindíveis em termos tecnológicos, sociais e políticos, para a afirmação social
dos grupos oprimidos”.
62  Almeida (2018, p. 33) destaca que seu livro não estaria completo se não
mencionasse a primeira obra a usar o adjetivo institucional para se referir ao
racismo – Blacl Power: Politics of liberation in America, de Charles V. Hamilton
e Kwame Ture (nome africano adotado por Stokely Carmichael).
194 | Stela Guedes Caputo
da que indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça.
(ALMEIDA, 2018, p. 29).

A principal tese da existência de racismo institucional, diz Almei-


da (2018), é que os conflitos raciais também são parte das institui-
ções. Em suas palavras:

Assim, a desigualdade racial é uma característica da sociedade não


apenas por causa da ação isolada de grupos ou indivíduos racistas,
mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas
por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institu-
cionais para impor seus interesses políticos e econômicos. (ALMEI-
DA, 2018, p. 30).

Para a concepção institucional do racismo, adverte o autor, o


poder é elemento central da relação racial, ou seja, o racismo é domi-
nação. “É sem dúvida, um salto qualitativo quando se compara com
a limitada análise de ordem comportamental presente na concepção
individualista” (ALMEIDA, 2018, p. 31). Argumenta, no entanto,
que não basta entender o racismo institucional sem compreender
que a imposição de regras e padrões racistas, por parte das insti-
tuições, é vinculada à ordem social que ela busca resguardar. Em
resumo, diz Almeida (2018, p. 38):

O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do


modo “normal” com que se constituem as relações políticas, eco-
nômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social
e nem um desarranjo institicional. O racismo é estrutural63. Com-
portamentos individuais e processos institucionais são derivados de
uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção.

A consequência de práticas de discriminação direta e indireta ao


longo do tempo, de acordo com Almeida (2018), leva à estratificação
social – um fenômeno intergeracional, em que o percurso de vida de
todos os membros de um grupo social é afetado pelo racismo – o que

63  O autor remete a: BONILLA-SILVA, Eduardo. Racism Without Racists:


Color-blind Racism and the Persistence of Racial Ineguality in the United
States. Maryland: Rowman & Littlefield, 2006, p. 465-480.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 195

inclui as chances de ascensão social, de reconhecimento e de susten-


to material, diz o pesquisador.
É justamente o que vimos quando Tauana resgatou, em sua fala,
o racismo sofrido por sua mãe, dona Conceição, por ela mesma e,
agora, por Eduarda, sua filha. Ou seja, como diz Tauana, “é o racis-
mo entranhado em tudo”.

2 PENSANDO O DISPOSITIVO DE RACIALIDADE

Continuando nossos estudos em diálogo com o campo científico


da Sociologia da Infância, o ponto de vista abordado neste texto
será o das crianças. Com elas, questionaremos a estrutura racista da
sociedade brasileira e, particularmente, da escola. Mantendo o ca-
minho e o modo de caminhar do grupo de pesquisa Kékeré da Uerj,
as crianças com as quais faremos, aqui, nossas questões, serão as
crianças de terreiros, notadamente Eduarda de Souza Santos Faria,
uma criança de 6 anos.
A frase dita por Duda naquele 1º de maio (“Não posso ser negra.
Não posso cantar pra Ogum. Não posso ser do candomblé. Não pos-
so nada”) nos acompanhará durante toda nossa reflexão, porque re-
vela que, desde muito cedo, uma criança vivencia o racismo estrutu-
ral que tem, no poder, seu elemento central, tal como Almeida (2018)
destacou há pouco. Portanto, depois de situar a sociedade brasileira
como estruturalmente racista, nesse momento, desejo pensar com
Eduarda considerando as noções de dispositivo e biopoder e dispo-
sitivo de racialidade-biopoder, conforme ampliou Sueli Carneiro em
sua tese de doutorado (2005).
De acordo com Carneiro (2005), para Foucault, um dispositivo
é sempre um dispositivo de poder, que opera em um determinado
campo e se desvela pela articulação que engendra uma multiplicida-
de de elementos, e pela relação de poder que entre eles se estabelece.

Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjun-


to decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
196 | Stela Guedes Caputo
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, mo-
rais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito são os elementos do
dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre es-
tes elementos. (FOUCAULT, 1979, p. 244, apud CARNEIRO, 2005,
p. 38).

Sueli Carneiro (2005, p. 39)) explica que o pressuposto apre-


sentado em sua tese64 é o de que a noção de dispositivo de racialida-
de/biopoder proporciona recursos teóricos capazes de “apreender a
heterogeneidade de práticas que o racismo e a discriminação racial
engendram na sociedade brasileira, a natureza dessas práticas, a ma-
neira como elas se articulam e se realimentam ou se re-alinham para
cumprir um determinado objetivo estratégico”, já que, em síntese,
diz a filósofa, o dispositivo, para Foucault, consiste em estratégias
de relações de força, sustentando tipos de saberes e sendo por eles
sustentadas.
Parece-nos que a fala de Duda articula, dolorosamente, a “he-
terogeneidade de práticas que o racismo e a discriminação racial
engendram”, mencionada por Carneiro. Para as reflexões que de-
sejamos continuar com os Estudos da Infância, é preciso dizer que
a fala de Duda articula também intersecções entre ao menos três
variáveis: raça, classe e religião: “Não posso ser negra. Não posso
cantar pra Ogum. Não posso ser do candomblé. Não posso nada”.
Retomaremos essa questão ao final deste texto.
Seguindo com a tese de Carneiro, compreendemos que ela não
deixa de concordar com Foucault sobre a estratégia de afirmação da
burguesia como classe hegemônica marcada pelos diferentes usos de
diferentes dispositivos de força, vigilância e punição. No entanto, a
filósofa argumenta a necessidade de uso do que chamou de disposi-
tivo de racialidade, ampliando e aprofundando, assim, o território de

64  Para compreender melhor o pensamento da autora, sugiro a leitura


completa de: CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como
Não-Ser como fundamento do Ser. São Paulo: Feusp, 2005. Nesta obra, a
filósofa aborda muitos outros conceitos fundamentais para a análise que faz
da discussão racial. Entre eles, os conceitos de biopoder (FOUCAULT, 1977)
e Contrato Racial (MILLS, 1997). Dentro dos limites de nosso texto, fizemos
apenas recortes que julgamos necessários para o que propomos pensar nesse
momento.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 197

análise da sociedade justamente pelo estatuto que tem nele a cor da


pele:

Interessa-nos, aqui, demarcar as possibilidades que essa abordagem


de Foucault nos permite no domínio da racialidade e acentuar que
esse percurso nos oferece, no marco teórico do conceito de dispo-
sitivo deste autor, certos atributos essenciais ao Eu e ao Outro. Ele
expressa também o diálogo crítico de Foucault com a tradição filo-
sófica ocidental. Temos em Foucault um eu que é dotado de razoa-
bilidade, porque produziu o louco; de normalidade, porque produziu
o anormal; e de vitalidade, porque inscreveu o Outro no signo da
morte. (CARNEIRO, 2005, p. 42).

Carneiro (2005) afirma que esse Eu, no seu encontro com a ra-
cialidade ou etnicidade, adquiriu superioridade pela produção do
inferior, pelo agenciamento que essa superioridade produz sobre a
razoabilidade, a normalidade e a vitalidade. Nas palavras da filósofa:

Podemos afirmar que o dispositivo de racialidade também será uma


dualidade entre positivo e negativo, tendo na cor da pele o fator
de identificação do normal, e a brancura será a sua representação.
Constitui-se assim uma ontologia do ser e uma ontologia da dife-
rença, posto que o sujeito é, para Foucault, efeito das práticas dis-
cursivas. (CARNEIRO, 2005, p. 42).

É essa dualidade entre positivo e negativo, gerada pelo dispo-


sitivo de racialidade, que vai, segundo Carneiro (2005), demarcar o
estatuto humano como sinônimo de brancura e, por consequência,
redefinir todas as demais dimensões humanas e hierarquizá-las de
acordo com a sua proximidade ou distanciamento desse padrão.
O filósofo Silvio Almeida, com o qual fizemos há pouco a discus-
são sobre racismo estrutural, também pensou a questão racial com
Foucault. Para Foucault, diz Almeida (2018), as mudanças socioeco-
nômicas ocorridas desde o século XIX garantiram ao poder estatal
o controle da vida e da morte através de saúde pública, saneamento
básico, segurança pública e outros exemplos de exercício do poder
estatal sobre a manutenção da vida, sendo que sua ausência seria
o deixar morrer. “O biopoder, como Foucault denomina este modo
de exercício do poder sobre a vida, é cada vez mais “disciplinar e
198 | Stela Guedes Caputo

regulamentador” (ALMEIDA, 2018, p. 88). Ou seja, para Foucault,


lembra Almeida (2018), a emergência do biopoder inseriu o racismo
como mecanismo fundamental do poder do Estado e tanto, que qua-
se não há funcionamento moderno deste que não passe pelo racismo.
No entanto, uma advertência feita por Almeida (2018, p. 90) é cru-
cial para continuarmos caminhando em nosso texto:

Se para Foucault o Estado Nazista foi o ponto exemplar da fusão


entre morte e política, a síntese mais bem acabada entre “Estado
racista, Estado assassino e Estado suicidário”, foi todavia, a expe-
riência colonial sua gênese. Como já nos alertou Aimé Cesaire, a
perplexidade da Europa com o nazismo veio da percepção de que o
assassinato e a tortura como práticas políticas poderiam ser repe-
tidas em território europeu, contra brancos, e não apenas nos ter-
ritórios colonizados. O fato é que o fim do nazismo não significou
o fim do colonialismo e nem das práticas coloniais pelos Estados
europeus. É por isso que, para Cesaire: “A Europa é indefensável”.

Não se trata, então, somente de biopoder, nem biopolítica quan-


do se fala da experiência do colonialismo e do apartheid, “mas da-
quilo que Achille Mbembe chama de necropoder e necropolítica em
que guerra, política, homicídio e suicídio tornam-se indistinguíveis”
(ALMEIDA, 2018, p. 90).
“Por que você não pode ser negra?”, perguntei a Duda, logo
após ela ter dito a frase que dá título a esse texto, naquele 1º de maio
de 2019. “Porque ninguém na escola gosta do meu cabelo e meu ca-
belo é de negra”. “Quem não gosta?”, quis saber. “As meninas bran-
cas, de cabelos lisos bonitos. Os meninos também não gostavam”,
respondeu Duda.

3 PENSANDO O EPISTEMICÍDIO

“Eu não posso cantar para Ogum”. A segunda parte da fala de


Duda nos leva à discussão sobre o conceito de epistemicídio, tam-
bém feita por Carneiro (2005) em sua tese, mas que, como explica,
trata-se de conceito encontrado pela autora na obra do sociólogo
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 199

Boaventura de Sousa Santos.65 Para Carneiro (2005), a formulação


de Santos acerca do epistemicídio torna possível apreender o pro-
cesso de destituição da racionalidade, cultura e civilização daquele
considerado “Outro”. “É o conceito de epistemicídio que decorre, na
abordagem deste autor sobre o modus operandi do empreendimento
colonial, da visão civilizatória que o informou, e que alcançará a sua
formulação plena no racialismo do século XIX” (CARNEIRO, 2005,
p. 96). E completa:

O genocídio que pontuou tantas vezes a expansão européia foi


também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque
tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas
de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas
sociais e povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito mais vasto
que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subal-
ternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos
sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista ou, durante boa
parte do nosso século, a expansão comunista (neste domínio tão
moderno quanto a capitalista); e também porque ocorreu tanto no
espaço periférico, extra-europeu e extra-norte-americano do siste-
ma mundial, como no espaço central europeu e norte-americano,
contra os trabalhadores, os índios, os negros, as mulheres e as mi-
norias em geral (étnicas, religiosas, sexuais). (SANTOS, 1995, p.
328, apud CARNEIRO, 2005, p. 96).

Carneiro enfatiza que encontra, nessa concepção, os seus nexos


com o estatuto do “Outro” na tradição filosófica ocidental; na forma
pela qual essa tradição integra e exclui a diversidade; e o desti-
no que está reservado ao “Outro” nessa integração ou exclusão. O
epistemicído, então, diz a filósofa, é mais do que a anulação e des-
qualificação do conhecimento dos povos subjugados. Trata-se de:

Um processo persistente de produção da indigência cultural: pela


negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela pro-
dução da inferiorização intelectual e ainda pelos diferentes meca-
nismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de
conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela ca-
rência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos

65  Poderíamos ir direto ao autor, mas preferimos nos referir ao diálogo de


Carneiro com Sousa Santos.
200 | Stela Guedes Caputo
processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto
porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos
povos dominados sem desqualificá-los também, individual e cole-
tivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe
a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou
legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade
do subjugado ou a seqüestra, mutila a capacidade de aprender etc.
(CARNEIRO, 2005, p. 97).

Assim definido, diz Carneiro (2005), o conceito de epistemicí-


dio permite compreender as múltiplas formas em que se expressam
as contradições vividas por negros e negras com relação à educa-
ção. Sobretudo, compreendem-se melhor as desigualdades raciais
nesse campo, inclusive a percepção do sistema educacional sobre o
aluno negro ou aluna negra, questionados como sujeitos cognos-
centes válidos.
Genocídio e espistemicídio causados pela colonização moderna
que, para o historiador Achille Mbembe (2019), foi uma das filhas
diretas das doutrinas que consistiam em classificar os seres hu-
manos dividindo-os em dois grupos: “os que contam e são conta-
dos, por um lado, e o ‘resto’, por outro lado, aqueles que devemos
chamar de ‘resíduos de seres humanos’, ou ainda, ‘dejetos de seres
humanos’” (MBEMBE, 2019, p. 243). É nesse grupo classificado
pelo projeto colonial racista como “resto” que também serão joga-
dos modos de viver e sentir; modos de compreender e amar; modos
de significar e cantar; modos acreditar e dançar; modos de cuidar e
brincar; modos de educar e buscar; enfim, modos de ser. Todos con-
siderados resíduos, dejetos de conhecimentos e não válidos, porque
distintos do projeto colonial racista.
“E por que você não podia cantar para Ogum?”, perguntei a
Duda. “Porque a tia não gostou da música, disse que era esquisita.
Nenhum colega gostou também”.

4 INTOLERÂNCIA OU RACISMO NA ESCOLA?

Os trechos abaixo também fazem parte da conversa com Duda,


naquele 1º de maio de 2019:
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 201
– Eu chorei porque ninguém queria brincar comigo, porque falavam
que meu cabelo era duro, e chorei também porque a tia disse que a
música de Ogum eu não podia cantar, mas isso da música foi outra
vez, não foi no mesmo dia. Foi primeiro o cabelo, depois foi a cantiga
de Ogum na outra vez.

– Chorava sempre? Todo dia?

– Só nos dias que ficava triste.


– Alguém perguntava por quê? A tia ou os colegas?

– Às vezes perguntavam. Às vezes não.

– E quando perguntavam, você respondia?

– Eu não sabia direito falar porque fico triste, então não falo. Só com
a minha mãe que falo.

Em sua tese defendida em 2005, Carneiro lembrou como para-


digmático o trabalho de Eliane Cavalleiro em seu livro Do silêncio do
lar ao silêncio escolar – racismo, preconceito e discriminação na educação
infantil (com o qual também refleti em minha tese defendida no mes-
mo 2005). Cavalleiro aborda os mecanismos de dominação racial,
afirmando o silêncio ou o silenciamento como uma das mais eficazes
táticas de dominação do racismo no Brasil, em especial na escola.
Por ter se relacionado diariamente, na escola pesquisada, com
crianças de quatro a seis anos, Cavalleiro (2000) afirma ter sido pos-
sível identificar que, nessa idade, crianças já apresentam uma iden-
tidade negativa em relação ao grupo étnico ao qual pertencem. Por
outro lado, as crianças brancas, diz a pesquisadora, revelavam um
sentimento de superioridade, chegando a assumir atitutes precon-
ceituosas, xingando e ofendendo crianças negras, atribuindo caráter
negativo à cor da pele. Tais situações ocorriam, por vezes, na pre-
sença de professores e professoras, sem que estes interferissem. Para
Cavalleiro (2000), o silêncio pode, nesse caso, tanto revelar inabili-
dade para lidar com a situação, como concordância com a discrimi-
nação, o que revela o racismo também dos profissionais.
202 | Stela Guedes Caputo
De fato, a fonte primeira desse questionamento é minha própria
experiência como criança negra. No contexto escolar, meu silên-
cio expressava a vergonha de ser negra. Nas ofensas, eu reconhe-
cia “atributos inerentes” e, assim sendo, a solução encontrada era
esquecer a dor e o sofrimento. Vã tentativa. Pois pode-se passar
boa parte da vida, ou até mesmo a vida inteira, sem nunca esboçar
qualquer lamento verbal como expressão de sofrimento. Mas sentir
essa dor é inevitável. Dada a sua constância, aprende-se a, silencio-
samente, “conviver”. (CAVALLEIRO, 2000, p. 146).

Converso com Eduarda do mesmo modo como conversei com


sua mãe Tauana, desde que Tauana tinha dois anos. Voltando aos
meus cadernos de campo, às lembranças de nossas muitas conversas
e aos encontros que ainda continuam por uma vida inteira, reparo
que os primeiros depoimentos para nossas pesquisas a respeito de
discriminação, mencionados por Tauana, indicavam que ela perce-
bia a discriminação religiosa. Aos 12 anos e, mesmo antes, Tauana
afirmava a escola como o lugar mais difícil e cruel para uma criança
negra. Para ela, no seu caso, a associação da discriminação religiosa
ao racismo foi acontecendo aos poucos. Em suas palavras:

Eu era chamada de macumbeira, feiticeira, coisas assim. Não que


eu assumisse a religião na escola, aliás eu só assumia mesmo no
terreiro. Mas minha mãe, você sabe, sempre fez questão de exibir a
religião em todo canto, então lógico que na escola sabiam que eu era
do candomblé e por isso me xingavam. Acontece que toda criança
negra, sendo ou não do candomblé, era chamada de macumbeira na
escola e eu pensava, mas fulano não é, beltrano também não, por-
que é que chamam eles de macumbeiros? Então, aos poucos, eu fui
entendendo que a nossa religião é um xingamento para o racista.
Por ser uma religião negra, todo negro é macumbeiro, mas isso
não é uma coisa boa para o racista, é ruim, é mais uma forma que o
racista acha para ser racista. É por isso que não é só tolerância ou
intolerância. É racismo religioso, é racismo. Não quero ser tolerada
e nem que minha filha seja tolerada. (Tauna dos Santos, 1º de maio
de 2019).

Nesse momento da pesquisa, tento entender como Duda, hoje


aos seis anos, narra sua compreensão das experiências racistas vivi-
das por ela na creche. E tento comparar com as experiência vividas
por Tauana, sua mãe.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 203
A experiência de racismo da Duda foi logo pelo cabelo, começou
pelo cabelo, diferente da minha que começou pela religião. Pelo me-
nos eu me lembro assim, de ter começado pela religião. A Duda,
como eu, começou a achar que tinha alguma coisa errada com ela,
mas o importante é ela entender que tem algo errado sim, mas não
com ela. Tem algo errado com o racismo. É por isso que precisa-
mos conversar com as crianças desde cedo, por mais cedo que seja,
sobre racismo. Quando foi repreendida por ter cantado para Ogum
e eu fui até chamada na escola, ela entendeu mais ainda. É ruim
porque você acha que um dia isso acaba, mas não acaba. A verdade
é que pela cor, pelo cabelo, pela religião todo negro, toda negra vai
sofrer racismo. Seu filho e sua filha também, infelizmente. O pior é
que quando ela chorou em casa porque, na creche, as colegas não
queriam brincar com ela por causa do cabelo, eu tive que ir lá e pe-
dir para professora tomar atitude. Mas quando a Duda cantou para
Ogum, a escola me chamou pra dizer que não pode! Olha que inver-
são do papel da escola. Gente! O que não pode é o racismo! (Tauna
dos Santos, 1º de maio de 2019).

Desde a primeira geração de crianças em nossas pesquisas, algu-


mas já associavam a discriminação religiosa ao racismo. Ao longo de
todo esse tempo passado nos terreiros e na militância pela liberdade
religiosa, fui vendo também e, cada vez mais, o conceito de tolerân-
cia e intolerância ser problematizado.
Em Caputo (2012), recupero uma reflexão sobre essa polêmica
feita por Skliar que, por sua vez, pensou com Bauman. Para Skliar
(2003), a essência da vida moderna constitui um esforço para exter-
minar a ambivalência, isto é, uma intenção voraz por definir com a
máxima precisão e para eliminar toda ambigüidade. Em sua avalia-
ção, é justamente por essa razão que a intolerância acaba sendo uma
inclinação da modernidade, pois a construção da ordem moderna
estabelece limites para a incorporação e para a admissão de qualquer
entidade, de qualquer sujeito, de qualquer alteridade, de qualquer
outro.

Permanece sempre a vontade de acabar com a ambigüidade e, por-


tanto, de manter a intolerância, inclusive quando ela se esconde sob
a máscara da tolerância. Uma máscara que, como diz Bauman, pode
ser assim mais bem expressa: você é detestável, mas eu, sendo ge-
neroso, vou permitir que continue vivendo. (BAUMAN, 1996, apud
SKLIAR, 2003, p. 132).
204 | Stela Guedes Caputo

Para Skliar (2003), ao se compreender a tolerância como uma


virtude natural ou como uma utopia incontestável, ignora-se tam-
bém a relação de poder que lhe dá razão e sustento. Já que, para ele,
a tolerância não inclui a aceitação do valor do outro; pelo contrário,
diz o pesquisador, ela é mais uma maneira, talvez até sutil, de reafir-
mar a inferioridade do outro.

4 NÃO É INTOLERÂNCIA, É RACISMO

De acordo com matéria publicada no jornal O Globo (VIEIRA,


2018),66 em 19 de novembro de 2018, o número de denúncias de dis-
criminação religiosa contra adeptos de religiões de matriz africana
no Brasil, feitas pelo Disque 100, serviço de atendimento 24 horas
do Ministério de Direitos Humanos, aumentou 7,5% em 2018.67 Se-
gundo a publicação, já as denúncias feitas por discriminação contra
todas as religiões caíram de 255 (duzentas e cinquenta e cinto) para
210 (duzentas e dez), ou seja, uma queda de 17%. São violências de
vários tipos: destruição de terreiros, proibições de funcionamentos
das casas, agressões verbais e mesmo físicas contra praticantes. O
próprio órgão denomina essas violências de discriminação. A mídia
também. Outra associação muito comum é com a chamada intole-
rância religiosa.
A nova onda de ataques terroristas contra os terreiros no Bra-
sil chegou às redes sociais em vídeos compartilhados aos milhares.
Uma das vítimas foi Mãe Carmem de Oxum que, em setembro de
2017, teve sua casa religiosa invadida e foi obrigada a destruir ar-
tefatos sagrados. A face dos agressores (embora escondida em suas
próprias filmagens) também ficou mais evidente: “traficantes de Je-
sus” que, armados, ameaçam covardemente a vida de quem não obe-

66  VIEIRA, Bárbara Muniz. Aumenta número de denúncias de discriminação


contra adeptos de religiões de matriz africana em 2018 no país. G1, São Paulo, 19
nov. 2018. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2018/11/19/aumenta-
numero-de-denuncias-de-discriminacao-contra-adeptos-de-religioes-de-matriz-
africana-em-2018-no-pais.ghtml. Acesso em: 19 nov. 2018.
67  Devemos considerar sempre que há subnotificação nesses dados, já que um
grande número de pessoas sofre violência e não denuncia.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 205

decer. Ao destruir o terreiro de Mãe Carmem, o terrorista cristão a


chama de “demônio chefe”.
Em junho de 2015, Kayllane Coelho, de 11 anos, foi agredida, em
uma rua do Rio de Janeiro, por uma pedrada na cabeça, quando vol-
tava de uma festa em um terreiro de candomblé, porque usava roupa
branca, característica de sua religião. Nas lembranças de Kayllane,
com quem conversei diversas vezes, ainda ecoam as agressões ver-
bais que chegou a ouvir segundos antes de sentir a pedrada na ca-
beça e ter seu rosto coberto de sangue: “Sai Diabo”, “Sai Demônio”.
“O candomblé é aqui olha: meu terreiro, minha mãe, minha vó”.
Há muitas maneiras de se definir o candomblé. Começo essa parte
de nosso texto com a definição de Duda, quando perguntei a ela,
naquele 1º de maio de 2019, o que é o candomblé. Os pesquisadores
também definem candomblé de modo próprio e já compartilhamos
muitas definições em outros trabalhos. Desta vez, pensaremos com
Nascimento (2016, p. 156), para quem:

As pessoas africanas que foram escravizadas durante o tráfico trou-


xeram para nosso país muito mais do que sua força de trabalho.
Trouxeram valores, práticas, saberes e crenças que deixaram mar-
cas indeléveis em nossas maneiras de viver, muito embora nem sem-
pre sejamos capazes de visualizar essas heranças. Uma delas são
as espirituaidades africanas que findaram por se incorporar às reli-
giões que nasceram no Brasil como resultado da necessidade de não
perder os referenciais identitários arrancados das pessoas escravi-
zadas no continente africano e trazidas para cá contra sua vontade.

Resumindo, de acordo com Nascimento (2016, p. 157), os can-


domblés foram formados como vivências brasileiras, constituídos
por articulações de elementos africanos, indígenas e cristãos, a par-
tir da segunda metade do século XIX, sobretudo na Bahia e no Rio
de Janeiro, vindo mais tarde a se proliferar pelo restante do Brasil e
em alguns outros países do mundo.
As perseguições ao candomblé não começaram agora, com essa
nova onda de ataques (terroristas). O candomblé foi criminalizado
e perseguido historicamente. Lembramos que já o Código Penal de
1831, em seu artigo 179, autorizava práticas religiosas, caso não
206 | Stela Guedes Caputo

ofendessem a moral pública. Mais tarde, o artigo 157 do Código Pe-


nal de 1890, proibiria o espiritismo, a magia e seus sortilégios. Não
é necessário pensar muito para se deduzir que religião, práticas, co-
nhecimentos e pessoas eram os alvos dessas classificações jurídicas
muito sustentadas pelos discursos médicos/racistas da época.
Obviamente, tais perseguições não tiveram origem em terras
brasileiras. O livro de Edir Macedo (bispo fundador da Igreja Uni-
versal do Reino de Deus), Orixás Caboclos e Guias – Deuses ou Demô-
nios, assegura:

O povo brasileiro herdou das práticas religiosas dos índios nativos


e dos escravos oriundos da África algumas “religiões” que vieram
mais tarde a ser reforçadas com doutrinas espiritualistas, esotéricas
e tantas outras [...]. Houve com o decorrer dos séculos um sincre-
tismo religioso, ou seja, uma mistura curiosa e diabólica de mito-
logia africana, indígena brasileira, espiritismo e cristianismo, que
criou ou favoreceu o desenvolvimento de cultos fetichistas como a
Umbanda, a Quimbanda e o Candomblé. (MACEDO, 1996, p. 24)

Também por óbvio, Macedo (1996) não foi o primeiro missio-


nário no Continente Africano que se empenhou em enfiar o diabo
na cosmogonia africana. Ribeiro e Sàlámì (2011) afirmam que, na
chegada do cristianismo e do islamismo à África, a tradução dos
missionários buscou uma equivalência para o demônio e para Satã,
sendo Exu o escolhido, o que não foi um mero acaso:

Exu é um dos pilares de sustentação da cosmogonia e da teologia


iorubás. E é a coluna principal do sistema religioso iorubá, com for-
tes implicações socioculturais, dado ser ele o inspetor das condutas
ético-morais. Destruir esse pilar ou mesmo abalar essa coluna, foi,
de fato, uma inteligente estratégia colonialista que, lamentavelmen-
te perdura ao longo de séculos nos países da diáspora. (RIBEIRO;
SÀLÁMÌ e, 2011, p. 216).

Como disse o historiador Achille Mbembe (2019, p. 18), habi-


tuada a vencer sem ter razão, a colonização exigia dos colonizados
não apenas que mudassem suas razões de viver, mas também que
mudassem de razão – “seres em falha perpétua”. Em análise seme-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 207

lhante, o escritor Chinua Achebe (2019, p. 160), afirma que o Conti-


nente Africano, principal alvo do imperialismo europeu, onde prati-
camente nem um só palmo de terra escapou ao destino da ocupação
imperialista, recebeu em cheio o golpe de tantas definições nega-
tivas. Para Achebe (2019, p. 161), essas reflexões precisam alertar
para o fardo que essa imagem representa hoje para a África, e “nos
fazer reconhecer o quanto essa imagem moldou as atitudes contem-
porâneas, inclusive, talvez a nossa, com relação a esse continente”.
Pensar essas “atitudes contemporâneas”, no meu entendimen-
to, é pensar o racismo estrutural de países como o Brasil, país com
maior população negra fora do Continente Africano, e seu processo
de colonização racista (incluindo sempre o papel da Igreja Católica
nesse processo). É pensar no genocídio, no assassinato das pessoas
escravizadas e de seus descendentes. É pensar no epistemicídio, no
assassinato de seus conhecimentos. Muitos desses conhecimentos
foram e continuam sendo preservados nos terreiros brasileiros que,
na minha opinião, existem como testemunho material e imaterial
de um modo de vida que não foi submetido pelo colonialismo e nem
pela colonialidade.
Anibal Quijano (2010) define colonialidade como um dos ele-
mentos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder ca-
pitalista. Sustenta-se, diz o pesquisador, na imposição de uma “clas-
sificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular
do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios
e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana
e da escala societal” (QUIJANO, 2010, p. 73). Colonialidade é dife-
rente de colonialismo porque, nas palavras de Quijano (2010, p. 73):

Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado a Co-


lonialismo. Este último refere-se estritamente a uma estrutura de
dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos
recursos de produção e do trabalho de uma população determinada
domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão,
além disso, localizadas noutra jurisdição territorial. O colonialismo
é, obviamente, mais antigo, enquanto a colonialidade tem vindo a
provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradoura que
o colonialismo. Ma foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e,
208 | Stela Guedes Caputo
mais ainda, sem ele não poderia ser imposta na intersubjetividade
do mundo tão enraizado e prolongado.

Depois do refletido até agora, podemos dizer que, quando Duda


não conseguiu ter amigos na creche por causa de seu cabelo crespo e,
na mesma creche, foi impedida de cantar, em iorubá, para seu Orixá
Ogum, ela sofreu racismo nas duas ocasiões. No primeiro caso, a re-
jeição de seus amigos ao seu cabelo crespo (usado bem black, como diz
Tauana, sua mãe), não deixaria dúvidas. O segundo caso poderia ser
visto apenas como intolerância religiosa, mas não é. Pelo que vimos
expondo aqui, afirmamos que se trata de racismo, na sua variável
religiosa (portanto racismo religioso), uma operação da coloniali-
dade racista, um dispositivo de racialidade e sua insistente tentativa
de corrigir esses “seres em falha perpétua”, os africanos e seus des-
cendentes. Falha no cabelo, falha no corpo, falha nos conhecimentos,
na cantiga de seu terreiro. Nenhum cabelo, nenhum corpo, nenhuma
língua, nenhum conhecimento, nenhuma religião, distintos e distin-
tas do projeto branco e cristão do colonialismo pode ousar continuar
existindo. Não é intolerância, é racismo religioso: é racismo.

5 DEFENDER O DIREITO DA INFÂNCIA EM TERREIROS

No livro Discriminação Racial é sinônimo de maus tratos – a impor-


tância do ECA para a proteção das crianças negras, os advogados Hédio
Silva Jr. e Daniel Teixeira (2016) reúnem uma série de instrumentos
jurídicos para trazer à tona uma discussão política sobre racismo e
infância, incluindo na pauta o direito das crianças à religião. Consi-
dero esse aspecto do livro fundamental, já que esquecido ou subsu-
mido na discussão racial, inclusive por pesquisadoras e pesquisado-
res dedicados ao tema infância e racismo ou educação e racismo.
Os autores lembram que a Constituição Federal (Art. 227) de-
termina que a criança (e o adolescente) deve ser colocada a salvo
de qualquer forma de discriminação, violência, crueldade, opressão,
entre outras situações que atentem contra sua integridade psíquica
ou moral. Pelo mesmo caminho, o Estatuto da Criança e do Adoles-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 209

cente (ECA), em seu artigo 5º, diz que nenhuma criança será objeto
de qualquer forma de discriminação, violência, crueldade, opressão,
tratamento cruel ou vexatório, constrangedor ou degradante, maus-
-tratos, humilhação ou ridicularização.
Silva (2016, p. 16) enfatiza que o ECA68 diz textualmente que
o direito ao respeito abrange, entre outros aspectos, a preservação
da identidade, dos valores e das crenças das crianças e adolescentes.
Para o que seguimos discutindo nesse texto, o pesquisador faz um
importante destaque à Lei n. 13.257, de 2016, que alterou o ECA,
assegurando aos pais o direito de transmissão familiar de suas cren-
ças:

Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos


iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e
na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de trans-
missão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos
da criança estabelecidos nesta Lei. (BRASIL, 1990).

Silva (2016) também menciona alguns tratados internacionais,


dos quais o Brasil é signatário, que oferecem, na sua opinião, ele-
mentos valiosos para a compreensão da importância do respeito à
identidade étnica: i) Convenção sobre a Proteção e Promoção da
Diversidade das Expressões Culturais, que classifica a identidade
cultural como direito fundamental da pessoa humana; ii) Declaração
Universal sobre a Diversidade Cultural, que dispõe que “a diversi-
dade cultural é fator de existência intelectual, afetiva, moral e espi-
ritual satisfatória” (ONU, 2002).
O mesmo autor resgata ao menos um tratado internacional,
também ratificado pelo Brasil e que trata do tema, mencionando,
dessa vez, especificamente as crianças. Trata-se da Convenção sobre
os Direitos da Criança, que estabelece que o Estado deve respeitar
o direito desta à liberdade de crença, aos pais competindo definir
a orientação religiosa da criança, observada sua capacidade (ONU,
1989). Aliás, não poderíamos deixar de lembrar que, justamente em
2019, celebramos os 30 anos dessa Convenção.
68  Artigo 17 e 53, inciso II.
210 | Stela Guedes Caputo

Preocupado com os impactos danosos do ponto de vista psico-


lógico e social na vida das crianças negras, causados pelo racismo,
Silva (2016) sublinha que o substantivo “saúde” é juridicamente con-
ceituado como inexistência de patologias, mas também como estado
de bem-estar físico, mental e social. Em suas palavras: “A violência,
notadamente aquela decorrente da exposição do indivíduo a situa-
ções constrangedoras, humilhantes e vexatórias derivadas da discri-
minação racial, configura um elemento estressor, fator de estresse,
certamente de natureza traumática” (SILVA, 2016, p. 43). O autor,
além de pesquisador, atuou como advogado em inúmeros casos de
racismo contra crianças, incluindo os que se destacavam por envol-
verem religiões de matriz africana.

Certamente trata-se de racismo, de caráter religioso, em que adul-


tos são vítimas e crianças também são vítimas. É preciso cada vez
mais conscientização, unidade e cautela jurídica também, porque as
leis que criminalizam os agressores e protegem as vítimas em seus
mais amplos direitos, ajudam, mas não são capazes de, sozinhas, re-
solverem um problema tão grande como o do racismo em nosso
país. Pior, a depender da permanência desse quadro político atual no
Brasil, a violência racial incluindo a violência contra terreiros vai
aumentar. (Silva, em entrevista concedida por celular para a autora
em: 8/9/2019).

