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1ª Sessão (Teórica): Dispositivo e biopolítica, de Foucault a Agamben

António Fernando Cascais (2009), “O que é um dispositivo?”, in António Fernando


Cascais, Nuno Nabais e José Luís Câmara Leme (orgs.), Lei, Segurança, Disciplina.
Trinta anos depois de Vigiar e punir de Michel Foucault. Lisboa: Centro de
Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, pp. 31-53

O que é um dispositivo?

António Fernando Cascais


Universidade Nova de Lisboa

“… queria tão-só entender como podem tantos


homens, tantos povos, tantas cidades, tantas nações
suportar às vezes um só tirano que não dispõe de
mais poder para causar danos do que aquele que se
queira suportar e que não poderia causar mal algum
a não ser que se prefira sofrer a contradizê-lo. É
realmente surpreendente – e, no entanto, tão
corrente que deveríamos deplorá-lo em vez de nos
surpreendermos – ver como milhões e milhões de
homens são miseravelmente submetidos e
subjugados, de cabeça baixa, a um deplorável jugo,
não porque se vejam coagidos por uma força maior,
mas, ao contrário, porque estão fascinados e, por
assim dizer, enfeitiçados pelo nome de um, ao qual
não deveriam temer (posto que está só), nem
apreciar (posto que se mostra para com ele inumano
e selvagem) … Assim pois, já que todo o ser
humano, consciente da sua existência, sente a
desgraça da submissão e persegue a liberdade …
que desventurado vício pôde desnaturar o homem,
único ser nascido realmente para viver livre, até ao
ponto de lhe fazer perder a recordação do seu estado
original e o desejo de regressar a ele?”

La Boétie, Discurso sobre a servidão


voluntária
Dispositivo tornou-se um termo de uso corrente e generalizado nas ciências
sociais e humanas, na filosofia, nos estudos sobre a arte e a técnica, de onde passou para
os meios de comunicação de massa. Aplicado bastante mais frequentemente a
despropósito que não, desde que Michel Foucault primeiro o empregou, dispositivo
integra hoje a gíria académica, como de resto acontece com arqueologia e genealogia, a
ponto de todos constituírem portas de acesso aparentemente fácil ao pensamento
foucauldiano, com os equívocos e enviesamentos que isso acarreta. É certo que não
faltam ocasiões em que dispositivo surge na obra foucauldiana sob a forma algo
indiscriminada de um “mot-valise”, com uma fluidez semântica que lhe permite abarcar
quanto uma leitura desavisada lá queira pôr. Sem pretendermos ser exaustivos,
encontramos: dispositivo numa acepção geral e inespecífica (Foucault, 1994-14: 720 ;
1994-18: 18 ; 1994-31: 731; 1994-32: 18); dispositivo diplomático-militar (Foucault,
2004: 304, 312, 314, 362); dispositivo militar permanente (Foucault, 2004: 312-313);
dispositivo de relações entre Estados (Foucault, 2004: 310); dispositivo político de
polícia (Foucault, 2004: 304, 314); dispositivo do equilíbrio europeu (Foucault, 2004:
323); família como dispositivo de saber-poder (Foucault, 1994-17: 827); dispositivos de
saber (Foucault, 1994-22: 184); dispositivo de segurança (Foucault, 2004: 7-13, 22, 29,
32, 36, 38-40, 50, 55, 61, 111, 113; 1994-36: 371); dispositivo de soberania, a que se
opõem os dispositivos de disciplina (Foucault, 2003: 65-68); dispositivos disciplinares
pré-modernos (Foucault, 2003: 65-67); dispositivo asilar (Foucault, 2003: 163);
dispositivo de verdade (Foucault, 2001: 344; 1994-20 : 159) e dispositivo do enunciado
da verdade (Foucault, 2003: 156-157); dispositivo neurológico de captação do corpo-
paciente, na medicina (Foucault, 2003: 299-307, 309, 316, 324-325 ; 299) e dispositivo
de internamento, na psiquiatria (Foucault, 1994-27: 331); exército e oficina como
dispositivos (1994-23: 201); dispositivo de subjectividade (Foucault, 2001: 305);
dispositivo entre os estóicos (Foucault, 2001: 441); dispositivo não exercitado
(Foucault, 2001: 450); dispositivo de organização disciplinar que é finalizado pela
normalização (Foucault, 1999: 45); dispositivos de dominação (Foucault, 1997: 39); e,
com certeza, dispositivo de poder (Foucault, 2004: 152 ; 2003: 14-15, 18; 1997: 13-14;
1994-21: 169 ; 1994-23: 203; 1994-24: 251; 1994-28: 421-422).
O próprio Foucault foi muito mais claro nas aplicações que fêz de dispositivo do
que porventura numa possível definição, suficientemente fluida para autorizar que ele se
vulgarizasse de maneira multiforme e cheia de ambiguidades, mas não para desculpar a
generalizada desinformação acerca da sua origem e do seu correcto uso no contexto da
obra foucauldiana. Com efeito, Foucault fez uso do termo dispositivo, de maneira bem
mais parcimoniosa e discriminada do que os seus epígonos e vulgarizadores, em dois
momentos da fase genealógica daquela que Dreyfus e Rabinow (1982) acertadamente
chamaram a sua “work in progress”: o “dispositivo panóptico”, em Vigiar e punir
(Foucault, 1984a), e o “dispositivo da sexualidade”, em A vontade de saber (Foucault,
1977), primeiro volume do seu projecto de uma História da sexualidade, e igualmente
referido em outros textos da época (Foucault, 1994-25: 257, 260; 1994-26: 320-322 ;
1994-38: 660-663).

