1ª Sessão (Teórica): Dispositivo e biopolítica, de Foucault a Agamben
António Fernando Cascais (2009), “O que é um dispositivo?”, in António Fernando
Cascais, Nuno Nabais e José Luís Câmara Leme (orgs.), Lei, Segurança, Disciplina. Trinta anos depois de Vigiar e punir de Michel Foucault. Lisboa: Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, pp. 31-53
O que é um dispositivo?
António Fernando Cascais
Universidade Nova de Lisboa
“… queria tão-só entender como podem tantos
homens, tantos povos, tantas cidades, tantas nações suportar às vezes um só tirano que não dispõe de mais poder para causar danos do que aquele que se queira suportar e que não poderia causar mal algum a não ser que se prefira sofrer a contradizê-lo. É realmente surpreendente – e, no entanto, tão corrente que deveríamos deplorá-lo em vez de nos surpreendermos – ver como milhões e milhões de homens são miseravelmente submetidos e subjugados, de cabeça baixa, a um deplorável jugo, não porque se vejam coagidos por uma força maior, mas, ao contrário, porque estão fascinados e, por assim dizer, enfeitiçados pelo nome de um, ao qual não deveriam temer (posto que está só), nem apreciar (posto que se mostra para com ele inumano e selvagem) … Assim pois, já que todo o ser humano, consciente da sua existência, sente a desgraça da submissão e persegue a liberdade … que desventurado vício pôde desnaturar o homem, único ser nascido realmente para viver livre, até ao ponto de lhe fazer perder a recordação do seu estado original e o desejo de regressar a ele?”
La Boétie, Discurso sobre a servidão
voluntária Dispositivo tornou-se um termo de uso corrente e generalizado nas ciências sociais e humanas, na filosofia, nos estudos sobre a arte e a técnica, de onde passou para os meios de comunicação de massa. Aplicado bastante mais frequentemente a despropósito que não, desde que Michel Foucault primeiro o empregou, dispositivo integra hoje a gíria académica, como de resto acontece com arqueologia e genealogia, a ponto de todos constituírem portas de acesso aparentemente fácil ao pensamento foucauldiano, com os equívocos e enviesamentos que isso acarreta. É certo que não faltam ocasiões em que dispositivo surge na obra foucauldiana sob a forma algo indiscriminada de um “mot-valise”, com uma fluidez semântica que lhe permite abarcar quanto uma leitura desavisada lá queira pôr. Sem pretendermos ser exaustivos, encontramos: dispositivo numa acepção geral e inespecífica (Foucault, 1994-14: 720 ; 1994-18: 18 ; 1994-31: 731; 1994-32: 18); dispositivo diplomático-militar (Foucault, 2004: 304, 312, 314, 362); dispositivo militar permanente (Foucault, 2004: 312-313); dispositivo de relações entre Estados (Foucault, 2004: 310); dispositivo político de polícia (Foucault, 2004: 304, 314); dispositivo do equilíbrio europeu (Foucault, 2004: 323); família como dispositivo de saber-poder (Foucault, 1994-17: 827); dispositivos de saber (Foucault, 1994-22: 184); dispositivo de segurança (Foucault, 2004: 7-13, 22, 29, 32, 36, 38-40, 50, 55, 61, 111, 113; 1994-36: 371); dispositivo de soberania, a que se opõem os dispositivos de disciplina (Foucault, 2003: 65-68); dispositivos disciplinares pré-modernos (Foucault, 2003: 65-67); dispositivo asilar (Foucault, 2003: 163); dispositivo de verdade (Foucault, 2001: 344; 1994-20 : 159) e dispositivo do enunciado da verdade (Foucault, 2003: 156-157); dispositivo neurológico de captação do corpo- paciente, na medicina (Foucault, 2003: 299-307, 309, 316, 324-325 ; 299) e dispositivo de internamento, na psiquiatria (Foucault, 1994-27: 331); exército e oficina como dispositivos (1994-23: 201); dispositivo de subjectividade (Foucault, 2001: 305); dispositivo entre os estóicos (Foucault, 2001: 441); dispositivo não exercitado (Foucault, 2001: 450); dispositivo de organização disciplinar que é finalizado pela normalização (Foucault, 1999: 45); dispositivos de dominação (Foucault, 1997: 39); e, com certeza, dispositivo de poder (Foucault, 2004: 152 ; 2003: 14-15, 18; 1997: 13-14; 1994-21: 169 ; 1994-23: 203; 1994-24: 251; 1994-28: 421-422). O próprio Foucault foi muito mais claro nas aplicações que fêz de dispositivo do que porventura numa possível definição, suficientemente fluida para autorizar que ele se vulgarizasse de maneira multiforme e cheia de ambiguidades, mas não para desculpar a generalizada desinformação acerca da sua origem e do seu correcto uso no contexto da obra foucauldiana. Com efeito, Foucault fez uso do termo dispositivo, de maneira bem mais parcimoniosa e discriminada do que os seus epígonos e vulgarizadores, em dois momentos da fase genealógica daquela que Dreyfus e Rabinow (1982) acertadamente chamaram a sua “work in progress”: o “dispositivo panóptico”, em Vigiar e punir (Foucault, 1984a), e o “dispositivo da sexualidade”, em A vontade de saber (Foucault, 1977), primeiro volume do seu projecto de uma História da sexualidade, e igualmente referido em outros textos da época (Foucault, 1994-25: 257, 260; 1994-26: 320-322 ; 1994-38: 660-663).
Mas o que é um dispositivo?