Retornando ao diálogo com Duda, perguntei-lhe: “Na escola


você não podia cantar para Ogum. E no terreiro?”. Duda foi levan-
tando o rosto, rindo apenas com o canto direito da boca, exatamente
como sua mãe ria, nessa idade, antes de responder às perguntas que
eu fazia. “No terreiro eu posso”.
Os terreiros de candomblé invertem as muitas impossibilidades
vividas por crianças de religiões de matriz africanas em outros espa-
ços, sobretudo por crianças negras. Os terreiros de candomblé são
contra-dispositivos da racialidade e da colonialidade. Os terreiros de
candomblé são um direito das crianças de candomblé e esse direito
precisa ser defendido.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 211

6 TERREIROS COMO VONTADE DE VIDA: CONSIDERAÇÕES


FINAIS

Em um texto no qual discute os conceitos de gerações e alteri-


dade, desde a sociologia da infância, Sarmento (2005) afirma que tais
estudos pretendem interrogar a sociedade a partir do ponto de vista
que toma as crianças como objetos de investigação sociológica, por
direito próprio, fazendo acrescer o conhecimento, não apenas sobre
a infância, mas sobre o conjunto da sociedade globalmente conside-
rada. Por nosso lado, no Kékeré, nosso grupo de pesquisa na UERJ,
costumamos dizer que pensamos e interrogamos o mundo com as
crianças de terreiros, sujeitos de si e do próprio mundo. Acredito
que tenha sido isso que se tentou fazer ao longo desse texto nas
conversas com Duda, 6 anos, e com sua mãe Tauana, a partir de
suas falas de hoje, como adulta, de suas lembranças da infância e da
memória de nossas próprias conversas em tantos anos de pesquisa.
De acordo com Sarmento (2005, p. 361), a sociologia da infância
a concebe como uma categoria do tipo geracional, por meio da qual
“se revelam as possibilidades e os constrangimentos da estrutura so-
cial”. Além disso, diz o pesquisador, a sociologia da infância assinala
a presença de variações intrageracionais, recusando-se, assim, uma
concepção uniformizadora da infância. Pelo contrário, é justamente
sobre as condições e características que fazem a diferença do grupo
geracional infância que se debruçam esses estudos. (SARMENTO,
2005, p. 371). Para as reflexões que fizemos até agora e seguiremos,
certamente fazendo de maneira mais aprofundada em outros textos,
a fala a seguir, de Sarmento (2005, p. 370), é fundamental:

As crianças são indivíduos com a sua especificidade biopsicológica:


ao longo de sua infância percorrem diversos subgrupos etários e
varia a sua capacidade de locomoção, de expressão, de autonomia de
movimento e de ação, etc. Mas as crianças são também seres sociais
e, como tais, distribuem-se pelos diversos modos de estratificação
social: a classe social, a etnia a que pertencem, a raça, o gênero, a
região do globo onde vivem. Os diferentes espaços estruturais dife-
renciam profundamente as crianças.
212 | Stela Guedes Caputo

O exemplo dado pelo pesquisador para ilustrar a afirmação aci-


ma comparou duas crianças hipotéticas: a primeira sendo branca, de
classe média europeia, de 6 a 12 anos; a segunda sendo do mesmo
grupo etário, mas nascida no Continente Africano ou América do
Sul, sendo de meios populares. A conclusão é que a segunda criança,
embora do mesmo grupo etário, teria menos possibilidades de estu-
dar ou aceder a bens de consumo do que a primeira criança (SILVA,
2005).
Voltemos à creche de Duda, onde ela se relacionava com crian-
ças do mesmo grupo etário, do mesmo país, mesma creche, mesma
classe social: todas crianças pobres da Baixada Fluminense. A con-
clusão69 a que chego é que, embora sendo do mesmo grupo etário e
da mesma classe social e lugar, apenas Duda foi excluída por seus
amigos em função de seu cabelo. Do mesmo modo, apenas Duda foi
proibida de cantar uma cantiga da religião à qual pertence. Assim
também, apenas Duda foi trocada de creche por causa do racismo so-
frido. E, ainda, apenas Duda carregará esse sofrimento como marca
de sua infância.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), de
1996, define, em seu artigo 29, que a educação infantil é a primeira
etapa da educação básica, cuja finalidade é o desenvolvimeto inte-
gral da criança de até cinco anos de idade, em seus aspectos físico,
psicológico, intelectual, linguístico e social, complementando a ação
da família e da comunidade. A mesma lei brasileira, em seu artigo
3º, define a diversidade étnico-racial como princípio (item XII) e, em
seu artigo12, item VI, determina que os estabelecimentos de ensino
terão a incumbência de articular-se com as famílias e a comunidade,
criando processos de integração da sociedade e com a escola (BRA-
SIL, , 2017).
A creche de Duda é uma instituição de educação infantil. Ao
concluirmos esta seção, podemos perguntar: que desenvolvimento
integral pode haver quando a creche a proíbe de cantar uma cantiga
que ama, em uma língua com a qual se relaciona? Que articulações

69  Nem Duda, nem Tauana, souberam dizer se houve casos parecidos com outras
crianças negras na creche.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 213

foram feitas pela creche com a família de Duda e com sua comuni-
dade terreiro?
Dissemos que voltaríamos a conversar sobre infância e inter-
seccionalidade e faremos isto agora. Nascimento (2018) – e muitos
outros estudiosos da infância – defendem, com Qvortrup (2011), que
estudar a infância como categoria social geracional não a homoge-
neíza, mas pressupõe uma pluralidade de infâncias agrupadas sob a
categoria infância. Para Nascimento (2018), essa pluralidade é justa-
mente a deixa que aponta para uma interseccionalidade nos estudos
da infância, ou seja, que buscam, diz a pesquisadora, compreender/
analisar as intersecções entre as diferentes variáveis presentes nos
diferentes cotidianos das escolas. Em suas palavras: “A interseccio-
nalidade pode compreender gênero, raça/etnia, classe, idade, orien-
tação sexual, identidade religiosa, capacidade/deficiência, origem e
outras dimensões. Estudos sobre crianças migrantes e imigrantes
também provocam a análise interseccional” (NASCIMENTO, 2018,
p. 2).
Não existe uma criança ou uma infância padronizada e univer-
sal nas instituições de ensino, incluindo-se aí as creches, já o sabe-
mos, embora nem todos e nem todas assumam que saibam. Assim,
as articulações entre raça, classe, gênero, orientações sexuais são
fundamentais para a compreensão da infância e para os estudos da
infância. Queremos situar que, ao longo de muitos anos, temos con-
vivido e conversando com crianças de terreiros e com suas famílias.
O terreiro é espaçotempo de aprenderensinar,70 onde as crianças são
respeitadas, de modo algum tidas como incompletas ou incapazes.
Por isso, reafirmamos a importância da religião como variável in-
terseccional fundamental sim nos estudos da infância. Reafirmamos,
ainda, a importância singular dos Estudos com Crianças de Terrei-
ros (CAPUTO, 2012; CAPUTO, 2018) para se pensar novas catego-

70  Alves (2003) explica que usa esses termos juntos para indicar que as pesquisas
nos/dos/com os cotidianos pretende ir além do que vê como dicotomias e limites
herdados das ciências modernas. Particularmente, em nossos textos, fazemos
essa opção em apenas algumas expressões, e este é um caso. Também optamos
por dizer pesquisas com os cotidianos, apenas.
214 | Stela Guedes Caputo

rias e modos de conhecer, tanto nos estudos da infância, quanto nos


estudos da questão racial e infância no Brasil.
É importante situar que crianças de terreiros como Duda, sabem
o que a escola ensina e sabem também muitas outras coisas, como
cantar em iorubá, por exemplo. Mas é da exclusão de conhecimentos
que vimos falando, aqui. A fala de Duda é significativa: “No terreiro
eu posso”. Fala opositora ao “Não posso nada”, sentença que resume
sua percepção da creche onde sofreu não uma, mas duas tentativas
de redução pelo racismo.
A experiência de Tauana, de sua filha Eduarda e de muitas ou-
tras crianças de terreiros, mostra-nos, através de longos anos de
pesquisas, que, nessas instituições, elas são: crianças filhas do diabo,
crianças exorcizáveis, crianças que vão para o inferno, crianças invi-
zibilizadas, crianças proibidas, crianças silenciadas, crianças apaga-
das, crianças reduzidas, crianças incompletas, crianças corrigíveis,
crianças falhas, crianças erradas, crianças desprezadas.71
Por fim, é difícil entender a ausência da variável religião (es-
pecificamente das religiões de matriz africana) em muitos estudos
(incluindo levantamentos que pretendem mapear produções intelec-
tuais) sobre educação e raça, educação e currículo, educação infantil
e raça. A não inclusão da religião (e aqui me refiro especificamente à
não inclusão da realidade das crianças de terreiros) produz, no meu
entendimento, ao menos três tipos de desqualificações:

1) das crianças de terreiros, seus conhecimentos e relações;


2) das vozes das crianças de terreiros que chamam a atenção
para o racismo que sofrem na sociedade e na escola,
3) dos estudos com crianças de terreiros, que muito já produzi-
ram sobre as duas referências acima mencionadas.

71  Sabemos que existem esforços de professoras e professores com práticas


plurais de educação. Esses esforços devem ser apoiados, estimulados. No entanto,
é da prática discriminatória hegemonicamente praticada por essas instituições
que falamos aqui.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 215

Pergunto-me se será mesmo consequente a crítica que fazemos


à modernidade e a seu esquartejamento entre conhecimentos mo-
dernos, tidos como objetivos, científicos e verdadeiros, em oposição
aos conhecimentos não hegemônicos tidos como populares, arcaicos,
crendices e incertos. Pergunto-me se, nos estudos sobre educação e
raça, educação e currículo, educação infantil e raça e nos levanta-
mentos sobre as produções intelectuais desses estudos, as crianças
de terreiros continuarão também sendo apagadas. Pergunto-me se
temos mesmo a real dimensão do quanto a colonização alcançou e do
quanto a colonialidade ainda alcança, incluindo a nossos estudos que
imaginamos tão descolonizados. Acredito já termos perdido muito
com esse apagamento e perderemos mais ainda no contexto de avan-
ço do conservadorismo da sociedade brasileira.
Aprendi com o cientista político camaronês Achille Mbembe
(2019) que a descolonização é um evento cuja significação política
essencial residiu no que chamou de vontade ativa de comunidade –
como outros falavam outrora da vontade de poder. “Essa vontade de
comunidade era o outro nome daquilo que poderíamos chamar de
vontade de vida. Seu objetivo era a realização de uma obra comparti-
lhada: erguer-se por si mesmo e constituir uma herança” (MBEM-
BE, 2019, p. 10). Mbembe (2019) pontua, no entanto, que em uma
era insensível, repleta de cinismo e frivolidade, palavras como essas
certamente despertam escárnio, mas assinala que, naquela época,
muitos apostavam, sim, suas vidas, pela afirmação dessas ideias que
orientariam o futuro com novas lógicas de sentido e da vida.
Cada país colonizado teve sua experiência de descolonização, que
também envolveu escravizados em diáspora. Erguidos por pessoas
com vontade ativa de comunidade e com vontade de vida, os terreiros
brasileiros foram fundamentais na experiência de descolonização.
Embora publicado entre os brasileiros, em 2019, o texto de Mbmbe
foi escrito em 2010 e encontra nosso país, hoje, dirigido justamente
pelo cinismo e pelo escárnio.
Herança viva, obra compartilhada, os terreiros e as crianças de
terreiros seguem sendo resistência ao projeto colonial racista e sua
216 | Stela Guedes Caputo

colonialidade, enfrentando seu terrorismo e afirmando outras lógi-


cas e sentidos. Continuarão. Continuaremos.

Figura 1 - Da esqeurda para a direita: Tauana aos 2 anos; Eduarda, sua filha, aos
4 anos; Tauana, aos 27 anos.

Fonte: Fotografias produzidas pela autora.

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unicef_convenc-a-o_dos_direitos_da_crianca.pdf. Acesso em: 17 nov.
2019.
8
RACISMO RELIGIOSO E OS OBSTÁCULOS
PARA O EXERCÍCIO DOS DIREITOS DAS
RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

Nailah Neves Veleci72

A Constituição Federal de 1988 prevê, em seu art. 5º, inciso VI,


que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo asse-
gurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Ao nível inter-
nacional, as religiões também são protegidas pela Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948 e pela Declaração
para a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discri-
minação baseada em Religião ou Crença, de 1981, ambas aprovadas
pela Assembleia Geral das Nações Unidas. No caso específico das
religiões afro-brasileiras, elas também são protegidas infraconsti-
tucionalmente pelo Estatuto de Igualdade Racial, promulgado em
2010, que dedica um capítulo inteiro a tratar do direito à liberdade
de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos
afro-brasileiros.
Apesar desse conjunto de normas de proteção à liberdade de
crença e culto, as religiões afro-brasileiras encontram inúmeros obs-
táculos para a garantia desses direitos. Propomos discutir que esses

72  Mestre de Direitos Humanos e Cidadania, na linha de pesquisa de Direitos


Humanos, Democracia, Construção de Identidades/Diversidades e Movimentos
Sociais (UnB). Especialista em Gestão Pública (UEG) e bacharel em Ciência
Política (UnB). Embaixadora da Juventude do Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crime (UNODC). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Jurídicos
e Atlântico Negro e do Grupo de Pesquisa Antropologia e Direitos Humanos –
Maré. Membro da Frente Negra de Ciência Política (Ubuntu) da UnB e Ìyàwó
Ọmo Ò� ṣun do Ilê Asé Órisá D’ewi.
219
220 | Nailah Neves Veleci

obstáculos ocorrem por causa do racismo religioso e do ativismo


institucional de uma branquitude que monopoliza a elite política e
que, nos últimos anos, tem dado cada vez mais força aos neopente-
costais.
São inúmeros os obstáculos e as negações de direito que as reli-
giões afro-brasileiras vêm enfrentando, porém, para o presente ar-
tigo, selecionamos um exemplo de cada direito que está previsto
no art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988: liberdade de
consciência e crença e o ensino religioso nas escolas públicas; a pro-
teção dos locais de culto e a imunidade tributária aos templos; o livre
exercício dos cultos, a proteção da liturgia e a proibição do sacrifício
de animais em rituais religiosos. Os obstáculos serão apresentados
numa ordem que busca mostrar como é construída a percepção cul-
tural dos indivíduos sobre os povos de santo.
O principal referencial teórico que orientou este estudo foi à
perspectiva da colonialidade do poder e do saber conceituada73 por
Anibal Quijano (2005), que dialoga, de forma introdutória, com os
outros referencias: direito e relações raciais (BERTÚLIO, 1989;
QUEIROZ, 2016), racismo religioso (OLIVEIRA, 2017), ativismo
institucional (ABERS; TATAGIBA, 2015), epistemicídio (CARNEI-
RO, 2005), contrato racial (MILLS, 1997), teoria das elites políticas
(MILLS, 1981; MOSCA, 1966; MICHELS, 1982; PARETO, 1984) e
teoria da tomada de decisão (LINDBLOM, 1981).
Segundo a perspectiva da colonialidade do poder e do saber, foi
a própria colonização das Américas que inventou a Europa, o indí-
gena, o negro, a diferenciação entre “povos com tecnologias avan-
çadas e povos de tecnologias rudimentares” (SEGATO, 2013, p. 44).
Diz-se inventado porque antes, por mais que existissem, não eram
relevantes socioculturalmente pela perspectiva da branquitude, mas
a questão de defender a existência de uma raça inferior, de uma cul-
tura inferior e de um povo “primitivo” que precisa ser tutelado e

73  Apesar de ser conceituada por Anibal Quijano, muitos dos seus elementos
característicos, porém não nomeados como tal, já eram encontrados nas obras de
Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento e
Lélia Gonzalez. Suas discussões estarão presentes neste artigo, também.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 221

trazido para a modernidade e o desenvolvimento foi muito utilizada


nos conflitos de reconhecimento jurídico das religiões afro-brasilei-
ras (VELECI, 2015, p. 45-54) e ainda é usada, apesar da não utiliza-
ção dos termos de forma explícita, nas novas propostas de leis que
querem retirar os direitos dos povos de terreiro.
Outro ponto dessa perspectiva, que nos interessa, é o argumen-
to segundo o qual o racismo não se trata apenas de uma questão de
fenótipo, de estruturas biológicas diferentes, mas também de uma
questão epistêmica, onde saberes, conhecimentos, valores e crenças
dos colonizados, no nosso caso específico os negros, são discrimina-
dos negativamente (SEGATO, 2013, p. 52-53). As comunidades de
terreiros estão inseridas na nação brasileira que possui hegemoni-
camente valores, crenças e saberes ocidentais trazidos à nação pelos
colonizadores, mas os povos de terreiros vivem dentro de sua comu-
nidade conforme outros valores e saberes, que sempre foram discri-
minados negativamente pela sociedade brasileira desde a época da
escravidão.

1 O (NÃO)RECONHECIMENTO JURÍDICO E SOCIAL

Durante o Brasil Colônia, apenas a religião católica era permi-


tida, sendo as demais reprimidas nos termos das Ordenações Filipi-
nas, que vigoraram no Brasil de 1603 a 1830. Em seu Livro V, as Or-
denações criminalizavam: a heresia, punindo-a com penas corporais
(título I); a negação ou blasfêmia de Deus ou dos Santos (título II) e
a feitiçaria, punindo o feiticeiro com pena capital, morte (título III).
Queiroz (2017) fez uma análise dos discursos dos parlamentares
na gênese do constitucionalismo brasileiro e identificou o medo, da
elite política branca, de que ocorresse no Brasil o que ocorreu na
Revolução Haitiana. O medo de que a população negra, que era (e
é) maioria da nação, fosse humanizada e tivesse os mesmos direitos,
principalmente políticos, que a população branca.

A Constituinte e a futura Constituição de 1824 dirão categorica-


mente que o local da nação é o local dos homens brancos e pro-
prietários, conectando identidade política nacional à identidade de
222 | Nailah Neves Veleci
gênero, raça e classe. Mas essa é apenas a inscrição de superfície.
Os debates parlamentares demonstram que nessa articulação inter-
seccional há uma profundeza esquecida, a qual coloca o problema
do Haiti – ou melhor, o reconhecimento da humanidade dos ne-
gros – no centro da formação da identidade constitucional nacional.
Somente recuperando este momento de temor na gênese do cons-
titucionalismo brasileiro é possível fazer análises históricas mais
consequentes sobre as descontinuidades e continuidades na nossa
cultura jurídica, nas quais o racismo não seja tido apenas como um
apêndice ou um desvio da teoria e da prática política do Brasil, mas
sim elemento constitutivo. (QUEIROZ, 2017, p. 154).

O local da nação não é só o local do homem branco, mas tam-


bém da religião do homem branco. No Brasil Império, o catolicismo
permaneceu como religião oficial, mas foi inserida uma previsão for-
mal de liberdade religiosa privada, sem forma externa de templo,
na Constituição Imperial de 1824. O Código Criminal do Império,
promulgado em 1830, punia com multas e demolições a celebração
de cultos religiosos em áreas externas ao domicílio que não fossem
da religião oficial (art. 276); com prisão e multa, a zombaria con-
tra o culto estabelecido pelo Império por meio de papeis impres-
sos ou discursos (art. 277); com prisão e multas, a manifestação de
ideias contrárias à existência de Deus por meio de papeis impressos
ou discursos (art. 278). Estas proibições estimularam que religiões
minoritárias estabelecessem seus locais de culto não como templos,
mas como residências ligadas tipicamente ao sacerdote. Diversa-
mente dos templos católicos, que pertenciam a uma pessoa jurídica,
os terreiros eram ligados a pessoas físicas, o que contribuiu para que
as organizações das religiões afro-brasileiras tenham permanecido
descentralizadas e fragmentadas, pois cada local de culto é autôno-
mo e muitas vezes ocultado.
Na primeira Constituição da República (1891), foi instituída a
separação do Estado e da igreja, mas a realidade das religiões afro-
-brasileiras não mudou. Segundo Araújo (2007, p. 39), os grupos
que defendiam o Estado laico pertenciam à elite política que havia
construído os discursos etnocêntricos, que programaram uma “dis-
cursiva-normativa de exclusão legal da religiosidade negra, através
dos pressupostos do racismo científico”. Essa discursiva-normati-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 223

va está evidenciada no fato de que, um ano antes da separação, foi


aprovado o Código Penal de 1890, que criminalizava mendicância
(art. 391-395), vadiagem (art. 399), capoeiragem (art. 402), curan-
deirismo (art. 156) e espiritismo (art. 157). Para Araújo (2007, p.
40), essa criminalização legal das manifestações culturais e religio-
sas da população negra caracterizava “a tentativa de normalização
ou negação da cosmovisão africana no país”. Temos, nessas normas,
um princípio eurocêntrico não declarado explicitamente, mas que
influenciou toda uma construção sociopolítica e cultural que mar-
ginalizou os negros e sua cultura de forma institucionalizada, o que
chamamos de racismo estrutural e institucional.
Antes do Código Penal de 1890, os cultos afro-religiosos eram
realizados às escondidas devido à lei vigente que proibia ter outras
religiões; a partir de então, “todas” as religiões eram permitidas, mas
as religiões afro continuavam sendo proibidas por não serem reco-
nhecidas como religiões. Devido à falta de reconhecimento dos seus
adeptos como sujeitos do direito, para Araújo (2007, p. 49-50), as re-
ligiões afro-brasileiras tiveram que adotar mecanismos de resistên-
cia, como a aceitação do sincretismo religioso com a igreja católica e
a criação de redes de solidariedade entre o povo de santo.
Na década de 1930, os estudos sociais no Brasil, numa tentativa
de apagar o passado racista da nação, substituiu as teorias evolu-
cionistas de raça pela vertente culturalista. Gilberto Freyre foi um
dos teóricos que contribuíram com essa nova ideologia, que prega-
va a democracia racial no país e enaltecia a sociedade miscigenada,
produto da fusão entre as três raças fundadoras (branca, indígena
e africana). Para Santos (2006) e Araújo (2007), Gilberto Freyre,
assim como outros sociólogos da época, substituiu a noção de raça
por cultura. Agora, no discurso, a cultura do negro era primitiva
e inferior, sendo a mestiçagem e o sincretismo a salvação. Araújo
(2007) evidenciou que essa nova ideologia enquadrou as religiões
afro-brasileiras como folclores, permanecendo assim, negando o seu
caráter religioso, sendo este só admitido no suposto sincretismo
com o catolicismo.
224 | Nailah Neves Veleci

Em 1931, nasceu a Frente Negra Brasileira, primeira organiza-


ção de experiência do movimento negro no Brasil que questionou a
inclusão da população negra. Devido à criminalização das religiões
afro-brasileiras que suspostamente violavam a “moral pública” e os
“bons costumes”, bem como ao discurso de inferioridade das tradi-
ções africanas, a organização renegou as manifestações culturais e
religiosas. Segundo Araújo (2007, p. 76-77), “a Frente Negra res-
ponsabilizou essas práticas [religiosas] pela estigmatização do ne-
gro, propondo, assim, que a política de integração passasse também
pela sua incorporação aos modelos universalistas de cidadania e de
identidade nacional”.
Santos (2006) aponta que o pensamento da Frente Negra foi
observado também dentro do campo das religiões afro-brasileiras.
Segundo ela, a partir da década de 1930, em São Paulo e Rio de
Janeiro, cresceu o “processo de embranquecimento” da umbanda. A
religião, ao abrir mão do conteúdo étnico, teria se tornado, na época,
mais adequada para “as camadas da classe média e baixa de grandes
cidades que buscavam uma mobilidade social ascendente na socie-
dade brasileira, permeada pelo preconceito racial” (SANTOS, 2006,
p. 33-34). A autora assim classifica os dois caminhos seguidos pelas
religiões afro-brasileiras nesse período: de um lado, a luta pela ma-
nutenção da tradição africana, empreendida pelos cultos afro-brasi-
leiros como candomblé; de outro, o apagamento gradativo dos ele-
mentos africanos da umbanda para adaptar-se à sociedade nacional
e à modernidade. Para Santos (2006, p. 107), esse processo pelo qual
a umbanda passou de perda simbólica e de coesão social do negro se
configurou em uma “desagregação de memória coletiva negra”.
Intelectuais negros, como Abdias do Nascimento, Clóvis Mou-
ra, Lélia Gonzalez e outros, discutiram extensamente em suas obras
como a ideologia da miscigenação foi usada para desarticular a cons-
ciência e a ação política conjunta da população negra no Brasil. se-
gundo Moura (1988, p. 62):

Esse gradiente étnico que caracteriza a população brasileira, não


cria, portanto, um relacionamento democrático e igualitário, já que
está subordinado a uma escala de valores que vê no branco o modelo
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 225
superior, no negro o inferior e as demais nuanças de miscigenação
mais consideradas, integradas, ou socialmente condenadas, repeli-
das, à medida que se aproximam ou se distanciam de um desses pó-
los [sic] considerados o positivo e o negativo, o superior e o inferior
nessa escala cromática. Criou-se, assim, através de mecanismos so-
ciais e simbólicos de dominação, uma tendência à fuga da realidade e
à consciência étnica de grandes segmentos populacionais não-bran-
cos. Eles fogem simbolicamente dessa realidade que os discrimina
e criam mitos capazes de fazer com que se sintam resguardados do
julgamento discriminatório das elites dominantes. A identidade e
a consciência étnicas são, assim, penosamente escamoteadas pela
grande maioria dos brasileiros ao se auto-analisarem, procurando
sempre elementos de identificação com os símbolos étnicos da ca-
mada branca dominante.

Fazendo um paralelo entre miscigenação e sincretismo, respei-


tando as devidas diferenças estruturais, mas focando no quesito de
origem de valores e cosmovisão de mundo, temos a umbanda nesse
processo de sincretismo/miscigenação, no mesmo lugar em que foi
colocado o “pardo” brasileiro, como uma defesa da branquitude por
um tipo de evolucionismo das religiões afro-brasileiras, sendo, o ob-
jetivo, o afastamento (negação) das matrizes africanas e a provoca-
ção de sua desarticulação.
A Constituição de 1934, em seu art. 17, inciso III, previu uma
colaboração recíproca com qualquer culto em prol do interesse co-
letivo, o que permitia renovar os laços do Estado com a Igreja Ca-
tólica, que continuava sendo a mais influente da época. Na vigência
desta Constituição, o Código Penal de 1940 excluiu o crime de espi-
ritismo, mas até hoje é vigente o crime de curandeirismo (art. 284).
Em contrapartida, esse mesmo código, em seu art. 208, pune quem
impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso ou des-
valorizar publicamente ato ou objeto de culto religioso.
Na década de 1940, surgiu o Teatro Experimental do Negro de
Abdias Nascimento, que defendia “a afirmação da herança africana,
propondo, assim, que a inclusão socioeconômica da população negra
fosse inseparável do reconhecimento do valor civilizatório das ma-
nifestações culturais e religiosas da diáspora no Brasil” (ARAÚJO,
2007, p. 78). No cenário político, o Teatro foi acusado, “tanto por
conservadores como pela esquerda marxista, de estar alimentando
226 | Nailah Neves Veleci

um comportamento racializado inaceitável em uma sociedade carac-


terizada pela harmonia racial” (ARAÚJO, 2007, p. 79).
Na década de 1950, mesmo com o apoio do movimento negro,
o racismo institucional contra as religiões afro-brasileiras, de acor-
do com Araújo (2007), passou da repressão policial para uma inter-
venção normalizadora, em que as práticas religiosas, agora, eram
obrigadas a requerer licença junto às delegacias de jogos e costumes
para realização dos cultos. Dentro do campo religioso, as religiões
afro-brasileiras estabeleceram suas estratégias de sobrevivência, na
busca pela africanidade de seu universo simbólico e na afirmação da
alteridade da cosmovisão africana no Brasil (ARAÚJO, 2007).
Com o golpe de 1964, a ideologia da democracia racial tomou
mais força no país, principalmente porque as lideranças negras ti-
veram que deixar o Brasil e a mobilização acabou sendo ainda mais
desarticulada. Apenas na década de 1970, influenciados pelo movi-
mento dos direitos civis nos EUA e nos países africanos, pela Con-
venção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (1965) e pelo Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966), foi retomado o protesto do movimento negro no país. Na-
quele momento, o Movimento Negro Unificado contra o Racismo
e Discriminação Racial (MNU) voltou-se para uma reflexão crítica
das relações raciais, rearticulando sua luta política na afirmação da
negritude e no combate ao racismo. Suas políticas seguem a lógica
de que a superação da hierarquia racial deve passar pelo reconheci-
mento das tradições africanas, sendo esta a nova etapa de resistência
negra no Brasil, tendo, como promoção de uma identidade étnica
negra surge, a “cobrança moral para que a nova geração de ativistas
assumisse as religiões de matriz africana, particularmente o can-
domblé, tomado como principal guardião da fé ancestral” (DOMIN-
GUES, 2007, p. 117).
Para Araújo (2007), essa perspectiva do novo movimento negro
inseriu, no cenário político, o debate sobre o caráter multicultural da
sociedade brasileira. Ele explica que o multicultural:
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 227
[...] tem como objetivo designar sociedades, que devido à presença
de uma pluralidade de comunidades culturais, possui aspectos so-
ciais e desafios de governabilidade que envolve o reconhecimento
das diferenças e os desafios de uma vida comum. Em contraposi-
ção, a alcunha “multiculturalismo” designa as diversas estratégias
e ações políticas voltadas para a administração dos conflitos oriun-
dos da diversidade cultural existente em sociedades multiculturais.
(ARAÚJO, 2007, p. 140).

Nesse cenário, a luta dos afro-religiosos passou de resistência


para uma política de reconhecimento de direitos, na qual o povo de
santo conquistou o Decreto nº 25.095, de 15 de janeiro de 1976, do
governador da Bahia, pondo um ponto final na obrigação das comu-
nidades afro-religiosas de requerer permissão à delegacia de jogos
e costumes para a realização dos cultos, sendo enfim reconhecidas
como religião. A Constituição de 1988 ratificou a aceitação das reli-
giões afro-brasileiras como religiões e ainda contemplou, em parte,
as exigências do movimento negro sobre o respeito à alteridade das
tradições negras, em seus artigos 215 e 216.
Para falar de reconhecimento social, é necessário entender que
a opinião da sociedade é moldada por diversas instituições e pelo
histórico de formação brasileira. A igreja é uma das instituições
que tem mais força nessa área. No decorrer da história do Brasil,
Berkenbrock (1999) identificou cinco posições diferentes da Igreja
Católica perante as religiões afro-brasileiras, posições estas que às
vezes foram cronologicamente coincidentes: 1ª) ilusão da catequese;
2ª) combate aos costumes africanos; 3ª) demonização das religiões
afro-brasileiras (década de 1950); 4ª) cooperação e diálogo – reco-
nhecimento dos erros cometidos pela Igreja com a evangelização
forçada dos negros; 5ª) diversificação de posições (atualidade): há
católicos que combatem e rejeitam totalmente as religiões afro-bra-
sileiras; há os que aceitam sua existência, mas se acham no direito
de purificá-las de “erros doutrinários”; e há os católicos que reconhe-
cem totalmente as religiões afro-brasileiras como tais e as convidam
para o diálogo inter-religioso.
Em relação aos pentecostais, segundo Silva (2007), começou
uma transformação na década de 1970, que vem crescendo rapida-
228 | Nailah Neves Veleci

mente até os dias de hoje: a ascensão do neopentecostalismo no país


e a perseguição pregada por este dogma contra as religiões afro-
-brasileiras. O pentecostalismo se distingue dos demais segmentos
religiosos cristãos pela ênfase do dom da cura divina, pelas estra-
tégias de proselitismo e conversão em massa, pelo sectarismo e as-
cetismo. Esse segmento religioso “disputa” o mesmo mercado reli-
gioso que as religiões de matriz africana, populações de baixo nível
socioeconômico que buscam experiência vivida no próprio corpo. Ao
contrário dos católicos, eles reconhecem a existência das divindades
afro-brasileiras, mas as classificam como demônios e, portanto, pre-
gam que os povos de terreiro precisam ser salvos e convertidos ao
neopentecostalismo. Possuem também um grande poder de mídia
para essa pregação, além de inserção institucional nos três poderes.
A percepção que a sociedade tem das religiões afro-brasileiras é
semelhante às das igrejas cristãs, devido à visibilidade e influencia
destas nos meios estruturais da sociedade, como escolas, política e
mídia, em detrimento da invisibilidade das religiões afro-brasileiras.

2 UM XIRÊ DE VIOLAÇÕES DE DIREITOS E AS ESTRATÉGIAS


DE RESISTÊNCIA

O racismo não é um desvio da teoria jurídica e política do Esta-


do brasileiro, mas sim um projeto constituinte. Buscaremos mostrar,
a seguir, como a parte religiosa do racismo foi e está estruturada, e
como se revela o ativismo institucional por trás dela.

2.1 OS DESAFIOS PARA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE


CRENÇA

Educação é uma das bases da construção sociocultural do indiví-


duo e, no Brasil, temos uma disciplina, ensino religioso, que sempre
esteve presente nas escolas públicas para ensinar os valores cristãos
para a formação dos brasileiros. Podemos afirmar que nossas insti-
tuições educacionais possuem um viés eurocêntrico e epistemicida.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 229

Segato (2013, p. 47-48) explica que o eurocentrismo consis-


te numa distorção favorável aos ideais do europeu branco sobre o
modo de produzir sentido, explicações e conhecimentos. Trata-se
de um conhecimento que reproduz o sistema de exploração capita-
lista e que determina os critérios de valores das pessoas e dos pro-
dutos. É a determinação de hierarquia que perpassa por diversas
áreas: “pré-capital/capital; tradicional/moderno; Ocidente/Oriente;
primitivo/civilizado; mítico/científico; irracional/racional”. Nossas
instituições educacionais são impregnadas por esse ideal eurocên-
trico que estipula, como os melhores modelos de educação, aqueles
advindos da Europa. Determinam também que o conhecimento ra-
cional e científico é aquele que é escrito, em oposição ao conheci-
mento transmitido oralmente por outros povos, como os africanos
e indígenas. Essa perspectiva estipula que há uma evolução entre os
povos, sendo, o europeu, o mais desenvolvido e a meta desejável para
os demais.
Carneiro (2005) explica que epistemicídio é a anulação e a des-
qualificação do conhecimento de povos colonizados, assim como a
negação do acesso à educação, principalmente uma educação de qua-
lidade, a esses povos.
O eurocentrismo e o epistemicídio estão no desenvolvimento da
disciplina, que é elemento organizador do currículo74 que, de acordo
com Muniz e Gonçalvez (2015), está condicionado a fatores inter-
nos e externos.

Os fatores internos dizem respeito às condições de trabalho na área,


como os critérios epistemológicos e metodológicos, a ciência de re-
ferência, o aparato acadêmico-científico, as associações profissio-
nais, o trabalho docente e a produção editorial. Os fatores externos,
por sua vez, “estão diretamente relacionados à política educacional
e ao contexto econômico, social e político que a determinam”. O
peso e influência de cada um desses fatores dependem do nível de
desenvolvimento em que a disciplina se encontra, de sua relação

74  O currículo é uma área de construção e reprodução social em que o


conhecimento e a cultura são selecionados de acordo com o que os grupos
dominantes consideram socialmente válidos (GONÇALVES; MUNIZ, 2015, p.
3).
230 | Nailah Neves Veleci
com o campo educacional. (SANTOS, 1990, p. 21, apud GONÇAL-
VEZ; MUNIZ, 2015, p. 3-4).

Desde o início da educação no Brasil, a Igreja Católica influen-


ciou hegemonicamente os fatores internos e externos para a apli-
cação da disciplina de ensino religioso; consequentemente, o ensino
dos valores morais cristãos e a intersecção disso com a ausência da
história do negro e do próprio negro em alguns momentos nas es-
colas influenciou o racismo religioso para com as religiões afro-bra-
sileiras. O ensino religioso esteve presente nas escolas em caráter
confessional do cristianismo no Império e, após a separação do Es-
tado e do catolicismo, houve todo um lobby da Igreja Católica para
manter essa hegemonia, através de grupos de pressão exercendo
influência sobre os três poderes e articulando para que a fiscaliza-
ção e a determinação dos conteúdos dessa disciplina ficassem nas
mãos das instituições cristãs. Em 1931, a Reforma Francisco Cam-
pos instituía a primeira reforma educacional de cunho nacional e,
em seu art.153, estipulava que o ensino religioso seria facultativo e
de acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada pelos pais
(SOUZA, 2006, p. 1216).
A Constituição de 1934 ratificou essa reforma e, desde então, a
disciplina é contemplada em todas as Constituições75 e Leis de Di-
retrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), tendo como protago-
nismo as lideranças da Igreja Católica nas constantes negociações,
ajustes e pressão social (MUNIZ e GONÇALVEZ, 2015, p. 6).
As religiões afro-brasileiras, que foram criminalizadas institu-
cionalmente pelo Estado até 1976, não eram contempladas por essa
lei ,por um lado, por medo de perseguição dos alunos e, por outro,
porque os negros, que eram maioria dos adeptos dessa religião e
que poderiam exigir seu ensino na disciplina, também não tinham
muito espaço no ambiente escolar, visto que sua presença era siste-
maticamente negada, pois as escolas não proporcionavam condições
materiais e objetivas, principalmente após séculos de proibição de

75  Na Constituição de 1988, a disciplina de ensino religioso é a única disciplina


nomeada explicitamente, o que nos mostra a força da igreja na Constituinte.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 231

sua presença nesse espaço na época da escravidão. Coube a movi-


mentos negros, como a Frente Negra Brasileira (FNB) e o Teatro
Experimental do Negro (TEN), juntamente com as escolas técnicas
e profissionalizantes, a alfabetização de jovens e adultos negros.
As religiões afro-brasileiras só encontraram espaço para apre-
sentar suas histórias e valores na educação escolar através da Lei n.
10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino de História e Cul-
tura Afro-brasileira. Mesmo assim, tiveram que enfrentar enormes
resistências de professores e pais que, devido a uma formação racista
religiosa, defendiam que tal matéria “era coisa do demônio”. O Mo-
vimento Escola Sem Partido foi criado nesse contexto, em 2004,76
pelo procurador de estado de São Paulo Miguel Nagib, exigindo
que a escola respeitasse os valores morais e religiosos dos pais dos
alunos.
Mas o Movimento Escola Sem Partido só começou a chamar
atenção no ano de 2014, ano da aprovação do Plano Nacional de
Educação (2014-2024), e chegou ao conhecimento da família política
Bolsonaro, que apresentou um anteprojeto escrito por Nagib, o Pro-
jeto de Lei n. 2974/2014, na Assembleia Estadual do Rio de Janeiro,
em nome do parlamentar Flávio Bolsonaro (PSC). Posteriormente,
o texto foi adaptado para o nível municipal e o parlamentar Carlos
Bolsonaro (PSC), outro membro da família, apresentou o Projeto de
Lei m. 867/2014 na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Ao
nível federal, foi o deputado Erivelton Santana (PSC/BA) que apre-
sentou o Projeto de Lei n. 7180, de 2014, agora já camuflado como
um projeto que busca proteger os estudantes, e não mais um que
persegue esta ou aquela ideologia, apesar de que, na prática ,a ideia
permanece. É importante pontuar que os propositores desses pro-
jetos pertencem, todos, à bancada evangélica de seus parlamentos.
Esse movimento é apenas mais um obstáculo ao ensino da his-
tória e da cultura afro-brasileira e, consequentemente, é um desa-
fio para a liberdade de consciência dos afro-religiosos na sociedade
como um todo, pois o Estado permitiu que se ensinasse a odiar as re-

76  Curiosamente, no ano em que a Lei n. 10.639 deveria começar a ser aplicada
efetivamente nas escolas.
232 | Nailah Neves Veleci

ligiões afro-brasileiras por séculos, mas apresenta poucos esforços77


para se ensinar a respeitá-las, transferindo a responsabilidade para
educadores ativistas do movimento negro, principalmente.
Atualmente, de acordo com Magalhães (2019), dados da QEdu
mostram que o ensino religioso está presente em 66% das escolas
públicas brasileiras como disciplina facultativa, mas 84% destas não
oferece alternativa para quem não deseja cursar a disciplina. Em
2018, o Ministério da Educação reconheceu que o curso de Ciências
das Religiões é a habilitação ideal para ensinar a matéria, mas não é
o que ocorre.
No Relatório sobre Violência e Intolerância Religiosa no Bra-
sil (2011-2015), os professores representam 11% dos agressores e a
escola, 7% dos locais onde houve intolerância ou violência religiosa
denunciados nas ouvidorias. Analisando os processos que chegam ao
Poder Judiciário, a escola passa a ser o segundo local onde ocorrem
mais violações de direitos, representando 25% dos casos (RIVIR,
2016). Segundo o RIVIR (2016), os casos mais apontados são os de
professores ou diretores evangélicos que se negam a dar aulas sobre
a história das religiões afro-brasileiras ou quando esses utilizam a
temática para demonizar tais crenças.