Mas o que é um dispositivo?

Em Vigiar e punir, Foucault analisa o Panóptico concebido em 1787 por Jeremy


Bentham. Sendo com certeza uma forma de arquitectura, o Panóptico é sobretudo uma
forma de governo, é uma forma de o espírito exercer poder sobre o espírito (Foucault,
1994 : 437). O sonho arquitectural de Bentham tornou-se numa realidade jurídica e
institucional no Estado napoleónico, o qual serviu de modelo a todos os Estados do
século XIX. De facto, Foucault pretende concentrar-se no panoptismo da sociedade
moderna, o qual vai muito para além da estrutura arquitectónica das instituições
panópticas e que de algum modo constituíram os laboratórios de manipulação dos
indivíduos humanos com vocação para se disseminarem por todo o tecido social e dar
origem ao homem moderno que somos: “Eu diria que a verdadeira transformação foi a
invenção do panoptismo. Vivemos numa sociedade panóptica. Temos estruturas de
vigilância absolutamente generalizadas, de que o sistema penal, o sistema judiciário são
uma peça e de que a prisão é, por sua vez, uma peça, de que a psicologia, a psiquiatria, a
criminologia, a sociologia, a psicologia social são os efeitos” (Foucault, 1994-3: 437-
438). Lembra Elden que o panoptismo exprime o dispositivo, ao passo que o Panóptico
é exemplificado pela instituição panóptica como a prisão, ou o hospital, ou a caserna,
que são um simples sistema arquitectónico e óptico (Elden, 2001: 148). O dispositivo
panóptico só se realiza plenamente no panoptismo generalizado que molda a primeira
Modernidade, afeiçoando as sociedades normalizadoras e disciplinares que, na
sequência de Foucault, Deleuze (1999) mostra terem antecedido e preparado as
sociedades de controle que são as nossas actuais.
É bem conhecida a tese de Foucault. À sociedade antiga, teocrática e supliciante,
sucede a sociedade moderna, somatocrática e disciplinar. Se, na sociedade antiga, o
corpo do supliciado é o negativo do corpo glorioso do soberano e o estendal atroz do
suplício público repete, simetricamente, a ostentação majestática da imagem do rei, a
sociedade moderna abstém-se progressivamente de tocar o corpo do condenado e fá-lo
pudicamente quando o faz. Esta passagem é a passagem da era da técnica artesanal à era
tecnológica, inaugurada pelo dispositivo panóptico que almeja à visibilidade absoluta
como sistema generalizado de controle dos corpos e das almas. O longo braço do rei é
substituído pela maquinaria de um poder furtivo que tudo vê sem se deixar ver a ele
próprio. Com vocação para se disseminar por todo o tecido social, o panoptismo rege a
concepção de penitenciárias, asilos, casernas, escolas, fábricas, hospitais, sem se
restringir ao seu arcaboiço arquitectónico, antes o compreendendo conjuntamento com a
ortogénese dos comportamentos que visa e que tem por efeito um adestramento geral
normalizador e disciplinarizante: “A „disciplina‟ não pode se identificar com uma
instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-
lo; que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de
níveis de aplicação, de alvos; ela é uma „física‟ ou uma „anatomia‟ do poder, uma
tecnologia. (…) Pode-se então falar, em suma, da formação de uma sociedade
disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas, espécie de „quarentena‟
social, até o mecanismo indefinidamente generalizável do „panoptismo‟” (Foucault,
1984: 189).
Nele, pouco importa quem exerce o poder, este difunde-se por toda a parte,
observa sem ser observado, despertando o medo permanente de se ser surpreendido e a
consciência inquieta de se ser observado no flagrante do crime monstruoso ou nas
prevaricações mínimas do quotidiano, criando uma sujeição real que nasce
mecanicamente de uma sujeição fictícia. O panoptismo vigia e nessa vigilância faz
impender sobre a acção dos indivíduos a ameaça permanente de uma ameaça de punição
que, sendo ameaça omnipresente, actua por antecipação, adiando paradoxalmente a
execução dela e mantendo-a nessa iminência que suspende ad infinitum o gesto
transgressor. Diz Foucault que a disciplina se não pode identificar com uma instituição
ou um aparelho, mas com um tipo de poder. O poder torna-se assim poder positivo de
agir sobre a acção de outrém, por omnisciência. Por isso, prossegue Foucault, é que
“Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser invisível e inverificável (…) O
Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é
totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto (…)
Dispositivo importante, pois autonomiza e desindividualiza o poder. Este tem seu
princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada dos corpos,
das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos mecanismos internos
produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos (…) Pouco importa,
consequentemente, quem exerce o poder (…) O Panóptico é uma máquina maravilhosa
que (…) fabrica efeitos homogéneos de poder” (Foucault, 1984: 178). O poder é-o
como efeito difuso, inescapável e sem exterior, tendencialmente incorpóreo mas eficaz
porque inatingível, impessoal mas retomado espontaneamente por aqueles, todos, sobre
quem se exerce. Não nega, obstrói, censura, elimina, tanto quanto produz, afirma,
provoca, insta, precipita, intensifica, activa: “O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício
de uma representação „ideológica‟ da sociedade; mas é também uma realidade fabricada
por essa tecnologia específica de poder que se chama a „disciplina‟. Temos de deixar de
descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele „exclui‟, „reprime‟,
„recalca‟, „censura‟, „abstrai‟, „mascara‟, „esconde‟. Na verdade o poder produz; ele
produz realidade; produz campos de objectos e rituais da verdade. O indivíduo e o
conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção” (Foucault, 1984: 172).
O dispositivo panóptico constitui pois o esquema de funcionamento de um poder
que age positivamente: “Em cada uma de suas aplicações, permite aperfeiçoar o
exercício do poder. E isto de virias maneiras: porque pode reduzir número dos que o
exercem, ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é
exercido. Porque permite intervir a a cada momento e a pressão constante age antes
mesmo que as faltas, os erros, os crimes sejam cometidos. Porque, nessas condições, a
sua força é nunca intervir, é se exercer espontaneamente e sem ruído, é constituir um
mecanismo de efeitos em cadeia. Porque sem outro instrumento físico que uma
arquitectura e uma geometria, age diretamente sobre os indivíduos; „dá ao espírito poder
sobre o espírito‟. O esquema panóptico é um intensificador para qualquer aparelho de
poder: assegura sua economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua
eficácia por seu carácter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos
automáticos. É uma maneira de obter poder (…) Uma espécie de „ovo de Colombo‟ na
ordem da política” (Foucault, 1984: 181-182). Nesta conformidade, o Panóptico “tem
um papel de amplificação: se organiza o poder, não é pelo próprio poder, nem pela
salvação imediata de uma sociedade ameaçada: o que importa é tornar mais fortes as
forças sociais aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução,
elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar” (Foucault, 1984: 183).
Tanto permite a Foucault concluir que: “Se a descolagem económica do Ocidente
começou com os processos que permitiram a acumulação do capital, pode-se dizer,
talvez, que os métodos para gerir a acumulação de homens permitiram uma descolagem
política em relação a formas de poder tradicionais, reituais, dispendiosas, violentas e
que, logo caídas em desuso, foram substituídas por uma tecnologia minuciosa e
calculada de sujeição. Na verdade, os dois processos, acumulação de homens e
acumulação de capital, não podem ser separados (…) Cada uma das duas tornou
possível a outra, e necessária; cada uma das duas serviu de modelo para a outra. (…)
Digamos que a disciplina é o processo técnico unitário pelo qual a força do corpo é com
o mínimo ónus reduzida como força „política‟, e maximalizada como força útil”
(Foucault, 1984: 193-194).
Onde a teologia antiga supunha no corpo a prisão da alma, o novo poder
disciplinar aprisiona o corpo numa alma assim incessantemente produzida. O poder é ao
mesmo tempo discursivo e não discursivo, produz o indivíduo como objecto e como
sujeito, é mediado por tecnologias de produção da objectividade e da subjectividade.
Faz crescer e multiplicar: a economia, a produção, a instrução, a moralidade, a saúde, a
competência; por esse procedimento cria também as figuras modernas do criminoso, do
deficiente, do ignorante, do doente, do incompetente e objectiva os parâmetros de um
imenso labor de restituição da anormalidade à norma. Onde outrora se destroçava o
corpo em nome da salvação da alma, cria-se agora uma aquiescência primeira em que o
policiamento geral e sistemático, esquadrinhador, exaustivo e minucioso na sua imensa
indiscrição é exercido pelo indivíduo polícia de si mesmo: não é outra a microfísica do
poder que, na modernidade, que funde público e privado de um modo porventura
melhor expresso pelas possibilidades da língua inglesa: politic, policy, mais do que o
sentido clássico de politics, a política como actividade da comunidade humana que é -
era - o modelo antigo da polis grega. A biopolítica arruína-o e sobre essas ruínas vai
construindo uma nova microfísica do poder que garante, no fundo, a submissão das
forças e dos corpos que constitui o subsolo das liberdades formais e jurídicas: “As
„Luzes‟ que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas” (Foucault,
1984a: 195). Conclui Foucault que “…a totalidade do indivíduo não é amputada,
reprimida, alterada por nossa ordem social; mas o indivíduo é cuidadosamente
fabricado, segundo uma táctica das forças e dos corpos. Somos bem menos gregos que
pensamos. Não estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina
panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos
suas engrenagens” (Foucault, 1984: 190).
É precisamente pelo modo como somos engrenagens, “relais” ou correias de
transmissão, ao mesmo tempo objectos e agentes nas relações de poder que o
dispositivo panóptico agencia, que ele pode cumprir a sua vocação de se transformar em
panoptismo generalizado. Com efeito, o dispositivo panóptico é um laboratório de
produção de indivíduos, de produção da humanidade dos indivíduos que já pouco tem
que ver e desmente mesmo o humanismo que presidiu ao projecto de Menscheitsbildung
da Modernidade: “… o Panóptico pode ser utilizado como máquina de fazer
experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar indivíduos (…) O
Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para
analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. (…) O Panóptico é
um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar
com toda a certeza as transformações que se pode obter neles. O Panóptico pode até
constituir-se em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos. (…) O Panóptico
funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de
observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos
homens; a aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder,
descobrindo objectos que devem ser reconhecidos em todas as superfícies onde este se
exerça” (Foucault, 1984: 180). Indistintamente técnico e político, o panóptico é
tecnologia política e, nisso, ele começa já a ser panoptismo, capaz de se generalizar e
disseminar por todo o tecido social: “O hospital primeiro, depois a escola, mais tarde
ainda a oficina, não foram simplesmente „postos em ordem‟ pelas disciplinas; tornaram-
se, graças a elas, aparelhos tais que qualquer mecanismo de objectivação pode valer
neles como instrumento de sujeição, e qualquer crescimento de poder dá neles lugar a
conhecimentos possíveis; foi a partir desse laço, próprio dos sistemas tecnológicos, que
se puderam formar no elemento disciplinar a medicina clínica, a psiquiatria, a psicologia
da criança, a psicopedagogia, a racionalização do trabalho. Duplo processo, portanto:
arrancada epistemológica a partir de um afinamento das relações de poder;
multiplicação dos efeitos de poder graças à formação e à acumulação de novos
conhecimentos. A extensão dos métodos disciplinares se inscreve num amplo processo
histórico: o desenvolvimento mais ou menos na mesma época de várias outras
tecnologias – agronómicas, industriais, económicas” (Foucault, 1984: 196-197).
Ora, apesar de a noção de dispositivo ser o sustentáculo de todo o fio de
raciocínio desenvolvido tanto em Vigiar e punir como em A vontade de saber, não é
nem num nem noutro destes textos que Foucault a define, e sim, quando, em entrevista,
é instado a fazê-lo: “Aquilo que tento abranger sob este nome é, em primeiro lugar, um
conjunto resolutamente heterogéneo que comporta discursos, instituições, arranjos
arquitectónicos, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos proposições filosóficas, morais, filantrópicas, em suma: o dito, bem assim
como o não dito, eis os elementos do dispositivo. O próprio dispositivo é a rede que se
pode estabelecer entre estes elementos. Em segundo lugar, aquilo que eu queria incluir
no dispositivo é justamente a natureza do laço que pode existir entre esses elementos
heterogéneos. Deste modo, o discurso tal pode aparecer, ora como programa de uma
instituição, ora, ao contrário, como um elemento que permite justificar e mascarar uma
prática que, ela, permanece muda, ou funcionar como reinterpretação segunda dessa
prática, dar-lhe acesso a um campo novo de racionalidade. Em suma, entre estes
elementos, discursivos ou não, há como que um jogo, mudanças de posição,
modificações de funções, que podem, também elas, ser muito diferentes. Em terceiro
lugar, por dispositivo, entendo uma espécie - digamos - de formação, que, num dado
momento histórico, teve por função maior responder a uma urgência. O dispositivo tem
pois uma função estratégica dominante. Tal pôde ser, por exemplo, a reabsorção de uma
massa de população flutuante que uma sociedade de economia essencialmente
mercantilista achava acabrunhante: houve aí um imperativo estratégico que funcionava
como matriz de um dispositivo e que pouco a pouco se tornou no dispositivo de
controle-sujeição da loucura, da doença mental, da neurose” (Foucault, 1994-26: 299).
De salientar, portanto, nesta definição, a reticularidade do dispositivo, ou seja, o
dispositivo funciona como uma rede acentrada que articula elementos heterogéneos
onde se incluem tanto práticas discursivas como práticas não discursivas. Além da
estrutura de elementos heterogéneos, o dispositivo define-se também por um certo tipo
de génese, a qual tem dois momentos essenciais: “Um primeiro momento, que é o da
prevalência de um objectivo estratégico. Em seguida, o dispositivo constitui-se
propriamente como tal e permanece dispositivo na medida em que ele é o lugar de um
duplo processo: processo de sobredeterminação funcional, por um lado, porque cada
efeito, positivo e negativo, pretendido ou não pretendido, vai entrar em ressonância ou
em contradição com os outros, e apela a uma retoma, a um reajustamento dos elementos
heterogéneos que surgem aqui e ali. Processo de perpétuo preenchimento estratégico,
por outro lado” (Foucault, 1994-26: 299). Ou seja, o facto de funcionar de modo
reticular e acentrado não impede que o modus operandi do dispositivo seja desprovido
de finalidade. Mais, ele não veicula apenas estratrégias de poder, mas igualmente
relações de saber, e estas últimas em correlação com as primeiras : “O dispositivo está
sempre inscrito num jogo de poder, mas sempre ligado também a uma ou a várias
formas de saber que dele brotam, mas que do mesmo modo o condicionam. É isto o
dispositivo: estratégias de relações de forças que sustentam tipos de saber e que são por
eles sustentadas” (Foucault, 1994-26: 300).
Por outro lado, o dispositivo é, reconhecidamente, a partir de Vigiar e punir, o