Em Vigiar e punir, Foucault analisa o Panóptico concebido em 1787 por Jeremy
Bentham. Sendo com certeza uma forma de arquitectura, o Panóptico é sobretudo uma forma de governo, é uma forma de o espírito exercer poder sobre o espírito (Foucault, 1994 : 437). O sonho arquitectural de Bentham tornou-se numa realidade jurídica e institucional no Estado napoleónico, o qual serviu de modelo a todos os Estados do século XIX. De facto, Foucault pretende concentrar-se no panoptismo da sociedade moderna, o qual vai muito para além da estrutura arquitectónica das instituições panópticas e que de algum modo constituíram os laboratórios de manipulação dos indivíduos humanos com vocação para se disseminarem por todo o tecido social e dar origem ao homem moderno que somos: “Eu diria que a verdadeira transformação foi a invenção do panoptismo. Vivemos numa sociedade panóptica. Temos estruturas de vigilância absolutamente generalizadas, de que o sistema penal, o sistema judiciário são uma peça e de que a prisão é, por sua vez, uma peça, de que a psicologia, a psiquiatria, a criminologia, a sociologia, a psicologia social são os efeitos” (Foucault, 1994-3: 437- 438). Lembra Elden que o panoptismo exprime o dispositivo, ao passo que o Panóptico é exemplificado pela instituição panóptica como a prisão, ou o hospital, ou a caserna, que são um simples sistema arquitectónico e óptico (Elden, 2001: 148). O dispositivo panóptico só se realiza plenamente no panoptismo generalizado que molda a primeira Modernidade, afeiçoando as sociedades normalizadoras e disciplinares que, na sequência de Foucault, Deleuze (1999) mostra terem antecedido e preparado as sociedades de controle que são as nossas actuais. É bem conhecida a tese de Foucault. À sociedade antiga, teocrática e supliciante, sucede a sociedade moderna, somatocrática e disciplinar. Se, na sociedade antiga, o corpo do supliciado é o negativo do corpo glorioso do soberano e o estendal atroz do suplício público repete, simetricamente, a ostentação majestática da imagem do rei, a sociedade moderna abstém-se progressivamente de tocar o corpo do condenado e fá-lo pudicamente quando o faz. Esta passagem é a passagem da era da técnica artesanal à era tecnológica, inaugurada pelo dispositivo panóptico que almeja à visibilidade absoluta como sistema generalizado de controle dos corpos e das almas. O longo braço do rei é substituído pela maquinaria de um poder furtivo que tudo vê sem se deixar ver a ele próprio. Com vocação para se disseminar por todo o tecido social, o panoptismo rege a concepção de penitenciárias, asilos, casernas, escolas, fábricas, hospitais, sem se restringir ao seu arcaboiço arquitectónico, antes o compreendendo conjuntamento com a ortogénese dos comportamentos que visa e que tem por efeito um adestramento geral normalizador e disciplinarizante: “A „disciplina‟ não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê- lo; que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma „física‟ ou uma „anatomia‟ do poder, uma tecnologia. (…) Pode-se então falar, em suma, da formação de uma sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas, espécie de „quarentena‟ social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do „panoptismo‟” (Foucault, 1984: 189). Nele, pouco importa quem exerce o poder, este difunde-se por toda a parte, observa sem ser observado, despertando o medo permanente de se ser surpreendido e a consciência inquieta de se ser observado no flagrante do crime monstruoso ou nas prevaricações mínimas do quotidiano, criando uma sujeição real que nasce mecanicamente de uma sujeição fictícia. O panoptismo vigia e nessa vigilância faz impender sobre a acção dos indivíduos a ameaça permanente de uma ameaça de punição que, sendo ameaça omnipresente, actua por antecipação, adiando paradoxalmente a execução dela e mantendo-a nessa iminência que suspende ad infinitum o gesto transgressor. Diz Foucault que a disciplina se não pode identificar com uma instituição ou um aparelho, mas com um tipo de poder. O poder torna-se assim poder positivo de agir sobre a acção de outrém, por omnisciência. Por isso, prossegue Foucault, é que “Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser invisível e inverificável (…) O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto (…) Dispositivo importante, pois autonomiza e desindividualiza o poder. Este tem seu princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos mecanismos internos produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos (…) Pouco importa, consequentemente, quem exerce o poder (…) O Panóptico é uma máquina maravilhosa que (…) fabrica efeitos homogéneos de poder” (Foucault, 1984: 178). O poder é-o como efeito difuso, inescapável e sem exterior, tendencialmente incorpóreo mas eficaz porque inatingível, impessoal mas retomado espontaneamente por aqueles, todos, sobre quem se exerce. Não nega, obstrói, censura, elimina, tanto quanto produz, afirma, provoca, insta, precipita, intensifica, activa: “O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação „ideológica‟ da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a „disciplina‟. Temos de deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele „exclui‟, „reprime‟, „recalca‟, „censura‟, „abstrai‟, „mascara‟, „esconde‟. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objectos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção” (Foucault, 1984: 172). O dispositivo panóptico constitui pois o esquema de funcionamento de um poder que age positivamente: “Em cada uma de suas aplicações, permite aperfeiçoar o exercício do poder. E isto de virias maneiras: porque pode reduzir número dos que o exercem, ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido. Porque permite intervir a a cada momento e a pressão constante age antes mesmo que as faltas, os erros, os crimes sejam cometidos. Porque, nessas condições, a sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído, é constituir um mecanismo de efeitos em cadeia. Porque sem outro instrumento físico que uma arquitectura e uma geometria, age diretamente sobre os indivíduos; „dá ao espírito poder sobre o espírito‟. O esquema panóptico é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por seu carácter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos automáticos. É uma maneira de obter poder (…) Uma espécie de „ovo de Colombo‟ na ordem da política” (Foucault, 1984: 181-182). Nesta conformidade, o Panóptico “tem um papel de amplificação: se organiza o poder, não é pelo próprio poder, nem pela salvação imediata de uma sociedade ameaçada: o que importa é tornar mais fortes as forças sociais aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar” (Foucault, 1984: 183). Tanto permite a Foucault concluir que: “Se a descolagem económica do Ocidente começou com os processos que permitiram a acumulação do capital, pode-se dizer, talvez, que os métodos para gerir a acumulação de homens permitiram uma descolagem política em relação a formas de poder tradicionais, reituais, dispendiosas, violentas e que, logo caídas em desuso, foram substituídas por uma tecnologia minuciosa e calculada de sujeição. Na verdade, os dois processos, acumulação de homens e acumulação de capital, não podem ser separados (…) Cada uma das duas tornou possível a outra, e necessária; cada uma das duas serviu de modelo para a outra. (…) Digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com o mínimo ónus reduzida como força „política‟, e maximalizada como força útil” (Foucault, 1984: 193-194). Onde a teologia antiga supunha no corpo a prisão da alma, o novo poder disciplinar aprisiona o corpo numa alma assim incessantemente produzida. O poder é ao mesmo tempo discursivo e não discursivo, produz o indivíduo como objecto e como sujeito, é mediado por tecnologias de produção da objectividade e da subjectividade. Faz crescer e multiplicar: a economia, a produção, a instrução, a moralidade, a saúde, a competência; por esse procedimento cria também as figuras modernas do criminoso, do deficiente, do ignorante, do doente, do incompetente e objectiva os parâmetros de um imenso labor de restituição da anormalidade à norma. Onde outrora se destroçava o corpo em nome da salvação da alma, cria-se agora uma aquiescência primeira em que o policiamento geral e sistemático, esquadrinhador, exaustivo e minucioso na sua imensa indiscrição é exercido pelo indivíduo polícia de si mesmo: não é outra a microfísica do poder que, na modernidade, que funde público e privado de um modo porventura melhor expresso pelas possibilidades da língua inglesa: politic, policy, mais do que o sentido clássico de politics, a política como actividade da comunidade humana que é - era - o modelo antigo da polis grega. A biopolítica arruína-o e sobre essas ruínas vai construindo uma nova microfísica do poder que garante, no fundo, a submissão das forças e dos corpos que constitui o subsolo das liberdades formais e jurídicas: “As „Luzes‟ que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas” (Foucault, 1984a: 195). Conclui Foucault que “…a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem social; mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma táctica das forças e dos corpos. Somos bem menos gregos que pensamos. Não estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens” (Foucault, 1984: 190). É precisamente pelo modo como somos engrenagens, “relais” ou correias de transmissão, ao mesmo tempo objectos e agentes nas relações de poder que o dispositivo panóptico agencia, que ele pode cumprir a sua vocação de se transformar em panoptismo generalizado. Com efeito, o dispositivo panóptico é um laboratório de produção de indivíduos, de produção da humanidade dos indivíduos que já pouco tem que ver e desmente mesmo o humanismo que presidiu ao projecto de Menscheitsbildung da Modernidade: “… o Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar indivíduos (…) O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. (…) O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda a certeza as transformações que se pode obter neles. O Panóptico pode até constituir-se em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos. (…) O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; a aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objectos que devem ser reconhecidos em todas as superfícies onde este se exerça” (Foucault, 1984: 180). Indistintamente técnico e político, o panóptico é tecnologia política e, nisso, ele começa já a ser panoptismo, capaz de se generalizar e disseminar por todo o tecido social: “O hospital primeiro, depois a escola, mais tarde ainda a oficina, não foram simplesmente „postos em ordem‟ pelas disciplinas; tornaram- se, graças a elas, aparelhos tais que qualquer mecanismo de objectivação pode valer neles como instrumento de sujeição, e qualquer crescimento de poder dá neles lugar a conhecimentos possíveis; foi a partir desse laço, próprio dos sistemas tecnológicos, que se puderam formar no elemento disciplinar a medicina clínica, a psiquiatria, a psicologia da criança, a psicopedagogia, a racionalização do trabalho. Duplo processo, portanto: arrancada epistemológica a partir de um afinamento das relações de poder; multiplicação dos efeitos de poder graças à formação e à acumulação de novos conhecimentos. A extensão dos métodos disciplinares se inscreve num amplo processo histórico: o desenvolvimento mais ou menos na mesma época de várias outras tecnologias – agronómicas, industriais, económicas” (Foucault, 1984: 196-197). Ora, apesar de a noção de dispositivo ser o sustentáculo de todo o fio de raciocínio desenvolvido tanto em Vigiar e punir como em A vontade de saber, não é nem num nem noutro destes textos que Foucault a define, e sim, quando, em entrevista, é instado a fazê-lo: “Aquilo que tento abranger sob este nome é, em primeiro lugar, um conjunto resolutamente heterogéneo que comporta discursos, instituições, arranjos arquitectónicos, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos proposições filosóficas, morais, filantrópicas, em suma: o dito, bem assim como o não dito, eis os elementos do dispositivo. O próprio dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. Em segundo lugar, aquilo que eu queria incluir no dispositivo é justamente a natureza do laço que pode existir entre esses elementos heterogéneos. Deste modo, o discurso tal pode aparecer, ora como programa de uma instituição, ora, ao contrário, como um elemento que permite justificar e mascarar uma prática que, ela, permanece muda, ou funcionar como reinterpretação segunda dessa prática, dar-lhe acesso a um campo novo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não, há como que um jogo, mudanças de posição, modificações de funções, que podem, também elas, ser muito diferentes. Em terceiro lugar, por dispositivo, entendo uma espécie - digamos - de formação, que, num dado momento histórico, teve por função maior responder a uma urgência. O dispositivo tem pois uma função estratégica dominante. Tal pôde ser, por exemplo, a reabsorção de uma massa de população flutuante que uma sociedade de economia essencialmente mercantilista achava acabrunhante: houve aí um imperativo estratégico que funcionava como matriz de um dispositivo e que pouco a pouco se tornou no dispositivo de controle-sujeição da loucura, da doença mental, da neurose” (Foucault, 1994-26: 299). De salientar, portanto, nesta definição, a reticularidade do dispositivo, ou seja, o dispositivo funciona como uma rede acentrada que