2.2 OS DESAFIOS PARA PROTEÇÃO DOS LOCAIS DE CULTO

Os terreiros foram constituídos para ser uma recriação dos ter-


ritórios africanos, um espaço onde aqueles que foram escravizados
e obrigados a deixar sua terra mãe pudessem retornar, só que em
solo brasileiro. Sales Júnior (2015) explica que a territorialização do
candomblé é muito mais do que ocupar um espaço físico, é assentar

77  Em contrapartida, apresentam um esforço grande para a manutenção do


ensino confessional cristão nas escolas, como, por exemplo, acordos com o
Vaticano e a decisão do STF sobre ensino religioso em 2017. Há, também, uma
análise do livro Laicidade e ensino religioso no Brasil, das pesquisadoras Débora
Diniz, Tatiana Lionço e Vanessa Carrião, que mostra que, dos livros didáticos
analisados sobre ensino religioso, 65% faziam referência a religiões cristãs, 8%
ao islamismo, 7% ao judaísmo, 3% ao espiritismo e apenas 2% abordavam as
religiões afro-brasileiras e indígenas.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 233

o asé, conectar espaço e tempo, físico e simbólico. É pertencer ao


território, e não o contrário; é guardá-lo, habitá-lo e impregnar-se
dele, porque esse espaço não é apenas um espaço material, mas sim
a manifestação do orixá, do asé.
As dificuldades da regularização dos terreiros advêm da cos-
movisão ocidental e consequentemente da ordem jurídica que não
reconhece, nas suas leis universais, as particularidades dos terreiros.
O primeiro problema para a regularização e também para o reco-
nhecimento desse espaço como templo é a característica: devido ao
histórico de perseguição, os terreiros são locais de culto e de mo-
radia, às vezes de muitas moradias. O segundo obstáculo para re-
gularização é a própria noção de propriedade dos candomblecistas.
A cosmovisão do candomblé é pautada por princípios comunitários
que se estendem para tudo no terreiro, porque a noção de proprie-
dade é a inclusiva (BAPTISTA, 2008). Para Baptista (2008, p. 140),
propriedade inclusiva:

[...] reflete um conjunto de relações duradouras e permanentes ins-


critas no objeto [...]. Na verdade, essa posse e seu uso refletem o
conjunto das relações sociais inscritas na configuração social, for-
necendo uma série de indicações sobre as relações entre as pessoas
e as coisas que circulam no seio daquele grupo ou figuração.

A partir dessa noção de propriedade, tudo dentro do terreiro


– objetos, animais, indumentárias, elementos da natureza e até as
próprias pessoas – não pertencem exclusivamente a alguém, mas
sim aos orixás. Os objetos materiais podem ser utilizados comuni-
tariamente de acordo com a vontade dos orixás. Quando se enterra
o asé,78 o pai ou a mãe de santo se tornam zeladores daquele local, e
não donos, apesar de serem reconhecidos como donos pela lei civil.
Isso fica mais compreensível quando discutimos a sucessão do ter-
reiro. O Código Civil reconhece como herdeiros dos terreiros, na
falta de um testamento, os herdeiros do pai ou mãe de santo que são
titulares do terreno, mas na “lei do orixá” quem define o sucessor é
o orixá da casa, e isso ocorre após o falecimento. Logo, não há tes-
78  Transformação do território em um solo ancestral, terreiro.
234 | Nailah Neves Veleci

tamentos referentes ao terreiro. Isso já levou inúmeros terreiros a


serem fechados, pois há casos em que os herdeiros civis não são os
herdeiros do orixá; há casos em que os civis nem pertencem à reli-
gião e, como o terreiro é também moradia, o templo é desfeito.
O terceiro problema é a própria manutenção da irregularidade
do terreiro, seja por medo de ser encontrado pelo Estado, seja pela
falta de condição financeira para regularizar. O medo de ser encon-
trado e identificado pelo Estado é comum dentro dos terreiros de
todo o país, devido aos ataques por evangélicos que têm uma pre-
gação de ódio contra as religiões afro-brasileiras ou pelo medo de
serem derrubados pelo Estado, por estarem em áreas irregulares.
De acordo com o Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa
no Brasil (2011-2015), foram identificadas notícias de 26 (vinte e
seis) assassinatos de lideranças do candomblé entre os anos de 2011
e 2015; dessas ,apenas duas chegaram ao Ministério Público ou à
polícia classificadas como casos de intolerância religiosa (BRASIL,
2016, p. 38-39). Em relação aos terreiros, o relatório identificou 99
(noventa e nove) notícias sobre ataques a imóveis, sendo os terreiros
incendiados e a quebra de estátuas os casos mais comuns (RIVIR,
2016, p. 43). O Rivir (2016) destaca que há uma dificuldade maior na
identificação dos casos de ataques aos terreiros por se locallizarem
em regiões periféricas.
Para aqueles que não têm medo de serem mapeados pelo Estado,
três estratégias são as mais adotadas para tentar contornar esses
problemas: a transformação da comunidade religiosa em pessoa jurí-
dica, o reconhecimento como patrimônio cultural e o reconhecimen-
to como povos e comunidades tradicionais de matriz africana.
A transformação em pessoa jurídica é a mais comum das estraté-
gias, mas, no caso das religiões afro-brasileiras, não é suficiente para
garantia de direitos religiosos, como imunidade tributária. O art.
150, inciso VI, alínea “b”, da Constituição Federal de 1988, veda a
União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios de instituírem
impostos sobre templos de qualquer culto. As vedações compreen-
dem somente o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com
as finalidades essenciais das entidades religiosas. A Constituição de
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 235

1946 foi a primeira a determinar imunidade tributária aos templos.


Na época, as religiões afro-brasileiras não eram reconhecidas como
religião. Nascimento (2015) fez um levantamento sobre os manuais
tributários utilizados no ensino superior e pelos juristas dos Tribu-
nais Superiores, nos quais identificou um apagamento das religiões
afro-brasileiras. As expressões e determinações de características
típicas de uma religião que deve ser beneficiada pela imunidade são
descrições apenas de elementos cristãos. Decisões dos órgãos supe-
riores, que servem como jurisprudências, também apresentam um
silêncio em relação ao direito tributário a ser aplicado às religiões
afro-brasileiras. Os casos que chegam aos tribunais superiores são
os que envolvem conflito com templos cristãos (NASCIMENTO;
DUARTE; QUEIROZ, 2017, p. 1170-1172). Este silêncio dos ju-
ristas, somado ao silêncio anterior a eles, o educacional básico, é
repassado durante décadas para juízes, advogados, procuradores e
ministros que vão julgar sob esses mesmos pressupostos exclusivos
das religiões cristãs e, consequentemente, limitando a garantia de
liberdade religiosa dos terreiros.
Há também as burocracias exigidas para o registro como
organização religiosa e/ou associação religiosa, que cobram
informações que poderiam autoincriminar as religiões afro-
brasileiras, pois curandeirismo ainda é crime no Brasil e muitas das
atividades religiosas dessas crenças são tipificadas assim, devido à
formação racista religiosa que já citamos.
A estratégia de identificação como patrimônio cultural é recente
e limitada. O primeiro tombamento de um monumento negro no
Brasil, o do terreiro Ile Iyá Nassô Oká, conhecido como Casa Branca
do Engenho Velho, no estado da Bahia, foi em 1984. O tombamento
é uma estratégia de proteção que valoriza a questão cultural para
além das religiosas, mas que é extremamente limitada devido aos
processos burocráticos79 e à sua aplicação apenas aos terreiros mais
antigos, não podendo beneficiar todos os povos de terreiro que pre-
cisam da mesma proteção. Marins (2016, p. 23-24) destaca que até

79  Necessita de um dossiê de documentos, laudo antropológico de especialista


reconhecido, equipe técnica e recursos financeiros.
236 | Nailah Neves Veleci

2015 nenhum terreiro fora do Nordeste tinha sido tombado, e os que


foram tombados eram, todos, vinculados ao candomblé da nação je-
jê-nagô, com exceção do terreiro Bate-Folha Manso Banduquenqué,
que é do candomblé de Angola. Uma das vantagens dessa identifica-
ção é a permissão de auxílio financeiro do Estado, mas há problemas
com a intervenção do Estado dentro do terreiro.
Perante o conhecimento das vantagens dos direitos culturais,
mas identificando o problema do tombamento, os movimentos afro-
-religiosos, juntamente com e dentro do movimento negro, articu-
laram a estratégia de identificar as religiões afro-brasileiras como
povos e comunidades tradicionais de matriz africana. Afinal, estes
passaram durantes décadas por “processos paulatinos de destruição
dos territórios, de ‘intolerância religiosa’ e de racismo” (GUIMA-
RÃES, 2014, p. 28), principalmente porque compreenderam que:

[...] a discriminação em relação a esses povos ultrapassa a dimensão


estritamente religiosa, pois a herança sociocultural brasileira que
discriminou e perseguiu (e, ainda, persegue) tais povos, tem como
leitmotiv o fato de suas práticas estarem ligadas aos valores africa-
nos, à ‘raça’ negra. (GUIMARÃES, 2014, p. 29).

A estratégia de adição conceitual consiste em transferir a luta


por direitos para o eixo da cultura, ganhando a proteção constitu-
cional do art. 215 e, consequentemente, criando abertura para a pos-
sibilidade de implementação de políticas públicas diferenciadas para
os terreiros. Em 27 de dezembro de 2004, foi criada, por decreto, a
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comuni-
dades Tradicionais; e; em 7 de fevereiro de 2007, foi instituído o De-
creto n. 6.040, que definiu os princípios, objetivos e os instrumentos
de implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Susten-
tável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Em seu art. 3º, inciso
I, é dada a definição de povos e comunidades tradicionais como:

[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como


tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocu-
pam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utili-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 237
zando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição. (BRASIL, 2007).

Os movimentos afro-religiosos e a Secretaria de Políticas de


Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) trabalharam conjunta-
mente para, em janeiro de 2013, lançarem o I Plano Nacional de De-
senvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
de Matriz Africana (2013-2015). A proposta do I Plano foi enfrentar
o racismo institucional e propor a valorização da identidade destes
povos,

[...] com políticas públicas específicas tanto para a valorização das


suas práticas tradicionais, como formas de fortalecimento institu-
cional destas comunidades, quanto para que possam ser respeitados
na sociedade brasileira, e vistos como povos dignos de igual respei-
to. (GUIMARÃES, 2014, p 29).

Nascimento (2016) explica que as religiões afro-brasileiras


não organizam sua cosmologia em ideais de modo binário opositor
(bem/mal), o que se transfere para a noção de mundo. O mundo não
é dividido entre Orun (onde vivem os orixás) e Aiyê (onde estamos),
mas são “aspectos contíguos, partes do mesmo mundo” que são re-
presentados na crença como uma cabaça (NASCIMENTO, 2016, p.
159). Como não há essa dualidade entre “céu” e “terra”, também não
há entre corpo/espírito e nem entre profano/sagrado. Devido a essa
ausência de binarismo, Nascimento (2016) diz que alguns autores
acham problemático considerar as religiões afro-brasileiras como
religiões, pois não há nada para religare. Mas Nascimento (2016, p.
161) explica que este é apenas um sentido reducionista de religião
e que as religiões afro-brasileiras podem não ter a necessidade de
religar as pessoas com as entidades, até porque as entidades são a
própria natureza, mas religam “pessoas a contextos identitários que
foram rompidos pelos processos escravagistas/coloniais, uma reli-
gação com a memória ancestral, com uma história partida” (NASCI-
MENTO, 2016, p. 161).
238 | Nailah Neves Veleci
Nesse sentido, existiriam funções de resgate que os candomblés
assumem, construindo estratégias de resistência das culturas afri-
canas em solos diaspóricos, nos apresentando uma noção política
de religião como religare e que torna os candomblés como práticas
que reconstroem maneiras de vivenciar valores, crenças e práticas
advindas do continente africano, rearticuladas aqui, com elementos
autóctones e que finda por constituir um modo de vida, mais que
meramente uma prática espiritual – embora também o seja para
os parâmetros ocidentais que pensam o vivido, histórico, material
como apartado daquilo que seria espiritual. Assim, os candomblés,
de modo generoso, oferecem às pessoas brasileiras um modo de vi-
ver que possibilite a salvaguarda de conhecimentos, valores, crenças
em um contexto histórico que se esforçou por exterminá-los quan-
do da saída compulsória das pessoas negras do velho continente ne-
gro. Por isso, poderíamos pensar os candomblés como uma religião
definida como um modo de vida que se mostra como um continuum
criativo entre nosso país e alguns lugares do continente africano.
(NASCIMENTO, 2016, p. 162).

Essa noção de religar a África se aplica tanto para uma nova


abordagem de religião, quanto para enquadrar essas religiões como
um povo que preserva uma cultura distinta da hegemônica. Essa
conceituação também nos auxilia para argumentar sobre o porquê
de tratarmos de racismo religioso, quando discutimos as persegui-
ções que as religiões afro-brasileiras sofrem. Pois não estamos fa-
lando apenas da perseguição a uma religião, mas sim da perseguição
a um povo que professa uma religião. Não são apenas as questões
religiosas que são perseguidas, mas também o modo de ver e se re-
lacionar com o mundo, suas estruturas, filosofias e conhecimentos.
Essa estratégia de identificação trouxe mais garantias de direi-
tos, mas estes podem ser revogados com uma mudança de governo,
pois a conquista desses direitos veio de uma política de governo, e
não de uma política de Estado. Em agosto de 2019, os parlamentares
Valmir Assunção (PT), Nilto Tatto (PT), Talíria Petrone (PSOL),
Edmilson Rodrigues (PSOL), Áurea Carolina (PSOL), Érika Kokay
(PT), Maria do Rosário (PT) e Joênia Wapichana (REDE) apresen-
taram o Projeto de Lei n. 4.741/2019, com o objetivo de transfor-
mar o Decreto n. 6040/07, que estabelece as diretrizes e objetivos
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 239

para políticas públicas de desenvolvimento sustentável dos povos e


comunidades tradicionais, em política de Estado.

2.3 OS DESAFIOS PARA O LIVRE EXERCÍCIO DOS CULTOS

Após 16 anos de luta e resistência na justiça, o movimento afro-


-religioso, em conjunto com o movimento negro, obteve vitória na
decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a questão de proibição
de sacrifício de animais em rituais religiosos,80 que ocorreu em mar-
ço de 2019. Essa demora de resposta da justiça deixou consequên-
cias e vestígios de como funciona o ativismo institucional em prol
do racismo religioso.
A proibição do sacrifício de animais em rituais religiosos é atual-
mente um obstáculo à realização integral dos cultos e da sociabilida-
de, que passa pela alimentação socializante, do candomblé. Essa é a
realidade de alguns munícipios do país que tiveram aprovação de leis
com esse teor. Tratam-se de problemas locais que se aproveitaram
do poder das elites políticas e jurídicas de seus espaços e do silêncio
das Supremas Cortes por um longo tempo, mas que é preocupação
nacional para todos os adeptos desta religião. Alguns exemplos de
projetos que analisamos são: i) Projeto de Lei n. 202/2010, da Câ-
mara de Vereadores de Piracicaba, do vereador Laércio Trevisan Jr.
(PR), que proíbe o sacrifício de animais em práticas de rituais reli-
giosos no Município de Piracicaba, prevendo multa de R$ 2.000,00
(dois mil reais), dobrados a cada reincidência; ii) Projeto de Lei n.
992/2011, da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, do
deputado Feliciano Filho (PEN), que proíbe o uso e o sacrifício de
animais em práticas de rituais religiosos no Estado de São Paulo; iii)
Lei Ordinária n. 5247, da Câmara Municipal de Valinhos, do verea-
dor César Rocha (PV), que proíbe a utilização, mutilação ou sacrifí-
cio de animais em rituais religiosos ou de qualquer outra natureza
no município (VELECI, 2015, p. 51-78).

80  Usamos a nomenclatura usada nos projetos, leis e normas apresentadas


exatamente para poder discutir o viés racista das nomenclaturas escolhidas.
240 | Nailah Neves Veleci

Tudo começou com a estratégia utilizada pela Lei n. 11.915, de


2003 (Código Estadual de Proteção dos Animais), para criminalizar
as religiões afro-brasileiras sem nomeá-las explicitamente. Essa lei
é que gerou o Recurso Extraordinário n. 494601-7, que foi votado
no Supremo Tribunal Federal. Mas há também a preocupação, ao
nível nacional, advinda do Projeto de Lei n. 4331/2012, inspirado
na estratégia citada, de autoria do deputado Pastor Marco Felicia-
no (PSC), que estabelece sanção penal e administrativa para quem
pratica o sacrifício de animais em rituais religiosos. Este projeto foi
apensado ao Projeto de Lei n. 347/2003, que trata sobre tráfico ile-
gal de animais silvestres e que já está pronto para a pauta do ple-
nário, o que significa que a sociedade não poderá discuti-lo numa
audiência pública, realizada pelas comissões.
O Código Estadual de Proteção dos Animais foi um marco nes-
sa disputa, pois mesmo não falando sobre proibição de sacrifício de
animais em rituais religiosos, foi utilizado pelos aplicadores da lei
para criminalização das religiões afro-brasileiras. A estratégia de
criminalizar a cultura e corpos negros sem especificá-los, ocultan-
do-os em leis aparentemente universalizantes,81 faz parte do racismo
brasileiro e do mito da democracia racial, reforçando o racismo reli-
gioso de que vimos tratando.
O Pastor Marco Feliciano chega a citar, na defesa de seu pro-
jeto – o Projeto de Lei n. 4331/2012 –, que consultou a Federação
Espírita do Estado de São Paulo, numa insinuação de desonestidade
intelectual de que havia consultado as religiões afro-brasileiras.
O próprio termo utilizado nos projetos – “sacrifício de animais
em rituais religiosos” –, em contraposição ao usado pelas religiões
afro-brasileiras – “sacralização de animais” – ou, mais recentemente,
à expressão utilizada pelos povos e comunidades de matriz africana
– “alimentação tradicional” –, já deixa em evidência a discrepância
das cosmovisões de mundo envolvidas.

81  Ver mais em: BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais:
uma introdução crítica ao racismo. Dissertação (Mestrado em Direito),
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1989.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 241

Analisando todos esses projetos de nível nacional, estadual e


municipal, identificamos que há um racismo e uma tentativa de cri-
minalização das religiões afro-brasileiras, porque tais projetos serão
aplicados, da forma como estão escritos, a práticas de rituais religio-
sos que ocorrem no templo, ou seja, o abate sob preceitos religiosos
que os açougues realizam sob regência do Regulamento Técnico de
Manejo Pré-abate e Abate Humanitário do Ministério da Agricul-
tura, Pecuária e Abastecimento não serão atingidos. Os animais das
religiões afro-brasileiras, segundo as liturgias do culto, devem ser
abatidos dentro do terreiro e por um adepto específico da crença,
que foi iniciado e recebeu o direito para realizar a prática. Essa dife-
renciação é deve ser ressaltada, porque grandes religiões como o ju-
daísmo, islamismo e até mesmo o cristianismo não correm nenhum
risco de serem atingidas, pois seus animais sacralizados ou que serão
sacralizados já saem mortos dos açougues.
Sobre os autores dos casos analisados, observamos que nem to-
dos são defensores de animais, mas são todos adeptos de crenças
neopentecostais. Este ponto é importante de ser salientado, por-
que existe, no Brasil, uma Guerra Santa82 declarada por segmentos
neopentecostais – principalmente da Assembleia de Deus – contra
as religiões afro-brasileiras. Em relação às proposições, destaca-se
uma preocupação, por parte dos seus autores, quanto à necessidade
de normas para maior proteção dos animais nas justificativas dos
projetos. No entanto, no texto da lei, há uma proibição do sacrifício
de forma geral, donde se poderia concluir que ficaria proibido qual-
quer tipo de sacrifício, sendo ele cruel ou não. A exceção é o projeto
estadual do Rio Grande do Sul, que especifica o que seria cruel e
exige uma fiscalização na morte dos animais.
Na visão dos afro-religiosos, tais projetos configuram novas
tentativas de limitação da sua fé e seus costumes. Eles defendem
que a manutenção da estrutura de seus dogmas é mais do que uma

82  Há discussões de movimentos afro-religiosos sobre o acerto do termo


“guerra” para caracterização desse processo, devido ao poder e influência da
igreja. Alguns defendem o uso do termo “terrorismo” para esse processo de
perseguição das religiões afro-religiosas.
242 | Nailah Neves Veleci

questão de resistência religiosa contra o racismo do sincretismo ao


qual foram forçadas no passado. Trata-se também de uma resistên-
cia contra o epistemicídio da população negra.

3 O ATIVISMO INSTITUCIONAL CONTRA AS RELIGIÕES AFRO-


-BRASILEIRAS

Além do racismo estrutural e institucional identificados nesse


processo, observamos também o ativismo institucional, que consis-
te em ações adotadas por pessoas que ocupam cargos no governo
com o propósito de fazer avançar as agendas políticas ou projetos
propostos pelos movimentos sociais do qual fazem parte. De modo
geral, esses ativistas agem de duas formas dentro do governo: a)
realizando um esforço para promover mudança nas estruturas que
lhes beneficie e que sejam legais e b) utilizando suas redes de movi-
mentos sociais para pressionar as ações estatais (estas tanto podem
se apresentar na forma de recursos, quanto na de obstáculos para as
ações) (ABERS; TATAGIBA, 2015, p. 74-75).
É o tipo de ativismo que os neopentecostais vêm fazendo através
da combinação de bancada evangélica nos parlamentos, ocupação de
cargos de chefia no Executivo e Judiciário, com o proselitismo nas
grandes emissoras de TV, até mesmo nos meios educacionais.
Compreender esse ativismo é necessário, porque o processo de
tomada de decisão política, seja para uma campanha eleitoral, seja
para a escolha de uma política pública, segue o princípio da escolha
racional que calcula percepções subjetivas sobre alternativas, suas
consequências e avaliações dos seus possíveis resultados. Tanto no
Legislativo quanto no Executivo brasileiro, devido ao sistema pluri-
partidário do país, três são os fatores fundamentais para a influência
na tomada de decisão: a) atender às necessidades dos financiadores
de campanha, pois devido à variedade de candidatos de cada eleição,
os que se destacam são os que podem fazer as melhores campanhas;
b) a necessidade de atender a parcela da população que o elegeu –
seu eleitor mediano –, chamada de base eleitoral, que pode ser con-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 243

centrada geográfica, social, profissional e idelogicamente, ou disper-


sa; e c) atender à ideologia pessoal, como crenças e idiossincrasias.
O eleitor mediano ou política pública mediana encontra-se em
posição mediana dentro da configuração de preferências do eleito-
rado que o político quer agradar. No entanto, o eleitor é doutrinado
para manter certos valores hegemônicos da elite política consolida-
da, pois, antes de ser eleitor, políticas públicas já haviam sido escri-
tas para modelarem seus valores. Tais políticas são e epistemicidas,
porque a elite política é formada predominantemente por homens
brancos, de cosmovisão ocidental e cristã.83 Lindblom (1981, p. 105),
em sua obra O processo de decisão política, explica:

[...] pode-se duvidar de que toda homogeneidade resulte do con-


dicionamento deliberado da vontade, da doutrinação, alegando que
as pessoas têm as mesmas necessidades básicas, e portanto, deixa-
das a si mesmas, reivindicarão as mesmas coisas, de modo geral.
Esta opinião confunde as necessidades básicas com as opções polí-
ticas. Não há dúvida de que em toda a parte as pessoas precisam de
alimento, de proteção, de uma sociedade. A semelhança biológica
determina preferências comuns, neste nível de generalidade. Con-
tudo, já observamos que as complexidades da cultura, da história,
da tecnologia e da política criam formas inumeráveis de satisfação
dessas necessidades. Se as pessoas concordam a respeito das políti-
cas a seguir, é porque de algum modo foram ensinadas a concordar
com elas.

Segundo Queiroz (2017), houve toda uma articulação política e


jurídica, desde a primeira constituição, para negar a cidadania ple-
na para a população negra. Mills (1997, apud CARNEIRO, 2005)
caracteriza essa articulação como “contrato racial”, que é a estru-
turação de um sistema político não-nomeado que historicamente se
desenvolve dentro de outros sistemas políticos, a supremacia branca
(CARNEIRO, 2005, p. 47).

83  Na 55º Legislatura do Congresso Nacional, de acordo com uma pesquisa feita
pelo Portal de Notícias G1, de 421 (quatrocentos e vinte e um) deputados dos
513 (quinhentos e treze) que compõem a Câmara dos Deputados, 390 (trezentos
e noventa) declararam seguir valores judaico-cristãos.
244 | Nailah Neves Veleci

A supremacia branca ou, em outras palavras, o racismo, pode ser


considerada um sistema político, segundo Mills, porque correspon-
de a uma estrutura de poder formal e/ou informal, onde há diversos
privilégios para um grupo, sendo, um deles, a criação de “normas
para a distribuição diferencial de oportunidades e da riqueza mate-
rial, de benefícios e encargos, direitos e deveres” (MILLS, 1997, p. 3,
apud CARNEIRO, 2005, p. 47).
O contrato racial seria uma subcategoria do contrato social clás-
sico. Este último, quando criado, foi fundamentado num acordo en-
tre governo e sociedade civil, compostos por indivíduos considera-
dos iguais. Mas a fundação dos países que passaram pelo processo de
colonização teve, como um dos pilares, a desumanização de alguns
povos. Portanto, o contrato social desses países foi assinado apenas
pelos colonizadores, que eram a elite branca. A sustentação desse
contrato é feita por meio da violência, necropolítica (MBEMBE,
2016), pois os não assinantes desse contrato, que vivem sob o do-
mínio que ele contempla, devem ser subjugados. Então, para Mills
(1997, p. 13-14, apud CARNEIRO, 2005, p. 48):

[...] o Contrato Racial estabelece, sob a égide de um contrato social


ideal e supostamente neutro, ‘uma sociedade organizada racialmen-
te, um Estado racial e um sistema jurídico racial, onde o status de
brancos e não-brancos é claramente demarcado, quer pela lei, quer
pelo costume. E o objetivo desse Estado, em contraste com o estado
neutro do contratualismo clássico, é especificamente o de manter e
reproduzir essa ordem racial, assegurando os privilégios e as van-
tagens de todos os cidadãos integrais brancos e mantendo a subor-
dinação dos não-brancos.

A forma de assegurar os privilégios da branquitude e manter a


subordinação dos não brancos é através do epistemicídio dos povos
negros e indígenas. É impedindo que esses povos adquiram conhe-
cimento para criticar e reivindicar mudanças dessas estruturas que
mantêm a branquitude no poder. Essa estrutura se mantém, porque
há investimento em políticas colonizadas e epistemicidas.
Assim, o ativismo de parlamentares neopentecostais contra
as religiões afro-brasileiras é um dos grandes desafios atuais para
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 245

garantia de direitos desse grupo. Os obstáculos expostos aqui são


interdependentes; juntos – educação que demoniza, juristas que si-
lenciam e legislativo que quer criminalizar –, são ferramentas que
formam uma opinião sobre as religiões afro-brasileiras para a socie-
dade, além de ferirem os direitos fundamentais dos povos de terrei-
ro. Assim, constituem-se obstáculos às tentativas de combater tais
violações de direitos, assim como outras violações que não foram
citadas nesta pesquisa.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No processo histórico pelo reconhecimento jurídico e social das


religiões afro-brasileiras, identificamos como secularmente tiveram
negado o reconhecimento como religião, como culto, como expres-
são cultural. Mais do que isso: elas foram criminalizadas, o que as
pressionou para o ocultamento e assimilacionismo cristão. Conse-
quentemente, o reconhecimento tardio como religião deixou resquí-
cios para seus apagamentos nas aplicações das leis, configurando
num racismo religioso estruturado na sociedade através da educa-
ção, da omissão da justiça e do ativismo do legislativo para novas
formas de criminalização.
Para demonstrar a violação de liberdade de consciência e de
crença dos afro-religiosos, falamos do ensino religioso e como, des-
de o início da educação no Brasil, este esteve presente nas escolas
em caráter confessional do cristianismo. Mesmo com a separação do
Estado e da religião, a Igreja Católica, predominantemente no pas-
sado, e as igrejas evangélicas na atualidade, apoiando o Movimento
Escola Sem Partido, vêm fazendo lobby para manter essa hegemonia.
Tratando das violações da proteção dos locais de culto, identifi-
camos as várias estratégias adotadas pelas religiões afro (direitos re-
ligiosos – organização ou associação religiosa – e direitos culturais –
patrimônio cultural ou povos tradicionais) para manter seus terrei-
ros, que não eram contemplados com imunidade tributária, porque
não têm suas particularidades reconhecidas como de uma religião
devido à interpretação das leis que tem, como base, apenas padrões
246 | Nailah Neves Veleci

cristãos de classificação em seus manuais jurídicos. Há também as


burocracias exigidas para o registro como organização religiosa e/
ou associação religiosa, que cobram informações que poderiam au-
toincriminar as religiões afro-brasileiras. Esses padrões e a não pro-
blematização da cobrança dessas informações são consequências do
ensino que tiveram os legisladores e aplicadores das leis, bem como
do longo processo de ocultação pela sobrevivência das religiões
afro-brasileiras, estratégias necessárias até hoje devido ao alto risco
que os povos de santo sofrem ao entregarem seus endereços para o
Estado ou para a sociedade que ainda os demonizam.
Por último, para exemplificar as violações contra o livre exercí-
cio dos cultos, temos a discussão sobre os projetos de leis que proí-
bem o sacrifício de animais em rituais religiosos. Buscou-se, nessa
parte, mostrar como esses projetos de lei só criminalizaram as re-
ligiões afro-brasileiras – não sendo aplicados, da forma como estão
escritos, a nenhuma outra religião –, mostrando o racismo religioso
por trás desses projetos.
Também identificamos uma semelhança de estratégia institu-
cional adotada pelos parlamentares, tanto nos projetos Escola Sem
Partido quanto nos de proibição de sacrifício de animais em rituais
religiosos, que foi a adaptação do projeto após debates ao nível muni-
cipal e estadual, para chegar ao nível federal de forma mais aceitável,
utilizando conceitos aparentemente universalizantes, mas que, devi-
do às questões estruturais de racismo já apresentadas, prejudicam os
afro-religiosos. Outra semelhança é que os propositores de ambos os
projetos pertencem à bancada evangélica de seus parlamentos.
Na nossa análise, observa-se que o racismo religioso que as reli-
giões afro-brasileiras sofrem ocorre porque são instituições contra-
-hegemônicas, estando fora do processo circular para a manutenção
da cosmovisão colonizada e colonizadora do sistema de supremacia
branca. O processo circular molda o pensamento sociopolítico e cul-
tural por meio de leis e políticas colonizadas que beneficiam apenas
um grupo nas escolas e, em contrapartida, marginalizam os demais.
Consequentemente, a sociedade internaliza o aprendizado e reprime
as diferentes cosmovisões, fazendo estas se ocultarem para sobrevi-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 247

ver. Os representantes políticos, por sua vez, na busca do eleitor me-


diano, compram e representam essa cosmovisão hegemonicamente
ensinada, promovendo políticas públicas que as privilegiam, impon-
do novamente, na construção social da população, aspectos culturais
e sociais específicos, que são colonizados e epistemicidas.
Acredito que a forma mais eficaz de garantia de direitos das
religiões afro-brasileiras é a ocupação de cargos de poder para im-
plementação de políticas educacionais e estruturais que valorizem
a cosmovisão de matriz africana, assim como fizeram com o poder
Executivo, na criação da política de governo dos povos e comuni-
dades tradicionais. O respeito aos direitos só é possível com uma
mudança sociopolítica e cultural na sociedade brasileira.

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248 | Nailah Neves Veleci

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9
REFLEXÕES SOBRE A DISCRIMINAÇÃO
ÉTNICO-RACIAL PRATICADA CONTRA
POVOS E COMUNIDADES DE TERREIRO
E SUAS INTERAÇÕES COM O SISTEMA
DE JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA EM
SÃO LUÍS DO MARANHÃO

Jorge Alberto Mendes Serejo84

Em sua clássica obra O Atlântico Negro, Paul Gilroy (2012) me-


taforiza as mediações do sofrimento através de sistemas vivos, mi-
croculturais e micropolíticos em movimento, que conectaram luga-
res fixos de povos africanos dispersos nas estruturas de sentimento,
produção, comunicação e memória da diáspora. A desterritorializa-
ção sistemática, banhada nas águas do oceano na tormentosa traves-
sia, foi preservada no conjunto deletério das narrativas da escravi-
dão, mas ao mesmo tempo viabilizou recomposições e ressignifica-
ções nas Américas e no Caribe.
Nesse contexto, indubitavelmente, o recurso ancestral à espiri-
tualidade, que ensejou o surgimento de religiões de matrizes africa-
nas, tem servido de motriz ao longo dos últimos cinco séculos para
resistências a formas de apagamentos que insistiam (e insistem) em
afirmar que o verdadeiro, o bom e o belo possuíam origens distintas
e pertencentes a domínios diferentes das cosmologias trazidas pelo

84  Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade


Federal do Maranhão (UFMA). Professor do Departamento de Direito da
UFMA (2018-2020), do Centro Universitário Dom Bosco (UNDB) e do Instituto
de Ensino Superior Franciscano (IESF). Advogado.
251
252 | Jorge Alberto Mendes Serejo

atlântico negro, pois como lembra Aníbal Quijano (2005), as no-


vas identidades históricas engendradas pela modernidade, mediadas
pela noção de raça, legaram o controle da subjetividade, da cultura
e, em especial, do conhecimento.
A referência a essa terrível travessia introduz importante ques-
tão, isto é, como a memória deletéria da escravidão impulsionou,
mais adiante, a formas de emancipação genuínas, inclusive através
de mediações no campo das normas jurídicas produzidas pelo Esta-
do brasileiro. Em terra firme, seres humanos vitimados pelo “ver-
tiginoso conjunto” (MBEMBE, 2014) da escravidão constituíram,
nas teias da sociedade, novos “territórios sociais” (LITTLE, 2003),
a exemplo dos terreiros, para demonstrar que a diáspora não foi
apenas uma forma de dispersão, exílio e escravidão, mas sobretudo o
ponto de partida de processos de ruptura, que vêm afirmando novas
bases identitárias e, através delas, postulando o reconhecimento das
suas especificidades.
Tomando por base o pressuposto das territorialidades engen-
dradas pelos povos e comunidades de terreiro, inseridos na macroca-
tegoria “povos e comunidades tradicionais”, o presente trabalho em-
preende revisão bibliográfica sobre a matéria para investigar como
“processos de territorialização” (ALMEIDA, 2008) desencadeados
por essas “unidades de mobilização” (ALMEIDA, 2008) destaca-
ram-se dos demais movimentos negros e assumiram específicas “lu-
tas jurídicas localizadas” (SHIRAISHI NETO, 2009), influenciando
a constituição de categorias jurídicas próprias no ordenamento pá-
trio no contexto das lutas pela igualdade racial.
Esses conceitos se entrelaçam no texto com categorizações re-
lacionadas às tensões raciais no Brasil, possibilitando-nos avançar
para entender a realidade local, à medida que servem para explicar
casos de discriminação étnico-racial como o que envolveu o Ilê Axé
Oya Sapatá, em São Luís do Maranhão, no ano de 2016. A apresen-
tação do caso e seus desdobramentos ilustram o objetivo deste ar-
tigo, qual seja, o de discutir as interações dos povos e comunidades
de terreiro com o sistema de justiça e segurança pública, em suas
disputas contra-hegemônicas no campo jurídico.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 253

1 DISPUTAS POR CATEGORIAS JURÍDICAS ESPECÍFICAS

Se, de um lado, a experiência da diáspora do Atlântico negro


significou a brutal desterritorialização de milhões de seres huma-
nos convertidos em objetos na escravidão, de outro, viabilizou não
apenas o compartilhamento de diferentes pensamentos de origem
africana, mas também a combinação das cosmologias ancestrais com
aspectos dos imaginários religiosos cristãos e do pensamento ame-
ríndio, o que, em seu conjunto, deu origem a novas formas cogni-
tivas, perceptivas, afetivas e de organização social, como que uma
recomposição, em novas bases “de territórios existenciais aparen-
temente perdidos, do desenvolvimento de subjetividades ligadas a
uma resistência às forças dominantes que nunca deixaram de tentar
sua eliminação e/ou captura” (GOLDMAN, 2015, p. 643).
Essas reterritorializações, frutos de lutas históricas pela afirma-
ção de identidades, deram origem às diversas formas de expressão
das religiosidades e matriz africana, que no século XX converte-
ram-se, também, em unidades de mobilização política no conjunto
dos movimentos negros para o enfrentamento ao racismo, o ponto
central das sociabilidades perversas e excludentes decorrentes da
escravidão, oficialmente extinta no Brasil há 132 anos.
Os “navios” raciais continuaram em movimento ao longo dos
tempos, mas a partir dos anos 1970, no bojo das redefinições do
campo político brasileiro, “novos movimentos” (HOBSBAWM,
1995) passaram a impor agendas diferenciadas e específicas ao Es-
tado, como a contestação da ideia de democracia racial. Na pauta do
recém-criado Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial
(MUCDR), que depois se transformaria no Movimento Negro Uni-
ficado (MNU), o problema da discriminação racial era “a categoria
central na nova gramática política desse movimento, quando con-
traposta aos ciclos de mobilização anteriores, que tinham no precon-
ceito de cor o seu eixo argumentativo”, segundo Flávia Rios (2012,
p. 44). A mudança acenava não apenas para uma questão de ordem
simbólica, mas também para transformações concretas na sociedade.
254 | Jorge Alberto Mendes Serejo