sucessor e o substituto da episteme (Gabilondo, 1990: 170-171) de As palavras e as
coisas (Foucault, 1988a): “… dispositivo é um caso muito mais geral da episteme. Ou
antes (…) a episteme é um dispositivo especificamente discursivo, ao contrário do
dispositivo que, ele, é discursivo e não discursivo, sendo os seus elementos muito mais
heterogéneos” (Foucault, 1994-26: 301). Se, em As palavras e as coisas, Foucault tinha
mostrado como a figura – efémera e votada a um desaparecimento tão inexorável
quanto tinha sido contingente a emergência - do homem moderno era produto das
práticas discursivas que consubstanciam as ciências humanas, em Vigiar e punir, é
sobre as práticas não discursivas de moldagem da humanidade dos indivíduos modernos
que somos, ou fomos feitos, que ele se debruça: “O dispositivo oferece-se como uma
rede que trata de se estabelecer entre elementos, que não se deixam reduzir
simplesmente ao dito. Elementos que configuram um conjunto heterogéneo (…) Mas
não se trata simplesmente de tal conjunto, antes se refere à natureza do vínculo que pode
existir entre esses elementos heterogéneos que, nessa medida, podem mudar de posição
ou modificar a sua função numa espécie de jogo. Jogo que, em definitivo, e esta é uma
caracterização decisiva do dispositivo, é de natureza essencialmente estratégica (…)
Esta posição ou imperativo estratégico é a verdadeira matriz do dispositivo”
(Gabilondo, 1990: 170).
Mas, como justamente assinala J. A. Miller na mesma entrevista (Foucault,
1994-26: 301), os dispositivos que visam dar conta das práticas não discursivas como
das práticas discursivas de manipulação dos indivíduos humanos, continuam, porém, a
ser conjuntos significantes. Efectivamente, a observação nada tem de despiciendo: outra
característica do dispositivo é a sua performatividade, ou seja, a sua capacidade de
produzir efeitos de sentido. Lembremos a importância que, neste assunto, Foucault
atribui à pragmática (Foucault, 1994-13: 631-632). Tanto implica que a linguagem que
opera no seio do dispositivo seja concebida como tecnologia de produção de efeitos
pragmáticos, o que tem por consequência que já não seja particularmente importante
distinguir entre o que é discursivo e o que o não é no que respeita ao dispositivo
(Foucault, 1994-26: 302). Dizem-nos a este propósito Dreyfus e Rabinow que Foucault
introduziu o termo técnico dispositivo com o fim de “construir um modo de análise das
práticas culturais que, na nossa cultura, contribuiram para formar o indivíduo moderno
como objecto e como sujeito” (Dreyfus e Rabinow, 1983: 120). Se, em As palavras e as
coisas, Foucault analisava essencialmente as ciências humanas como práticas
discursivas, em Vigiar e punir, ele trata tanto das práticas discursivas como das práticas
não discursivas de produção do indivíduo moderno, quer como objecto – de um
determinado saber que o constitui como positividade – quer como sujeito – que
estabelece consigo próprio um determinado tipo de relação, ou seja, que se constrói
como subjectividade, relação essa que é prefigurada, numa forma primitiva, pelo
sucesso utópico da prisão panóptica ao transformar o detido em carcereiro de si próprio.
As fronteiras entre discursivo e não discursivo esboroam-se aqui, mas, do mesmo modo,
também a tradicional distinção entre teórico e prático, científico e técnico.
De resto, a reticularidade, o carácter estratégico e a performatividade do
dispositivo são evidentes para os comentadores de Foucault que disso tiram
consequências. Assim Elden: “Aquilo que Vigiar e punir mostra é como o supplice do
século dezoito é substituído pelo dispositif disciplinar do século dezanove: um dispositif
coextensivo a tecnologias de poder que produzem um corpo dócil, uma „alma‟
cognoscível e uma subjectivação do indivíduo” (Elden, 2001: 149). E assim Deleuze:
“A filosofia de Foucault apresenta-se frequentemente como uma análise dos
„dispositivos‟ concretos. Mas o que é um dispositivo? É antes de mais uma meada, um
conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de natureza diferente. (…) Assim as três
grandes instâncias que Foucault distinguirá sucessivamente, Saber, Poder e
Subjectividade, de modo nenhum têm contornos de uma vez por todas, antes são cadeias
de variáveis que se arrancam umas às outras” (Deleuze, 1989: 185). E acrescenta: “As
duas primeiras dimensões de um dispositivo, ou aquelas que Foucault começa por
destacar, são curvas de visibilidade e curvas de enunciação. (…) são máquinas de fazer
ver e de fazer falar. (…) Em terceiro lugar, um dispositivo comporta linhas de força.
(…) de certo modo, elas „rectificam‟ as curvas precedentes (…) A linha de forças (…)
passa por todos os lugares de um dispositivo. (…) É a „dimensão do poder‟ e o poder é a
terceira dimensão do espaço, interior ao dispositivo, variável com os dispositivos. Ela
compõe-se, tal como o poder, com o saber. (…) Enfim, Foucault descobre linhas de
subjectivação. (…) uma linha de subjectivação é um processo, uma produção de
subjectividade num dispositivo: ela tem de se fazer, na medida em que o dispositivo a
deixe ou a torne possível. É uma linha de fuga. (…) O Si não é nem um saber nem um
poder. É um processo de individuação (…) Não é certo que todo o dispositivo comporte
um” (Deleuze, 1989: 185-187).