articula elementos heterogéneos onde se incluem tanto práticas discursivas como práticas não discursivas. Além da estrutura de elementos heterogéneos, o dispositivo define-se também por um certo tipo de génese, a qual tem dois momentos essenciais: “Um primeiro momento, que é o da prevalência de um objectivo estratégico. Em seguida, o dispositivo constitui-se propriamente como tal e permanece dispositivo na medida em que ele é o lugar de um duplo processo: processo de sobredeterminação funcional, por um lado, porque cada efeito, positivo e negativo, pretendido ou não pretendido, vai entrar em ressonância ou em contradição com os outros, e apela a uma retoma, a um reajustamento dos elementos heterogéneos que surgem aqui e ali. Processo de perpétuo preenchimento estratégico, por outro lado” (Foucault, 1994-26: 299). Ou seja, o facto de funcionar de modo reticular e acentrado não impede que o modus operandi do dispositivo seja desprovido de finalidade. Mais, ele não veicula apenas estratrégias de poder, mas igualmente relações de saber, e estas últimas em correlação com as primeiras : “O dispositivo está sempre inscrito num jogo de poder, mas sempre ligado também a uma ou a várias formas de saber que dele brotam, mas que do mesmo modo o condicionam. É isto o dispositivo: estratégias de relações de forças que sustentam tipos de saber e que são por eles sustentadas” (Foucault, 1994-26: 300). Por outro lado, o dispositivo é, reconhecidamente, a partir de Vigiar e punir, o sucessor e o substituto da episteme (Gabilondo, 1990: 170-171) de As palavras e as coisas (Foucault, 1988a): “… dispositivo é um caso muito mais geral da episteme. Ou antes (…) a episteme é um dispositivo especificamente discursivo, ao contrário do dispositivo que, ele, é discursivo e não discursivo, sendo os seus elementos muito mais heterogéneos” (Foucault, 1994-26: 301). Se, em As palavras e as coisas, Foucault tinha mostrado como a figura – efémera e votada a um desaparecimento tão inexorável quanto tinha sido contingente a emergência - do homem moderno era produto das práticas discursivas que consubstanciam as ciências humanas, em Vigiar e punir, é sobre as práticas não discursivas de moldagem da humanidade dos indivíduos modernos que somos, ou fomos feitos, que ele se debruça: “O dispositivo oferece-se como uma rede que trata de se estabelecer entre elementos, que não se deixam reduzir simplesmente ao dito. Elementos que configuram um conjunto heterogéneo (…) Mas não se trata simplesmente de tal conjunto, antes se refere à natureza do vínculo que pode existir entre esses elementos heterogéneos que, nessa medida, podem mudar de posição ou modificar a sua função numa espécie de jogo. Jogo que, em definitivo, e esta é uma caracterização decisiva do dispositivo, é de natureza essencialmente estratégica (…) Esta posição ou imperativo estratégico é a verdadeira matriz do dispositivo” (Gabilondo, 1990: 170). Mas, como justamente assinala J. A. Miller na mesma entrevista (Foucault, 1994-26: 301), os dispositivos que visam dar conta das práticas não discursivas como das práticas discursivas de manipulação dos indivíduos humanos, continuam, porém, a ser conjuntos significantes. Efectivamente, a observação nada tem de despiciendo: outra característica do dispositivo é a sua performatividade, ou seja, a sua capacidade de produzir efeitos de sentido. Lembremos a importância que, neste assunto, Foucault atribui à pragmática (Foucault, 1994-13: 631-632). Tanto implica que a linguagem que opera no seio do dispositivo seja concebida como tecnologia de produção de efeitos pragmáticos, o que tem por consequência que já não seja particularmente importante distinguir entre o que é discursivo e o que o não é no que respeita ao dispositivo (Foucault, 1994-26: 302). Dizem-nos a este propósito Dreyfus e Rabinow que Foucault introduziu o termo técnico dispositivo com o fim de “construir um modo de análise das práticas culturais que, na nossa cultura, contribuiram para formar o indivíduo moderno como objecto e como sujeito” (Dreyfus e Rabinow, 1983: 120). Se, em As palavras e as coisas, Foucault analisava essencialmente as ciências humanas como práticas discursivas, em Vigiar e punir, ele trata tanto das práticas discursivas como das práticas não discursivas de produção do indivíduo moderno, quer como objecto – de um determinado saber que o constitui como positividade – quer como sujeito – que estabelece consigo próprio um determinado tipo de relação, ou seja, que se constrói como subjectividade, relação essa que é prefigurada, numa forma primitiva, pelo sucesso utópico da prisão panóptica ao transformar o detido em carcereiro de si próprio. As fronteiras entre discursivo e não discursivo esboroam-se aqui, mas, do mesmo modo, também a tradicional distinção entre teórico e prático, científico e técnico. De resto, a reticularidade, o carácter estratégico e a performatividade do dispositivo são evidentes para os comentadores de Foucault que disso tiram consequências. Assim Elden: “Aquilo que Vigiar e punir mostra é como o supplice do século dezoito é substituído pelo dispositif disciplinar do século dezanove: um dispositif coextensivo a tecnologias de poder que produzem um corpo dócil, uma „alma‟ cognoscível e uma subjectivação do indivíduo” (Elden, 2001: 149). E assim Deleuze: “A filosofia de Foucault apresenta-se frequentemente como uma análise dos „dispositivos‟ concretos. Mas o que é um dispositivo? É antes de mais uma meada, um conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de natureza diferente. (…) Assim as três grandes instâncias que Foucault distinguirá sucessivamente, Saber, Poder e Subjectividade, de modo nenhum têm contornos de uma vez por todas, antes são cadeias de variáveis que se arrancam umas às outras” (Deleuze, 1989: 185). E acrescenta: “As duas primeiras dimensões de um dispositivo, ou aquelas que Foucault começa por destacar, são curvas de visibilidade e curvas de enunciação. (…) são máquinas de fazer ver e de fazer falar. (…) Em terceiro lugar, um dispositivo comporta linhas de força. (…) de certo modo, elas „rectificam‟ as curvas precedentes (…) A linha de forças (…) passa por todos os lugares de um dispositivo. (…) É a „dimensão do poder‟ e o poder é a terceira dimensão do espaço, interior ao dispositivo, variável com os dispositivos. Ela compõe-se, tal como o poder, com o saber. (…) Enfim, Foucault descobre linhas de subjectivação. (…) uma linha de subjectivação é um processo, uma produção de subjectividade num dispositivo: ela tem de se fazer, na medida em que o dispositivo a deixe ou a torne possível. É uma linha de fuga. (…) O Si não é nem um saber nem um poder. É um processo de individuação (…) Não é certo que todo o dispositivo comporte um” (Deleuze, 1989: 185-187).