Naquele momento, o movimento negro estava influenciado pelos


movimentos de esquerda, pelo novo sindicalismo e pelo movimen-
to estudantil. Desse modo, a luta antirracista dialogou e concorreu
com diversas tendências políticas e sociais, muitas delas incorporan-
do a pauta negra, mas, “a despeito dessa circulação intensa, havia o
desafio central para esse ativismo: a defesa da autonomia frente às
demais organizações da sociedade civil” (RIOS, 2012, p. 47). Ou-
trossim, ao lado dessa diferenciação, havia uma segunda clivagem
no seio do movimento social (negro) que particularmente interessa
a este trabalho: o movimento de territorialização do povo de terreiro
ou povo de santo.
Todavia, de acordo com Ronaldo Sales Júnior (2009, p. 120), a
racialização do discurso político, que não identificava as religiões
de matriz africana inseridas na luta antirracista, muda ao ocorrer
dos anos oitenta e noventa do século XX, “quando as lideranças das
entidades negras enfatizarão e tornarão público o discurso da cons-
trução de uma identidade negra e de sua politização perpassando o
mundo afro-religioso”.
Para o autor, o candomblé, por exemplo, era articulado ao dis-
curso político como suporte histórico da resistência cultural e à so-
brevivência das tradições ligadas à diáspora africana, mas não como
estratégia de ação ou sujeito político autônomo, pois “as religiões
afro-brasileiras eram fonte simbólica para uma ancestralidade co-
mum, mas não constituíam um ponto programático, pois estariam
distantes de uma ação política concreta” (SALES JUNIOR, p. 120).
Os anos 1980 caminharam para um conjunto de demandas da
agenda política dos “movimentos negros” (SALES JUNIOR, 2009,
p. 122): a) composição de contranarrativas; b) estabelecimento de
vínculos com as tradições de origem africana e com outras tradições
de afrodescendentes da diáspora africana; c) construção da identida-
de da pessoa negra como afrodescendente; d) denúncia e enfrenta-
mento à discriminação étnico-racial.
Naquele contexto histórico, a luta que se desdobrou em novas
estratégias de mobilização, representadas pelos novos movimentos
sociais, em especial o movimento negro, levou ao alicerce do progra-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 255

ma constitucional de 1988, que condenou expressamente o racismo


(art. 5º, XLII), regulamentado um ano após pela Lei n. 7.716 (Lei
“Caó”), aplicada às discriminações pautadas em raça, cor, etnia, reli-
gião e procedência nacional.
O paralelo traçado aqui entre o movimento negro e o movimen-
to de terreiro, como modalidades de “movimentos negros” (SALES
JUNIOR, 2009; GILROY, 2012), é importante para demonstrar que
a luta contra o racismo, consubstanciada juridicamente na Cons-
tituição de 1988 e a Lei Caó, foi um ponto de toque da agenda dos
movimentos de matriz africana no Brasil, pois “a criminalização do
racismo e a utilização da Lei Caó tornaram-se formas importantes
de visibilização e publicização do racismo e das lutas por sua erradi-
cação” (SALES JUNIOR, 2009, p. 125).
Mas não foi a única agenda, por óbvio. Com a influência da Con-
venção n, 169 da OIT, o que se assistiu foi um intenso processo de di-
ferenciação política que, no caso do movimento de terreiro, resultou
na constituição de “processos de territorialização” que resultaram
de uma conjunção de fatores e de mobilizações “em torno da política
de identidade, e um certo jogo de em que os agentes sociais, através
de suas expressões organizadas, travam lutas e reivindicam direitos
face ao Estado” (ALMEIDA, 2008, p. 118), e com eles a eclosão de
“lutas jurídicas localizadas”, conceito operacional esboçado por Shi-
raishi Neto (2009, p. 143) para explicitar os “processos de mobiliza-
ção dos povos e comunidades tradicionais em torno das discussões
jurídicas”. Novas condutas territoriais de povos tradicionais criaram
um espaço político próprio e a luta por novas categorias territoriais
virou um dos campos privilegiados para disputas jurídicas.
Dentro dessa perspectiva, foi a partir da Constituição de 1988
que o Estado projetou os rasgos de uma nova semântica para pro-
teger, de modo especial, as manifestações culturais dos povos ori-
ginários e de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional (art. 215), e a constituir, no patrimônio cultural brasileiro,
os modos de criar, fazer e viver referentes à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira
(art. 216).
256 | Jorge Alberto Mendes Serejo

Na vasta abrangência possibilitada pelas lutas sociais, Alfredo


Wagner (2008, p. 96-97) lembra que, ao lado da politização da na-
tureza levada a cabo pelos povos da floresta e do cerrado, houve
uma “politização de fatores religiosos”, que se expressaram através
do conteúdo das leis aprovadas. Tais deslocamentos de ações e es-
tratégias para o plano jurídico, especialmente para a elaboração e
proposição de leis locais, serviram “para reconhecer para reconhecer
a existência social dos grupos sociais e, sobretudo legitimar as suas
ações” (SHIRAISHI NETO, 2009, p. 151). Nesse tom, é de se desta-
car que, ainda hoje, o Decreto n. 6.040/0785 é um marco importante
na definição legal aplicada aos mais variados povos e comunidades
tradicionais no Brasil.
Assim, o movimento de terreiro, enquanto unidade de mobili-
zação política, passa a ganhar mais visibilidade dentro dos instru-
mentos normativos do Estado a partir dos anos 2000, quando sur-
giram vários instrumentos legais, dentre os quais o Plano Nacional
de Promoção da Igualdade Racial (PLANAPIR), pelo Decreto n.
6.872/09, cujo eixo 8 está voltado para comunidades tradicionais de
terreiro; também o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/10),
como um dos mais importantes instrumentos a serviço da proteção
das religiões de matriz africana, pois traz um capítulo específico (III)
sobre o conteúdo do direito à liberdade de consciência e de crença ao livre
exercício dos cultos religiosos de matriz africana, com conceitos jurídi-
cos e a obrigatoriedade de adoção, pelo poder público, de medidas
necessárias ao combate à discriminação ético-racial, definida no art.
1º, inc. I, como:

Toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça,


cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto
anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igual-
dade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais
nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer ou-
tro campo da vida pública ou privada. (BRASIL, 2010).

85  Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e


Comunidades Tradicionais.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 257

Tais dispositivos se relacionam à visão que esses movimentos


imprimiram às práticas religiosas de matriz africana desde 1970.
Mais do que o anseio pela proteção da liberdade religiosa em seu
sentido amplo, o que se verificou foi a assunção de um discurso po-
lítico de afirmação de “territorialidades diaspóricas” (SALES JU-
NIOR, 2009) para além de uma visão liberal de liberdade religiosa,
pois, com a noção de povos e comunidades de terreiro, essas unida-
des de mobilização deixaram mais evidentes, aos olhos da sociedade
e do Estado, que mais que templos religiosos, os terreiros são terri-
tórios que “re-ligaram” as memórias dispersas legadas pelo Atlânti-
co negro aos longo dos séculos, como que um continuum civilizatório
de viés étnico-racial dotado de agendas metarreligiosas.
Nesse sentido, o I Plano Nacional de Desenvolvimento Susten-
tável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana
(2013-2015), instituído pela Portaria n. 15/2013, fruto dessas inten-
sas movimentações, simboliza o reconhecimento formal do Estado
Brasileiro de que o “status da identidade étnica, o poder do naciona-
lismo cultural e a maneira pela qual as histórias sociais [foram] cui-
dadosamente preservadas do sofrimento etnocida podem fornecer
legitimação ética e política” (GILROY, 2012, p. 387).
O deslocamento de referenciais simbólicos do Atlântico negro
constituiu as subjetividades que se entrelaçam em uma unidade de
mobilização pela defesa do território étnico-religioso. O terreiro/
território faz, das nações, “um patrimônio simbólico, espaços para
percursos nômades, dessencializados” (ANJOS, 2006, p. 23), o que
parece paradoxal aos esquemas ocidentais de pensamento, sobretu-
do os jurídicos, porquanto não se trata apenas de um espaço físico,
mas da ideia do “contínuo civilizatório africano no Brasil” decorren-
te desses “corpos nômades” (ANJOS, 2006) desterritorializados e
reterritorializados: “a memória, no ato de reconhecer uma origem,
estabelece delimitações, coloca o passado sobre o presente, cria um
‘nós, os da origem’” (ANJOS, p. 46).
Dentro desse processo de territorialização dos povos de terrei-
ro, que gerou o reconhecimento formal do Estado nos anos anterio-
res, foi projetado, em 2016, o II Plano Nacional. De fato, à época, a
258 | Jorge Alberto Mendes Serejo

SEPIR editou a Portaria n. 180, de 12 de abril de 2016, criando o


Comitê Executivo de Políticas para Povos e Comunidades Tradi-
cionais de Matriz Africana e de Terreiros, com a finalidade de ela-
borar, monitorar e avaliar o II Plano Nacional de Políticas para Po-
vos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e de Terreiros
(2016-2019).
Porém, 2016 foi emblemático no Brasil. Naquele ano, o pacto
antipopular e inconstitucional que depôs a presidenta da República
legitimamente eleita, mais que a mera alteração de comando no Pla-
nalto, significou um processo de articulação de setores da sociedade
brasileira, da grande mídia, da política e do sistema de justiça, para
recalcar conquistas históricas impostas ao Estado brasileiro desde
as últimas décadas do século XX pelas minorias e pelos chamados
novos movimentos sociais, como os referidos aqui.
As consequências mais duras seriam sentidas dois anos depois,
com o agravamento das tensões políticas que levaram à hiperpola-
rização da sociedade brasileira, à naturalização de ódios raciais, de
classe e de gênero, com a vitória eleitoral de uma agenda ultracon-
servadora que, a um só tempo, reivindica o fanatismo religioso, o mi-
litarismo das instituições civis, o revisionismo histórico e a negação
das contradições seculares do país.
Foi em 2016 que o Disque 100 (BRASIL, 2016a) registrou va-
riação de 5.060% nos registros de casos de discriminação religiosa,
considerado o marco inicial de 2011, quando os dados começaram
a ser compilados. Os relatórios extraídos da página oficial possibili-
taram o recorte por “religião das vítimas” e, dos marcadores regis-
trados no canal como atinentes aos povos de terreiro, figuram “afro
indígenas”, “candomblé”, “matriz africana”, “quimbanda” e “umban-
da”. Somadas, essas categorias apontam que 23,5% dos registros de
violência informados no canal foram praticados em face de religiões
de povos de terreiro, o que corresponde a aproximadamente 1/4
(um quarto) do total.
Esses achados obviamente não expressam a totalidade dos acon-
tecimentos reais, mas não devem ser ignorados, visto que o Disque
100 tem sido um importante aferidor para as políticas de direitos
humanos e igualdade racial. Todavia, seus dados devem ser anali-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 259

sados no contexto sociopolítico aqui assinalado, pois, consoante ve-


remos, nos anos que se seguiram, o padrão de violência se manteve,
com forte tendência a aumentar se considerarmos os arranjos insti-
tucionais do Brasil atual, como o esvaziamento das instâncias de re-
presentação dos povos e comunidades tradicionais, consubstanciado
no Decreto Federal n. 9.759, de 11 de abril de 2019.86
Essa discussão se reflete também localmente, a despeito de me-
diações políticas inauguradas no Maranhão a partir de 2015. Apre-
sentaremos, no presente trabalho, um grave caso de violência contra
a comunidade do terreiro Ilê Axé Oya Sapatá, tambor de mina loca-
lizado no bairro Anjo da Guarda, em São Luís do Maranhão. O caso
possui características comuns aos registros de casos gerais sobre a
violência contra agrupamentos religiosos pelo país afora, mas, no
presente trabalho, pretendemos demonstrá-lo também como pano
de fundo para outras discussões emergentes sobre direitos de povos
e comunidades de terreiro.
Em 2016, o terreiro de tambor de mina do babalorixá Francisco
de Assis Moraes, mais conhecido com Pai Tico, passou a ser alvo de
constantes reclamações de vizinhos recém-chegados. Dessas recla-
mações, o caso foi à delegacia de polícia do bairro e, de lá, encami-
nhado a um dos juizados criminais do Termo Judiciário da Comar-
ca da Ilha de São Luís do Maranhão. No percurso, após sucessivas
ações discriminatórias, Pai Tico foi transformado em suspeito da
prática de ilícitos penais, algo que afetou toda a comunidade.
A partir desse caso, discutiremos algumas interações históricas
entre sistemas de justiça e segurança pública e os povos e comuni-
dades de terreiro em São Luís do Maranhão, bem como questões re-
lativas a recentes estratégias de territorialidade dessas unidades de
mobilização locais em torno de questões concretas que lhes afetam,
sobretudo no tocante à limitação dos horários de culto religioso,
cobrança de taxas policias para festividades, bem como fiscalizações
de atividades relativas às suas práticas ancestrais e seus modos de
vida tradicionais.

86  Decreto que limita e extingue dezenas de órgãos colegiados de participação


popular no âmbito da administração pública federal.
260 | Jorge Alberto Mendes Serejo

2 DE VOLTA AO PASSADO: O CASO DE PAI TICO

O Ilê Axé Oya Sapatá, comandado por Pai Tico nos últimos 29
anos, tem 45 anos de existência na mesma localidade, nunca tendo
sido alvo de quaisquer intromissões. Em visita que fizemos por oca-
sião de investigação sobre o caso, em 2017, verificamos que Pai Tico
mantém forte vínculo com a comunidade, pois, durante a entrevista
que nos concedeu, várias vezes foi interrompido por filhos de santo
que vinham lhe pedir bênçãos. Esses vínculos são fortalecidos com
a afirmação de que as pessoas do bairro, membros ou não da casa,
costumam procurá-lo para práticas religioso-curativas, tais como
benzimentos, remédios naturais, banhos etc.
As características daquele território rompem com noções a que
as nossas sociedades hegemônicas estão habituadas. Como lembra
José Carlos G. dos Anjos (2006, p. 40), o terreiro, enquanto espaço
reterritorializado de matriz africana, relativiza a noção de proprie-
dade privada, algo que, para o conhecimento jurídico, comporta pou-
cas variações. Aquele espaço não é mais privado, mas também não
chega a ser essencialmente público: primeiro, porque esse território
tem sua sede física muitas vezes na própria residência do babalorixá
ou da yalorixá; depois, a própria família da liderança é indefinida en-
tre o “grupo corporado e uma rede aberta de relações interpessoais”.
O ilê do Pai Tico possui essas mesmas características, comuns,
aliás, à maioria dos terreiros no Maranhão. A moradia ocupa o me-
nor dos compartimentos, sendo o “barracão” a parte que toma quase
a totalidade do imóvel. Filhas e filhos de santo também se alojam
no local. Ao contrário do que o imaginário social cristão compõe em
termos de celebração litúrgica, o modo de funcionamento e organi-
zação de um terreiro não pode ser entendido da mesma forma que o
espaço físico de uma igreja cristã, e muito menos, como neste caso,
suas celebrações serem entendidas como “festas” de folclore popular.
Nas festividades do Divino Espírito Santo daquele ano, vizinhos
recém-chegados no bairro Anjo da Guarda87 passaram a reclamar do
mastro que tomava as calçadas e da “zoada” que provinha do terrei-
87  Segundo dados da Secretaria Extraordinária de Igualdade Racial (SEIR),
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 261

ro. Diante da impossibilidade de parar as celebrações, em virtude de


obrigações religiosas, Pai Tico manteve seu calendário.
Ocorre que os mesmos vizinhos registraram boletim de ocor-
rência na Delegacia de Polícia do bairro, o que gerou uma diligência
para ouvir Pai Tico. Na audiência, o delegado tentou uma compo-
sição entre as partes no sentido de limitar os horários do culto e/
ou interromper os sons que de lá provinham. Em um primeiro mo-
mento, Pai Tico “suspendeu o barulho”, mas não tendo sido possível
a completa paralisação das atividades, os denunciantes retornaram
dia 06 de outubro de 2016 para consignar, em outra ocorrência, o
“barulho insuportável, procedente de tambores, cachaça, gritos, vin-
dos do tambor de propriedade do autor” (MARANHÃO, 2016c, p.
7), provocado por Pai Tico, já alcunhado no depoimento como “vul-
go Tico”.
Tais denúncias configuraram, para a autoridade policial, a ocor-
rência das contravenções de perturbação do trabalho ou sossego
alheio, perturbação da tranquilidade (arts. 42 e 65 do Decreto-lei n.
3.688/41, respectivamente) e perigo para a vida ou saúde de outrem
(art. 132 do CP). Em seu termo de declaração da ocorrência, os co-
municantes informaram que:

Ao lado da casa da declarante, existe um terreiro de MACUMBA


[destaque da fonte], pertencente ao elemento conhecido por
TICO; QUE no local, há muito tambor, cachaça, gritos, entra
e sai de bebidas alcoólicas, e um entra e sai de várias pessoas
vestidas de branco e vermelho, um cheiro insuportável de quei-
ma de incensos, acendimento de velas; QUE porém o que mais
perturba, causa desassossego é o barulho dos tambores, dos gri-
tos; QUE várias vezes conversou com TICO, de forma amigável
para ele diminuir a zoada, o barulho, e até atendia de forma
educada; QUE alguns dias depois ele recomeçava; QUE, por tudo
isso, a declarante esteve nesta Delegacia; QUE na primeira vez, há
mais ou menos três meses, esteve nesta Delegacia, onde fez uma
acordo verbal, e ele suspendeu o barulho, mas as reuniões conti-
nuava [sic] de forma ordeira; QUE nada tem contra a religião

“Projeto Mapeando Terreiros” (2011), a área do Itaqui-Bacanga, em que se


localiza o Anjo da Guarda (bairro do Ilê Axé Oyá Sapatá), é a localidade de
maior concentração de terreiros em São Luís. À época, foram identificados 47
(quarenta e sete) terreiros em 36 (trinta e seis) bairros.
262 | Jorge Alberto Mendes Serejo
dele ou de qualquer outra pessoa; QUE com as proximidades das
eleições, TICO recomeçou a zoada e o barulho, alegando que es-
tava autorizado pela advogada dele, inclusive soube que ela estava
aqui nesta Delegacia, sem a intimação da declarante para participar
da audiência; QUE vários objetos são jogados para a casa da decla-
rante (MATRACAS, GARRAFAS, BOLAS DE FERRO); QUE em
consequência disso, os filhos da declarante reagiram, e a declarante
ficou com medo de acontecer uma tragédia, ou eles serem mortos,
ou matarem a TICO. (MARANHÃO, 2016c, p. 8-9). (Grifou-se).

A denúncia se assemelha àquelas denúncias e notícias de jornais


de casos de polícia dos finais do séc. XIX, quando os Códigos de Pos-
tura Municipais não reconheciam as práticas “mágico-religiosas-cu-
rativas” (SCHRITZMEYER, 2004) de cultos afro (o catolicismo era
a religião oficial), como foi o caso de Amélia Rosa, negra alforriada,
alcunhada de “rainha da pajelança”, presa em São Luís em 1876 acu-
sada de sevícia.88
De acordo com Mundicarmo Ferreti (2015, p. 18), no séc. XIX,
o negro era envolvido com atividades bastante discriminadas e re-
primidas, fossem elas religiosas, como o curandeirismo e a pajelan-
ça, fossem profanas, como danças, caboclo, congo, bumba, chegança,
entre ouras. Essas questões povoavam o cotidiano do Maranhão nos
jornais, a exemplo de excerto do Dário do Maranhão de 1889:

DANÇA DE TAMBOR

É intolerável o barulho que, todos os sábados, pelo menos, das 10


horas da noite e diante até á manhã de domingo, fazem os dançan-
tes de tambor o areal próximo do sítio Dous Leões. É tanta a alga-
zarra que os vizinhos não podem dormir, e se conseguem conciliar
o somno em algum pequeno intervalo de descanço, despertam logo
depois sobressaltados.

88  “Embora não tenha sido processada por ser fundadora de uma religião afro-
brasileira ou de um terreiro, nos autos do processo há referência – nas reuniões
por ela realizadas – à dança, ao canto (às vezes em língua incompreensível) e a
transes com entidades espirituais (como Rei Sebastião)” (FERRETI, 2015, p. 17).
Os autos do referido processo podem ser encontrados, na íntegra, reproduzidos
no trabalho organizado pela antropóloga Mundicarmo Ferreti (2004), Pajelança
no Maranhão no século XIX: o processo de Amelia Rosa.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 263
Pedem-nos que, para o abuso, chammemos a attenção da aucto-
ridade competente, pois, se é justo e natural que se divirtam
ou brinquem e dansem, é de rigoroso dever procurarem logar
afastado, onde não possam en commodar, e não ali que é fre-
quentado e tem, nas proximidades, muitas famílias [...]. (DANÇA,
1889, apud FERRETI, 2015, p. 18). (Grifou-se).

A correlação entre as falas dos depoentes, a denúncia do jornal


do séc. XIX e a capitulação legal da conduta de Pai Tico não é em
vão. Demonstra a vitalidade das sociabilidades que codificaram dife-
renças no Brasil calcadas no terror racial engendrado pelo Atlânti-
co negro nestes últimos três séculos. Ao qualificar como “barulho”,
“zoada” – e, em uma visão distorcida, inclusive, o escrivão de polícia
que consignou em caixa alta o termo “MACUMBA”, como aquela
reunião de “várias pessoas vestidas de branco e vermelho”, “insu-
portável queima de incensos”, “acendimento de velas”, “zoada” –, os
declarantes mobilizam, consciente ou inconscientemente, toda uma
gama de memórias que negam e descaracterizam as possibilidades
dos cultos de matriz africana. Ademais, lembram-nos o Código Pe-
nal Republicano, Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, que es-
tabeleceu reprimendas ao espiritismo (art. 157) e ao curandeirismo
(art. 158).
Essas falas também demonstram o desconhecimento das gnoses
representadas pelas formas de expressão de outros grupos forma-
dores da sociedade brasileira, protegidos pelo art. 216 da Constitui-
ção Federal, e do conteúdo étnico do direito humano à liberdade de
consciência e de crença, e ao livre exercício dos cultos religiosos de
matriz africana definido pelo Estatuto da Igualdade Racial, como se
se pudesse manter em funcionamento uma lógica interna da colo-
nialidade que institui uma hierarquização religiosa sob o manto da
liberdade e da igualdade jurídica formais.
Em outro trecho da ocorrência policial, lemos:

QUE TICO alega que quando a declarante chegou ao local, “ele


já estava lá fazendo o que faz até hoje”; QUE volta a dizer que
nada tem a ver com a relegião [sic] dos Evangélicos, Católicos,
Umbandistas e assim por diante, porém, “as atividades de qual-
264 | Jorge Alberto Mendes Serejo
quer pessoa não podem lesar os direitos dos outros, principalmente
o sossego”, inclusive dentro de uma área residencial, e até altas ho-
ras da noite e da madrugada, como é o caso de TICO, que alega ter
uma missão; QUE na audiência, TICO foi orientado pelo Dele-
gado a procurar um advogado, a fim de melhor esclarecimento
sobre a questão da zoada; QUE em nenhum momento na primeira
audiência foi tratada a questão da religião, mas tão somente do ba-
rulho, da zoada [...] .(MARANHÃO, 2016c, p. 8-9). (Grifou-se).

Um dos fatores de mobilização dos povos de terreiro nas últimas


décadas foi a luta contra a discriminação étnico-racial, como vimos.
Podemos visualizar, no trecho aqui selecionado, um dado importan-
te, que cunhou as barras da engrenagem racial no Brasil: o racismo
se dá pela sua negação – a negação das práticas religiosas dos terrei-
ros pelo mecanismo de afirmação do respeito à liberdade religiosa.
O culto de Pai Tico possuiria elementos tidos como reprováveis, “ca-
chaça”, “gritos”, “entra e sai de bebidas alcoólicas”, “o barulho dos
tambores”, mas isso nada teria a ver com o preconceito étnico-racial
contra ele, pois “volta a dizer que nada tem a ver com a relegião
[sic] ou de qualquer outra pessoa, já que “TICO [...] alega ter uma
missão” (MARANHÃO, 2016c, p. 9).
Dessa maneira, a discriminação pautada em gnoses eurocêntri-
cas sobre o que pode ou não ser considerado uma prática religiosa,
espraia-se sobre os mais variados entendimentos calcados, sem dú-
vida, nas narrativas históricas da noção de raça, que não existe do
ponto de vista biológico, mas persiste como fenômeno social. No
caso brasileiro, a mestiçagem e o branqueamento da população ge-
raram uma espécie de “racismo à brasileira”, isto é, um racismo que
se esconde “por detrás de uma suposta garantia da universalidade
das leis, e lança para o terreno privado o jogo da discriminação”
(SCHWARCZ, 2012, p. 67).
Florestan Fernandes (2007) explica que o processo brasileiro
de exclusão social levou a uma “metamorfose do escravo”, em que o
“preconceito de cor” fazia as vezes das raças, tornando ainda mais
confusos os mecanismos de compreensão das discriminações. Logo,
o preconceito de cor passou a ser condenado sem reservas, “como
se constituísse um mal em si mesmo, mais degradante para quem o
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 265

pratique do que para quem seja sua vítima” (FERNANDES, 2007, p.


41), algo como um “preconceito de não ter preconceito”. No entanto,
os antigos ajustamentos discriminatórios mantiveram-se intocados,
encobertos e dissimulados no âmbito privado, ou seja, o padrão tra-
dicional de acomodação racial.
Em outras palavras, negar as possibilidades de auto-organiza-
ção envolvendo religiões cuja origem matricial é negro-africana e
afirmar que isso não significa discriminação, não passa de um típico
caso de discriminação, como se vê no registro de que “em nenhum
momento na primeira audiência foi tratada a questão de religião,
mas somente do barulho, da zoada” (MARANHÃO, 2016c, p. 1-2),
pois que o próprio delegado de polícia orientou Tico a procurar um
advogado, a fim de ter melhor “esclarecimento sobre a questão da
zoada”.
O deslizamento semântico aqui, do “esclarecimento”, é próprio
desse ato em que se nega e se reitera não se tratar, o caso, de dis-
criminação à religião (“questão de religião”), que poderia ser escon-
jurada pela fala autorizada de um advogado, de alguém do campo
jurídico cuja intervenção fosse no sentido de tornar “claro”, ou seja,
“menos barulhento”, “mais aceitável”, o tambor “negro” do Pai Tico.
Após o desenrolar desses fatos, Pai Tico ingressa no sistema de
justiça como suspeito da prática de fatos cuja intepretação levou a
autoridade policial da circunscrição a instaurar o Termo Circuns-
tanciado de Ocorrência n. 204/2016, com base no art. 42 da Lei de
Contravenções Penais (Decreto-lei n. 3688/1941), que versa sobre a
perturbação do sossego alheio; no art. 65 da mesma lei, perturbação
da tranquilidade; e por perigo para vida ou saúde de outrem, art. 132
do Código Penal.
Dessa maneira, o termo circunstanciado deu origem ao Pro-
cesso n. 824-84.2016.8.10.0020 (MARANHÃO, 2016c), distribuído
para o 3º Juizado Especial Criminal do Termo Judiciário da Comar-
ca da Ilha de São Luís. Nada obstante terem levado ao conhecimento
da autoridade policial o suposto cometimento de ilícitos penais, os
denunciantes, tendo sido informados do direito de representação do
266 | Jorge Alberto Mendes Serejo

art. 39, §1º do Código de Processo Penal, conforme os autos, decla-


raram não querer representar criminalmente.
Os autos foram encaminhados ao membro do Ministério Públi-
co, que asseverou não haver qualquer evidência de que tenha efeti-
vamente ocorrido o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem.
Quanto à perturbação da tranquilidade, acrescenta o parquet que não
se deu por “acinte ou motivo reprovável” (MARANHÃO, 2016c, p.
28), não tendo feito referência à religião. No que tange à perturba-
ção do trabalho ou sossego alheios, a Promotoria Criminal consi-
derou que sequer o tipo da LCP deveria ser aplicado, pois se que
encontrava revogado pelo art. 54 da Lei n. 9.605/98 (Lei de Crimes
Ambientais), isto é, a chamada poluição sonora, sendo matéria de
competência ambiental.
O promotor criminal pediu ao juízo o arquivamento do feito em
relação ao perigo para a vida ou saúde de outrem e a perturbação da
tranquilidade, mas em relação à perturbação do trabalho ou sossego
alheios, que fosse encaminhado ao promotor do Meio Ambiente. Em
poucas palavras, a magistrada da causa acolheu o pedido ministerial
para determinar o arquivamento quanto às duas primeiras imputa-
ções e encaminhou a subsistente ao órgão ministerial ambiental, o
qual entendeu que a autoridade policial se equivocou em encaminhar
capitulação legal revogada pela lei de crimes ambientais e que:

Desse modo, à notícia-crime da poluição sonora é indispensável a


realização de perícia que deve observar a existência de pessoas pre-
judicadas, ainda que por amostragem, e seguir a regra de avaliação
de ruídos com reclamantes. [...]

Ocorre que, no presente caso, apenas duas pessoas, residentes na


mesma casa, manifestaram incômodo com os ruídos advindos do
terreiro, sendo que ambas optaram em não apresentar represen-
tação criminal em face do proprietário do estabelecimento reli-
gioso. Na ausência de número significativo de pessoas cuja saúde
esteja possivelmente em risco, resta prejudicada a continuidade das
investigações, impondo-se o devido arquivamento. (MARANHÃO,
2016c, p. 45-46). (Grifou-se).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 267

Em face de tais circunstâncias, o procedimento foi arquivado.


Há que se ressaltar que, desde a delegacia até o pronunciamento do
Poder Judiciário, apenas o promotor ambiental considerou o terreiro
como local de prática religiosa. Esse elemento possui desdobramen-
tos legais importantes, como veremos.
No percurso entre a denúncia na delegacia de polícia da “zoada”
supostamente promovida por Pai Tico até a capitulação legal dos
crimes e contravenções em procedimento judicial, o que se verificou
foi a negação do mais básico dos direitos dos povos tradicionais de
terreiro, notadamente o direito de serem reconhecidos como tais.
A Convenção n. 169 da OIT, aplicável irrestritivamente aos povos
e comunidades tradicionais, estabelece como critério fundamental
dos povos tradicionais a autoatribuição e autorreconhecimento, não
cabendo à autoridade policial, juiz, promotor estabelecer requisitos
para a salvaguarda da integridade dos valores, práticas e instituições
desses povos.
Tal assertiva, à medida que desafia o poder simbólico de no-
meação do campo jurídico, promove uma “inversão da ordem de se
pensar o direito a partir da situação vivenciada pelos povos e comu-
nidades tradicionais, leva a uma ruptura com os esquemas jurídicos
pré-concebidos” (SHIRASHI NETO, 2007, p. 28), pois as fórmulas
jurídicas formais, abstratas e universais que sustentam o poder so-
berano se ligam a tecnologias de poder através do racismo, utilizado
pelo Estado de Direito para funcionar e gerir as liberdades, subme-
tem as minorias de hoje, tal qual os escravizados no passado, a uma
espécie de estado de injúria, “em mundo espectral de horror, cruel-
dade e profanação intensos” (MBEMBE, 2016, p. 131), em que há
direitos diferentes para diferentes categorias de pessoas.
Aqui, Pai Tico foi convertido em inimigo. No cálculo da gestão
das liberdades, o discurso de Pai Tico afirmando tratar-se, o que
chamavam de ‘barulho’ e da alegação de perturbação do sossego e
afetação da saúde de outrem, de sua religião, colide com uma ma-
cronarrativa que se expressa concretamente na colonialidade jurídi-
ca tradicional, parte de uma racionalidade do poder de gerar novos
preconceitos, reforçando os antigos, como se se resgatasse o anti-
268 | Jorge Alberto Mendes Serejo

go poder soberano do direito de matar, física e simbolicamente, os


inimigos; isto é, a “necropolítica” em potência, mediada pelos ecos
do “terror moderno” ainda decorrentes da escravidão (MBEMBE,
2016). Tudo isso acontece sob o manto do Programa Constitucional
de 1988.

3 LICENÇA POLICIAL PARA “FESTA”?

As formas de violência acima descritas, sejam elas sociais ou ins-


titucionais, foram reforçadas no caso pela exigência de documentos
para o funcionamento do Ilê do Pai Tico. Sugerimos que essa é uma
realidade que ocorre em todo o país, porquanto existe, de fato, um
desentendimento histórico sobre a natureza das práticas religiosas
ancestrais dos povos de terreiro.
Após as primeiras denúncias na Delegacia de Polícia, Pai Tico
foi surpreendido com a exigência de documentos para que manti-
vesse, de forma “autorizada”, o seu culto, “sob pena de prisão”, con-
forme depoimento prestado à Ouvidoria da Defensoria Pública e
documento encaminhado por ele à Secretaria Estadual de Igualdade
Racial, respectivamente:

Diante da fala da vizinha, Pai Tico tentou explicar para o delegado


de que se tratava, porém não teve sua fala garantida, só chegou a
falar que tinha o alvará de certidão da Federação de Umbanda (...),
no qual o seu terreiro é vinculado. Porém o delegado disse que essa
documentação não tinha nenhuma validade, e deu uma relação de
documentação para que Pai Tico providenciasse, e que juntamente
com a companhia de uma advogada deveria apresentar na Delega-
cia. O Delegado ainda fez uma advertência para Pai Tico, se tocasse
tambor, ou fizesse qualquer zoada, sem antes apresentar as docu-
mentações solicitadas, iria prendê-lo. (MARANHÃO, 2016a, s/n).

[...] quando chego lá descubro a causa pela qual fui chamado, uma
vizinha nova com menos de 01 ano de moradia havia me de-
nunciado por barulho, “zoada”, ela relatava que minha casa era
muito barulho que estávamos incomodando muito [...]. (MA-
RANHÃO, 2016b, s/n). (Grifou-se).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 269

Nunca tendo comparecido em delegacia acusado de qualquer


crime, e nunca antes tendo tido problemas com a comunidade, Pai
Tico informou que se sentiu ultrajado com o tratamento que lhe fora
dispensado pela autoridade policial, de que se extrai o abalo por ele
descrito em entrevista: “eu me senti, assim, mesmo, como se eu fosse
um bandido”. Pai Tico acionou a Federação de Umbanda e Culto
Afro Brasileiro do Maranhão em razão do vínculo associativo que
seu terreiro possui com essa entidade. Do contato, a entidade dispo-
nibilizou sua advogada para acompanhar o babalorixá até a delega-
cia. Lá, mantiveram tensa discussão com a autoridade policial sobre
limitações do culto do Pai Tico, conforme relato da sua advogada
em entrevista concedida a este pesquisador em 06 de novembro de
2017:

Cheguei na delegacia [...] falei que estava representando aquela


pessoa e queria saber o que estava acontecendo. Aí ele [o delega-
do] foi e disse que tinha muita briga de vizinho. Eu perguntei: “Me
diga uma coisa: esse seu procedimento também é usado para igrejas
evangélicas?”. Ele disse que não. Então eu falei que aqui nós esta-
mos falando de religião e até onde eu sei o Brasil é um país laico,
com é que senhor vai impedir uma pessoa que nasceu e se criou
nesse bairro, que tem uma religião definida. A religião dele é essa.
Se ele batia de manhã incomodava, se ele batia de tarde incomodava,
se batia de noite... então eu vim lhe comunicar que o meu cliente vai
bater, vai cultuar a religião dele. E se o senhor prendê-lo [sic] eu
vou soltar. E vou lhe representar. Tanto que no dia seguinte [...]
eu marquei uma audiência do Presidente com o Secretário de Se-
gurança, pedi pra chamar o Delegado Geral, que mandou chamar o
delegado da área e a gente discutiu mesmo, foi “pau feio”, ele bradou
pra lá eu bradei pra cá [...] eu sei que, resumindo, Pai Tico conse-
guiu cultuar, fazer os tambores dele. Ele [o delegado] foi chamado
na corregedoria, e aí não teve mais problema ele [pai Tico] [...]
Não tenho dúvida que influenciou o fato dele ser evangélico e de
achar que a delegacia é a casa dele [...] porque, assim, na verdade,
ele tomou a vizinha para impor a religião dele, hoje ele é fanático.