Foucault, Heidegger e a pudenda parentalidade do dispositivo

As referências explícitas a Heidegger na obra foucauldiana são tão escassas e


quase sempre tão superficialíssimas (Foucault, 1997 : 7, n19 ; 1994-4: 542 ; 1994-5:
545; 1994-6: 551 ; 1994-7: 553 ; 1994-8: 582 ; 1994-9: 768, 770 ; 1994-10: 372 ; 1994-
11: 542; 1994-12: 521 ; 1994-23: 193 ; 1994-30: 604 ; 1994-36: 455; 1988c: 145),
quanto são óbvias as afinidades profundas que existem entre ambos, pelo menos a
determinados níveis. A afinidade profunda que aqui pretendo relevar é aquela que existe
entre a concepção foucauldiana de dispositivo e o pensamento heideggeriano acerca da
técnica moderna. Será necessário aguardar por uma daquelas entrevistas sumamente
reveladoras acerca de si e do seu pensamento, para que Foucault esclareça, perante os
seus interlocutores estrangeiros, que: “Heidegger foi sempre para mim o filósofo
essencial. Todo o meu devir filosófico foi determinado pela minha leitura de Heidegger.
Mas reconheço que foi Nietzsche que o sobrelevou. Não conheço suficientemente
Heidegger, praticamente não conheço Ser e Tempo, nem as coisas editadas
recentemente. O meu conhecimento de Nietzsche é bem melhor que aquele que tenho de
Heidegger; nem por isso eles deixam de ser as duas experiências fundamentais que fiz.
É provável que, se não tivesse lido Heidegger, não teria lido Nietzsche. Tinha tentado
ler Nietzsche nos anos cinquenta, mas Nietzsche sozinho não me dizia nada! Enquanto
que Nietzsche e Heidegger, foi o choque filosófico! Mas nunca escrevi nada sobre
Heidegger e não escrevi sobre Nietzsche mais do que um pequeno artigo; são, no
entanto, os dois autores que mais li” (Foucault, 1994-39: 703). Não será por acaso que a
nacionalidade não francesa dos entrevistadores terá facilitado este tão contundente
esclarecimento no contexto do longuíssimo silenciamento da influência heideggeriana
na obra de Foucault. Com efeito, trata-se de um silenciamento que igualmente é
praticado pelos conhecedores franceses dela, como que em contraponto à desenvoltura
com que os estrangeiros falam disso e enfatizam o facto de ele revelar que começou a
ler Heidegger em 1951 ou 1952 e Nietzsche em 1952 ou 1953 e possuir toneladas de
notas das suas leituras de Heidegger (Foucault, 1994-37: 436; 1994-39: 703). Ora, como
bem observam Milchman e Rosenberg, há muito poucas provas de uma influência
textual directa de Heidegger sobre Foucault, com excepção dos seus primeiros escritos,
como a introdução a Sonho e existência de Ludwig Binswanger (Foucault, 1994-1) e
Doença mental e psicologia (Foucault, 1984b), ambos de 1954, entre outros (Foucault,
1994-2) em que a presença heideggeriana é “esmagadora” (Milchman e Rosenberg,
2003: 4), “ainda que como fornecedor de uma antropologia existencial”. É bem certo,
foi pela via da Daseinanalyse que a influência heideggeriana se fêz notar de forma
visível no primeiro Foucault (Zoungrana, 1998: 269-276). Na verdade, a Daseinanalyse
seria das poucas áreas do pensamento heideggeriano que um autor francês se
abalançaria a usar sem incorrer na suspeita, senão no anátema, de resto explicável na
França intelectual do pós-Segunda Guerra Mundial onde pontificava a geração de Sartre
e onde o pensamento e a biografia de Heidegger equivaliam a um tição aplicado à ferida
insanável da ocupação nazi. Aliás, é explicitamente Sartre que Foucault responsabiliza
pela rejeição de Heidegger em França (Foucault, 1994-5: 545). Levado mais longe do
que a Daseinanalyse, o uso que Foucault faz de Heidegger torná-lo-ia irrecuperável nas
circunstâncias da época. Eis porque Foucault o faz por assim dizer “silenciosamente”, o
que também explica a cumplicidade dos seus comentadores franceses que igualmente
resistem a esmiuçar a questão. Por outro lado, é o próprio Foucault a temperar as suas
afinidades heideggerianas por interposta invocação de Nietzsche, facto de que imediato
tiram proveito todos quantos optam por falar de um nietzscheanismo de Foucault, mas,
eles, com o intuito de calarem qualquer perigo de um heideggerianismo dele, o qual, de
facto, não se lhe pode imputar, como adiante se verá melhor. Com efeito, o modo como
Foucault se serve de Heidegger indo muito para além dele e afastando-se
definitivamente de tudo quanto no pensamento heideggeriano o comprometia
filosoficamente com o nazismo, impede de se falar de um heideggerianismo de
Foucault, o que, é mister reconhecê-lo, mais não faz que reforçar a sua dívida para com
Nietzsche. Não obstante, o que Foucault vai buscar a Heidegger é bem mais do que a
Daseinanalyse, ao contrário do que teriam decerto apreciado os seus comentadores.
Efectivamente, o conhecimento e a invocação da Daseinanalyse teria
necessariamente de levar Foucault a confrontar-se com os pressupostos e implicações da
análise existencial do Dasein e com o respectivo uso que ele próprio faz no seio do seu
empreendimento reflexivo. Assim, Doença mental e psicologia, texto precoce e
“primitivo” sem real peso no posterior desenvolvimento das pesquisas de Foucault,
evidencia porém a total familiaridade dele com a antropologia não-humanista
heideggeriana e, obrigatoriamente, com a sua teoria da experiência na qual a
mundaneidade, a linguisticidade e a tecnicidade são fundadoras. Ainda que respeitante à
análise, explicitamente referida a Ser e Tempo, do meio espácio-temporal (Umwelt)
como estrutura do mundo vivido nos esquizofrénicos, a seguinte passagem ilustra de
forma eloquente aquela familiaridade, como muito bem assinala Zoungrana (1998: 269-
270): “O sentido da „utensilidade‟ desapareceu do espaço; o mundo dos „Zuhandenen‟
(utensílios), como diria Heidegger, não é mais, para o doente, senão um mundo dos