Foucault, Heidegger e a pudenda parentalidade do dispositivo
As referências explícitas a Heidegger na obra foucauldiana são tão escassas e
quase sempre tão superficialíssimas (Foucault, 1997 : 7, n19 ; 1994-4: 542 ; 1994-5: 545; 1994-6: 551 ; 1994-7: 553 ; 1994-8: 582 ; 1994-9: 768, 770 ; 1994-10: 372 ; 1994- 11: 542; 1994-12: 521 ; 1994-23: 193 ; 1994-30: 604 ; 1994-36: 455; 1988c: 145), quanto são óbvias as afinidades profundas que existem entre ambos, pelo menos a determinados níveis. A afinidade profunda que aqui pretendo relevar é aquela que existe entre a concepção foucauldiana de dispositivo e o pensamento heideggeriano acerca da técnica moderna. Será necessário aguardar por uma daquelas entrevistas sumamente reveladoras acerca de si e do seu pensamento, para que Foucault esclareça, perante os seus interlocutores estrangeiros, que: “Heidegger foi sempre para mim o filósofo essencial. Todo o meu devir filosófico foi determinado pela minha leitura de Heidegger. Mas reconheço que foi Nietzsche que o sobrelevou. Não conheço suficientemente Heidegger, praticamente não conheço Ser e Tempo, nem as coisas editadas recentemente. O meu conhecimento de Nietzsche é bem melhor que aquele que tenho de Heidegger; nem por isso eles deixam de ser as duas experiências fundamentais que fiz. É provável que, se não tivesse lido Heidegger, não teria lido Nietzsche. Tinha tentado ler Nietzsche nos anos cinquenta, mas Nietzsche sozinho não me dizia nada! Enquanto que Nietzsche e Heidegger, foi o choque filosófico! Mas nunca escrevi nada sobre Heidegger e não escrevi sobre Nietzsche mais do que um pequeno artigo; são, no entanto, os dois autores que mais li” (Foucault, 1994-39: 703). Não será por acaso que a nacionalidade não francesa dos entrevistadores terá facilitado este tão contundente esclarecimento no contexto do longuíssimo silenciamento da influência heideggeriana na obra de Foucault. Com efeito, trata-se de um silenciamento que igualmente é praticado pelos conhecedores franceses dela, como que em contraponto à desenvoltura com que os estrangeiros falam disso e enfatizam o facto de ele revelar que começou a ler Heidegger em 1951 ou 1952 e Nietzsche em 1952 ou 1953 e possuir toneladas de notas das suas leituras de Heidegger (Foucault, 1994-37: 436; 1994-39: 703). Ora, como bem observam Milchman e Rosenberg, há muito poucas provas de uma influência textual directa de Heidegger sobre Foucault, com excepção dos seus primeiros escritos, como a introdução a Sonho e existência de Ludwig Binswanger (Foucault, 1994-1) e Doença mental e psicologia (Foucault, 1984b), ambos de 1954, entre outros (Foucault, 1994-2) em que a presença heideggeriana é “esmagadora” (Milchman e Rosenberg, 2003: 4), “ainda que como fornecedor de uma antropologia existencial”. É bem certo, foi pela via da Daseinanalyse que a influência heideggeriana se fêz notar de forma visível no primeiro Foucault (Zoungrana, 1998: 269-276). Na verdade, a Daseinanalyse seria das poucas áreas do pensamento heideggeriano que um autor francês se abalançaria a usar sem incorrer na suspeita, senão no anátema, de resto explicável na França intelectual do pós-Segunda Guerra Mundial onde pontificava a geração de Sartre e onde o pensamento e a biografia de Heidegger equivaliam a um tição aplicado à ferida insanável da ocupação nazi. Aliás, é explicitamente Sartre que Foucault responsabiliza pela rejeição de Heidegger em França (Foucault, 1994-5: 545). Levado mais longe do que a Daseinanalyse, o uso que Foucault faz de Heidegger torná-lo-ia irrecuperável nas circunstâncias da época. Eis porque Foucault o faz por assim dizer “silenciosamente”, o que também explica a cumplicidade dos seus comentadores franceses que igualmente resistem a esmiuçar a questão. Por outro lado, é o próprio Foucault a temperar as suas afinidades heideggerianas por interposta invocação de Nietzsche, facto de que imediato tiram proveito todos quantos optam por falar de um nietzscheanismo de Foucault, mas, eles, com o intuito de calarem qualquer perigo de um heideggerianismo dele, o qual, de facto, não se lhe pode imputar, como adiante se verá melhor. Com efeito, o modo como Foucault se serve de Heidegger indo muito para além dele e afastando-se definitivamente de tudo quanto no pensamento heideggeriano o comprometia filosoficamente com o nazismo, impede de se falar de um heideggerianismo de Foucault, o que, é mister reconhecê-lo, mais não faz que reforçar a sua dívida para com Nietzsche. Não obstante, o que Foucault vai buscar a Heidegger é bem mais do que a Daseinanalyse, ao contrário do que teriam decerto apreciado os seus comentadores. Efectivamente, o conhecimento e a invocação da Daseinanalyse teria necessariamente de levar Foucault a confrontar-se com os pressupostos e implicações da análise existencial do Dasein e com o respectivo uso que ele próprio faz no seio do seu empreendimento reflexivo. Assim, Doença mental e psicologia, texto precoce e “primitivo” sem real peso no posterior desenvolvimento das pesquisas de Foucault, evidencia porém a total familiaridade dele com a antropologia não-humanista heideggeriana e, obrigatoriamente, com a sua teoria da experiência na qual a mundaneidade, a linguisticidade e a tecnicidade são fundadoras. Ainda que respeitante à análise, explicitamente referida a Ser e Tempo, do meio espácio-temporal (Umwelt) como estrutura do mundo vivido nos esquizofrénicos, a seguinte passagem ilustra de forma eloquente aquela familiaridade, como muito bem assinala Zoungrana (1998: 269- 270): “O sentido da „utensilidade‟ desapareceu