Depois, Pai Tico foi convocado à delegacia e lá, sem assessora-


mento jurídico, foi orientado pela autoridade daquela circunscrição
a providenciar “documentos para regularização de eventos”. No do-
cumento, a cópia do art. 42 da LCP comentada e a exigência dos se-
270 | Jorge Alberto Mendes Serejo

guintes documentos: i) abaixo-assinado; ii) corpo de bombeiros; iii)


meio ambiente; iv) blitz urbana; v) SMTT.89 A esta altura, temendo
“ser preso”, como disse, resolveu da forma como lhe pareceu mais
segura, apesar dos prejuízos emocionais e financeiros.
Pai Tico obteve, então, uma autorização especial de n. 1068/2016
da Blitz Urbana do Município de São Luís, em que a autoridade mu-
nicipal permitiu, a critério de fiscalização de campo, a realização do
“evento tambor de mina”, nos dias 30 de setembro, 01 e 02 de outu-
bro de 2016, no horário das 20h00 às 02h00. Obteve autorização do
Corpo de Bombeiros (0433/2016), da Secretaria de Meio Ambiente
(608/2016) e a “autorização folclórica” da polícia civil, conforme ve-
remos.
Não há como dissociar os procedimentos exigidos para o culto
realizado pelo Pai Tico dos PLF (pedidos de licença para festa)90 no
Maranhão, vigente do séc. XIX ao início do séc. XX. O historiador
Tiago Santos (2014), observando mais de 500 (quinhentos) pedidos
da época, classificou os documentos em grandes grupos: a) brinca-
deiras; b) bailes; c) tambor de mina; d) festa do divino; e) bumba meu
boi; f) tambor.
Na categoria “Tambor de Mina”, observou que se referia a uma
marcação exclusiva para pedidos que contivessem o termo “mina”
(como é o atual caso do Pai Tico), sendo possível que pedidos refe-
rentes a Tambor de Mina estivessem incluídos de maneira disfarça-
da em outros pedidos, tal como no próprio “Tambor”, que não era

89  No sítio eletrônico da Delegacia de costumes e diversões públicas, podemos


ver a exigência dos documentos para “casas de evento, hotéis, associações,
clubes, bar e similares”. Vide: https://www.policiacivil.ma.gov.br/delegacia-de-
costumes/checklist/eventos-locais-privados/#1493237772968-5df4f85d-f458.
90  “Os Pedidos de Licença para Festas (PLF) eram documentos com estrutura
simples e fixa. O requerente (aquele que pedia; usualmente também chamado de
suplicante ou peticionário) apresentava-se, indicando o seu endereço e o objetivo
do seu pedido de licença (a festa em si) dando detalhes do que ocorreria e em
alguns casos justificando o seu pedido. No fim do documento quase sempre
o requerente dava garantias de que manteria a ordem e os bons costumes
encerrando com a assinatura de seu nome ou com a assinatura de uma pessoa a
rogo” (SANTOS, 2014, p. 96).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 271

propriamente religioso, mas que continha esse instrumento como


elemento central (“Tambor de Crioula”, por exemplo).
De acordo com o autor, “a idiossincrasia dos Chefes de Polícia da
época pode ser destacada como um dos maiores entraves às licenças.
Um mesmo chefe de polícia poderia apresentar posturas diferentes”
(SANTOS, 2014, p. 97), algo que guarda alguma semelhança com o
relato sobre o tratamento da autoridade policial que exigiu a licença
para a categoria “Tambor de Mina” de Pai Tico no séc. XXI.
Ainda, de acordo com o estudo:

[...] os PLF em geral apresentam alguns detalhes acerca do con-


texto sociocultural da época, algumas palavras frases ou expressões
revelam o cotidiano das manifestações religiosas afro-maranhenses.
Além das dificuldades materiais na realização dos rituais – o paga-
mento das licenças era apenas uma delas – havia as interdições im-
postas pelas portarias, que poderiam afetar diretamente às práticas
religiosas. Em alguns pedidos, a resposta do Chefe de Polícia limita
o horário de execução das “brincadeiras”. O Tambor de Mina e os
divertimentos em geral não poderiam exceder às 10 horas da noite,
sob o risco de serem interrompidos à força pela polícia. Em outros
casos havia a limitação dos dias em que os objetos de licença seriam
liberados, fora as recusas diretas da Chefatura de Polícia, que se
concentraram mais no século XIX. (SANTOS, 2014, p. 147).

Não se pode olvidar que a Lei de Postura Municipal de São Luís


n. 1.138, de 1876, prescrevia abertamente: “Art. 2°. Ficam prohibidas
nesta capital as dansas denomindas vulgarmente de caboclo, congo,
bumba, chegança e outros folguedos populares da mesma espécie
sem previa licença da camara municipal” (FERRETI, 2015, p.17).
A antropóloga Mundicarmo Ferreti (2004, p. 24) lembra também
que a obrigatoriedade de registro dos terreiros na polícia e a exigên-
cia de autorização policial para a realização de festas de santos e en-
cantados, mediante o pagamento de taxas, vigorou no Maranhão até
1988. Todavia, em 2016, fora emitido pela Delegacia de Costumes e
Diversões Públicas uma “Autorização Folclórica”, solicitada por Pai
Tico, com base no art. 47 do Decreto Estadual n. 5.068/73 e pela Lei
Estadual n. 8.364/06, para o evento “Dança do Tambor – Terreiro
272 | Jorge Alberto Mendes Serejo

de Mina – Ilê Axe Oya Sapatá”, tipo de música “diversificada”, para


o dia 30 de setembro de 2016, das 22h00 às 02h00h.
O Decreto Estadual acima informa que, por constituírem brinca-
deiras tradicionais sem fins lucrativos consagradas pelo povo, a faze-
rem parte da cultura maranhense, o “bumba-meu-boi”, “quadrilha”,
“tambor de mina”, “tambor de crioula” e similares serão licenciados
sem as exigências de que trata o art. 10 (licenças municipais, corpo
de bombeiros, atestado sanitário etc). No entanto, mesmo havendo
esta exceção legal, o documento possui advertências no sentido de
que a validade da autorização folclórica está condicionada à apre-
sentação das licenças e ainda ao cumprimento do horário estipulado.
Verificamos que o teor do documento muito pouco difere de
autorização concedida para a mesma finalidade mais de um século
antes, conforme transcrição de licença policial do ano de 1987, em
favor da Casa de Nagô, transcrita pelo historiador Thiago Santos
(2014, p. 126):

PORTARIA – 5 de janeiro de 1897

Nº 18 - Concedo a licença que me requereo Josepha Seguins de Oli-


veira, para nos dias 5, 6 e 7 do corrente dar em sua caza á rua da
Madre Deus nº 205, a brincadeira denominada de “Minas”, de-
vendo ser esta apresentada ao Subdelegado do 4º Districto que a
cassara si necessario for; nao’ excedendo o toque de tambor das dez
horas da noite dos referidos dias.

Chefatura de Policia Maranhão 5 de Janeiro de 1897

Sebastião Magalhaes Braga. (PORTARIA, 1897, apud SANTOS,


2014, p. 126). (Grifou-se).

Nas licenças para festa concedidas no passado em São Luís do


Maranhão, sagrado e profano, obrigação e brincadeira aparecem a
partir da noção de festa como elemento central que permite a corre-
lação entre ambas, de acordo com o estudo realizado pelo professor.
“Festa”, portanto, assimila as duas categorias (sagrado e profano),
mas, diferentemente das visões de mundo cristãs, “nas religiões afro
não há oposição direta entre o domínio do sagrado e do profano, pois
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 273

é dentro de uma festa aparentemente profana que são realizados ri-


tuais sagrados” (SANTOS, 2014, p. 118).
No sistema de classificação dos toques de mina, nos pedidos de
licença para festa analisados, Thiago Santos (2014) identificou as
seguintes categorias: a) dançar mina; b) dança de minas; c) dança das
minas; d) brincadeira de minas; e) brincadeira denominada mina; f)
brincadeira denominada dança das minas; g) tambor de mina. O
negrito aqui se justifica pela pertinência com que figurou nos do-
cumentos oficiais expedidos no caso apresentado pelo presente tra-
balho, já que, desde o séc. XIX, as expressões da religião para as
autoridades se confundem como atividades meramente folclóricas.
A nomenclatura “dança de tambor” eleita para o “evento” rea-
lizado em setembro de 2016 no terreiro do Pai Tico, classificado
como reunião de público e música diversificada, trata-se em verdade
da religião tambor de mina. Tal como no passado, a negação ou a
folclorização da religião de matriz africana representa, segundo Ab-
dias do Nascimento (2017, p. 145), o “ponto máximo da técnica de
inferiorizar a cultura afro-brasileira”.
Nesse particular, chama a atenção a própria pertinência cons-
titucional do Decreto Estadual, que regula o licenciamento e a fis-
calização de casas de diversões públicas no Maranhão. O texto foi
objeto da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) n. 473, de 25 de julho de 2017, no Supremo Tribunal Fe-
deral, em que a Procuradoria-Geral da República (PGR) alega que
a norma estadual viola o regime de repartição de competências le-
gislativas, ao dispor sobre peculiaridades locais, matéria reservada à
competência dos municípios, conforme o artigo 30, inciso I, da CF.91
Ainda para a Procuradoria-Geral da República, os requisitos
para concessão de alvarás de funcionamento devem ser definidos
em cada município, conforme as peculiaridades locais, não por se-
cretário de Segurança Pública estadual, como preceitua o Decreto
Estadual n. 5.068/73. Também a Procuradoria-Geral da República
considera que não compete à polícia judiciária o controle do diverti-

91  Até o fechamento do presente trabalho, a ação ainda se encontrava pendente


de julgamento.
274 | Jorge Alberto Mendes Serejo

mento público, restringindo-se às funções de investigação criminal


na forma do art. 144, § 4º, CF/88.
A cobrança de licenças para eventos, chamada no decreto esta-
dual de “taxa de fiscalização do poder de polícia”, é feita em São Luís
pela Delegacia de Costumes e, nas demais cidades do Estado, pelas
Delegacias de Polícia locais.92 Sugerimos que, dada a abrangência da
questão, que se encontra pendente de julgamento na Suprema Corte,
é possível que esteja ocorrendo em todo país a exigência de licen-
ças policiais para toques em terreiros, caso as autoridades policiais
locais entendam que se tratam de eventos destituídos de natureza
religiosa, como ocorreu no caso do Pai Tico.
Na autorização policial, consta recomendação para que o pro-
motor do evento não ultrapasse os limites legais de emissão de sons,
principalmente em áreas residenciais. Pela Lei Estadual n. 5.715/93,
aplicável à época da ocorrência, em áreas residenciais é estabelecido
o padrão de emissão de ruídos e vibrações sonoras até 55 dB (cin-
quenta e cinco decibéis) durante o dia, e 45 dB (quarenta e cinco
decibéis) durante a noite. Nada dispunha sobre eventos religiosos.
A Lei Municipal n. 6.287/17, de São Luís, veio especificar a re-
gulação da matéria, prescrevendo que os níveis máximos de sons e
ruídos, de qualquer fonte emissora e natureza, em empreendimen-
tos ou atividades residenciais, comerciais, de serviços, institucionais,
industriais ou especiais, religiosas, públicas ou privadas, deve ser de
60 dB (sessenta decibéis), no período compreendido entre 22h00 e

92  Verificamos que, neste ponto, a discussão extravasa a questão dos terreiros.
Os recursos oriundos dessa arrecadação, por disposição legal, são, no Maranhão,
destinados ao Fundo Especial de Segurança Pública – FESP. Porém, o Ministério
Público do Maranhão, no ano de 2011, recomendou em dois municípios
maranhenses que o recolhimento desses valores se desse por meio de Documento
de arrecadação de Receitas Estaduais (DARE), pois havia a informação de que,
nessas localidades, os valores eram entregues diretamente à autoridade policial.
No mesmo sentido, em 2018, o Ministério Público do Amapá representou à PGR
pela inconstitucionalidade de lei local de mesmo teor, após apuração de que as
cobranças são feitas por agentes da polícia civil diretamente a comerciantes
e donos de bares. O julgamento da ADPF n. 473 lançará novas luzes sobre a
matéria.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 275

7h00, e de 70 dB (setenta decibéis), no período compreendido entre


7h00 e 22h00.
Pela lei, não estão sujeitas às proibições referidas nesta lei os
sons produzidos, por exemplo, em “sinos de igrejas e de templos
religiosos desde que sirvam exclusivamente para indicar as horas
ou anunciar a realização de atos ou cultos religiosos” (SÃO LUÍS,
2018), bem como através de “hinos e cânticos religiosos, pregações
feitas mediante sistema de som no interior dos templos religiosos
desde que esteja de acordo com a NBR 10.152” (SÃO LUÍS, 2018).
A referida norma técnica, por sua vez, estabelece o limite de 40-50
decibéis.
Independentemente das disposições da Lei Municipal n.
6.287/17, relativas às celebrações religiosas, que ensejariam uma
investigação mais profunda sobre os impactos da aplicação da lei aos
terreiros da cidade, a reflexão que trouxemos aqui se relaciona com
as tramas raciais que estão por trás da exigência de taxas policiais
para eventos religiosos de terreiro, como se fossem festividades não
religiosas.
Isso se dá pelo desconhecimento das gnoses e dos modos de
organização dos povos de terreiro, mas também por discriminações
que sub-repticiamente fazem parte dos agentes e das instituições
públicas, não apenas como racismo institucional, mas como “racismo
estrutural” (ALMEIDA, 2018), que responde pelos apagamentos e
pela subjugação dos cultos afros à lógica da colonialidade.
A noção de “necropolítica” (MBEMBE, 2016) se apresenta como
um dispositivo de interpretação válido, no que diz respeito à des-
sacralização dos rituais de matriz africana no vertiginoso conjunto
da discriminação étnico-racial. Na prática, a exigência dessa taxa
policial representa a política do extermínio, já que pode inviabili-
zar a manutenção de manifestações religiosas de povos de terreiro,
das suas formas tradicionais de existir. Os custos de taxas como as
cobradas ao Pai Tico significam perda de recursos para eventual in-
vestimento em paramentos, comidas, bebidas, garrafadas, imagens,
velas, dentre outros itens que asseguram a continuidade daquele
276 | Jorge Alberto Mendes Serejo

modo de criar, fazer e viver, como diz o art. 216, II, da Constituição
Federal.

4 PODE O TAMBOR AMANHECER?

Dois anos após os acontecimentos que envolveram o terreiro


Ilê Axé Oyá Sapatá, os povos de terreiro do Maranhão foram sur-
preendidos com a edição da Portaria n. 620/2018, da Secretaria de
Segurança Pública, com o seguinte teor:

Art. 1º- Poderão ser realizadas manifestações de caráter umbandís-


ticos nos cemitérios, encruzilhadas, praias, margens de rios e flores-
tas, respeitados os seguintes preceitos: [...]

e) a queima de fogos de artifícios ficará adstrita a horário, conside-


rando a comodidade e segurança dos moradores das imediações e o
toque de tambor, somente será realizado até às 02:00 horas da
manhã, desde que não perturbe o sossego público.

Art. 2º- O controle de tais atos será feito através da Federação


de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros do Maranhão, sem pre-
juízo da fiscalização própria dos órgãos da Secretaria de Estado da
Segurança Pública, que adotarão as providências de sua alçada, nos
casos de infringência do disposto na presente Portaria. (MARA-
NHÃO, 2018a, p. 36). (Grifou-se).

A Portaria gerou reação imediata dos povos e comunidades de


terreiro em São Luís do Maranhão. A primeira questão diz respeito
à disposição do Estado sobre a utilização de equipamentos públicos
e de recursos naturais por parte de povos e comunidades de terreiros
no Maranhão. Da forma como foi colocada, a portaria pressupõe que
práticas coletivas e ancestrais da religiosidade de matriz africana (e
apenas elas) poderiam responder por condutas predatórias ao meio
ambiente e à coletividade urbana.
Qualquer pessoa que minimamente conhece práticas religiosas
dos povos de terreiro sabe que, entre eles e a natureza, há uma pro-
funda implicação, de modo que não deve ser inferido que tais práti-
cas são insustentáveis ambientalmente. Aliás, o conhecido provérbio
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 277

da cosmologia iorubá, “kosi ewé, kosi òrisà” (“sem folha não há orixá”)
(BRASIL, 2016b, p. 18), remete à noção de inseparabilidade da di-
mensão do sagrado das outras dimensões da vida da pessoa e da co-
munidade, pois os recursos naturais são espaços de mediação entre o
material e outras manifestações de vida, entre diferentes indivíduos
e diferentes naturezas nas significações das cosmologias de matriz
africana.
Há, aqui, uma relação extrapatrimonial que diz respeito a apro-
priações simbólicas, elemento ignorado pela Secretaria de Seguran-
ça Pública do Maranhão, em inobservância do art. 3º, I, do Decreto
Federal n. 6.040/07, que preceitua povos e comunidades tradicionais
como aqueles que ocupam e usam territórios e recursos naturais
como “condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, an-
cestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
gerados e transmitidos pela tradição” (BRASIL, 2007). Também o
decreto estabelece conceitualmente que territórios tradicionais são
“os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica
dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de for-
ma permanente ou temporária”.
O segundo ponto a se considerar é a limitação do horário de cul-
to (genericamente “toque do tambor”) até as 02h00. Como dissemos
neste artigo, a Lei Municipal n. 6.287/17, de São Luís, estabelece
limites (ao que nos parece aplicáveis a quaisquer e todas as manifes-
tações religiosas) quanto à emissão de sons que ultrapassem o nível
de decibéis da NBR 10.152 (SÃO LUÍS, 2018), mas não estabelece
limitação a horário de cultos e demais manifestações religiosas. So-
bre a pertinência da lei do silêncio e a colisão com direitos funda-
mentais de manifestações religiosas, seria um interessante ponto de
investigação em outro trabalho.
Agora, quanto à limitação do horário de culto, teria competência
formal e material o Secretário de Segurança Pública para editar tais
regramentos? Em nossa avaliação, não. Não apenas porque essa ma-
téria pertence à municipalidade, mas também porque a Convenção
n. 169, aplicada no Brasil por força do Decreto Federal n. 5.051/04,
estabelece que quaisquer iniciativas adotadas pelos governos deve
278 | Jorge Alberto Mendes Serejo

ser submetida à consulta prévia e informada, com ampla representa-


ção dos povos, observando-se exaustivamente métodos apropriados
às suas características.
Outro ponto que também chamou a atenção foi a portaria trans-
ferir o ônus fiscalizatório à Federação de Umbanda e Culto Afro
Brasileiro do Maranhão. A atividade de fiscalização do cumprimento
de regras estatais não compete a associações civis; sob outro viés,
caso a portaria vingasse, poderia colocar em conflito uma das or-
ganizações representativas dos povos e comunidades de terreiro no
Maranhão com as práticas ancestrais dos próprios povos e comuni-
dades de terreiro, em contraposição aos seus preceitos estatutários.
Além disso, há uma questão de ordem espiritual sobre a qual o Es-
tado não pode dispor: é possível submeter as entidades espirituais
a tais regramentos, em especial quanto ao horário que podem, por
exemplo, entidades espirituais “baixar” ou não?
Tomando-se aqui a noção que trouxemos de “luta jurídica locali-
zada” (SHIRAISHI NETO, 2009), povos e comunidades de terreiro
do Maranhão, sobretudo de São Luís, organizaram-se para reagir à
publicação. Foram várias as reuniões sobre estratégias de interven-
ção, contando com apoiadores e advogados. Decidiram por construir
um documento (“Carta Aberta dos Povos de Terreiro do Estado do
Maranhão em repúdio a Portaria nº 620/18 da Secretaria de Estado
da Segurança Pública do Maranhão”), a ser entregue ao secretário
de Segurança Pública em encontro agendado, com o pedido expres-
so de revogação da portaria. Caso não fosse possível a revisão, o
coletivo já discutia, junto aos procuradores, estratégias jurídicas en-
volvendo ações judiciais, portanto, a luta jurídica localizada.
No dia 26 de outubro de 2018, a sede da Secretaria de Segurança
Pública amanheceu tomada pelos povos de terreiros das mais va-
riadas designações religiosas de matriz africana. Após ritualísticas
tradicionais e discursos das entidades representativas das casas de
culto, e dos secretários estaduais de Direitos Humanos e de Igual-
dade Racial, que mediavam o diálogo, o documento foi entregue em
mãos ao secretário de Segurança Pública.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 279

Em linhas gerais, o documento fundamentava o pleito na invia-


bilidade da portaria, sobretudo em relação à Constituição Federal
e ao Estatuto da Igualdade Racial, que estabelece a inviolabilidade
da liberdade de crença dos cultos de matriz africana, e em outros
diplomas jurídicos.
Na ocasião, o secretário de Segurança Pública informou que sua
intenção era apenas regulamentar horários e demais práticas para
evitar conflitos, mas que em momento algum pensou em limitar o
exercício das manifestações religiosas. Disse também que se tratava
de atualização de portaria anterior, mas anunciou de pronto a revo-
gação do ato. O caso foi amplamente divulgado na imprensa local.
Os povos de terreiro, vitoriosos em sua demanda, colocaram-
-se à disposição das autoridades do Governo do Estado para discu-
tir protocolos e demais questões que entendessem relevantes sobre
suas práticas, como questões de ordem ambiental, por exemplo, mas
que não aceitariam restrições quanto ao horário de seus cultos, mes-
mo porque isso se tratava de um ponto cuja regulação se mostrava
inviável. A revogação da Portaria n. 620/2018 se deu através da edi-
ção da Portaria n. 883/2018, publicada no Diário Oficial do Estado
em 21 de novembro de 2018.

5 CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS

A luta pela afirmação dos direitos de povos e comunidades de


terreiro no Brasil se confunde com a luta dos novos movimentos so-
ciais no conjunto de lutas sociais no final da ditadura militar. A par-
tir de pautas específicas, esses agrupamentos foram se diferenciando
dos demais em suas demandas, mas genericamente mantiveram e
especificaram a agenda de combate à discriminação étnico-racial.
Apesar dos inegáveis avanços políticos e jurídicos, viabilizados
pelas estratégias de territorialidade que levaram a lutas jurídicas
específicas, povos e comunidades de terreiro enfrentam diariamen-
te o signo da violência desmesurada, expressa não apenas na força
bruta registrada em canais como o Disque 100 e na imprensa em ge-
ral, mas sobretudo nos padrões de sociabilidade que nos constituem
280 | Jorge Alberto Mendes Serejo

como nação. Daí porque se trata de uma racionalidade que Silvio Al-
meida (2018), acertadamente, qualifica como “racismo estrutural”.
Essa racionalidade, entre nós, a colonialidade, institui codifi-
cações que explicam porque o caso do Pai Tico é emblemático. O
babalorixá sofreu uma sequência de violências: dos vizinhos, dos
agentes do sistema de segurança e de justiça, e da administração pú-
blica municipal e estadual. Demonstramos, a partir desse caso, que
a racionalidade que destinou, aos povos de terreiro e aos povos de
matriz africana em geral, posições distintas na órbita das liberdades
e igualdades jurídico-formais, levou a distorções na prática adminis-
trativa e forense.
Entendemos que o caso aqui apresentado não se isola de demais
experiências pelo Brasil afora. Ao contrário, atualiza a necessária
discussão sobre violência social e institucional, e sobre a exigên-
cia de taxas policiais para a realização de atividades litúrgicas, bem
como o debate sobre a noção de “perturbação do sossego” envol-
vendo os batuques que rasgam as noites do país desde os tempos da
colônia.
Ao que nos parece, o caso do Pai Tico serviu localmente como
mote para impulsionar os povos e comunidades de terreiro de São
Luís a retomarem os espaços de articulação político-institucionais
para postular o reconhecimento da sua existência e dos direitos le-
galmente assegurados. A reação à Portaria n. 620/18 mostrou a vi-
talidade dessas unidades de mobilização, cujos desdobramentos ve-
rificamos na criação de mesas de diálogo com o governo do Estado e,
mais recentemente, em 2019, na mediação com o Núcleo de Direitos
Humanos da Defensoria Pública estadual para a criação de protoco-
lo interinstitucional junto ao governo estadual, visando atender às
especificidades dos modos de vida tradicionais do agrupamento em
termos de segurança, saúde, educação, assistência social e direitos
humanos. Vemos esta como uma importante dinâmica de trabalho,
pois a criação de protocolos formais dota povos e comunidades de
terreiro de documentos exigíveis em caso de descumprimento.
Retomamos, aqui, a noção inicial do navio como um sistema mi-
cropolítico em constante movimento, de Paul Gilroy, para refletir
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 281

que tais estratégias nascentes em momentos de perigo, como o do


contexto político instalado no Brasil atual, representam saídas ao
vertiginoso conjunto fático dos ódios incentivados expressamente
pelas autoridades do executivo federal e pelo esvaziamento, ao nível
nacional, das instâncias de representação popular.
Nesse momento, a noção de diáspora como forma de “dispersão
catastrófica” que sedia o trauma, fortalece novas relações de territo-
rialidade, nós que sugerem “formas de agenciamento micropolítico
exercitado nas culturas e movimentos de resistência” (GILROY, p.
20), que podem se desdobrar em outros processos para a criação de
novos horizontes e novas possibilidades de movimentação.

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10
FOGO CONTRA
SUBALTERNIZADOS/AS: COMUNIDADES
AFRO-BRASILEIRAS INCENDIADAS

Mauricio dos Santos93

“Agè Ma Iná Pa Gbada / Agè Ma Iná Pa Gbada Ewé”


“Agè / Ossain não quer que fogo nem facão destruam as
suas folhas”
(Cantica afro-brasileira)

As religiões afro-brasileiras mantêm relação umbilical com seu


espaço de culto, que é também a natureza, com o qual se confunde
o próprio culto e suas divindades. Assim, cultuam a natureza e suas
divindades-árvores. Exemplo desses/as são: Iroko (que é a Gamelei-
ra Branca), Apaoká (que é a Jaqueira), Jurema Preta, Obi, o Orogbo
e Baobá, entre outros/as que são igualmente eminentes.
Preservar esses espaços é preservar não só um ambiente físico,
mas também o culto e as divindades. No entanto, os terreiros das
religiões afro-brasileiras são sucessivamente alvos de ataques varia-
dos, sobretudo por meio de incêndios provocados.
Na página do Facebook intitulada “Terreiros Queimados”, que
desde 2017 visibiliza e/ou republica dados sobre racismo religioso
no Brasil, foi possível reunir dados de terreiros alvo de ações esse
tipo. Tais dados podem ser melhor visualizados na tabela que se
segue:

93  Graduado em Antropologia – Diversidade Cultural Latino-Americana.


Mestre pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-
Americanos (PPG-IELA) pela Universidade Federal da Integração Latino
Americana – UNILA.
285
286 | Maurício dos Santos
Tabela 1: terreiros alvo de incêndios provocados, por cidade, Estado, ano da ação e
extensão do dano
TERREIRO: CIDADE/ESTADO ANO TIPO
Mãe Viviane Correia Luziânia / DF 2013 Parcialmente
Queimado
Mãe Conceição de Lissá Duque de Caxias / RJ 2014 Totalmente
Queimado
Mãe Adna Santos Brasília / DF 2015 Totalmente
Queimado
Mãe Claudineia da Silva Rio de Janeiro / RJ 2016 Totalmente
Cesário Queimado

Terreiro do Alaketo Salvador / BA 2016 Árvore Queimada


Templo Religioso Araraquara / SP 2016 Parcialmente
Hermínio Marques Queimado
Terreiro Vovô Trindade Campinas / SP 2017 Parcialmente
de Aruanda e Cigano Queimado
Ygor
Mãe Célia Maria São José dos Pinhais 2017 Totalmente
Carneiro / PR Queimado

Mãe Rosana De Oya Jundiaí / SP 2017 Parcialmente


Queimado
Ilé Axé Alaketu Omim Luziânia / DF 2017 Parcialmente
Orisa Iyanlá Lewa Queimado
Ile Oba Ogunté – Sítio Recife / PB 2018 Árvore Queimada
De Pai Adão
Pai Tiago do Aracaju / SE 2018 Parcialmente
Nascimento Queimado
Centro Espírita Caboclo Nova Iguaçu / RJ 2018 Totalmente
Pena Branca Queimado

Ilê Axé Opô Afonjá Salvador / BA 2019 Floresta Queimada


Terreiro das Marias Curitiba / PR 2019 Parcialmente
Queimado
Pai Moacir da Costa Curitiba / PR 2019 Parcialmente
Queimado
Fonte: Página “Terreiros Queimados”, do Facebook. Disponível em: https://www.
facebook.com/terreiroqueimado. Acesso em: 23 ago. 2020.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 287

Há relatos de terreiros que foram parcial ou totalmente queima-


dos, aí consideradas as construções e a natureza, inclusive as árvores.
Os terreiros parcialmente queimados são aqueles que sofreram
destruição em alguma parte do espaço religioso ou nas residências
dos/as pais/mães ou filhos/as de santo. Entre estes, estão: o terrei-
ro de Mãe Viviane Correia, em 2013; o Templo Religioso Hermínio
Marques, em 2016; o terreiro de Vovô Trindade de Aruanda e Ciga-
no Ygor, de Mãe Rosana De Oya, e o Ilé Axé Alaketu Omim Orisa
Iyanlá Lewa, em 2017; o terreiro de Pai Tiago do Nascimento, em
2018; e o Terreiro das Marias e o terreiro de Pai Moacir da Costa,
em 2019.
Já os terreiros totalmente queimados são aqueles que sofreram
destruição de todo espaço religioso ou das residências dos/as reli-
giosos/as. Estre estes, estão os terreiros: de Mãe Conceição de Lis-
sá, em 2014; de Mãe Adna Santos, em 2015; de Mãe Claudineia da
Silva Cesário, em 2016; e o de Mãe Célia Maria Carneiro, em 2017.
Quanto às destruições parciais, há que se destacar a queimada
de árvores-divindades, considerada uma calamidade religiosa pelos/
as afro-brasileiros/as. Assim, as árvores-divindades queimadas nos
terreiros do Alaketo, em 2016, e no Ilê Obá Ogunté – Sítio de Pai
Adão –, significaram demasiados infortúnios para essas comunida-
des. Infelizmente, o terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá teve, em 2019,
sua floresta parcialmente queimada, sendo que ali estavam assenta-
das inúmeras árvores/divindades.
A cantiga “Agè Ma Iná Pa Gbada / Agè Ma Iná Pa Gbada Ewé”,
citada como epígrafe no início desta parte do texto, pode ser re-
contada como “Agè/Ossain não quer que fogo nem facão o matem”,
o que é reforçado em outro cântico afro-brasileiro, “Awá Sorò Ki
Inón Odò Rodùn / Pèrègùn Olowè Titùn”, que quer dizer: “Nós não
cultuamos o fogo nos caminhos do rio / Peregun é dono das folhas
novas e frescas”.
Em face dessa problemática, o presente estudo versa sobre co-
munidades afro-brasileiras que tiveram seus espaços incendiados
em atos de racismo religioso, aí incluindo-se os espaços edificados
e os naturais, como as árvores. Igualmente tratamos sobre como o
288 | Maurício dos Santos

fogo foi e é usado historicamente como instrumento para aniquilar


ou deixar morrer os/as subalternizados/as.
Para tanto, lembramos o significado histórico o episódio conhe-
cido como “Quebra de Xangô”, ocorrido no ano de 1912, que foi um
conjunto de atos de racismo religioso praticado contra afro-brasilei-
ros que tiveram lugar em Maceió, Alagoas, e a reparação histórica
promovida pelo governo daquele Estado cem anos após.
Em seguida, apresentamos os casos de mulheres que, de alguma
forma, “arderam” sob o fogo do preconceito, desde as bruxas na Ida-
de Média, passando por Florinda, negra escravizada e morta pelo
fogo em 1856, até a morte de Marielle Franco e a queima do fóssil
de Luisa, em 2018, em pleno século XXI.
Na seção seguinte, fazemos uma aproximação entre os incêndios
provocados nos barracos das favelas brasileiras e os que tomam con-
ta dos barracões das religiões de matrizes africanas, identificando
como, em uns e outros, os mesmos corpos subalternizados são víti-
mas da necropolítica que marca as relações raciais no Brasil.

1 “QUEBRA DE XANGÔ”

“Iná Ke J´Obá” (“O fogo não queima seu Rei, Xangô”).


(Elocução popular afro-brasileira)

As expressões “Quebra de Xangô”, “Dia do Quebra” ou “Que-


bra de 1912” referem-se ao conjunto de atos de racismo religioso
que ocorreram contra religiosos/as afro-brasileiros/as, em Maceió
e cidades vizinhas, no dia 01 de fevereiro de 1912. Essas ações cons-
tituíram-se no acossamento dos/as religiosos/as, destruição de seus
terreiros e, por fim, na queima de objetos hieráticos afro-brasileiros
em lugares públicos (RAFAEL, 2004; 2010).
Essas execuções tiveram participação de populares, isto é, re-
presentantes enfurecidos/as da população maceioense, que foram
instigados/as pela Liga dos Republicanos Combatentes, uma espé-
cie de milícia armada da época, que propunha, na ocasião, “Quebrar
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 289

Xangô”. Cabe ressaltar que Xangô é uma das nomeações das reli-
giões afro-brasileiras em Alagoas.
Diante disso, em um ato de resistência, os/as religiosos/as que
não se mudaram e permaneceram em Alagoas começaram a “Rezar
Xangô Baixo”. Esse foi o tempo do “Xangô Rezado Baixo”, no qual
os tambores se calaram e as cantigas e rezas foram cantaroladas,
coadunadas com as palmas das mãos.
A “Quebra de Xangô” ocorreu por causa de disputas políticas
pelo governo do Alagoas. De um lado estava Euclides Vieira Malta
e, do outro, Clodoaldo da Fonseca, unido à Liga dos Republicanos
Combatentes. A oposição passou a atacar Euclides Vieira Malta com
o argumento malicioso de ele era afro-religioso. Diziam que tinha,
como conselheira, Tia Marcelina, prestigiada mãe de santo que foi
morta durante a “Quebra de Xangô” (RAFAEL, 2004; 2010). Em
2016, foi criado o Prêmio Tia Marcelina, uma iniciativa do Governo
do Estado, com o objetivo de prestar homenagens a expoentes que
obram e obraram nas lutas antirracistas em Alagoas.
“Iná Ke J´Oba”, a frase que nos toa como epígrafe no começo
desta parte do texto, significa, para os/as religiosos/as afro-bra-
sileiros/as, “O fogo não queima seu Rei”, uma frase consagrada a
Xangô – divindade dos trovões, pedras e de tudo que é quente. Tal
referência nos serve, aqui, para lembrar que não há fogo que destrua
“Xangô” – seja a divindade, seja a religiosidade alagoana –, pois ele
pode até mesmo gostar e dançar sobre as cinzas.
Se, um, dia o “Xangô [foi] Rezado Baixo”, hoje, de melhor ma-
neira, “Xangô [é] Rezado Alto”. Exemplo disso é o projeto “Xangô
Rezado Alto”, da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL), que
suscita ações antirracistas, sobretudo no âmbito do antirracismo re-
ligioso. Teotonio Vilela Filho, então governador de Alagoas, no dia
01 de fevereiro de 2012, cem anos depois da “Quebra de Xangô”,
assinou um Pedido de Perdão Oficial do Governo de Alagoas aos
povos de terreiros, pelas barbaridades que marcaram o dia 1º de fe-
vereiro de 1912, o “Dia do Quebra Quebra”. No ato, houve cortejos
que passaram por diversos locais – Praça D. Pedro II, rua do Sol,
290 | Maurício dos Santos

Praça dos Martírios – onde ficavam os antigos Xangôs e onde foram


queimados os objetos afro-brasileiros em Maceió.
E, como canta uma cantiga consagrada a Xangô: “Firinan firi-
nan / Firi inon bainjo / Ma inon ma inon / Firi inon bainjo”, que
quer dizer: “Não nos mande fogo”.

2 MULHERES EM CHAMAS

“O povo queria, matar uma mulher,


O padre não concordou e a rezou com muita fé,
O padre era pecador e na fogueira morreu junto,
Foi parar lá no inferno aquele casal de defunto,
Ela se juntou a cinzas e gargalhou a luz da lua,
A mulher virou Mulambo e o padre Seu Tranca Rua,
Foi condenada pela lei da Inquisição,
Para ser queimada viva na Sexta-feira da Paixão [...].”
(Cantiga popular afro-brasileira).

“Antes do fogo / Fagulha / A bulha / Chispa de cisma /


Lasca de farpa / Ponta de agulha / Antes do fogo /
Brasa / A rasa / Serpente de rubro / Descubro /
A ruína da casa / Antes do fogo / Faísca / A risca /
Do gume de faca / A vaga de lume / Tudo confisca /
Antes do fogo / Corisco / Arisco / Ígneo regaço /
Compasso / Do ateu suplício / Antes do fogo [...]”. (HOSHINO, 2019).