„Vorhandenen‟ (o simplesmente dado)” (Foucault, 1984b: 64). A este propósito, Elden
regista a espacialidade do Da-sein em alemão, ser-aí, que é sinónimo de ser-no-mundo,
In-der-Welt-Sein, para logo afirmar que a importância da espacialidade em Heiddeger
não se compadece com uma leitura tão mediata, simplista e imprecisa de Ser e Tempo, e
que entender a atitude de Heidegger para com o espaço, nas suas obras iniciais, é uma
tarefa mais difícil e delicada. Deste modo, o ser-aí do Dasein é a expressão existencial
formal do ser do Dasein. A espacialidade do Dasein não é uma sua característica
primária no sentido do atributo de uma coisa real, antes se refere a espacialidade à
mundaneidade do Dasein. Em contrapartida, o Dasein encontra coisas, lugares, técnicas;
a proximidade espacial delas consiste no estarem à mão (Elden, 2001: 15-17). Em
Heidegger, o espaço é um existencial, é experiência da espacialidade, o que significa
que não se determina como pura extensão, ao contrário da concepção cartesiana, mas
segundo a dynamis que lhe é própria: “O espaço é encontrado na vida quotidiana e
vivido, não encontrado formas e distâncias geometricamente mensuráveis” (Elden,
2001: 17). Ora é precisamente de um pensamento da espacialidade que dá mostras a
análise que Foucault faz do dispositivo.
Para os autores (Hubert L. Dreyfus, 2003; Hubert Dreyfus e Paul Rabinow,
1983; Stuart Elden, 2001, 2003; Béatrice Han, 2003; Steven V. Hicks, 2003; Ladelle
McWhorter, 2003; Alan Milchman e Alan Rosenberg, 2003; Jana Sawicki, 2003;
Michael Schwartz, 2003; Charles E. Scott, 2003; Hans Sluga, 2006; William V. Spanos,
1993, 2003; Leslie Paul Thiele, 2003; Rudi Visker, 2003; Edith Wyschogrod, 2003;
Michael Zimmerman, 1990; Jean Zoungrana, 1998) que se debruçam específica e
demoradamente sobre as relações de Foucault com Heidegger, são múltiplas as
afinidades, as influências, as citações intertextuais. Como é evidente, não sendo todas
igualmente pertinentes do ponto de vista dos propósitos do presente texto, elas sempre
contribuem para reforçar aquelas que de facto são interessantes. Na sequência do que
temos vindo a tratar, interessa-nos o quanto o pensamento heideggeriano sobre a técnica
inspirou de algum modo a concepção foucauldiana do dispositivo, concepção a que
Foucault terá chegado na senda da crítica ao humanismo moderno, por ele partilhada
com Heidegger.
É provável que Foucault tenha começado as suas leituras de Heidegger pela
Carta sobre o humanismo (Eribon, 1989: 49; Sluga, 2006: 221; Zoungrana, 1998: 286-
287), mas o texto heideggeriano que mais generalizadamente se aponta (Dreyfus, 2003:
39; Schwartz, 2003: 171; Sluga, 2006: 236; Spanos, 1993: 138; Zoungrana, 1998: 280)
como leitura frutífera para o Foucault da fase genealógica é “A época das concepções
do mundo” (Heidegger, 1970), integrado na recolha Holzwege (Caminhos que não
levam a lado nenhum), a qual foi traduzida em França no início da década de sessenta.
Sawicki chega inclusivamente a dizer que “(e)fectivamente, poderia dizer-se que o
Panóptico de Bentham desempenha um papel na história foucauldiana do
poder/conhecimento análogo ao da concepção do mundo em Heidegger. Ambos
representam a emergência do ideal de um todo perfeitamente sistematizado e
regulado”(Sawicki, 2003: 63). Naquele escrito de Heidegger encontram-se já
estabelecidas as traves-mestras da sua denúncia da concepção antropologista e
instrumental de técnica que ele virá a retomar e a desenvolver em textos posteriores
(Heidegger, 1987, 1991, 1995, 1996) e que já não é tão certo - se bem que não
impossível - que Foucault tenha conhecido de perto. Mas o que não é de maneira
nenhuma possível é que ele possa ter ignorado a questão a partir da qual Heidegger
pensa a Modernidade como era da técnica - e a qual nos permite justamente a nossa
autocompreensão como modernos – ou seja, a questão de saber “o que é que hoje é?”
Ora, a analítica da actualidade foucauldiana remete-se toda ela a esta questão, que
Foucault retoma nos seus próprios termos e com os seus próprios propósitos, que, esses
sim, não são os heideggerianos: “… aquilo que mais me interessa é estudar o que os
Gregos chamavam a techne, isto é, uma racionalidade prática governada por um
propósito consciente (…) O inconveniente da palavra techne (…) está na sua relação
com a palavra „tecnologia‟, que tem um sentido bem específico. Damos um sentido
muito estreito à palavra „tecnologia‟: pense-se nas tecnologias duras, na tecnologia da
madeira, do fogo, da electricidade. Mas o governo é também função de tecnologias: o
governo dos indivíduos, o governo das almas, o governo de si por si mesmo, o governo
das famílias, o governo das crianças” (Foucault, 1994-35: 285). Elden ressalva a este
respeito que Foucault partilha com o Heidegger tardio uma idêntica concepção de
techne como racionalidade prática regida por um fim consciente que não se restringe às
actividades e competências do artesão, mas se estende às práticas da política e do
conhecimento, da conduta, das belas artes e do espírito - “Ele entende techne como uma
„prática‟, como um savoir-faire. (…) Tal entendimento relaciona-se obviamente com o
do último Heidegger (…) Em Heidegger, porém, a maioria das discussões sobre a
técnica moderna centram-se naquilo que entenderíamos normalmente pelo termo; em
Foucault, o termo é usado no seu sentido enriquecido” (Elden, 2001: 109). Também
Sawicki sublinha o paralelismo entre Heidegger e Foucault quanto à defesa da tese da
autonomia da técnica, com que se relaciona a crítica do humanismo moderno, ligado,
em Heidegger, à racionalidade tecnocientífica, e, em Foucault, à emergência das
ciências humanas e às tecnologias que as tornam possíveis; e os esforços de superação