do espaço; o mundo dos „Zuhandenen‟ (utensílios), como diria Heidegger, não é mais, para o doente, senão um mundo dos „Vorhandenen‟ (o simplesmente dado)” (Foucault, 1984b: 64). A este propósito, Elden regista a espacialidade do Da-sein em alemão, ser-aí, que é sinónimo de ser-no-mundo, In-der-Welt-Sein, para logo afirmar que a importância da espacialidade em Heiddeger não se compadece com uma leitura tão mediata, simplista e imprecisa de Ser e Tempo, e que entender a atitude de Heidegger para com o espaço, nas suas obras iniciais, é uma tarefa mais difícil e delicada. Deste modo, o ser-aí do Dasein é a expressão existencial formal do ser do Dasein. A espacialidade do Dasein não é uma sua característica primária no sentido do atributo de uma coisa real, antes se refere a espacialidade à mundaneidade do Dasein. Em contrapartida, o Dasein encontra coisas, lugares, técnicas; a proximidade espacial delas consiste no estarem à mão (Elden, 2001: 15-17). Em Heidegger, o espaço é um existencial, é experiência da espacialidade, o que significa que não se determina como pura extensão, ao contrário da concepção cartesiana, mas segundo a dynamis que lhe é própria: “O espaço é encontrado na vida quotidiana e vivido, não encontrado formas e distâncias geometricamente mensuráveis” (Elden, 2001: 17). Ora é precisamente de um pensamento da espacialidade que dá mostras a análise que Foucault faz do dispositivo. Para os autores (Hubert L. Dreyfus, 2003; Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, 1983; Stuart Elden, 2001, 2003; Béatrice Han, 2003; Steven V. Hicks, 2003; Ladelle McWhorter, 2003; Alan Milchman e Alan Rosenberg, 2003; Jana Sawicki, 2003; Michael Schwartz, 2003; Charles E. Scott, 2003; Hans Sluga, 2006; William V. Spanos, 1993, 2003; Leslie Paul Thiele, 2003; Rudi Visker, 2003; Edith Wyschogrod, 2003; Michael Zimmerman, 1990; Jean Zoungrana, 1998) que se debruçam específica e demoradamente sobre as relações de Foucault com Heidegger, são múltiplas as afinidades, as influências, as citações intertextuais. Como é evidente, não sendo todas igualmente pertinentes do ponto de vista dos propósitos do presente texto, elas sempre contribuem para reforçar aquelas que de facto são interessantes. Na sequência do que temos vindo a tratar, interessa-nos o quanto o pensamento heideggeriano sobre a técnica inspirou de algum modo a concepção foucauldiana do dispositivo, concepção a que Foucault terá chegado na senda da crítica ao humanismo moderno, por ele partilhada com Heidegger. É provável que Foucault tenha começado as suas leituras de Heidegger pela Carta sobre o humanismo (Eribon, 1989: 49; Sluga, 2006: 221; Zoungrana, 1998: 286- 287), mas o texto heideggeriano que mais generalizadamente se aponta (Dreyfus, 2003: 39; Schwartz, 2003: 171; Sluga, 2006: 236; Spanos, 1993: 138; Zoungrana, 1998: 280) como leitura frutífera para o Foucault da fase genealógica é “A época das concepções do mundo” (Heidegger, 1970), integrado na recolha Holzwege (Caminhos que não levam a lado nenhum), a qual foi traduzida em França no início da década de sessenta. Sawicki chega inclusivamente a dizer que “(e)fectivamente, poderia dizer-se que o Panóptico de Bentham desempenha um papel na história foucauldiana do poder/conhecimento análogo ao da concepção do mundo em Heidegger. Ambos representam a emergência do ideal de um todo perfeitamente sistematizado e regulado”(Sawicki, 2003: 63). Naquele escrito de Heidegger encontram-se já estabelecidas as traves-mestras da sua denúncia da concepção antropologista e instrumental de técnica que ele virá a retomar e a desenvolver em textos posteriores (Heidegger, 1987, 1991, 1995, 1996) e que já não é tão certo - se bem que não impossível - que Foucault tenha conhecido de perto. Mas o que não é de maneira nenhuma possível é que ele possa ter ignorado a questão a partir da qual Heidegger pensa a Modernidade como era da técnica - e a qual nos permite justamente a nossa autocompreensão como modernos – ou seja, a questão de saber “o que é que hoje é?” Ora, a analítica da actualidade foucauldiana remete-se toda ela a esta questão, que Foucault retoma nos seus próprios termos e com os seus próprios propósitos, que, esses sim, não são os heideggerianos: “… aquilo que mais me interessa é estudar o que os Gregos chamavam a techne, isto é, uma racionalidade prática governada por um propósito consciente (…) O inconveniente da palavra techne (…) está na sua relação com a palavra „tecnologia‟, que tem um sentido bem específico. Damos um sentido muito estreito à palavra „tecnologia‟: pense-se nas tecnologias duras, na tecnologia da madeira, do fogo, da electricidade. Mas o governo é também função de tecnologias: o governo dos indivíduos, o governo das almas, o governo de si por si mesmo, o governo das famílias, o governo das crianças” (Foucault, 1994-35: 285). Elden ressalva a este respeito que Foucault partilha com o Heidegger tardio uma idêntica concepção de techne como racionalidade prática regida por um fim consciente que não se restringe às actividades e competências do artesão, mas se estende às práticas da política e do conhecimento, da conduta, das belas artes e do espírito - “Ele entende techne como uma „prática‟, como um savoir-faire. (…) Tal entendimento relaciona-se obviamente com o do último Heidegger (…) Em Heidegger, porém, a maioria das discussões sobre a técnica moderna centram-se naquilo que entenderíamos normalmente pelo termo; em Foucault, o termo é usado no seu sentido enriquecido” (Elden, 2001: 109). Também Sawicki sublinha o paralelismo entre