Se com Exu se começam as versas afro-brasileiras, assim em-


peçamos esta parte do texto com uma cantiga consagrada a Maria
Mulambo e seu Tranca Rua, bem como com o poema de Hoshino,
nomeado de “Auto de Fé”, consagrado a Maria Padilha. O objetivo
da inserção dessa cantiga e desse poema, aqui, é tão somente o de
memorar os/as ancestrais divinizados/as sob o desígnio de Exus e
Pombagiras, estes/as que, por vezes, fruíram, em suas trajetórias,
inculpação de mazelas e padeceram queimados/as vivos/as.
Queimar é o modo mais antigo de absterger. O Código de Ha-
murabi foi o primeiro conjunto de leis escritas de que se tem notí-
cias, datado de XVIII a.C. Na região mesopotâmica, a pena de morte
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 291

já era aplicada a trinta tipos de crime, punindo-os severamente, ha-


vendo a possibilidade de queima dos/as envolvidos/as na fogueira.
Na Idade Média e Moderna, a Igreja Católica controlava a vida
e a morte da maioria da população, apenando aqueles/as que “preju-
dicassem” suas doutrinas. Todos/as os/as questionados eram acua-
dos/a e os/as condenados/as poderiam ser mortos/as na fogueira.
Também eram comuns acusações de possessões demoníacas, crises
políticas e sociais, calamidades naturais ou qualquer outro aconteci-
mento considerado anormal eram capazes de denotar bruxaria.
A chamada “caça às bruxas” foi responsável por outorgar às mu-
lheres, quase que exclusivamente, a possibilidade de serem bruxas.
Ou seja, para eles/as não existiam bruxos e/ou esses se tratavam
de exceções – apenas existiam bruxas, porque as mulheres estariam
condenadas a serem relacionadas com o mal e/ou suscetíveis a ele.
Até hoje, porém, a forma de queimar os/as indesejáveis perdura.
Nos EUA, a cadeira elétrica é usada em execuções, método que se
materializa com 2.000 (dois mil) volts percorrendo o corpo do/a réu,
queimando-o/a.
Em 1856, no Rio Grande do Sul, uma escravizada simplesmente
denominada de Florinda foi acusada de feitiçaria por sua escraviza-
dora, que se encontrava empalamada. Por essa razão, foi queimada
viva, em um matagal distante de onde vivia, coatada por seu es-
cravizador Jerónimo Jacinto Pereira e seus sicários assalariados. Na
época, houve algumas denúncias e a monstruosidade foi considerada
como crime, sendo assim julgada. Observemos alguns trechos dos
depoimentos prestados ao chefe de polícia:

[...] viu uma fumaça no mato [...] e como já tivesse suspeitas de


algum bárbaro castigo que se pretendia dar a preta Florinda, que
diziam ser feiticeira, e ter deitado feitiço em sua senhora, amasia
daquele coronel, que estava doente, dirigiu-se ao lugar donde saía a
fumaça e então encontrou uma fogueira ou jirau armado de lenha e
a preta Florinda [...] depois de lhe tirarem as algemas, mandaram a
dita preta Florinda que rezasse as suas orações para morrer, o que
fazendo ela banhada em lágrimas, foi ao depois deitada de barriga
sobre o jirau, atada de mãos e pés, e lhe tocaram fogo, o qual a de-
vorou entre as chamas e fumaça [SIC]. (MOREIRA, 2010, p. 41).
292 | Maurício dos Santos

Em 2018, Marielle Francisco da Silva, conhecida como Ma-


rielle Franco, socióloga, feminista e ativista dos direitos humanos,
foi assassinada “à queima roupa”, ou seja, com grande proximidade
de tempo e espaço, por uso de arma de fogo, juntamente com seu
motorista, Anderson Pedro Mathias Gomes, no Rio de Janeiro. Ela
elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro em 2016 para legislatura de
2017/2020; era crítica da atuação truculenta da Polícia Militar e
denunciava reiteradamente abusos de autoridade.
Mãe Marina de Ogun, Iyálorisá do Ile Asé Oju Ogun Funmi-
laiyó, certa vez me disse: “Marielle era filha de Iansã, ou de Obá”.
Isto, junto à fotografia das estampas criadas no Jardim Miram Arte
Clube em São Paulo (JAMAC), de Marielle e Luzia, levaram-nos a
refletir e especular sobre as imagens de Marielle Franco, de Iansã e
de Obá.
Obá é uma divindade afro-brasileira guerreira e caçadora. Já
Iansã, às vezes chamada de Oyá, é a divindade dos ventos e tempes-
tades, compartilhando com Xangô o gosto por tudo que é quente.
Comumente, é sincretizada como Joana d’Arc ou como Santa Bár-
bara. Joana d’Arc é uma heroína francesa e santa canonizada pela
Igreja Católica, conhecida por seus feitos durante a Guerra dos Cem
Anos. É um/a dos/as nove padroeiros/as da França. Foi condenada
a ser queimada viva, aos 19 anos de idade, na França sob o domínio
Inglês. Cabe salientar que Joana d’Arc, às vezes, é sincretizada com
Obá. Já Santa Bárbara foi uma virgem mártir do século III, come-
morada como Santa Cristã na Igreja Católica Romana, na Igreja
Ortodoxa e na Igreja Anglicana. Em Portugal e no Brasil, tornou-se
popular sua devoção, invocada como protetora por ocasião de peri-
pécias meteorológicas. São muitas as aproximações que os/as reli-
giosos/as constituem entre Iansã, Joana d’Arc e Santa Bárbara, mas,
neste momento cabe destacar que Iansã e Joana d’Arc assemelham-
-se porque são belicosas, e que Iansã e Santa Bárbara assemelham-se
porque intervêm nos fenômenos meteorológicos.
Quanto às imagens de Marielle Franco e de Luzia montadas
pelo JAMAC, consideramos que a escolha das cores nos remete a
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 293

Iansã, pois essa é, por vezes, caracterizada pelas cores vermelho e


rosa; os detalhes nos cabelos igualmente nos lembram de Oyá, pois
são pequenos raios que a adornam seus cabelos, raios esses que se
dão tanto no interior de uma nuvem, quanto entre nuvens ou entre
uma nuvem e a terra. Já sobre a outra imagem, ao lado da de Ma-
rielle Franco, está Luzia, considerada como o/a fóssil/mulher mais
antigo/a encontrado/a na América Latina, com cerca de 12.500 a
13.000 anos. Sua descoberta reacendeu questionamentos e pesquisas
acerca das teorias da origem da humanidade latino-americana. Luzia
foi descoberta nos anos 1970 em escavações na região metropolita-
na de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Em 2018, foi parcialmente
queimada no incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Mas,
logo em seguida, o Museu Nacional anunciou que conseguiram res-
tabelecer cerca de 80% dos fragmentos de Luzia, o que lhes permi-
tiria reconstruí-la.
E o que Florinda, Marielle Franco e Luzia têm em comum? Na
nossa perspectiva especulativa, para responder a tal pergunta, preci-
samos elencar pelo menos três pontos importantes: i) os marcadores
sociais de diferença, esses que influem em intersecções, por exemplo,
entre gênero, raça e classe social (DAVIS, 2016) – Florinda, Ma-
rielle Franco e Luzia, eram/são mulheres e negras, latino-ameri-
canas e/ou brasileiras, portanto, subalternizadas pela colonialidade
(CUSICANQUI, 2010) e, por isso, padeceram e/ou foram aniquila-
das com fogo (nos casos de Florinda e Marielle Franco, elas foram
literalmente queimadas; quanto a Luzia, ela foi deixada à queima,
conforme explicaremos a seguir); ii) consideramos que essas mulhe-
res têm em comum, mesmo que de formas diferentes e em tempos
distintos, a violência de serem aniquiladas, num “fazer morrer, dei-
xar viver; fazer viver, deixar morrer” (FOUCAULT, 1999). Assim,
e este é o terceiro ponto, iii) Florinda, Marielle Franco e Luzia são
exemplos de que a colonialidade se moderniza para exterminar os/
as subalternizados/as.
Lembremos: Florinda, afrodescendente e escravizada, foi quei-
mada em uma fogueira, no Rio Grande do Sul em 1856; Marielle
Franco, afrodescendente e lésbica, foi assassinada por arma de fogo
294 | Maurício dos Santos

no Rio de Janeiro em 2018. De modo diferente delas, Luzia, o/a


fóssil/mulher mais longevo/a latino/a americano/a, foi queimado/a
no incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro em 2018, sobre
ela recaindo o caráter simbólico dos marcadores sociais semelhantes
aos de Florinda e Marielle Franco. Obviamente que Luzia já esta-
va inerte quando foi queimada, mas o “fazer morrer, deixar viver”
(FOUCAULT, 1999) permanentemente recai sobre os/as mesmos/
as subalternizados/as.
Assim, o colonialismo se perfez, mas a colonialidade ainda está
em desenvolução (MIGNOLO, 2003). E o que está em jogo, além do
queimar, é o deixar queimar; e o deixar queimar é o traço simbólico
que recai sobre Luzia. O incêndio do Museu Nacional é indicativo de
como vem sendo tratada a produção de conhecimento no Brasil, so-
bretudo pelos governos Temer e Bolsonaro, que se imbricam ao pre-
terirem e/ou ignorarem os/as “indesejados/as”. Não se tem verbas
para os museus, mas se tem trilhões para os bancos, por exemplo.

3 BARRACOS E BARRACÕES

O documentário “Limpam com Fogo”, dirigido por César Vieira,


Conrado Ferrato e Rafael Crespo em 2015, fala sobre os incêndios
criminosos nas ocupações de São Paulo e suas relações com a espe-
culação imobiliária e com a gentrificação urbana.
As ocupações usualmente antecedem os assentamentos das fa-
velas, isto é, as favelas são consolidadas como conjuntos de habita-
ções, diferentemente das ocupações ou invasões. Assim, a partir do
documentário, queremos destacar que grande parte da classe traba-
lhadora brasileira é domiciliada em favelas, e os incêndios ou o ris-
co deles faz parte da maioria das trajetórias ou do cotidiano dessas
comunidades e pessoas. Na maior parte das vezes, os incêndios são
criminosos e igualmente são instrumentos da especulação imobiliá-
ria e da gentrificação urbana, isto é, os incêndios objetivam a troca
de populações, que consiste em substituir uma população mais pobre
por outra mais rica.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 295

Os incêndios comumente acontecem quando se inauguram


grandes empreendimentos privados e/ou políticas públicas nas pro-
ximidades dessas comunidades. Assim, os incêndios podem ser pos-
tos para que as favelas e/ou comunidades não se consolidem, ou seja,
são acesos para que não se institucionalizem e/ou recebam políticas
públicas.
Incendiar é um método sistemático de expulsão, especialmente
utilizado pelo mercado imobiliário em casos em que não se pode
fazer a ação de despejo. Na maioria das vezes, é eficaz porque dificil-
mente os/as culpados/as são identificados/as. Nesse sentido, exis-
tem mercados externos e internos dos incêndios nas favelas, pois se
os de fora querem que outra população as ocupe, algumas pessoas
da própria comunidade – geralmente relacionadas à bandidagem –
podem requerer dominar novas áreas e expulsar os/as residentes.
Em 2011, foi criada, na Câmara Municipal de São Paulo, a Co-
missão Parlamentar de Inquérito, que ficou conhecida como a “CPI
dos Incêndios”, mas, infelizmente, já em 2012, a comissão concluiu
que a apuração das causas dessas ocorrências era quase sempre in-
conclusiva.
É importante lembrar que, no Brasil, as moradias, mesmo que
previstas como direitos fundamentais constituídos, são tratadas
invariavelmente como mercadorias lucrativas e exploratórias.
Outra referência importante é o projeto “Fogo no Barraco”,
realizado por jornalistas e programadores/as de sistemas e web que,
em 2012, criaram uma lista pública, um mapa colaborativo e um site,
nomeados de “Fogo no Barraco”, em que permitiram visualizar a
relação entre os incêndios em ocupações e favelas com a especulação
imobiliária e a gentrificação urbana em São Paulo.
Inspirados pela experiência do projeto “Fogo no Barraco”, con-
cebemos o projeto “Terreiro Queimado”, com o desígnio de investi-
gar os atos de racismo religioso no Brasil que hão incendiado comu-
nidades afro-brasileiras. Contudo, devemos precisar que os ataques
religiosos mais comuns são: i) ataques feitos no âmbito dos cultos
das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e prose-
litismo; ii) agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros;
296 | Maurício dos Santos

iii) ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em


locais públicos ou aos símbolos dessas religiões existentes em tais
espaços; iv) ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil
que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras; 5) ata-
ques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangélicos
(SILVA, 2007).
Ao observar as notícias dos terreiros queimados no Brasil, cons-
tatamos que são as mulheres negras, como lideranças religiosas, os
súperos alvos do racismo religioso. Conforme dados do Plano Na-
cional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradi-
cionais de Matriz Africana – 2013/2015, em 2013, aproximadamen-
te 72% das lideranças religiosas afro-brasileiras se autodeclararam
como negros/as e, desses/as, aproximadamente 55,6% eram mulhe-
res.
Nossa intenção, aqui nesta parte do texto, é aproximar as ob-
servações sobre os barracos queimados e barracões queimados, pois
barracão é um dos nomes dos espaços religiosos afro-brasileiros.
Porque acreditamos que são as mesmas categorias de sujeitos/as
que habitam os barracos e os barracões; isto quer dizer que esses/
as residentes são, em sua generalidade, oriundos/as da mesma po-
pulação. Assim como nos barracões, os barracos são chefiados por
mulheres negras.
Informações da pesquisa “Mulheres chefes de família no Brasil:
avanços e desafios” de 2018, mostram que famílias chefiadas por mu-
lheres negras passaram de 6,4 milhões em 2001 para 15,9 milhões
em 2015, contra um crescimento de 7,6 milhões em 2001 para 12,7
milhões das famílias chefiadas por mulheres brancas. No primeiro
caso, o aumento foi de 248%; no segundo caso, de 168% (ALVES;
CAVENAGHI, 2018, p. 57).
O Atlas da Violência de 2018, do Instituto de Pesquisas Econômi-
ca Aplicada (IPEA), mostrou que, em 2016, no Brasil, houve 65.517
(sessenta e cinco mil, quinhentos e dezessete) homicídios, dos quais
40,2% foram de pessoas negras e 16% de pessoas não negras. O
IPEA, com a pesquisa Faces das Desigualdades de Gênero e Raça no
Brasil, em 2011, e com o Dossiê Mulheres Negras – retrato das con-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 297

dições de vida das mulheres negras no Brasil, em 2013, despontou as


subalternizações das mulheres negras no Brasil. Em 2016, com A
situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil – Violên-
cia e Violações, disposto pelo Instituto da Mulher Negra (Geledés) e
pela Organização de Mulheres Negras (Criola), evidenciou-se, por
exemplo, que as mulheres negras representam 64% das mulheres
assassinadas no Brasil e que, da população carcerária feminina bra-
sileira – que subiu de 5.601 (cinco mil, seiscentos e um) para 37.380
(trinta e sete mil, trezentos e oitenta), um crescimento de 570% en-
tre 2000 e 2014 –, a cada 3 (três) encarceradas, 2 (duas) são negras
(LIMA, F. 2008, p. 23).
Assim, como já tratado por Abdias do Nascimento (2016) em
O genocídio do Negro Brasileiro – Processo de um Racismo Mascarado,
perdura no Brasil um processo de aniquilamento dos/as subalterni-
zados/as. E, diante do exposto, invoquemos Achille Mbembe (2017)
para nos acolitar a interpretar a morbidade dos barracos e barracões.
O intelectual camaronês, influenciado por Frantz Fanon e Mi-
chel Foucault, desenvolveu a noção de necropolítica (2017; 2018),
que diz respeito às formas contemporâneas com que se subjuga a
vida ao poder da morte. Ou seja, versa a propósito de “quem importa
e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é” (MBEM-
BE, 2017, p. 65), e igualmente apõe a racialidade como proeminente
“movedor necropolítico” (MBEMBE, 2017, p. 65).
Assim, acreditamos que a noção de necropolítica nos ajuda a
compreender que, nos casos dos barracos e barracões queimados, o
que está em jogo é quem pode aniquilar e quem pode ser aniquila-
do/a. Neste particular, Mbembe (2017) nos instigou a propor que
a questão do racismo religioso no Brasil é, além de uma questão
de racialidade, uma questão de gênero, visto que são as mulheres,
sobretudo as negras, seguidas pelos/as LGBT+, tão presentes nas
religiões afro-brasileiras, as/os que em maior medida padecem sob
os auspícios dos racismos.
Por fim, reiteramos que, no caso dos barracos queimados, o que
está em jogo é a exploração da terra pela especulação imobiliária e
gentrificação urbana. No caso dos barracões queimados, é um ato re-
298 | Maurício dos Santos

ligioso de purificação, o que chamamos de racismo religioso. Porém,


em ambos os casos, o que os assemelha é o fato de que os mesmos
corpos subalternizados preenchem esses espaços e, por isso, são pas-
síveis de aniquilação/conflagração por parte da colonialidade.

4 INCONCLUSÃO

Esta é uma pesquisa, por sua própria natureza e estágio, in-


conclusa. Procuramos, a partir do fogo e seus (ab)usos, estabelecer
conexões aparentemente distantes, mas entremeadas pela colonia-
lidade e pelo racismo, como a relação entre a violência contra os
barracões (de santo) e os barracos (de comunidade) incendiados e a
perpesctiva interseccional entre Florinda, Marielle Franco e Luzia
como mulheres queimadas.
O fogo conduz, ainda, a outras reflexões quando aplicado con-
tra os/as subalternizados/as. Silvia Federici, em Calibán e a bruxa:
mulheres, corpo e acumulação primitiva, afirma que, na América Latina,
lógicas e estratégias que expropriaram e aniquilaram as mulheres
na Europa foram expandidas, em estreita cumplicidade com as bases
do capitalismo nascente. A morte pela fogueira e o incêndio sistemá-
tico operaram, no Novo e no Velho Mundo, a serviço dessa ordena-
ção de corpos e espaços.
A queima de arquivos da resistência e da diferença assume for-
matos outros, como o retorno da indexação de publicações consi-
deradas daninhas pelas igrejas. Em setembro de 2019, o pastor li-
cenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e prefeito do Rio de
Janeiro, Marcelo Crivella, visitou a Bienal do Livro do Rio de Janei-
ro e escandalizou-se com o HQ da Marvel, Vingadores, a cruzada das
crianças, por retratar dois homens que se beijam. A prefeitura do Rio
de Janeiro determinou que os/as organizadores/as da Bienal do Li-
vro recolhessem os exemplares, sob a mesma escusa de proteção dos
valores e da “infância” que levou, em julho de 2020, uma mãe a ser
destituída da guarda de sua filha por ela ser iniciada no candomblé,
em Araçatuba, São Paulo.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 299

Assim, como não falar de Fahrenheit 451, escrito por Ray Bradu-
bury (2012) em 1953, e considerado um marco da literatura de fic-
ção científica? Trata-se de um livro político, uma distopia e/ou uma
anti-utopia, que descreve uma sociedade em que os livros e a leitura
estão proibidos e em que os/as bombeiros/as são incumbidos/as de
incinerar toda e qualquer literatura a uma temperatura equivalente
a 233 graus Celsius ou 451 Fahrenheit. Entre a ficção científica e a
realidade brasileira, estão os governos que oprimem a produção de
conhecimento ou deixam definharem suas instituições e sujeitos/
as; ondas de neo-conservadorismo com forte incitação religiosa ao
racismo religioso e ao epistemicídio; o genocídio da população ne-
gra no “abrir fogo” das armas policiais e a própria necropolítica da
pandemia que seleciona quem vive e quem morre. Curiosamente,
250 e 260 graus Celsius são equivalentes a 482 e 500 Fahrenheit,
temperaturas nas quais a madeira e o concreto – essencialmente os
materiais com que são construídos os barracos e os barracões – in-
cendeiam-se. Entre 2013 e 2019, não à toa, foram noticiados pelo
menos 16 (dezesseis) terreiros queimados – como papel, como cor-
pos condenados – em todo Brasil.
Mesmo assim, convém lembrar que “quem queima a casa dos/
as outros/as também se queima”, enquanto Xangô dança sobre as
brasas e cinzas.

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300 | Maurício dos Santos

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Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 301

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2019.
11
AS CORES DAS/OS CORTES:
UMA LEITURA DO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO N. 494601 A
PARTIR DO RACISMO RELIGIOSO
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino94
Vera Karam de Chueiri95

“Não matamos o animal, damos a ele um novo nascimento.”


(Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de Oxóssi, 2012)

Nenhum conjunto de instituições jurídicas ou normas


existe em separado das narrações que o situam e lhe proporcionam
significado. Para cada constituição existe um épico, todo decálogo
possui uma escritura. (COVER, 2018).

94  Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR.


Pesquisador do Núcleo de Constitucionalismo e Democracia (CCOPNS/PPGD/
UFPR) e do Laboratório Direito, Espaço e Política (LABÁ). Membro da Rede
Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (RENAFRO). Co-organizador do
livro Direitos dos Povos de Terreiro (Eduneb, 2018).
95  Professora dos programas de graduação e pós-graduação em direito da
Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora do CNPQ. Coordenadora do
Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do CCONS/PPGD/UFPR
303
304 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

1 A COR DAS CORTES:96 NORMATIVIDADE, BRANQUITUDE E


RACIALIZAÇÃO

A representação do poder judiciário ou da justiça é normalmen-


te feita por uma mulher, branca, segurando uma balança em uma das
mãos e, na outra, uma espada. Em algumas representações, ela está
vendada; em outras, não. Quase todas as cortes de justiça convivem
– em quadros, estátuas, mosaicos e tapeçarias – com essa represen-
tação (CURTIS; RESNIK, 2011). Nada mais ambíguo do que essa
imagem, em que tudo leva a crer que a justiça e os seus espaços ou,
dito de outra maneira, as Cortes de justiça, são aquelas em que não
se vê e por isso mesmo se garante imparcialidade. Mas essa venda
sobre os olhos da mulher é moderna. A imagem dos antigos era de
uma mulher que via e, porque via, empunhava a espada e a balança
para dizer da justiça (divina) e do direito.
Este artigo não é sobre a representação da justiça e esse in-
cipit é apenas uma chamada de atenção para o fato de que, não de
hoje, gênero, raça e a capacidade ou não de enxergá-los (sua gender
e colourblindness) participam, de modo definidor, das imagens e dos
imaginários da justiça e suas Cortes, ora de olhos bem abertos – por
vezes mesmo panópticos, como nos alerta Stolleis (2014) –, ora de
olhos vendados. Uma mitologia de raízes greco-romanas que, desde
então, nos impõe seu nomos, sua fabulação, sua cor e que, no Brasil,
costuma vir associada aos símbolos cristãos em repartições públicas
e plenários de tribunais, impondo também sua religiosidade e cos-
mologias particulares.97
96  Empregamos, ao longo do texto, o “C” em maiúsculo para as cortes de
justiça e o “c” minúsculo para os cortes rituais e epistêmicos (também cortes de
justiça, mesmo de mais justiça, a seu tempo e modo), não por especial deferência
àquelas, em face destes, mas tão somente para fins de diferenciação, distinção
gráfica. Filosófica e politicamente, porém, no sentido inverso ao da convenção
estilística, advogamos por um processo de “minoração” do direito e dos seus
espaços institucionais, que demanda a minoração deste “c” das cortes, na esteira
da proposta de Deleuze e Guattarri (1995).
97  A discussão sobre a retirada de crucifixos e outros símbolos religiosos de
espaços públicos, leia-se, de espaços institucionais estatais, tem gerado forte res-
sentimento e comoção. A reação alcançou seu ápice com a edição do 3o Plano
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 305

Essas categorias são centrais no presente trabalho, que aborda


o abate ritual de animais e o conceito de “racismo religioso” a partir
dos debates suscitados pelo julgamento do Recurso Extraordinário
n. 494601/RS, no Supremo Tribunal Federal. Tomando como con-
tra-narrativa a justiça de Xangô – ícone cosmopolítico do povo ioru-
bá, em sua terra natal e na diáspora –, a imagem de oju obá, os olhos
do rei,98 comparece para propiciar outras leituras do caso, leituras
quiçá menos sacrificiais da diferença.
Eis a pergunta que nos co-move, que é motor e motivo de nossa
pesquisa: qual a cor das Cortes? Em 2018, o percentual de magis-
tradas(os) negras(os) não ultrapassou a média de 19% nas Justiças
Estadual, Federal e do Trabalho (BRASIL, 2018, p.12). Quase no
mesmo período, por sua vez, a população carcerária brasileira con-
tava com 64% de pessoas autodeclaradas pretas e pardas.99 Os nú-
meros confirmam não só o que a experiência insinua, mas o que os

Nacional de Direitos Humanos (PNDH III), cujas diretrizes em favor da laicida-


de encontraram forte reação, o que levou ao seu parcial abandono pelo Governo
Federal. Situação emblemática, nesse sentido, foi a da justiça estadual do Rio
Grande do Sul que, em 2012, determinou a retirada dos crucifixos de seus pré-
dios. Em 2016, porém, o Conselho Nacional de Justiça, atendendo a um pedido
da Arquidiciose de Passo Fundo, autorizou sua recolocação em parte das insta-
lações do tribunal. Esse histórico demonstra que, mesmo em sua ausência (como
na literalidade da Constituição e da lei), esses signos estão presentes, porém
“invisíveis”, na interpretação de Giumbelli (2014).
98  O termo, presente nas religiões afro-brasileiras, sobretudo no candomblé,
ganhou notoriedade com o enredo da obra Tenda dos Milagres, de Jorge Amado,
publicada originalmente em 1969 (AMADO, 2008). Para uma apreciação mais
detida dos sentidos potencialmente decoloniais dessa justiça, ver o trabalho de
Hoshino (2018).
99 Os dados referem-se ao ano de 2016 e foram extraídos do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) (SANTOS, 2017, p. 32).
306 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

movimentos sociais100 e pesquisadoras(es)101 denunciam: com a de-


sigualdade de condições e oportunidades, parelham o genocídio da
população negra e sua criminalização/encarceramento, duas facetas
do mesmo racismo estrutural.
Resta ‘clara’ a cor do sistema de justiça. Desta quase clarividen-
te clareza dependem os recortes, categorias e enquadramentos por
100  A campanha “Reaja ou será mort@!” descreve de modo contundente e
preciso esta realidade: “A Campanha Reaja ou será mort@ é uma articulação de
movimentos e comunidades de negros e negras da capital e interior da Bahia,
articulada nacionalmente e com organizações que lutam contra a brutalidade
policial, pela causa antiprisional e pela reparação aos familiares de vítimas do
Estado (execuções sumárias e extrajudiciais) e dos esquadrões da morte, milícias
e grupos de extermínio. A campanha surge no ano 2005, em um contexto
de governo ligado a um grupo político que há décadas dominava os recursos
financeiros, o sistema de justiça, e os meios de produção e comunicação na Bahia.
Este mesmo governo tinha no estado penal e no racismo, fundamento para uma
política de genocídio caracterizada pelas mortes de milhares de jovens negros
desovados como animais às margens de Salvador e Região Metropolitana. Dentro
desta conjuntura, resolvemos fazer uma articulação entres nossas comunidades e
os movimentos sociais negros para politizar nossas mortes, colocar em evidência
a brutalidade policial, a seletividade do sistema de justiça criminal que nos tinha
- e ainda tem - como bandidos padrão. Este mesmo Estado genocida vê na cor
de nossa pele, nossa condição econômica e de moradia, nossa herança ancestral e
pertencimento racial, as etiquetas de ‘inimigos a serem combatidos’” (Disponível
em: https://reajanasruas.blogspot.com/p/quem-somos.html).
101  As interseções entre os campos de estudo da criminologia crítica e das
relações raciais são múltiplas e sua ênfase é variável de acordo não só com os
paradigmas da disciplina como com os quadros políticos vigentes: “O momento
de viragem, do racismo como teoria das raças à consideração do racismo como
um problema social e moral, é um ponto fundamental para se compreender
o debate sobre as relações entre o Direito Penal e as Criminologias Críticas.
Esse momento de viragem traz um elemento essencial: o reconhecimento
de que o racismo da palavra racismo é “descoberto” por aqueles grupos que
são vítimas de práticas desumanizadoras. A virada científica acompanhou, ou
melhor, veio a reboque da denúncia das desigualdades socialmente engendradas
pelo preconceito e a discriminação, ou seja, a mudança operou-se nas disputas
políticas e de intelectuais negros e negras que foram anteriores à manifestação
dos cientistas. Na revolução paradigmática que permitiu ir de uma teoria da
raça em direção às diferentes formas de ceticismo científico em relação a essas
teorias, até a acusação de que elas são bibelôs mortos construídos pelo poder,
até a tentativa de construir explicações de como se deu esse processo, está o
protagonismo de um pensamento social crítico e divergente” (DUARTE, 2017,
p. 25-26)
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 307

ele manejados no exercício da função jurisdicional, isto é, aquilo que


as Cortes enunciam quando calam.102 Uma das coisas sobre as quais
silenciam é precisamente sua própria branquitude, silêncio esse que
a torna tão mais eficaz quanto menos tematizada. Afinal, é genera-
lizando o ponto de vista do privilégio estrutural que a normativida-
de branca funciona como dispositivo de padronização do “humano”
– leia-se, da naturalização do homem/mulher branco/a103 como o
universal:

A normatividade branca opera não para posicionar as pessoas bran-


cas como as melhores – o ideal – mas como as mais humanas. Ela
ameaça o tecido de uma sociedade multicultural não exatamente por
alardear a superioridade branca, mas por utilizar diferenças reais ou
imaginadas entre brancos e outros grupos para minar a humanida-
de destes. [...] A branquitude serve a uma função normativa ao de-
finir o leque de atributos e comportamentos humanos esperados ou
“neutros”. Outras categorias raciais emergem como desvios dessa
norma, o que as coloca fora da proteção da lei e da sociedade civil.
A função normativa da branquitude tem implicações importantes,
porém subteorizadas, para o tratamento da branquitude enquanto
categoria jurídica. (MORRIS, 2016, p. 950-952). (Traduziu-se).

Articular branquidade/branquitude (FRANKENBERG, 2004)


com/como normatividade (social e jurídica) é pensar “raça” não
como substância, mas como efeito de processos de racialização em
102  O exercício de apreender as percepções judiciais sobre racismo, por exemplo,
torna legível essa dinâmica de visibilidade/invisibilidade: “Quando levados a
decidir sobre se uma determinada conduta configura ou não o crime de racismo,
o Poder Judiciário fica obrigado a enunciar os termos a partir dos quais a
conduta é percebida. Além disso, tais ações tem a potencialidade de nos informar
os contornos que definem a aplicação de legislações antidiscriminação. Ou seja,
nesses casos, podemos observar como a magistratura criminal se comporta
quando o sujeito de direito normalizado é subvertido: passando a zona do não
ser a se constituir como o “modelo” a partir do qual a proteção jurídica precisa
ser informada e a figura do delinquente vinculada a corpos que habitam a zona
do ser. [...] Na leitura dos julgados, percebe-se que a percepção do racismo é
reduzida a uma dimensão intersubjetiva, dolosa e aberta e que o Poder Judiciário
escancara em sua narrativa processos históricos de desumanização, conforme os
exemplos que se seguem” (PIRES, 2018).
103  Cisgênero heterossexual, poderíamos complementar, mantendo em mente
sempre as indispensáveis lições de Angela Davis (2016) sobre interseccionalidade.
308 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

que a diferença é construída como desvio do referente “normal” en-


tronizado – normal porque branco e branco porque normal, tauto-
logicamente.
O conceito de racismo estrutural (ALMEIDA, 2018), do qual
o racismo institucional é uma faceta, põe em evidência os padrões
estéticos (no plano da corporalidade) e éticos (no plano da aceitabi-
lidade), assumidos como neutros pelos órgãos do Estado. Aplicados
aos casos concretos, esses pressupostos reforçam a branquitude, sem
necessariamente proferir juízos racialmente explícitos:

A normatividade branca funciona, em grande parte, estabelecendo a


perspectiva a partir da qual a aceitabilidade é julgada. Se julgarmos
nossas instituições da perspectiva dos grupos minoritários, ao con-
trário, poderemos concluir que elas são fundamentalmente ilegíti-
mas. [...] Legisladores que propõem um diploma normativamente
branco por exemplo, provavelmente o conceberão, ou ao menos o
descreverão, em termos racionalmente neutros. Não obstante, a le-
gislação discriminará minorias raciais se tão somente experiências
e comportamentos brancos informarem os pressupostos de seus
autores sobre o que é comportamento “tipicamente” ou “ordinaria-
mente” americano. Em vez de proclamar juízos raciais, a norma-
tividade branca se esconde por detrás de uma tela de objetividade
e colorblindness. Frequentemente os participantes num sistema de
normatividade branca negam que a raça tenha qualquer papel em
suas ações e decisões. (MORRIS, 2016, p. 955-956). (Traduziu-se).

A problematização seletiva dos ritos sacrificais – que teve, no


batuque e nas demais tradições da diáspora negra, seus alvos pre-
ferenciais – participa dessa espécie de discriminação racial velada.
Velada porque, embora nenhum dispositivo legal ou ato jurídico faça
menção direta ao espectro racial da questão, são as práticas de matriz
africana – mesmo quando realizadas por pessoas não-negras – os
objetos de criminalização. É dizer: o que se racializa e se repudia no
abate religioso de animais é, antes de tudo, a sua africanidade, a sua
negritude de origem, assim como nas oferendas em espaços públicos,
amiúde consideradas como “poluição ambiental”, e nas cerimônias
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 309

e toques com atabaques, acusadas de “poluição sonora”.104 Assim,


defendemos que as ações e decisões institucionais que levaram, ini-
cialmente, à proibição legislativa dessas práticas tradicionais no Rio
Grande do Sul (com posterior excepcionalização da regra para as
religiões afro-brasileiras) e, em seguida, à judicialização desta ex-
ceção pelo Ministério Público (chegando ao Supremo Tribunal Fe-
deral via Recurso Extraordinário ,494601)105, podem ser lidas como
performances e enforcement da branquitude. O racismo é, destarte, a
chave de interpretação da questão.
Nosso ponto de vista fica mais perceptível quando, por detrás
do argumento autoproclamado “racialmente neutro” da defesa dos
animais (que motiva o projeto de lei do Código de Proteção aos Ani-
mais) ou da tese dita “juridicamente imparcial” da inconstitucionali-
dade da proteção especial aos(às) afro-religiosos(as), vislumbram-se
compromissos ontológicos (pressupostos compartilhados sobre o
que realmente existe) e axiológicos (pressupostos compartilhados so-

104  Trata-se, a nosso ver, de um processo de “ambientalização dos conflitos


sociais” que também vem incorporando os conflitos religiosos (LOPES et al.,
2004).
105  Resume-se o caso. A proibição do “sacrifício” (nos capciosos termos legais)
de animais no estado do Rio Grande do Sul foi ensejada pela Lei Estadual
n. 11.915/2003 (apelidada “Código de Proteção aos Animais”) que, em seu
art. 2°, VII previa: “É vedado: […] VII - sacrificar animais com venenos ou
outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde - OMS
-, nos programas de profilaxia da raiva”. Ocorre que, no ano seguinte à sua
publicação, tendo se mobilizado em torno do referido dispositivo, adeptas(os)
das religiões afro-gaúchas e o movimento negro lograram a aprovação da Lei
Estadual n. 12.131/2004, a qual excluía dessa vedação, por suas especificidades,
“o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana” (par.
único do art. 2º). No entanto, ainda em 2004, o Ministério Público Estadual
ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o dispositivo de exceção,
impugnando tanto material como formalmente a norma. Ao final da ADI n.
70010129690, julgada em abril de 2005, decidiu o Órgão Especial, por maioria,
pelo desprovimento da demanda, com seis desembargadores vencidos, tendo
prevalecido o entendimento de que manter a proibição seria atentar contra a
liberdade de crença e culto garantidas na Constituição brasileira. Da decisão
recorreu o autor, dando origem ao RE n. 494601. Para apreciação detalhada
de todo a controvérsia, desde sua fase legislativa, com novos incidentes mesmo
depois do julgamento em instância estadual, ver o trabalho de Scola (2017).
310 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

bre o que realmente merece existir) marcadamente “brancos”. Ou seja,


nosso ponto de vista fica mais perceptível quando, por detrás da
venda da mulher branca com uma balança na mão e, na outra, a es-
pada, estão olhos bem abertos a capturar as cores do mundo.
Por “brancos” quer-se enfatizar que tais compromissos legiti-
mam determinados modos de existência (nomeadamente aqueles
que se aproximam de uma matriz eurocêntrica) e deslegitimam ou-
tros (aqueles que se reivindicam como de matriz africana), fazendo
emprego de cortes entre “humano” e “desumano” (frequentemente
entendido tanto como “primitivo”, quanto como “cruel”) na relação
entre “humanos” e “não-humanos” (sejam eles, no caso, os animais
sacralizados, sejam eles as divindades africanas, como os orixás). Su-
jeitos, crenças e práticas são, por meio dessa operação, dispostos e
classificados num continuum cromático106 que, lembrando premissas
evolucionistas do século XIX (e, amiúde, invocando-as expressa-
mente, ao propor que as religiões de matriz africana deveriam “evo-
luir”),107 aloca em cada extremo, “natureza” e “cultura, “barbárie” e
“civilização”. Não por acaso, cultura e civilização pertencem, nessas
representações, ao polo branco-europeu. Assim, pode-se dizer que
não apenas as Cortes têm, fenotipicamente, uma cor, mas que tam-
bém a tem o direito, mesmo, se o entendermos, na esteira de Geertz
(2013), como um modo específico de imaginar o mundo.

106  Em alusão ao que Guimarães (2009, p. 41) nomina o “vocabulário cromático”


do racismo.
107  O discurso está na boca do senso comum e dos juristas, reforçando a
sugestão de Warat (1995) sobre o “senso comum teórico dos juristas”, o conjunto
de representações supostamente científicas que circula no mundo jurídico
como forma não de explicação, mas de justificação de seus mecanismos. Nesse
sentido, transcrevemos exemplo de “doutrina” manualesca de teor altamente
evolucionista-racista sobre o tema. No excerto, o autor se arvora a quase um
teólogo das religiões afro-brasileiras e da vontade dos orixás: “A tendência
evolutiva é a abolição deste ritual. [...] Acreditamos que nem os orixás gostariam
de receber, nos cultos religiosos, animais que sofreram, desnecessariamente,
antes de morrer” (SIRVINSKAS, 2013, p. 611).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 311

2 A COR DOS CORTES: NECROPOLÍTICA E RACISMO RELIGIOSO

Num imaginário jurídico dominado por representações de bran-


quitude, o corpo negro é o corpo matável-aprisionável nos mesmos
contornos com que o corpus negro – as epistemes afrocentradas do
candomblé, do batuque e das demais tradições do complexo rizomá-
tico do “Atlântico Negro” (GILROY, 2001) são demonizáveis-des-
cartáveis. Noutras palavras, o epistemicídio do saber negro é dimen-
são simbólica, conexa ao genocídio da população negra, num projeto
colonial de extermínio-subjugação.
É por esse motivo que as noções liberais de “(in)tolerância” e
“diversidade” estão longe de dar conta de um conflito que é, em
princípio, de ordem não exatamente multicultural, mas de mundos
normativos e de modos de ser neles. É sintomático que seja
exatamente um caso que põe em jogo e em cheque as premissas
brancas desses mundos normativos, ao mobilizar – antes, durante e
depois de seu julgamento – tantos atores – em seguidas ocasiões, o
plenário da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul
esteve repleto de partidários de ambas as posições, e o do STF, de
lideranças do povo de terreiro – e a instigar tantos ódios, sobretudo
de grupos animalistas que, entre outras coisas, propagaram versões
mal intencionadas ou, no mínimo, ignorantes das práticas religiosas
– como a ideia de que cachorros, gatos e outros animais de estimação
seriam nelas abatidos.108 O caso esgarça as fronteiras e possibilida-
des do discurso da diversidade e da tolerância. Nem toda a diferença
é igual, há diferenças mais diferentes que outras.
O conceito de racismo religioso parte da desigualdade das dife-
renças, e não de sua homogeneidade para acentuar “a gravidade e,
sobretudo a especificidade da experiência de uma violência perpe-
trada contra as religiões de matriz africana, que tem no racismo o
seu sustentáculo de legitimação e ação destruidora”, visto que as
108  Esse discurso de ódio, camuflado de defesa dos animais, é também seletivo:
“Por outro lado, os abates sagrados kosher e hallal, que também são lidos a partir
de uma significação religiosa, jamais são afetados por proposições legislativas.
E aí reside uma nuance classista e racista da defesa da causa animal.” (BUENO,
2018).
312 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

agressões por elas sofridas “não se circunscrevem a um caráter pura-


mente religioso, mas a uma dinâmica civilizatória repleta de valores,
saberes, filosofias, cosmogonias, em suma, modos de viver e existir
negroafricano amalgamados nas comunidades de terreiro” (DEUS,
2019, p. 15). Vale recordar que o conceito foi central nos debates tra-
vados com o movimento negro e os povos de terreiro na formulação
do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e
Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-2015), no qual
o termo “racismo” aparece 28 (vinte e oito) vezes (BRASIL, 2013).
Outrossim, os dados oficiais sobre violência religiosa no Brasil
confirmam a especificidade dos processos que atingem comunidades
de terreiro. No espectro quantitativo, elas são vítimas incontestavel-
mente majoritárias de agressões físicas, morais e simbólicas. Qua-
litativamente, os meios pelos quais são perpetradas tais violações
sinalizam uma truculência, sistematicidade e coordenação que inse-
rem a problemática no campo estrutural do racismo e da supressão
de direitos (ADAD; FONSECA, 2016).
Isso se comprova com a série de estereótipos veiculados pelos
antípodas das liturgias afro-brasileiras, dentro e fora das institui-
ções públicas, e o pouco ou nenhum conhecimento de causa que re-
velam sobre seus procedimentos e sentidos. Em geral, o argumento
animalista é acompanhado do posicionamento das práticas impug-
nadas no campo do fetichismo e de um passado indesejável. Nesse
sentido, são eloquentes algumas passagens da ação direta de incons-
titucionalidade movida pelo Ministério Público:

É de salientar que as religiões de matriz africana apresentam um


cunho mágico, não havendo espaço para a idéia [sic] de salvação nem
de fixação no além; o que se busca é “a interferência concreta do so-
brenatural neste mundo presente, mediante a manipulação de forças
sagradas, a invocação de potências divinas e os sacrifícios oferecidos
às diferentes divindades, os chamados orixás” [...]. (RIO GRANDE
DO SUL, 2004, p. 6). (Grifou-se).

Na tônica de um positivismo oitocentista, destaca-se, dos deba-


tes registrados no acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, o seguinte pronunciamento:
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 313
No mérito, com a devida vênia, divirjo do culto Relator, pois en-
tendo que a vida deve prevalecer, sempre. O Direito Natural nos
assegura isso, seja em relação aos seres humanos, seja quanto aos
animais. Eu não detectaria a questão da crueldade (ou não). Penso
que o fato em si, de sacrificar um ser humano ou seja um animal, é
‘humanamente’ indesejável, em que pese o respeito que merecem os
cultos defensores do abate como o de sacrificar animais. [...] A mor-
te provocada, é algo cruel em si, seja ela perpetrada com requintes
ou não. Aí reside -na essência- a divergência com o douto posiciona-
mento do colega relator. A HUMANIDADE tem de evoluir para a
preservação da VIDA. (RIO GRANDE DO SUL, 2006, p. 20).

Magia (em oposição a “religião”), “desumanidade” (em opo-


sição a respeito à “vida”) e primitivismo (em oposição a “evolução”),
notas que ecoam o conjunto de vozes fantasmáticas sobre um grande
outro (o “Negro” e o “Indígena”, em especial, mas também o “Orien-
te” ou o “Islã”, noutro vieses), aquilo que Achille Mbembe (2014)
define como a “razão negra”:

Numa primeira instância, a razão negra consiste portanto num


conjunto de vozes, enunciados e discursos, saberes, comentários e
disparates, cujo objecto é a coisa ou as pessoas «de origem africana»
e aquilo que afirmamos ser o seu nome e a sua verdade (os seus atri-
butos e qualidades, o seu destino e significações enquanto segmento
empírico do mundo). [...] Tal razão não passa de um sistema de
narrativas e de discursos pretensamente conhecedores. É também
um reservatório, ao qual a aritmética da dominação de raça vai bus-
car os seus álibis. A preocupação com a verdade não lhe será alheia.
Mas a sua função é, antes de mais, codificar as condições de surgi-
mento e de manifestação da questão da raça, à qual chamaremos o
Negro ou, mais tarde e já no tempo colonial, o Indígena [...] Neste
contexto, a razão negra designa tanto um conjunto de discursos
como de práticas – um trabalho quotidiano que consistiu em inven-
tar, contar, repetir e pôr em circulação fórmulas, textos, rituais, com
o objectivo de fazer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça e
exterioridade selvagem, passível, a tal respeito, de desqualificação
moral e de instrumentalização prática. (MBEMBE, 2014, p. 57-58).

“Fazer acontecer o Negro enquanto sujeito de raça e exteriori-


dade selvagem” parece a descrição mais precisa para o trabalho em
que instâncias oficiais e oficiosas se achavam empenhadas no RE
n. 494601. Ao longo dos mais de quinze anos em que a controvér-
314 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

sia sobre o abate religioso se estendeu, conscientes ou inconscientes


dos parâmetros de branquitude que os orientavam, esses agentes
estatais “pretensamente conhecedores” (no irretocável predicado de
Mbembe) empreenderam uma essencialização e subalternização da
identidade de afrorreligiosas(os), uma operação de racialização que
vinculou negritude (ainda que cultural, quando não biológica) e des-
qualificação moral. No fundo, como o excerto do voto acima “escla-
rece”, uma operação que lhes negava o status mesmo de humanida-
de. Parecendo cambiar o sinal da subjetividade, animais se tornam,
nesse quadro, sujeitos de direitos, ao passo que sujeitos de direitos
são lançados na esfera da animalidade (“bárbaros”, “primitivos”, “sel-
vagens”).
Daí a provocação lançada por Hédio Silva Júnior, advogado dos
amici curiae União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil
e Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-brasileiros do
Rio Grande do Sul (CEUCAB/RS), no RE n. 494601, que, em sua
sustentação oral de agosto de 2018, no STF, demarcou argutamente
a ironia:

Há estatísticas no Brasil que comprovam que nas periferias das


cidades jovens negros são chacinados como animais, mas não há
comoção na sociedade brasileira, não vejo instituição jurídica in-
gressar com medida judicial para evitar que jovens negros sejam
mortos como cães nas periferias, mas a galinha da macumba [...]
parece que a vida da galinha da macumba vale mais do que a vida
de milhares de jovens negros. É assim que a vida de preto é tratada
no Brasil [...] a vida de preto não tem relevância nenhuma, não
causa comoção social, não move instituição jurídica, mas a galinha
da religião de preto, ah, essa vida precisa ser protegida! (SILVA
JÚNIOR, 2018).

A ironia suprema, isto é, rigorosamente falando, a ironia sobe-


rana do caso, é aqui escancarada: confrontando os dados alarmantes
sobre homicídios de jovens negros109 (muitos dos quais cometidos

109  Segundo informa a Campanha “Vidas Negras Importam – Brasil”,


incorporada também pela ONU: “No Brasil, sete em cada dez pessoas assassinadas
são negras. Na faixa etária de 15 a 29 anos, são cinco vidas perdidas para a
violência a cada duas horas. De 2005 a 2015, enquanto a taxa de homicídios por
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 315

pelas forças de segurança pública) com o nível de proteção que essas


vidas encontram nas instituições do Estado, insinua-se a conclusão
de que estas estariam mais dedicadas à salvaguarda dos animais des-
tinados a abate ritual do que à defesa das pessoas negras. Trata-se
de uma política da raça que, como sustenta Mbembe (2016), regula a
economia da morte, distribuindo “sacrifício” como função assassina
do Estado:

Que a “raça” (ou, na verdade, o “racismo”) tenha um lugar proemi-


nente na racionalidade própria do biopoder é inteiramente justificá-
vel. Afinal de contas, mais do que o pensamento de classe (a ideolo-
gia que define história como uma luta econômica de classes), a raça
foi a sombra sempre presente sobre o pensamento e a prática das
políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a
desumanidade de povos estrangeiros – ou dominá-los. Referindo-
-se tanto a essa presença atemporal como ao caráter espectral do
mundo da raça como um todo, Arendt localiza suas raízes na expe-
riência demolidora da alteridade e sugere que a política da raça, em
última análise, está relacionada com a política da morte. Com efeito,
em termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia
destinada a permitir o exercício do biopoder, “aquele velho direito
soberano de morte”. Na economia do biopoder, a função do racismo
é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assas-
sinas do Estado. (MBEMBE, 2016, p. 128).

Num outro circuito de saber-poder biopolítico, que gira em sen-


tido contrário às práticas sacrificiais performadas pelo Estado (e
que, foucaultianamente, detém mesmo um alto potencial disruptivo,
ou seja, de operar um curto-circuito nos modos estatais de distri-
buição de morte), o abate religioso afro-brasileiro ritualiza a vida
que engendra mais vida (comunitária e social), diviniza a produção/
reprodução coletiva e relacional da vida:

Compreende-se que o cosmos candomblecista poderia bem ser re-


presentado por uma enorme boca que necessita ser ressarcida per-
manentemente, ou como um ventre, onde se gesta a vida biológica,

100 mil habitantes teve queda de 12% para os não-negros, entre os negros houve
aumento de 18,2%. A letalidade das pessoas negras vem aumentando e isto
exige políticas com foco na superação das desigualdades raciais.” (ref. Colocar na
bibliografia final http://vidasnegras.nacoesunidas.org/)
316 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri
a vida espiritual (o honko, quarto iniciático), e onde se deposita a
comida que irá gerar novas formas de vida energética. Com efeito,
segundo a cosmovisão do Candomblé, tudo come, comem os altares
para que sejam instituídos, comem, dessa forma, as divindades, co-
mem os objetos rituais, come a cabeça que é a vasilha da identidade
e morada da divindade, comem os lugares centrais do templo, co-
mem as pessoas na mesa com as divindades, comem as doenças para
que estas não comam o paciente. Nesse quadro, alimentos, animais
e pessoas, participam de uma cadeia de sentidos baseada na nutrição
biológica e espiritual, que produz união, ordem cósmica e sentidos
sociológicos. (DIAS, 2019, p. 7).

Se, segundo Derrida (2007, p. 35), “o sacrifício carnívoro é es-


sencial para a estrutura da subjetividade, isto é, também para o fun-
damento do sujeito intencional e, se não da lei, pelo menos do direi-
to”, cabe perguntar se o que as instituições tanto temem e abominam
no abate religioso não é justamente o fato de que este devolva uma
imagem nada redentora delas mesmas. A diferença que faz diferença
é que, neste último caso, trata-se não de um sacrifício de comunhão,
mas de predação; não um modo de relação, mas de aniquilação: a ne-
cropolítica escamoteada de defesa “da vida” e “da sociedade”.

3 A COR DO RECORTE: BRANQUITUDE NARRATIVA E (IN)


JUSTIÇA COGNITIVA

A cor atribuída ao corte110 se revela, ao fim, no contraste com


a branquitude epistêmica e aparece como desvio dela, sob o recor-
te do julgamento. Estamos menos diante de uma divergência entre
moralidades públicas, numa arena simétrica de disputa democrática,
do que de um desencontro entre mundos normativos e pressupostos
existenciais (ou civilizatórios, para parte da literatura). Uma ques-
tão menos jurídica, se podemos dizer, do que política, ou melhor,
cosmopolítica111 (LATOUR, 2004; ANJOS, 2006).
110  Cortar ou kopar são também formas pelas quais afro-religiosas/os aludem
aos ritos de sacralização animal (em iorubá: orô npá).
111  Sobre a noção de comospolítica, fazendo, das de Bruno Latour (2004, p.
406), nossas palavras: “Há muitas definições, mas eu prefiro aquela de Isabelle
Stengers. Ou seja, a de que a “política” são os humanos, e que o “cosmos” são
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 317

Na literatura constitucional, já em 1983, no seminal Nomos and


Narrative, Robert Cover (2004) provocava seus leitores a considerar
casos como o presente numa intricada trama de signos, por meio
da qual o direito se (desa)fia. O léxico da ação normativa, sugere o
arrojado ensaio, inscreve-se não na letra da lei, mas na sua narração:

A tradição jurídica é, portanto, parte integrante de um mundo


normativo complexo. A tradição não inclui somente um corpus ju-
ris, mas também uma linguagem e uma mitologia – narrações que
situam o corpus juris sobre aqueles que expressam suas vontades
através dele. Esses mitos estabelecem os paradigmas para o com-
portamento. Eles constroem relações entre o universo normativo e
o material, entre as restrições da realidade e as demandas por uma
ética. Esses mitos estabelecem um repertório de movimentos – um
léxico de ação normativa – que podem ser combinados em padrões
de significado derivados de estruturas de significado herdadas do
passado. (COVER, 2018, p. 193)

Trinta e seis anos depois, o texto reverbera no contexto do Re-


curso Extraordinário n. 494601, julgado em março de 2019, porém
ainda à espera da redação do acórdão final, ou, como talvez o figu-
rasse o próprio Cover (2004), à espera de uma narrativa que lhe
faça justiça. Essa narrativa demanda um ato de especial compromisso
das(os) ministras(os) e delas(es) exige um movimento de alteridade,
para além de sua autoridade judicial. Exige o reconhecimento de que
cada tradição jurídica – seja a tradição dos terreiros, que se preten-
deu debater, seja a da Suprema Corte, que se pretendeu legítima para
debatê-la – produz sentido constitucional justamente na medida em

as coisas: nenhum dos dois sozinho é o bastante. A palavra ‘cosmopolítica’ é


uma palavra que permite dizer que se fizermos a política apenas entre humanos,
vamos acabar nos fechando em uma esfera exígua demais, feita de interesses de
boa vontade. Se tivermos apenas cosmos, iremos nos encerrar sozinhos na velha
idéia dos naturalistas, que definem a priori um mundo comum que os outros
devem compartilhar. A cosmopolítica permite impedir que os dois se fechem: o
cosmos está lá para impedir que a política se feche, e a política, para impedir que
o cosmos se feche. O cosmos não é mononaturalizado, ele é a expressão de uma
política”.
318 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

que articula seus repertórios interpretativos particulares; noutras


palavras, na medida em que apela à sua mitologia jurídica própria.112
A singular leitura de Cover nos conclama a tra(n)çar os enreda-
mentos que o caso apresenta de modo mais complexo, mais colorido
do que a popularizada e polemicista versão liberdade religiosa x meio
ambiente. Se nos ativermos unicamente ao suposto conflito de dispo-
sitivos constitucionais, captaremos uma tensão entre duas vertentes
jurisprudenciais que o STF vem consolidando: de um lado, a prote-
ção das crenças e cultos, de que o precedente da ADI n. 4439, sobre
ensino público religioso, é testemunha – um precedente, registre-se,
no mérito nada merecedor de aplauso, haja vista o conceito fraco
de laicidade que adota ao desconsiderar as assimetrias de poder e
o racismo nos conflitos inter-religiosos –; de outro, a proteção dos
animais, ilustrada recentemente pela decisão da ADI n. 4983, refe-
rente à prática da vaquejada, em si bastante contestada e na qual se
identifica um uso instrumental da técnica em substituição do en-
frentamento sério da tensão entre valores constitucionais, visto que
a passagem de “sofrimento” a “crueldade” exige uma operação va-
lorativa mais complexa do que a que se ousou, a partir da qual, não
surpreendentemente, deflagrou-se um backlash legislativo.113
Ambos os standards, porém, parecem pobres para a objeto do
RE n. 494601. A nosso ver, a formulação “direitos religiosos” versus
“direitos dos animais”, embora não despida de relevância, está longe
de esgotar a problemática. Em primeiro lugar, ela ostenta uma falsa
dicotomia ou, no mínimo, uma dicotomia enviesada, uma vez que é
precisamente nos terreiros (das inúmeras denominações existentes),
à semelhança de outras comunidades tradicionais, que se operam
cosmopolíticas distintas da moderna, esta sim, responsável pela de-

112 Sobre os mitos fundantes da tradição jurídica moderna, ver o trabalho de


Grossi (2004).
113  Como assinalado por Chueiri e Castillo (2018, p. xx), “O campo semântico do
termo backlash já foi relacionado com a contrarreação do açoite utilizado contra
os escravos, ou com a reação de máquinas. Atualmente, o backlash é utilizado na
esfera pública para designar a reação negativa e violenta a condutas, omissões ou
decisões, sobretudo de autoridades públicas, mas que pode ser aplicado a pessoas
privadas também”.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 319

gradação ambiental calamitosa, o que novamente remete aos cor-


tes coloniais da “questão ambiental” e levou a se cunhar o conceito
de “racismo ambiental”114, também articulando os termos “nature-
za” e “cultura”. Assim, ao lado da importante garantia de exercício
desembaraçado das crenças e cultos de matriz africana, vemo-nos
premidos pela necessidade de assegurar os direitos à identidade, à
diferença, à alimentação, ao patrimônio cultural e ao modo de vida
desses povos tradicionais. Mais do que isso, no julgamento do RE n.
494601, uma sociedade constitutivamente plural se pergunta sobre
o conteúdo e a extensão da (in)justiça cognitiva.
O imperativo primeiro de justiça é, como diria Derrida (2007),
um adequado endereçamento. Endereçar adequadamente o tema do
abate religioso de animais e seus sujeitos requer, antes de tudo, levar
a sério a defasagem semântica de qualquer tradução cultural. No-
ções ocidentais de “sacrifício” e “religião” não têm validade cognitiva
universal e requerem muitas cautelas ao serem manejadas no caso.
É sob essa ótica que as tradições de diversas matrizes africanas,
cultivadas e ressignificadas na diáspora negro-africana, conquanto
devam ser lidas também em sua dimensão espiritual (sobretudo para
a garantia de direitos análogos às demais confissões, o que lhes tem
sido historicamente confiscado), não podem ser reduzidas a esse
âmbito. Tratam-se de povos tradicionais115 que, organizados em co-
munidades de terreiro, de vida, partilham saberes, princípios e va-
lores civilizatórios específicos. Vivem um nomos, como diria Cover
(2004), seu mundo normativo legítimo e que merece tutela consti-
tucional.

114  (In)justiça ambiental e racismo ambiental são conceitos que põem em


evidência as desiguais distribuições de riscos, vulneralidades, precariedades
e culpas nos conflitos sócio-ambientais (Cf. ACSELRAD, HERCULANO,
PÁDUA, 2004)
115  Nos estritos termos do art. 3º, I do Decreto Federal 6.040/2007: “I - Povos
e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
320 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

Conforme afirma Risério (2007, p. 174), “o terreiro é o espaço-


-lugar de uma potência sagrada, mas, também, marco tópico de uma
diferença”. Identidade e diferença são reivindicadas e exigem cotejar
a demanda por direitos, neste caso, com outros já decididos pelos
STF, como o da ADI n. 3239, por exemplo, no qual às comunida-
des quilombolas foram atribuídas “identidades distintivas de grupo
étnico-cultural” (BRASIL, 2018).116 A consequente aplicação do re-
gime jurídico da Convenção n. 169 da Organização Internacional
do Trabalho (“Artigo 8º - 1. Ao aplicar a legislação nacional aos
povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus
costumes ou seu direito consuetudinário”) e do Decreto Federal n.
6.040/2007, olvidados no julgamento do STF, teria o efeito não só
de expandir o quadro de referências normativas da Corte Constitu-
cional, mas também de ampliar o horizonte narrativo do presente
caso.
Entre os saberes, princípios e valores que integram o modo
de vida tradicional dos povos de terreiros, destacam-se as práticas
alimentares, tão centrais na experiência comunitária, que ganham
significado litúrgico. Em grande medida, a comunidade, de que tam-
bém os ancestrais e as divindades participam, constitui-se por meio
da comensalidade: todo o alimento é consagrado e partilhado. É, a
bem dizer, uma comensalidade constituinte, que faz coletividade po-
lítica. Não por outro motivo, o próprio Conselho Nacional de Segu-
rança Alimentar e Nutricional manifestou-se nos autos:

Além do uso religioso, destacamos que para os sistemas alimen-


tares tradicionais de matriz africana o abate doméstico de animais
tem a finalidade de compartilhar o alimento entre a comunidade

116  Definição extraída do acórdão da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.


3239: “O compromisso do Constituinte com a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária e com a redução das desigualdades sociais (art. 3º, I e III, da CF)
conduz, no tocante ao reconhecimento da propriedade das terras ocupadas pelos
remanescentes das comunidades dos quilombos, à convergência das dimensões
da luta pelo reconhecimento – expressa no fator de determinação da identidade
distintiva de grupo étnico -cultural – e da demanda por justiça socioeconômica,
de caráter redistributivo – compreendida no fator de medição e demarcação das
terras” (BRASIL, 2018, p. 4)
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 321
e seus ancestrais, ou seja, para o autoconsumo. O cerceamento ao
direito de acesso e consumo destes alimentos coloca os povos tra-
dicionais de matriz africana em situação de insegurança alimentar.
(CONSEA, 2018, p. 1).

Nas palavras de Wanderson Flor do Nascimento (2015, p. 63-


64), observa-se nesses sistemas tradicionais “a alimentação como
um processo que, ao mesmo tempo, procura manter o caráter orgâ-
nico do corpo plenamente ativo e, também, movimentar e fortalecer
os laços comunitários – que são partes do mesmo”. É por esta razão
que não há nem desperdício, nem crueldade, mas celebração da vida
coletiva, de acordo com seu nomos:

A imagem de crueldade que se atribuem a estes rituais não faz sen-


tido no interior desta percepção da realidade que não apenas vê uma
continuidade entre vida e morte, como evita tanto quanto possível
a morte provocada. [...] A crueldade não pode existir nestes rituais,
sob o risco de perturbar as forças vitais que o ritual e a própria
alimentação buscam organizar e equilibrar. (NASCIMENTO, 2015,
p. 68).

A imputação de “crueldade” que, sem conhecimento de causa, se


faz aos ritos de matriz africana, reproduz, de fato, discursos etno-
cêntricos e epistemologicamente racistas. Bem recorda Talal Asad
(2003, p. 110), ao afirmar que a mobilização de estigmas de “cruel-
dade” foi uma estratégia recorrente dos colonizadores em múltiplas
localidades, pois, “na tentativa de proibir costumes que os europeus
consideravam cruéis, não era a preocupação com o sofrimento indí-
gena que dominava seu pensamento, mas o desejo de impor o que
eles entendiam como padrões civilizados de justiça e humanidade
sobre a população colonizada”.
A colonialidade/branquidade dessas formas hegemônicas de
conhecimento perpetra uma injustiça cognitiva, violando “o direi-
to de diferentes formas de conhecimento coexistirem sem serem
marginalizadas pelas formas de conhecimento oficiais, patrocinadas
pelo Estado” (VISVANATHAN, 1998, p. 42). No caso do Código
de Proteção aos Animais, a chancela pública (institucional) de de-
322 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

terminados circuitos de saber-poder (autointitulados “científicos”)


sobre outros (classificados como “tradicionais”) eviscera essa injus-
tiça da maneira mais violenta: sob a forma de deslegitimação e cri-
minalização dos “métodos [de ‘sacrifício’ animal] não preconizados
pela Organização Mundial da Saúde” (art. 2º, VII da Lei Estadual
n. 11.915/2003). Como sobejam memórias nas delegacias (desde a
obrigação, ainda no sec. XX, de solicitar alvará para terreiros junto
à polícia, passando pela persecução ao “curandeirismo”, em curso até
hoje),117 esse patrocínio oficial ou oficioso de determinados modos
de ser e de conhecer pelo Estado promove um sacrifício maior: o
epistemicídio.

4 COLORINDO O CONSTITUCIONALISMO: POR UM
COMPROMISSO ANTIRRACISTA

O Supremo Tribunal Federal não endossou a proibição: rejeitou,


por maioria, o Recurso Extraordinário n. 494601, com ligeiras res-
salvas individuais, adotando a tese de repercussão geral, segundo a
qual “é constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguar-
dar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em
cultos de religiões de matriz africana”.118 Mas essa é só uma parte
da história.

117  Embora com tipificação penal ligeiramente distinta, os arcaicos crimes


de feitiçaria das ordenações portuguesas têm continuidade no art. 284 do
Código Penal em vigor, no chamado crime de “curandeirismo”. A literatura tem
destacado a incidência seletiva deste tipo e os desacordos onto e epistemológicos
de fundo. Em sentido antropológico, o direito não deixa de funcionar,
nesses casos, numa dinâmica autoconfirmatória, como uma teoria mágica
(SCHRITZMEYER, 2004). A jurisprudência, por sua vez, assume as modalidades
religiosas de matriz europeia como o paradigmas de não-criminalização: “No
espiritismo, os ‘passes’ fazem parte do ritual, como as bênçãos dos padres
católicos, e não configuram o delito do art. 284” (TACrSP, RT 404/282)
e “Não pratica curandeirismo o dirigente de seita religiosa registrada que
ministrava hóstias, águas e óleos bentos, pregando curas milagrosas na
dependência da fé dos fies” (TACrSP, RJDTACr 1/77-8). Sobre este último
ponto, tratamos em outra oportunidade (HOSHINO, 2010).
118  O julgamento ocorreu em duas sessões: a primeira, em 09 de agosto de 2018;
a segunda, em 28 de março de 2019. Das atas extrai-se a seguinte síntese: “Após
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 323

Argumentamos, levando às últimas consequências a formulação


de Cover (2004), que a abrangência da decisão da Corte Constitucio-
nal depende não apenas de seu dispositivo, mas da narrativa na qual
esteja inserida.119 É dizer: uma narrativa constitucional que reconhe-
ça a perseguição às religiões afro-brasileiras como ínsita ao racismo
estrutural, na modalidade de racismo religioso, e que demande das
instituições públicas o compromisso com uma agenda radicalmente
antirracista,120 é a caixa de ressonância que ampliaria a potência do
caso. Na acepção que lhe confere Cover (2004), este compromisso
se pauta pela consideração engajada de todas as possíveis implica-
ções de uma interpretação judicial para os mundos normativos con-
correntes, e não apenas para a tradição jurídica majoritária, e pelo
alinhamento autocrítico da Corte Constitucional contra a violência
que institui a ela mesma, sob pena de jurispatia.121 Aqui, diríamos,

o voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), que dava parcial provimento ao


recurso para dar interpretação conforme a Constituição às normas impugnadas,
e o voto do Ministro Edson Fachin, que negava provimento ao recurso, pediu
vista dos autos o Ministro Alexandre de Moraes. [...] O Tribunal, por maioria,
negou provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Ministro
Edson Fachin, Redator para o acórdão, vencidos, em parte, os Ministros Marco
Aurélio (Relator), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, que também admitiam
a constitucionalidade da lei, dando-lhe interpretação conforme” (STF - DJe nº
81/2019, de terça-feira, 16 de abril de 2019, p. 82-83).
119  Ressalta-se que, ao tempo de elaboração deste artigo, ainda não se achava
publicado o acórdão definitivo, sob responsabilidade do min. Luiz Edson Fachin.
120  O anti-racismo a que aqui nos referimos é aquele que K. Munanga (2008)
classifica como “diferencialista”, em oposição às vertentes universalistas-
integracionistas que, não raro, confunde-se com a própria branquitude normativa:
“O anti-racismo diferencialista, oposto ao racismo diferencialista do qual
nasceu, busca a construção de uma sociedade igualitária baseada no respeito das
diferenças tidas como valores positivos e como riqueza da humanidade. Ele prega
a construção de sociedades pluralistas e pluriculturais; defende a coexistência no
mesmo espaço geopolítico e no mesmo pé de igualdade de direitos, de sociedades
e culturas diversas” (MUNANGA, 2008, p. 109).
121  Segundo Cover (2018, p. 233), “A interpretação sempre tem lugar nas
sombras da coerção. E, a partir desse fato, nós podemos reconhecer o papel
especial dos tribunais. Os tribunais, especialmente os tribunais estatais, são
caracteristicamente ‘jurispáticos’”.
324 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

não somente a violência originária do direito posto, mas também a


violência da branquitude normativa que o organiza.
Não que alusões à discriminação, ao preconceito e aos ataques
contra terreiros tenham estado ausentes dos votos. Nos pronuncia-
mentos de diversas(os) ministras(os), a matéria foi tangenciada, ain-
da que sem menção explícita ao conceito de “racismo”, opção que
fragiliza a leitura do caso por relegar a questão à esfera das atitudes
e posturas individuais, e não das estruturas sociais de atribuição de
valor e distribuição do poder:

A proteção deve ser ainda mais forte, como exige o texto consti-
tucional, para o caso da cultura afro-brasileira, não porque seja
um primus inter pares, mas porque sua estigmatização, fruto de um
preconceito estrutural – como, aliás, já reconheceu esta Corte (ADC
41, Rel. Min. Roberto Barroso, Pleno, DJe 16.08.2017) –, está a me-
recer especial atenção do Estado. (Min. Luiz Edson Fachin).

Se a interpretação da lei não fosse preconceituosa, não haveria ne-


cessidade da exceção [...] aqueles que sustentaram a necessidade de
vedação à crueldade e maus tratos aos animais como se isso fizesse
parte da sacralização erraram de longe, bastava ter ido uma vez a
um terreiro de candomblé e assistido ao seu ritual. (Min. Alexandre
de Moares).

Também reconheço que a inclusão [na legislação sul-rio-gran-


dense] da referência aos cultos e liturgias das religiões de matriz
africana se dá exatamente pela circunstância de haver preconceito
na sociedade, contra tudo que se tem na Constituição e nas leis no
Brasil. Mas é um pouco mais do que preconceito aos cultos, é em
relação a uma origem tragicamente não acabada daqueles que em
grande parte são descendentes de linhagens africanas. (Min. Cár-
mem Lúcia).

Esta questão que hoje é trazida à baila versa exatamente sobre pre-
conceito religioso, o que é mais dramático, um preconceito religioso
que cresce a casa cada dia. Nos últimos 6 meses, a imprensa oficial
noticia que mais de 200 casos de intolerância religiosa contra as
religiões de matriz africana foram praticados. Mais recentemente
foram incendiadas casas que praticavam essas religiões de matriz
africana, de sorte que esse julgamento é um momento ímpar, porque
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 325
é preciso dar um basta a esta situação e este basta virá pela decisão
da Suprema Corte deste país. (Min. Luiz Fux).122

A “interpretação preconceituosa” da lei, ou seja, a seletividade


no exercício de poder de polícia administrativo para fiscalização e
sanção dos terreiros, cada vez mais frequente, foi salientada como
razão para a necessidade de especial proteção. Vislumbra-se, não há
dúvida, um avanço no tratamento do tema, em sua interação com o
racismo institucional. O voto do min. Fachin chegou a evocar a Ação
Declaratória de Constitucionalidade n. 41, que teve por objeto as co-
tas raciais no serviço público federal e que, em sua fundamentação,
chama atenção para “a necessidade de superar o racismo estrutural
e institucional ainda existente na sociedade brasileira. A nosso juízo,
os debates ressentiram-se, porém, de uma falta de integração mais
explícita aos precedentes constitucionais que balizam a conceitua-
ção do racismo na Corte, quais sejam, o HC n. 82.424 (notório caso
Ellwanger, em que o tema foi primeiramente assentado), o ADCT n.
186 (sobre reserva de vagas nas universidades públicas) e a ADI n.
3239 (debatendo direito ao território das comunidades quilombolas).
Segundo os standards neles fixados, caberia construir, para o RE n.
494601, uma narrativa constitucional do compromisso antirracista,
filiando-o a uma linhagem que não só assume a existência do racis-
mo no Brasil, mas que também o entende como estruturante das
relações sociais (portanto, das relações de poder), exigindo políticas
públicas e ações afirmativas. Essa posição implicaria, igualmente,
no reconhecimento das desigualdades de força e representatividade
política que atravessam o campo religioso, percebendo-o realistica-
mente como um mercado em que a concorrência e o conflito cami-
nham lado a lado com o diálogo e os valores espirituais (SILVA,
2007). Mais do que nunca, em tempos de acirramento dos discursos
de ódio e de hostilização contra religiões de matriz africana, como o
comentário do ministro Luiz Fux enfatiza, o STF se vê defrontado
com a tarefa de revisitar o princípio da laicidade já não como um

122  Trechos transcritos da gravação dos debates orais da sessão de julgamento


de 28 de março de 2019.
326 | Thiago Hoshino & Vera Chueiri

dado ou uma norma posta, mas como questão num mundo que não se
secularizou.123
Ao mesmo tempo em que é imperativo voltar a refletir sobre
as interações Estado-religião ou, dito de outro modo, sobre as for-
mas pelas quais as religiões se fazem presentes no e pertencentes
ao espaço público (GIUMBELLI, 2008), também é preciso situar o
constitucionalismo. Parte do projeto de constituição radical124 como
abertura, potência e processo que temos empreendido, diz respeito
às constituições radicadas, isto é, à necessidade de reposicionar as
práticas e teorias constitucionais não apenas numa perspectiva la-
tino-americana, mas igualmente na geopolítica do Atlântico Negro
enquanto modernidade alternativa. Traduzindo coverianamente:
cambiar o registro narrativo do constitucionalismo. A Revolução
Haitiana e a Constituição de 1805 a que deu vida são exemplos de
experiências radicadoras e radicalizadoras – no caso, radicadoras
e radicalizadoras dos ideais de emancipação iluministas, refinados
com os seus próprios. Ou seja, as(os) haitianas(os) foram mais revo-
lucionárias/os que as(os) revolucionárias(os) francesas(es), rompen-
do a filtragem colonial da autoria e invertendo seus sinais (BUCK-
-MORSS, 2009). O eloquente silêncio sobre ambas na história do
constitucionalismo comumente ensinada pelas escolas de direito é
índice da branquitude de suas narrativas:

Portanto, se é pretendido não só a reconstrução dos relatos sobre


o constitucionalismo no mundo moderno, mas também que a prá-
tica constitucional hoje se desvincule do seu estreito compromisso
com o aniquilamento físico, cultural e simbólico da população negra
em diáspora, faz-se necessário uma teoria jurídica mais comprome-
tida com a heterologia, a crítica política e as estruturas rizomór-
ficas mobilizadas pelas experiências de errância do Atlântico Ne-
gro. Uma teoria desconfiada de narrativas totalizantes embebidas

123  Sobre a discussão sociológica em torno da ideia de “desencantamento do


mundo” em Max Weber, conferir Pierucci (2003).
124  Tomamos a definição de Chueiri (2013, p. 33-35): “Poder constituinte e
Constituição devem ser pensados como um processo, como acontecimentos, isto
é, lutas e reivindicações; o tempo dos eventos. [...] Uma Constituição radical
deve reter a ideia de potência, de impulso constituinte. [...] É por essa razão que
a Constituição e a democracia, enquanto promessa, contêm a radicalidade que
abala os horizontes estáveis das nossas expectativas [...]” (2013: 33-35).
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 327
no esquecimento das estruturas identitárias da inscrição africana
nas Américas. Talvez, um constitucionalismo do Atlântico Negro,
o qual esteja apto a lidar com as formas diferenciadas dinamiza-
das pela diáspora negra de enfrentamento, rejeição ou apropriação
das estruturas identitárias rígidas legadas pela modernidade e pelo
colonialismo, entre elas o direito moderno e ao arcabouço dos esta-
dos-nação. (QUEIROZ, 2017, p. 195)

Colorir o constitucionalismo, despertando-o de seu sono colo-
nial e des-vendando sua falsa imparcialidade de cor (colourblindness),
é programa antirracista dos mais urgentes. Sob essa ótica, conquan-
to favorável às religiões de matriz africana, a posição do Supremo
Tribunal Federal no julgamento do RE n. 494601 é sintomática da
ambiguidade dos cortes raciais que a Corte logra empreender. Até
que ela possa ver como oju obá, continuará sendo mais Xangô – o rei
que bem enxerga as diferenças materiais encobertas pela igualdade
formal –, do que Thémis ou Iusticia, o signo de justiça dos povos de
terreiro.

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12
MEMORIAIS DE AMICUS CURIAE NO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
N. 494601, APRESENTADO EM NOME
DA UNIÃO DE TENDAS DE UMBANDA
DE CANDOMBLÉ DO BRASIL E DO
CONSELHO ESTADUAL DA UMBANDA E
DOS CULTOS AFRO-BRASILEIROS DO
RIO GRANDE DO SUL125
EXCELENTÍSSIMA SENHORA PRESIDENTE DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL - MINISTRA CÁRMEN LÚCIA

Recurso Extraordinário n. 494601/RS

O presente MEMORIAL, subscrito pela UNIÃO DE TEN-


DAS DE UMBANDA E CANDOMBLÉ DO BRASIL e CON-
SELHO ESTADUAL DA UMBANDA E DOS CULTOS AFRO-
-BRASILEIROS DO RIO GRANDE DO SUL – CEUCAB-RS,
habilitadas como amicus curiae, pretende destacar seis parâmetros
jurídicos subjacentes ao objeto do aludido recurso, quais sejam:

125  NOTA DOS ORGANIZADORES: este capítulo apresenta a reprodução


literal dos memoriais elaborados pelos autores e apresentados ao Supremo
Tribunal Federal no bojo do Recurso Extraordinário n. 494601, que debateu a
constitucionalidade do abate religioso de animais nas religiões de matriz africana.
Tratando-se de transcrição literal, foi respeitada a redação original, não havendo
ajuste de linguagem, apenas de forma, respeitando-se a integralidade da redação
original.
333
334 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira

1. Liberdade de culto e de liturgia sujeita-se exclusivamen-


te às limitações previstas em lei

2. Legislação disciplina expressamente o abate religioso,


comercial, famélico, defensivo, protetivo da aviação, a eutaná-
sia e o abate profilático

3. Abate religioso configura preceito alimentar e litúrgico


do judaísmo, do islamismo e da religiosidade afro-brasileira

4. Presunção genérica de que somente o abate religioso im-


plicaria maus-tratos, excluído o abate comercial, configura de-
sarrazoada e ilícita discriminação

5. Constituição Federal prescreve a valorização da diversi-


dade e protege as manifestações culturais afro-brasileiras, co-
rolários do princípio constitucional do pluralismo

6. Precedentes normativos e jurisprudenciais da Suprema


Corte Norte-americana e da Comunidade Europeia

Tais matérias, seguidas de aspectos complementares úteis para


o enfrentamento da questão, serão concisamente deduzidas a seguir.