Heidegger e Foucault quanto à defesa da tese da autonomia da técnica, com que se relaciona a crítica do humanismo moderno, ligado, em Heidegger, à racionalidade tecnocientífica, e, em Foucault, à emergência das ciências humanas e às tecnologias que as tornam possíveis; e os esforços de superação do nihilismo, de que ambos foram equivocamente acusados (Sawicki, 2003: 56). Correlatos da tese da autonomia da técnica, que naturalmente Heidegger e Foucault compartilham, são a negação de que a técnica é um instrumento neutro para um fim humanamente definido e a ideia que o desenvolvimento tecnológico se encontra fora do contrôle humano. Em Foucault, a autonomia da técnica significa concretamente que o conhecimento assume a forma de controle técnico e as tecnologias disciplinares não são meros instrumentos neutros porque são inextricáveis de práticas de dominação. Segundo dá conta Sawicki, “(a)s tecnologias de poder de Foucault funcionam anonimamente e de forma muito semelhante ao modo como o tornar disponível tecnológico, descrito por Heidegger, sugere que funciona a técnica moderna. Tal como poderia ter dito o Heidegger de Ser e Tempo, elas são implementadas por ninguém e por todos”(Sawicki, 2003: 63). Assim, se para Heidegger dizer que a Modernidade é a era da técnica como domínio omnipresente da Gestell, para Foucault, dizer que a Modernidade é a era da técnica significa a omnipresença do dispositivo como esquema do funcionamento das relações de poder-saber. Dispositivo é a tradução possível, e inteiramente pertinente, de Gestell, nas línguas latinas, para “interpelação provocante” que dispõe ou que disponiboliza. Trata-se de uma provocação dirigida aos fenómenos naturais, mas também aos seres humanos, para que se disponibilizem como energia que se pode extrair, explorar, acumular, armazenar e mobilizar. Ela exprime a ideia de “pôr em estado de disponibilidade”, “transformar em reserva disponível”, “disponibilizar para uso produtivo” - Bestand, em alemão - tanto os recursos naturais como os seres humanos. Para Heidegger, a Gestell é a essência da técnica moderna, que ela própria nada tem de técnico. Com efeito, se toda a techne é essencialmente uma forma do desvelamento, da aletheia, a forma de desvelamento da técnica moderna é a Gestell e é um desvelamento perigoso, na medida em que reduz a linguagem humana à sua simples dimensão técnica de mensuração calculadora. Não é pois a técnica moderna que é perigosa, mas a sua essência, que é existencial e não técnica (Sawicki, 2003: 60) enquanto produtora de um sentido inhumano. Perigosa é a tecnicidade, que também nessa medida se distingue de utensílio técnico. Foucault apropria a ideia de disponibilidade técnica interpretando-a em termos de relação de poder, de tal modo que, na teorização foucauldiana, a disponibilidade técnica, o tornar disponível, é inseparável de um pôr à disposição de, de dispor de (algo ou alguém) em termos de poder, mas também, e porque poder é uma relação, estar disposto a, dispor-se a, no sentido de mobilização. Bem o nota Wyschogrod: “Em termos foucauldianos, o tornar disponível (Enframing) exprime poder. Tal como Foucault, Heidegger reconhece na vontade de verdade contemporânea uma vontade de controle cuja essência é o contrário da liberdade” (Wyschogrod, 2003: 280). E identicamente Sawicki: “Assim, as técnicas disciplinares compõem uma microfísica do poder que assenta num conhecimento do corpo que o torna calculável e manipulável, de maneira muito parecida com a maneira como Heidegger descreve o facto de a física se implantar e disponibilizar a natureza” (Sawicki, 2003: 63); Tão óbvia aparenta ser a afinidade entre a Gestell de Heidegger e o dispositivo de Foucault que há quem não hesite na tradução automática da primeira no segundo: “no uso que Heidegger lhe dá, Ge-stell não significa apenas o suporte ou a moldura à volta de qualquer coisa, mas o conjuntar do todo, o dis-pôr (…) a importante noção de dispositif, em Foucault – como o conjunto de discursos e práticas de uma determinada época – está estreitamente relacionada com este conceito” (Elden, 2001: 79). No entanto, o imediatismo da tradução não vem de facto a ser nem imprudente, nem precipitado, pois pode fundamentar-se de maneira consistente: “A noção de dispositif em Foucault está relacionada com a compreensão que Heidegger tem da Gestell, que normalmente se traduz, em inglês, por „enframing‟. Em francês, a tradução comum é Arraisonnement, embora Dispositif também tenha vindo a ser usado. Dadas as ligações entre o entendimento que Foucault e Heidegger têm da técnica moderna e os papéis que atribuem ao dispositif e à Gestell, parece que Foucault leva mais além o termo heideggeriano. Todavia, enquanto que Heidegger vê a Ge-stell como algo que emerge apenas num momento histórico particular, por intermédio da compreensão calculadora do ser, para Foucault, tal como a noção de episteme que substitui, houve muitos dispositifs” (Elden, 2001: 110-111). Por outro lado, como assinala Dreyfus, a transposição entre a Gestell e o dispositivo encontra outros paralelos entre o pensamento de Heidegger e o de Foucault, notórios em conceitos, usados respectivamente pelo primeiro e pelo segundo. Deste modo, podem encontrar-se: no campo dos termos metodológicos básicos, Ser e Poder, Origem (Ur-Sprung) e Emergência (Entstehung), Memória e Genealogia; nos dois derradeiros estádios da história do Ser e do Poder, Época das concepções do Mundo e Idade do Homem (em vez de Iluminismo ou de Modernidade), Tecnicidade e Biopoder (em alternativa a Pós-modernidade); e no modo de funcionamento da época em que vivemos, Interpelação provocante e Disciplina, Reserva disponível e Corpos dóceis, Mobilização total e Normalização (Dreyfus, 2003: 45). Mas, como nos deveria alertar o reparo de Spanos, o que estes paralelos realmente nos levariam a reconhecer é que Vigiar e punir demonstra a afinidade entre a destruição heideggeriana da tradição ontoteológica e a genealogia foucauldiana das relações de poder pós-Iluminismo (Spanos, 1993: 154; 2003: 252-253). Hicks é de opinião que Heidegger antecipa a afirmação de Foucault, segundo a qual os sistemas técnicos modernos visam presentificar os seres humanos como biopoder ou indivíduos completamente presentificados para a vigilância e o controle através das práticas disciplinares em instituições cuja finalidade é normalizar a vida humana. Com efeito, para Heidegger, a metafísica moderna define-se precisamente pelo facto de o homem se tornar na medida e no centro dos seres, o que, por sua vez, tem por resultado a moderna compreensão dos entes como objectos de uso e de controle, ou seja, entidades totalmente presentificadas como reserva disponível, ou, no caso dos seres humanos, recursos para objectivação e controle (Hicks, 2003: 87). Neste sentido, e não obstante toda a sua dívida para com Nietzsche, a principal influência que, para Hicks, se exerceu sobre Foucault quanto à questão do nihilismo, foi a sugestão feita por Heidegger de que a secularizada vontade de poder pós-nietzschiana se manifesta não apenas no mundo exterior, transformando os seres humanos em reserva disponível, mas também no interior, transformando os seres humanos em recursos, ou biopoder, disponíveis para os fins totalizadores de poder de uma cultura tecnológica (Hicks, 2003: 97). A análise foucauldiana das práticas disciplinares de instituições modernas como o manicómio, a prisão, o reformatório, a fábrica, assim como a sexualidade e o uso dos prazeres, vai muito mais longe do que Heidegger foi no desvelamento das dimensões subtis do nihilismo técnico. Diz-nos Hicks que “Foucault faz dar um passo em frente ao nihilismo desvelado na leitura que Heidegger faz da era da técnica pós-nietzschiana: os seres humanos são desvelados não apenas como recursos para a „mobilização total‟ ao serviço de fins essencialmente destituídos de sentido, mas como indivíduos completamente presentes para vigilância e controle disciplinar” (Hicks, 2003: 98). E é certo que o posicionamento respectivo de Heidegger e de Foucault quanto à superação do humanismo moderno segue vias divergentes e incompatíveis desde o início. Dreyfus sabe-o bem: “Caracteristicamente, Foucault preocupa-se exclusivamente com o perigo presente para as pessoas, ao passo que Heidegger se concentra naquilo que está a acontecer às coisas. Cada um deles vê aquilo que corre perigo ao mesmo tempo como fonte de resistência” (Dreyfus, 2003: 47). Para Heidegger, sendo os homens desveladores de mundos, ou pastores do Ser cuja morada é a linguagem, “o maior perigo é o modo como a moderna concepção do mundo se transformou na tecnicidade como mobilização que tende para a eliminação de todas as práticas marginais. Todas as práticas que são inflexíveis ou ineficazes ou são trivializadas e rejeitadas ou transformadas em práticas eficientes” (Dreyfus, 2003: 47). Isto mesmo o confirma Zoungrana, para quem, “(n)o total, que Foucault tenha o selo de Heidegger não tem qualquer dúvida: toda a sua obra traz em si a impregnação ou a marca de Heidegger. Leitor de Heidegger, essa leitura, verdadeira provocação a pensar, funcionou como um convite a pensar com Heidegger, mas para além de Heidegger. Passar por Heidegger, mas para de imediato sair dele, afastar-se dele, tal será ou terá sido a estratégia de leitura de Foucault. Se Foucault se serve, utiliza e se apoia em Heidegger, é preciso acrescentar que ele não fica fechado numa problemática heideggeriana” (Zoungrana, 1998: 290).
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António Fernando Cascais (2010), “Bioética, biopolítica, contramodernidade”
N.B.: ESTE TEXTO AGUARDA PUBLICAÇÃO NO VOLUME DE ACTAS DO
CICLO DE CONFERÊNCIAS “O QUE É A BIOPOLÍTICA?” (12 DE FEVEREIRO A 15 DE MARÇO DE 2008), LISBOA, CULTURGEST, PEQUENO AUDITÓRIO, 26 DE FEVEREIRO DE 2008
Bioética, biopolítica, contramodernidade
António Fernando Cascais
A possibilidade de se repetirem hoje os crimes contra a humanidade perpetrados
em contexto totalitário pela biomedicina nazi tem assombrado a investigação histórica sobre o nazismo, bem assim como a reflexão sobre as biotecnociências contemporâneas no quadro de fundo de globalização dos riscos tecnocientíficos e de distribuição de recursos escassos num mundo ameaçado pela catástrofe ambiental. Esse receio parece adensar-se cada vez mais, e à primeira vista, paradoxalmente, no contexto, que lhe deveria ser adverso, dos Estados democráticos de direito e de uma ordem internacional pautada por instrumentos jurídico-políticos que obrigam ao respeito dos Direitos do Homem e em que a bioética se afirmou universalmente como meio de regulação das tecnociências biomédicas. Ora, a explicação biopolítica do nazismo adiantada por Michel Foucault não só mostra que este último constitui um prolongamento extremado da modernidade, como contribui para se pensar que as respostas correntemente ensaiadas para os problemas com que a modernidade se confronta de forma recorrente se encontram sempre na iminência de reactivar o lado funesto, totalitário, da biopolítica que lhe é coextensiva. O desenvolvimento dado por Giorgio Agamben à teorização