I. LIBERDADE DE CULTO E DE LITURGIA SUJEITA-SE


EXCLUSIVAMENTE ÀS LIMITAÇÕES PREVISTAS EM LEI

A Carta Política de 1988 suprimiu uma cláusula inscrita em to-


das as constituições republicanas, por força da qual a liberdade de
culto e de liturgia subordinava-se ora à moral pública (CF 1891, art.
11, § 5º), ora à ordem pública e aos bons costumes (CF 1934, art.
113, item 5 e art. 146; CF 1937, art. 122, item 4; CF 1946, art. 141,
§ 7º; CF 1967, art. 20, § 5º; CF 1969, art. 153, § 5º).
A imposição do costume como fonte de direito numa seara in-
trincada como é a liberdade de culto e de liturgia, decerto acarretava
o problema de que aludido instituto não expressa um conteúdo des-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 335

critivo, mas sim uma apreciação axiológica, um senso de plausibili-


dade, um juízo de valor suscetível ao arbítrio e ao despotismo, con-
quanto condicionava o exercício do culto e da liturgia às predileções,
preconceitos e idiossincrasias dos detentores do poder.
Conforme lição magistral de John Locke, “[...] cada igreja é orto-
doxa para consigo mesma; para as outras, errônea ou herege.”126
Daí advém a impropriedade da submissão da liberdade de culto
e de liturgia a um conceito jurídico indeterminado e arbitrário, nada
obstante os casos paradigmáticos envolvendo confissões religiosas
nos quais o costume chega a prevalecer sobre leis, a exemplo da Lei
9.294/96 que proíbe propaganda associando consumo de álcool a ce-
rimônia religiosa, norma esta que não inibe o uso de vinho em certas
liturgias frequentadas inclusive por crianças.
Interessante observar que já nos idos dos anos sessenta do sécu-
lo passado, Aliomar Baleeiro realçava a transigência, a maleabilida-
de com que o sistema jurídico trata a matéria da liberdade de crença,
advertindo, todavia, para o problema da intolerância em relação aos
grupos religiosos minoritários: “Mas existe o perigo remoto de into-
lerância para com o culto das minorias, sobretudo se estas se formam de
elementos étnicos diversos”.127
Retomando a disciplina constitucional da matéria, devemos su-
blinhar que o art. 5o da Carta Magna contém dois dispositivos de
interesse imediato:

é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado


o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a
proteção aos locais de culto e a suas liturgias. (CF, art. 5º, inciso VI).

ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou


de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se
de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei. (CF, art. 5º, inciso VIII).

126  John Locke. Carta a Respeito da Tolerância. São Paulo: Instituição Brasileira
de Difusão Cultural, 1964, p. 12-20.
127  Aliomar Baleeiro. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Rio de
Janeiro: Forense, 1980, p. 182.
336 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira

A Lei Fundamental dispõe ainda que não será objeto de delibe-


ração a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias
individuais, atribui à União competência legislativa privativa para
legislar sobre direito civil, protege as manifestações culturais afro-
-brasileiras e prescreve a valorização da diversidade étnica (CF, arts.
60, § 4º, IV; 22, I; 215, § 1º, V).
Em seu art. 19, inciso I, a Constituição Federal proíbe a União,
Estados, Distrito Federal e Municípios de embaraçarem o funciona-
mento de cultos religiosos.
Merece registro o fato de que a única crença religiosa presti-
giada expressamente pela Constituição da República, laica, é aquela
constante do art. 231, verbis: “São reconhecidos aos índios sua or-
ganização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos ori-
ginários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
De seu turno, dispõe o Código Civil que “São livres a criação, a
organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações
religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou
registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento (art. 44.
§ 1o).
Precedente emblemático do Supremo Tribunal Federal pro-
clamou que “Compete exclusivamente à autoridade eclesiástica decidir a
questão sobre as normas da confissão religiosa, que devem ser respeitadas
por uma associação constituída para o culto” (STF – 2a Turma – Recur-
so Extraordinário n. 31179/DF – Rel. Hahnemann Guimarães – j.
08.04.1958).
Culto, do latim cultus, significa veneração, devoção, uma tribu-
tação voluntária de reverências e honras a uma divindade. Via de
regra o culto tem dois objetivos: o primeiro refere-se à veneração a
um ser sobrenatural e o segundo relaciona-se com o enlevo espiri-
tual do cultor.128

128  Hédio Silva Jr., A Liberdade de Crença como Limite à Regulamentação do Ensino
Religioso, Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
2003, p. 90.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 337

Liturgia, do grego leiturgia, designa a ordenação de linguagens,


símbolos, rituais, cerimônias, gestualidades, paramentos, músicas ou
cantigas, enfim, os ritos empregados em um culto religioso, o que
nos permite afirmar que a liturgia configura a expressão, a concre-
tização do culto.129
Dois tratados internacionais ratificados pelo Brasil traçam bali-
zas jurídicas da liberdade de culto e de liturgia:
. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos:

art. 18, item 1. Toda pessoa terá direito à liberdade de pensamento,


de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter
ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade
de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente,
tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração
de ritos, de práticas e do ensino.

Item 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou cren-


ça estará sujeita apenas a limitações previstas em lei e que se
façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou
a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.
.
Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San
José da Costa Rica:

art. 12, item 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência


e de religião.

Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas


crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liber-
dade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual
ou coletivamente, tanto em público como em privado.

Item. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as pró-


prias crenças está sujeita unicamente às limitações prescritas
pela lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a or-
dem, a saúde ou a moral pública ou os direitos ou liberdades das
demais pessoas.

129  Ibidem.
338 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira

Cabe lembrar que a Lei da Ação Civil Pública tutela a honra e


dignidade dos grupos religiosos (art. 1º, VII) e ainda que o Código
Penal reprime o impedimento ou perturbação de cerimônia ou culto
religioso (art. 208) ao passo que a Lei no 4.898/65 pune o abuso de
autoridade decorrente de atentado ao livre exercício do culto reli-
gioso (art. 3º “e”).
Atenção deve ser dedicada também à norma do art. 244, inciso
I, do novel Código de Processo Civil: “Não se fará a citação, salvo para
evitar o perecimento do direito: de quem estiver participando de ato de culto
religioso;”.
Aludidas normas realçam o respeito, o recato, a prudência que
o sistema jurídico impõe ao Estado e aos particulares, ateus ou fiéis,
face ao culto religioso.
À evidência, a liberdade de culto e de liturgia não refoge ao con-
trole da legalidade, porquanto uma vez respeitada a fronteira da li-
citude, inexistem quaisquer embaraços para a prática do culto e suas
liturgias.

II. LEGISLAÇÃO DISCIPLINA O ABATE RELIGIOSO, COMERCIAL,


FAMÉLICO, DEFENSIVO, PROTETIVO DA AVIAÇÃO, EUTANÁSIA
E PROFILÁTICO

Normativas do Ministério da Agricultura e decretos estaduais


disciplinam expressamente o abate religioso, devendo ser salientado
que a Instrução Normativa n. 3/2000, do Ministério da Agricultu-
ra, cataloga-o dentre as modalidades de abate humanitário, senão
vejamos:

Decreto n. 30.691, de 29 de março de 1952, Aprova o novo Re-


gulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Ori-
gem Animal

Art. 135. Só é permitido o sacrifício de animais de açougue por mé-


todos humanitários, utilizando-se de prévia insensibilização basea-
da em princípios científicos, seguida de imediata sangria.      

§ 2º É facultado o sacrifício de bovinos de acordo com preceitos


religiosos (jugulação cruenta), desde que sejam destinados ao
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 339
consumo por comunidade religiosa que os requeira ou ao co-
mércio internacional com países que façam essa exigência.    
Portaria n. 210, de 10 de novembro de 1998, aprova o Regula-
mento Técnico da Inspeção Tecnológica e Higiênico-Sanitária de
Carne de Aves

4.2. Permite-se o abate sem prévia insensibilização apenas para


atendimento de preceitos religiosos ou de requisitos de países
importadores.

Instrução Normativa n. 3, de 17 de janeiro de 2000, aprova o


Regulamento Técnico de Métodos de Insensibilização para o Abate
Humanitário de Animais de Açougue

11.3. É facultado o sacrifício de animais de acordo com preceitos


religiosos, desde que sejam destinados ao consumo por comunidade
religiosa que os requeira ou ao comércio internacional com países
que façam essa exigência, sempre atendidos os métodos de conten-
ção dos animais.”

Decreto Estadual Paulista n. 44.998, de 27 de junho de 2000.


“Art. 1º, O artigo 22 do Decreto n. 39.972, de 17 de fevereiro de
1995, que regulamenta a Lei n. 7.705, de 19 de fevereiro de 1992,
alterada pela Lei 10.470, de 20 de dezembro de 1999, que estabelece
normas para abate de animais destinados ao consumo, fica acrescido
dos §§ 4º, 5º e 6º, com a seguinte redação:

§ 4º. Ficam excluídos do disposto no ‘caput’ deste artigo o abate


ritualístico judaico – Shechitá e o abate ritualístico muçulma-
no – Halal -, fundamentados, respectivamente, nos princípios re-
ligiosos do Talmud e do Alcorão, cujos produtos destinem-se ao
consumo das comunidades regidas por esses preceitos.

§ 5º. Os abates ritualísticos previstos no parágrafo anterior serão


autorizados pela Coordenadoria de Defesa Agropecuária, à vista
de requerimento dos matadouros, matadouros-frigoríficos ou
abatedouros, e deverão ser efetuados por profissionais qualificados
para o exercício dessa função, devidamente credenciados junto
aquele órgão por intermédio das entidades religiosas.

§ 6º. Outros métodos de abate ritualísticos poderão ser admi-


tidos, por decreto, mediante proposição das instituições religiosas
interessadas, desde que comprovada a tradição histórica, cultural e
religiosa perante a Coordenadoria de Defesa Agropecuária.
340 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira

Ao lado do abate religioso, o sistema jurídico brasileiro discipli-


na exaustivamente o abate comercial, sendo igualmente previstos
o abate famélico (Lei 9.605/98, art. 37, I), defensivo (Lei 9.605/98,
art. 37, II e III), protetivo da aviação civil (Lei 12.725/12, arts. 2º,
I; 6º, VI e § 2º), a eutanásia (Lei n. 11.794/08, art. 14, § 2º) e o abate
profilático (Instrução Normativa do Ministério da Agricultura, Pe-
cuária e Abastecimento n. 36/2006, Capítulo I, Seção II, alínea “I”).
A Lei de Crimes Ambientais possui quatro regras diretamente
relacionadas com a proteção animal:

1. proíbe o abate, caça e utilização de animais silvestres (nativos,


exóticos, espécie rara ou em extinção) sem licença ou autorização do
órgão competente (art. 29, § 2º);
2. pune o abuso, ferimento ou mutilação de animais silvestres,
domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos (art. 32);
3. condena a venda, aquisição, guarda ou manutenção em cati-
veiro de espécime silvestre proveniente de criadouro clandestino e
sem autorização legal (art. 29, III);
4. reprime o uso de método cruel para o abate ou captura de
animais (art. 15, II, “m”).

Também a Lei das Contravenções Penais proíbe crueldade, im-


posição de trabalho excessivo, experiência dolorosa ou cruel em
qualquer espécie de animal (art. 64).
Importa assinalar que a lei penal exige autorização prévia para
o abate somente na hipótese de animal silvestre, nativo ou exótico.

III. ABATE RELIGIOSO CONFIGURA PRECEITO ALIMENTAR E
LITÚRGICO DO JUDAISMO, DO ISLAMISMO E DA RELIGIOSIDADE
AFRO-BRASILEIRA

O Tribunal de Justiça de São Paulo registra reiterados julga-
dos nos quais tutela-se o direito ao preceito alimentar religioso,
nomeadamente em contratos de transporte aéreo internacional nos
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 341

quais passageiros solicitam previamente dieta religiosa (alimenta-


ção kosher v.g.) e são desatendidos pelos transportadores.
Vejamos: “Responsabilidade Civil. Transporte aéreo internacional.
Incidência do CDC. Não atendimento de solicitação de refeição es-
pecial (kosher) por passageira judia. Fato que a obrigou a ficar horas
em jejum. Dano moral configurado.” (TJ-SP – 14ª Cam. Dir. Priv. –
Apelação n. 1026206-06.2015.8.26.0100 – Rel. Des. Paulo Roberto
de Santana – j. 19.10.16.)
No mesmo sentido a Apelação n. 1033753-97.2015.8.26.0010,
18ª Cam. Dir. Priv., Rel. Des. Edson Luiz de Queiroz, j. 11.10.16 e
Apelação n. 1038045-91.2016.8.26.0200, 14ª Cam. Dir. Priv., Rel.
Des. Carlos Abrão, j. 19.10.16.
Vale anotar que a certificação para alimentos kosher (preceito
alimentar judaico) e a certificação para alimentos halal (preceito ali-
mentar islâmico) integram a linguagem e os protocolos da agrope-
cuária brasileira e do comércio internacional, especialmente se con-
siderarmos que em 2015 as certificações halal movimentaram um
trilhão de dólares.
Não por acaso atualmente o Inmetro/Ministério do Desenvol-
vimento, Indústria e Comércio Exterior investe na criação de um
Selo Halal para que o Brasil amplie negócios com o cobiçado merca-
do alimentício muçulmano.
Inobstante sua dimensão dietética e econômica, o abate religioso
constitui também um preceito litúrgico, seja para judeus, muçulma-
nos e fieis das Religiões Afro-brasileiras.
Diferentemente da ausência de significado do abate animal em
circunstância secular, civil, comercial, ensinam Jostein Gaarder, Vic-
tor Hellern e Henry Notaker que “O sacrifício é um elemento central
no culto de muitas religiões. Um sacrifício, em geral algo que as pessoas
consideram valioso, é oferecido aos deuses. Pode ser constituído de frutas,
primícias das colheitas, um filhote de animal;”.130

130  Jostein Gaarder, Victor Hellern e Henry Notaker. O Livro das Religiões.
Trad. Isa Mara Lando. Revisão técnica e apêndice Antônio Flávio Pierucci. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 26.
342 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira

Do ângulo bíblico, merece destaque o terceiro livro do Penta-


teuco, Levítico, o qual faz inúmeras alusões ao abate de animais, den-
tre os quais os versículos 1, 2 e 5, do capítulo 1:
1. Chamou o Senhor a Moisés e, da tenda da congregação, lhe disse:

2. Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando algum de vós apre-


sentar oferta ao Senhor, trareis as vossas ofertas de gado ou de ove-
lhas.

5. Depois degolará o novilho perante o Senhor, e os filhos de Arão,


os sacerdotes, oferecerão o sangue, e o aspargirão em redor sobre o
altar que está diante da entrada da congregação.

Na Kaparot, ritual judaico realizado nas vésperas do Yom Ki-


pur, “Dia do Perdão”, um homem apanha um galo ou, sendo mulher,
uma galinha, e passam o animal nove vezes sobre a cabeça recitando
a prece “bracha bnei adam – Seja esta minha expiação”. Em seguida
entregam o animal ao shochet (sacerdote responsável pelo abate); o
valor correspondente à ave é doado a uma pessoa carente.
Já os muçulmanos celebram a Eid al-Adha, Festa do Sacrifício,
cerimônia islâmica realizada no 10º dia do último mês do calendário
islâmico, no fim da hajj (peregrinação à Meca): são sacrificados um
carneiro, camelo, cabra ou boi, em memória da submissão do Profe-
ta Ibrahim (Abraão) à Alá.
De seu turno, as Religiões Afro-brasileiras celebram o Etutu (ri-
tual de oferendas) em observância ao itan (preceito) de Orunmila-Ifá
denominado ebo riru (sacrifício), sendo que o alimento resultante do
abate, o apeje ou sara é consumido pelos fieis como também pela co-
munidade que circunda os templos.
Um traço comum na Kaparot, na Eid al-Adha e no Etutu é o
emprego da jugulação, uma técnica autorizada por decreto federal e
que provoca morte instantânea, sem sofrimento prolongado ou des-
necessário, porquanto consentânea com o art. 3º, item 2, da Decla-
ração Universal dos Direitos dos Animais.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 343

IV. PRESUNÇÃO GENÉRICA DE QUE SOMENTE O ABATE


RELIGIOSO IMPLICARIA MAUS-TRATOS, EXCLUÍDO O
ABATE COMERCIAL, CONFIGURA DESARRAZOADA E ILÍCITA
DISCRIMINAÇÃO

De acordo com pesquisas estatísticas, menos de 10% da popula-


ção brasileira é vegetariana ou vegana.
Num país de 210 milhões de habitantes, 90%, isto é, 190 milhões
de pessoas dependem diariamente do abate comercial para obterem
alimentação, calçados, vestuário e inclusive medicamentos como a
insulina.
Um olhar cuidadoso sobre o abate comercial revela, por exem-
plo, que peixes de qualquer peso são abatidos com requintes de
crueldade, isto é, abandonados fora d’água e entregues à prolongada
sufocação.
Nos restaurantes especializados em “frutos do mar” os clientes
escolhem caranguejos e lagostas ainda vivas, após o que elas são so-
lenemente lançadas em água fervente. No interior do país, bois são
mortos a pauladas.
Utilizado por 90% da população brasileira, o abate comercial
raramente é associado a crueldade ou maus tratos contra animais. Já
o abate religioso, praticado por 0,4% dos brasileiros, frequentemente
é tratado como se fora sinônimo de maus-tratos.
Dizemos 0,4% porque o censo de 2010 registrou a presença de
cerca de 110 mil judeus, 35 mil muçulmanos e 700 mil fieis do Can-
domblé e da Umbanda, cuja soma resulta em 845 mil indivíduos,
algo em torno de 0,4% do total da população.
Ao contrário do abate comercial, o abate religioso praticado por
judeus, muçulmanos ou fieis das Religiões Afro-brasileiras utiliza
um método que acarreta morte instantânea e com o mínimo de dor
– a degola.
Trata-se, aliás, de exigência prevista na Declaração Universal
dos Direitos dos Animais: “Se for necessário matar um animal, ele deve
ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angús-
344 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira

tia” (Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada


pela Unesco em 27 de janeiro de 1978, art. 3º, item 2).
Não por acaso, insistimos, a Instrução Normativa n. 3/2000 do
Ministério da Agricultura cataloga o abate religioso dentre as mo-
dalidades de abate humanitário.
Valendo-nos uma vez mais da jurisprudência do Tribunal de
Justiça de São Paulo, são inúmeros os precedentes que desautorizam
a presunção genérica de que o abate de animais, em circunstância se-
cular ou religiosa, implica maus tratos ou crueldade, senão vejamos:

Entretanto, quanto a matar animais, entendo que, enquanto


não formos um país totalmente vegetariano, não haverá proi-
bição de se sacrificarem bovinos, peixes e aves para alimento,
sob pena de ferirmos outro direito constitucional, que é o da
liberdade de comer qualquer desses animais (...) Mas, por en-
quanto, é como somos, esse é um habito cultural nosso, e só
resta vedar os métodos de abate ou mutilação que signifiquem
sofrimentos para os animais. (...)” (TJ-SP – 2ª Câmara Reservada
ao Meio Ambiente – Ap. 0000516-26.2015.8.26.0412 – Rel. Paulo
Ayrosa – j. 7.7.16).

Ação Civil Pública Ambiental. Maus tratos e descarte de aves em


estágio inicial da vida, através de meios cruéis. Abuso e ilega-
lidade na atividade. Ausência de provas. Utilização de métodos
indicados pela legislação competente. Atividade desenvolvida de
acordo com as normas ambientais. Dano moral coletivo. Não com-
provação. Inadmissibilidade. Sentença de improcedência mantida.
Recurso não provido.

1. Não se vislumbrando nos autos a ilegalidade e/ou abuso


na exploração da atividade econômica, ou mesmo situação de
maus-tratos às aves poedeiras e pintinhos, como apontado na
inicial da presente ação civil pública, sendo utilizados pela ré
os métodos indicados pela legislação ambiental competente para o
abate de animais, uma vez cumpridos os requisitos necessários para
a obtenção dos necessários licenciamentos ambientais, de rigor a
manutenção da sentença que julgou improcedente a ação;

2. Ainda que se considere como lesada, eventualmente, parte


da sociedade que não consome carnes em geral, não há qual-
quer prova do alegado dano moral coletivo, isto é, não restou
evidenciado que a coletividade tenha experimentado algum
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 345
sofrimento psíquico ou angústia desproporcional e impactante
em razão dos danos ambientais causados.”(TJ-SP – 2ª Câmara Re-
servada ao Meio Ambiente – Ap. 0000516-26.2015.8.26.0412 – Rel.
Paulo Ayrosa – j. 7.7.16)

À luz da legislação e de precedentes jurisprudenciais regionais


evidencia-se o fato de que a presunção genérica de que o abate
religioso implicaria maus-tratos ou crueldade, excluído o abate
comercial, configura desarrazoada e ilícita clivagem discriminatória,
reprovada expressamente por esta Excelsa Corte:

Nesta República laica, fundada em bases democráticas, o Direito


não se submete à religião, e as autoridades incumbidas de aplica-lo
devem despojar-se de pré-compreensões em matéria confessional,
em ordem a não fazer repercutir, sobre o processo de poder, quando
no exercício de suas funções (qualquer que seja o domínio de sua in-
cidência), as suas próprias convicções religiosas (grifos no original).
(STF – ADI n. 3.510 – Relator Celso de Mello, j. 29.5.2008)

Cabe anotar, a este respeito, uma obrigação ético-jurídica que


a Lei federal n. 12.288, de 20 de julho de 2010, o Estatuto da Igual-
dade Racial, impõe ao Estado e aos particulares:

O poder público adotará as medidas necessárias para o comba-


te à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à dis-
criminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo
de: (art. 26, caput).

V. CONSTITUIÇÃO FEDERAL PRESCREVE A VALORIZAÇÃO


DA DIVERSIDADE E PROTEGE AS MANIFESTAÇÕES
CULTURAIS AFRO-BRASILEIRAS, COLORÁRIOS DO PRINCIPIO
CONSTITUCIONAL DO PLURALISMO

A Constituição de 1988 assegurou reconhecimento público à


pluralidade étnico-racial e religiosa que caracteriza a sociedade bra-
sileira.
Especialmente demonstrativos do reconhecimento de que fala-
mos são os preceitos transcritos a seguir:
346 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incenti-
vará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas popula-


res, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos partici-
pantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta


significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual,


visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do
poder público que conduzem à:    

V- valorização da diversidade étnica e regional.         

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de na-


tureza material e imaterial, tomados individualmente ou em con-
junto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;”

Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime


de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um
processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de
cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da
Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvi-
mento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos
culturais.    
     
§ 1º O Sistema Nacional de Cultura fundamenta-se na política nacional
de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de
Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios:  

I - diversidade das expressões culturais;”         

Art. 242, § 1°. O ensino da História do Brasil levará em conta as


contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação
do povo brasileiro.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 347

Trata-se de prescrições que conferiram à ideia de cidadão um


significado marcadamente plural e diverso, como também reavalia-
ram o papel ocupado pela cultura indígena e afro-brasileira, no pas-
sado e no presente, como elementos fundantes da nacionalidade e
do processo civilizatório nacional, ao lado, naturalmente, da cultura
de matiz europeu. Por outro lado, configuram enérgica censura a
quaisquer investidas totalitárias, intransigentes, despóticas, nomea-
damente no complexo terreno da religiosidade.
Ademais, a começar pelo preâmbulo, a Constituição Federal eri-
giu o pluralismo como um valor a ser considerado na interpretação
dos princípios e regras constitucionais: “(...) a construção de uma so-
ciedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)”.
No articulado, a Lei Maior exibe ainda o preceito do pluralismo
político (art. 1o, V) e do pluralismo de ideias (art. 206, VI).
Segundo o Dicionário Oxford de Filosofia, deve se entender por
pluralismo:

[...] a tolerância generalizada para com diferentes tipos de


coisas, ou, mais especificamente, para com descrições do mun-
do diferentes, e talvez incomensuráveis (ver comensurável), sem
que se considere nenhuma mais fundamental do que qualquer
das outras.131

Evidencia-se aqui a analogia entre os vocábulos pluralismo e to-


lerância, matéria a respeito da qual esta Corte Suprema já deliberou
que:

Ao contrário dos tempos imperiais, hoje, reafirmo, a República Fe-


derativa do Brasil não é um Estado religioso tolerante com mino-
rias religiosas e com ateus, mas um Estado secular tolerante com
as religiões, o que o impede de transmitir a mensagem de que apoia
ou reprova qualquer delas. (STF – ADPF 54/DF, Relator Ministro
Marco Aurélio, j. 11.04.12).

131  Simon Blackburn. Dicionário Oxford de Filosofia. trad. Desidério Murcho…


et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 301.
348 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira

Adotada pela Unesco em 16 de novembro de 1995, a Declara-


ção de Princípios sobre a Tolerância possui uma definição sobre
tolerância que dispensa considerações suplementares e justifica a
longa transcrição:

Art. 1º - Significado da tolerância. A tolerância é o respeito, a


aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas
de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas
maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fo-
mentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e
a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância
é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é
igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma
virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma
cultura de guerra por uma cultura de paz.

A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A to-


lerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconheci-
mento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades
fundamentais do outro. Em nenhum caso a tolerância poderia ser
invocada para justificar lesões a esses valores fundamentais. A to-
lerância deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo
Estado.

A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do plu-


ralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do
Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do ab-
solutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos in-
ternacionais relativos aos direitos humanos.

Em consonância ao respeito dos direitos humanos, praticar a to-


lerância não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às
próprias convicções, nem fazer concessões a respeito. A prática da
tolerância significa que toda pessoa tem a livre escolha de suas
convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade.
Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se carac-
terizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico,
de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus com-
portamentos e valores têm o direito de viver em paz e ser tais
como são. Significa também que ninguém deve impor suas opiniões
a outrem.
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 349

A nota característica da promoção da tolerância como valor re-


publicano, distingue-se, portanto, por um comportamento ativo do
Estado, em termos de fomentar uma cultura de paz, de convivência
harmoniosa e de respeito recíproco entre todas as convicções filosó-
ficas e crenças religiosas.
Vale dizer, o conteúdo positivo da tolerância impõe ao Estado o
dever de esforçar-se para favorecer a criação de condições que per-
mitam a todos beneficiar-se da liberdade de convicção e de crença e
eliminar qualquer fonte de discriminação direta ou indireta.

VI. PRECEDENTES NORMATIVOS E JURISPRUDENCIAIS DA


SUPREMA CORTE NORTE-AMERICANA E DA COMUNIDADE
EUROPEIA

Em 1993 a Suprema Corte norte-americana enfrentou o debate


sobre o abate religioso de animais como expressão da liberdade de
culto, no emblemático caso Church of de Lukumi Babalu Aye versus
Município de Hialeah/Flórida.132
A Church of the Lukumi Babalu Aye, pertencente à confissão re-
ligiosa denominada Santería (levada para os Estados Unidos no sé-
culo XIX, por negros cubanos), atribui ao abate religioso de animais
um lugar destacado na sua doutrina, fato este que levou o município
de Hialeah (Flórida) a editar decretos proibindo o abate religioso
praticado especificamente pela Lukumi Babalu Aye.
Invocando a Primeira Emenda da Constituição dos Estados
Unidos, a Suprema Corte entendeu que os funcionários públicos de-
veriam ater-se aos princípios maiores da Constituição, entre os quais
a tolerância religiosa. Lembrou ainda que as mesmas normas muni-
cipais conviviam com a matança de animais praticada pelos judeus,
sem que tais matanças fossem condenadas, de modo que a hostilida-
de em relação à Church of the Lukumi configurava uma indisfarçável
discriminação religiosa.

132  Church of de Lukumi Babalu Aye, Inc. versus Município de Hialeah/Flórida,


508 e.u. 520,541 (1993)
350 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira

De seu turno, também a Europa possui precedentes normativos


atinentes ao abate religioso, de que são exemplos a Carta Europeia
dos Direitos Fundamentais, o Regulamento Europeu sobre Abate de
Animais, a Lei da Liberdade Religiosa de Portugal, a Lei da Liber-
dade Religiosa da Espanha e ainda duas leis espanholas que referem
expressamente o abate religioso de animais, nestes termos:

Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

Os povos da Europa, estabelecendo entre si uma união cada vez


mais estreita, decidiram partilhar um futuro de paz, assente em
valores comuns.

Consciente do seu patrimônio espiritual e moral, a União baseia-se


nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da
liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios da
democracia e do Estado de direito. Ao instituir a cidadania da União
e ao criar um espaço de liberdade, segurança e justiça, coloca o ser
humano no cerne da sua ação.

A União contribui para a preservação e o desenvolvimento destes


valores comuns, no respeito pela diversidade das culturas e tra-
dições dos povos da Europa, bem como da identidade nacional dos
Estados.-Membros e da organização dos seus poderes públicos aos
níveis nacional, regional e local; procura promover um desenvol-
vimento equilibrado e duradouro e assegura a livre circulação das
pessoas, dos serviços, dos bens e dos capitais, bem como a liberdade
de estabelecimento.

Trata o item 43. No abate sem atordoamento deverá ser pra-


ticada uma incisão precisa na garganta com uma faca afiada,
para minimizar o sofrimento. Além disso, se os animais não fo-
rem imobilizados mecanicamente após a incisão, o processo de
sangria pode ser mais demorado, o que prolongará desnecessa-
riamente o sofrimento dos animais. Os bovinos, ovinos e caprinos
são as espécies mais frequentemente abatidas através deste procedi-
mento. Por conseguinte, os ruminantes abatidos sem atordoamento
deverão ser mobilizados individualmente e mecanicamente.

Regulamento. Trata o Artigo 2 de definições do capítulo I –


objecto, âmbito de aplicação e definições. “Artigo 2 – Defini-
ções. g) Rito religioso: uma série de actos relacionados com o
abate de animais, prescritos por uma religião; h) Manifestações
culturais ou desportivas: manifestações relacionadas essencial-
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 351
mente com tradições culturais de longa data ou com actividades
desportivas, incluindo corridas ou outras formas de competição, em
que não são produzidas carnes ou outros produtos animais ou em
que essa produção é marginal em comparação com a manifes-
tação propriamente dita e não é e significativa do ponto de vista
econômico;

Trata o Artigo 4 dos métodos de atordoamento do capítulo


II – requisitos gerais. “Artigo 4 - Métodos de atordoamento. 1.
Os animais só podem ser mortos após atordoamento efectuado em
conformidade com os métodos e requisitos específicos relacionados
com a aplicação desses métodos especificados no anexo I. A perda
de consciência e sensibilidade é mantida até a morte do animal.

Os métodos referidos no anexo I que não resultem em morte ins-


tantânea (adiante referidos como “atordoamento simples”) são se-
guidos, o mais rapidamente possível, por um processo que assegure
a morte, tal como sangria, mielotomia, electrocussão ou exposição
prolongada a anóxia..

4. Os requisitos previstos no item 1 não se aplicam aos animais


que são objecto dos métodos especiais de abate requeridos por
determinados ritos religiosos, desde que o abate seja efectua-
do num matadouro.

Regulamento N.01099/2009 do Conselho da União Európeia,


de 24 de Setembro de 2009, Relativo à Proteção dos Animais
no momento da Occisão. Trata o item 15. O Protocolo n. 33
salienta também a necessidade de respeitar as disposições legislati-
vas e administrativas e os costumes dos Estados­Membros nomea-
damente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e
patrimônio regional ao definir e aplicar as políticas comunitárias
no domínio da agricultura e do mercado interno, entre outros. Im-
porta, por conseguinte, excluir os eventos culturais do âmbito de
aplicação do presente regulamento, quando a observância dos re-
quisitos de bem-estar dos animais afecte negativamente a própria
natureza de tais eventos.

Trata o Protocolo 33. “Na definição e aplicação das politicas co-


munitárias nos domínios da agricultura, dos transportes, do merca-
do interno e da investigação, a Comunidade e os Estados-Membros
têm plenamente em conta as exigências em matéria de bem-estar
dos animais, respeitando simultaneamente as disposições legisla-
tivas e administrativas e os costumes dos Estados-Membros, no-
meadamente em matéria de ritos religiosos, tradições culturais e
patrimônio regional.
352 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira
Trata o item 16. “Além disso, as tradições culturais assentam em
padrões de pensamento, de acção ou de comportamento herdados,
consagrados ou habituais, que têm por base, de facto, a nocão de
algo transmitido por um antecessor ou com ele aprendido. Tais tra-
dições contribuem para manter elos sociais duradouros entre as ge-
rações. Na medida em que essas actividades não afectem o mercado
de produtos de origem animal e não sejam motivadas por objectivos
de produção, convém excluir do âmbito do presente regulamento a
occisão de animais que tenha lugar durante esses eventos.

Trata o item 18. “A Directiva 93/119/CE previa uma derroga-


ção à obrigação de atordoamento no caso de abate religioso
realizado em matadouros. Visto que as disposições comunitárias
aplicáveis ao abate religioso foram transpostas de modo diferente
em função dos contextos nacionais, e considerando que as regras
nacionais têm em conta dimensões que transcendem o objectivo
do presente regulamento, é importante manter a derrogação à exi-
gência de atordoamento dos animais antes do abate, deixando, no
entanto, um certo nível de subsidiariedade a cada Estado­Membro.
Assim, o presente regulamento respeita a liberdade de religião e o
direito de manifestar a sua religião ou crença através do culto, do
ensino, de práticas e da celebração de ritos, consagrados no artigo
10 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Portugal, Lei n. 016/2001, de 22 de Junho, Lei da Liberdade


Religiosa. Trata o Artigo 26 – Abate Religioso de Animais.
“O abate religioso de animais deve respeitar as disposições legais
aplicáveis em matéria de protecção dos animais.

Espanha, Lei Orgânica n. 7/1980 de 5 de julho, sobre a liber-


dade religiosa. Artigo segundo. A liberdade religiosa e de culto garanti-
da pela Constituição compreende a imunidade de coação e o direito de toda
pessoa a: b. Praticar os atos de culto e receber assistência religiosa de sua
própria confissão; comemorar suas festividades, celebrar seus próprios ri-
tos matrimoniais; receber sepultura digna, sem discriminação por motivos
religiosos, e não ser obrigado a praticar atos de culto ou receber assistência
religiosa contrárias às suas próprias convicções pessoais.

Artigo sexto. As igrejas, confissões e comunidades religiosas devidamen-


te registradas tem plena autonomia e poderão estabelecer suas próprias
normas de organização, regimento interno e disciplinamento de seu pes-
soal. Tais normas, assim como as que regulamentam as instituições cria-
das com finalidades religiosas, podem adotar normas para salvaguardar
sua identidade e natureza religiosa, assim como o devido respeito às suas
Direitos dos Povos de Terreiro 2 | 353
crenças, sem prejuízo do respeito aos direitos e liberdades reconhecidos pela
Constituição, em especial aqueles referentes à liberdade, igualdade e não
discriminação.

Espanha, Lei 25/1992, de 10 de Novembro, aprova o Acordo


de Cooperação do Estado com a Federação das Comunidades ls-
raelitas da Espanha. Trata o Artigo 14. 1. De acordo com as nor-
mas religiosas e as particularidades específicas da tradição judaica, as
denominações “casher” e suas variantes “kasher”, “kosher”, “kashrut” e
outras congêneres aos termos “U”, “K” ou “Parve”, servem para distinguir
produtos alimentícios e cosméticos elaborados de acordo com os preceitos
religiosos judaicos.

2. Para proteção e o uso correto destas denominações, a Federação das


Comunidades Israelitas da Espanha deverá solicitar e obter registro de
propriedade industrial de marca em conformidade com as normas jurídi-
cas vigentes.
.
Cumpridos os requisitos anteriores, estes produtos, para efeito de comercia-
lização, importação e exportação terão a garantia de haverem sido elabo-
rados de acordo com os preceitos religiosos e a tradição judaica, desde que
as embalagens exibam o símbolo da Federação das Comunidades Israelitas
da Espanha.

3. O abate religioso de animais que se realize de acordo com os preceitos


religiosos judaicos deve respeitar as leis sanitárias em vigor.

Espanha, Lei 26/1992, de 10 de Novembro, que aprova o Acor-


do de Cooperação do Estado com a Federação das Comunida-
des lslamicas da Espanha. Trata o Artigo 14. Trata o Artigo
14. 1. De acordo com as normas religiosas e as particularidades específi-
cas muçulmanas, a denominação “Halal” serve para distinguir produtos
alimentícios elaborados de acordo com o islamismo.

2. Para proteção e o uso correto destas denominações, a Comissão Islâmica


da Espanha deverá solicitar e obter registro de propriedade industrial de
marca em conformidade com as normas jurídicas vigentes.

Cumpridos os requisitos anteriores, estes produtos, para efeito de comercia-


lização, importação e exportação terão a garantia de haverem sido elabo-
rados de acordo com os preceitos religiosos e a tradição islâmica, desde que
as embalagens exibam o símbolo da Comissão Islâmica Espanhola.
3. O abate religioso de animais que se realize de acordo com os preceitos
religiosos islâmicos deve respeitar as leis sanitárias em vigor.
354 | Hédio Silva Jr., Antônio Basílio Filho, Jáder Macedo Júnior & Demétrius Teixeira
4. A alimentação dos indivíduos internados em centros ou estabelecimentos
públicos e instalações militares, bem como a dos alunos muçulmanos de
escolas públicas ou privadas, desde que solicitem, deverá adequar-se aos
preceitos religiosos islâmicos, assim como o horário das refeições durante o
nono mês do calendário islâmico – o ramadã.

Vê-se portanto que nos Estados Unidos como também na Eu-


ropa o abate religioso é qualificado como expressão da liberdade
de culto e de liturgia, sendo que a técnica da degola é reconhecida
como modalidade de abate humanitário, inexistindo qualquer razão
objetiva para que a matéria não seja tratada do mesmo modo num
país plural como o Brasil.
Tomadas estas razões em conjunto, propugnamos pelo conhe-
cimento e desprovimento do Recurso n. 494601 ou, alternati-
vamente, pelo provimento parcial para que a norma impugnada
seja interpretada conforme a Constituição, de modo que o dis-
positivo passe a ter a seguinte redação: “NÃO SE ENQUADRA
NESTA VEDAÇÃO O ABATE RELIGIOSO DE ANIMAIS”.

São Paulo, 26 de julho de 2018.

HÉDIO SILVA JR.


OAB/SP 146.736

ANTONIO BASÍLIO FILHO


OAB/SP 73.304

JÁDER FREIRE DE MACEDO JÚNIOR


OAB/SP 53.034

DEMETRIUS BARRETO TEIXEIRA


OAB/RS 104.631

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