do nihilismo, de que ambos foram equivocamente acusados (Sawicki, 2003: 56).
Correlatos da tese da autonomia da técnica, que naturalmente Heidegger e Foucault
compartilham, são a negação de que a técnica é um instrumento neutro para um fim
humanamente definido e a ideia que o desenvolvimento tecnológico se encontra fora do
contrôle humano. Em Foucault, a autonomia da técnica significa concretamente que o
conhecimento assume a forma de controle técnico e as tecnologias disciplinares não são
meros instrumentos neutros porque são inextricáveis de práticas de dominação. Segundo
dá conta Sawicki, “(a)s tecnologias de poder de Foucault funcionam anonimamente e de
forma muito semelhante ao modo como o tornar disponível tecnológico, descrito por
Heidegger, sugere que funciona a técnica moderna. Tal como poderia ter dito o
Heidegger de Ser e Tempo, elas são implementadas por ninguém e por todos”(Sawicki,
2003: 63).
Assim, se para Heidegger dizer que a Modernidade é a era da técnica como
domínio omnipresente da Gestell, para Foucault, dizer que a Modernidade é a era da
técnica significa a omnipresença do dispositivo como esquema do funcionamento das
relações de poder-saber. Dispositivo é a tradução possível, e inteiramente pertinente, de
Gestell, nas línguas latinas, para “interpelação provocante” que dispõe ou que
disponiboliza. Trata-se de uma provocação dirigida aos fenómenos naturais, mas
também aos seres humanos, para que se disponibilizem como energia que se pode
extrair, explorar, acumular, armazenar e mobilizar. Ela exprime a ideia de “pôr em
estado de disponibilidade”, “transformar em reserva disponível”, “disponibilizar para
uso produtivo” - Bestand, em alemão - tanto os recursos naturais como os seres
humanos. Para Heidegger, a Gestell é a essência da técnica moderna, que ela própria
nada tem de técnico. Com efeito, se toda a techne é essencialmente uma forma do
desvelamento, da aletheia, a forma de desvelamento da técnica moderna é a Gestell e é
um desvelamento perigoso, na medida em que reduz a linguagem humana à sua simples
dimensão técnica de mensuração calculadora. Não é pois a técnica moderna que é
perigosa, mas a sua essência, que é existencial e não técnica (Sawicki, 2003: 60)
enquanto produtora de um sentido inhumano. Perigosa é a tecnicidade, que também
nessa medida se distingue de utensílio técnico. Foucault apropria a ideia de
disponibilidade técnica interpretando-a em termos de relação de poder, de tal modo que,
na teorização foucauldiana, a disponibilidade técnica, o tornar disponível, é inseparável
de um pôr à disposição de, de dispor de (algo ou alguém) em termos de poder, mas
também, e porque poder é uma relação, estar disposto a, dispor-se a, no sentido de
mobilização. Bem o nota Wyschogrod: “Em termos foucauldianos, o tornar disponível
(Enframing) exprime poder. Tal como Foucault, Heidegger reconhece na vontade de
verdade contemporânea uma vontade de controle cuja essência é o contrário da
liberdade” (Wyschogrod, 2003: 280). E identicamente Sawicki: “Assim, as técnicas
disciplinares compõem uma microfísica do poder que assenta num conhecimento do
corpo que o torna calculável e manipulável, de maneira muito parecida com a maneira
como Heidegger descreve o facto de a física se implantar e disponibilizar a natureza”
(Sawicki, 2003: 63);
Tão óbvia aparenta ser a afinidade entre a Gestell de Heidegger e o dispositivo
de Foucault que há quem não hesite na tradução automática da primeira no segundo:
“no uso que Heidegger lhe dá, Ge-stell não significa apenas o suporte ou a moldura à
volta de qualquer coisa, mas o conjuntar do todo, o dis-pôr (…) a importante noção de
dispositif, em Foucault – como o conjunto de discursos e práticas de uma determinada
época – está estreitamente relacionada com este conceito” (Elden, 2001: 79). No
entanto, o imediatismo da tradução não vem de facto a ser nem imprudente, nem
precipitado, pois pode fundamentar-se de maneira consistente: “A noção de dispositif
em Foucault está relacionada com a compreensão que Heidegger tem da Gestell, que
normalmente se traduz, em inglês, por „enframing‟. Em francês, a tradução comum é
Arraisonnement, embora Dispositif também tenha vindo a ser usado. Dadas as ligações
entre o entendimento que Foucault e Heidegger têm da técnica moderna e os papéis que
atribuem ao dispositif e à Gestell, parece que Foucault leva mais além o termo
heideggeriano. Todavia, enquanto que Heidegger vê a Ge-stell como algo que emerge
apenas num momento histórico particular, por intermédio da compreensão calculadora
do ser, para Foucault, tal como a noção de episteme que substitui, houve muitos
dispositifs” (Elden, 2001: 110-111).
Por outro lado, como assinala Dreyfus, a transposição entre a Gestell e o
dispositivo encontra outros paralelos entre o pensamento de Heidegger e o de Foucault,
notórios em conceitos, usados respectivamente pelo primeiro e pelo segundo. Deste
modo, podem encontrar-se: no campo dos termos metodológicos básicos, Ser e Poder,
Origem (Ur-Sprung) e Emergência (Entstehung), Memória e Genealogia; nos dois
derradeiros estádios da história do Ser e do Poder, Época das concepções do Mundo e
Idade do Homem (em vez de Iluminismo ou de Modernidade), Tecnicidade e Biopoder
(em alternativa a Pós-modernidade); e no modo de funcionamento da época em que
vivemos, Interpelação provocante e Disciplina, Reserva disponível e Corpos dóceis,
Mobilização total e Normalização (Dreyfus, 2003: 45). Mas, como nos deveria alertar o
reparo de Spanos, o que estes paralelos realmente nos levariam a reconhecer é que
Vigiar e punir demonstra a afinidade entre a destruição heideggeriana da tradição
ontoteológica e a genealogia foucauldiana das relações de poder pós-Iluminismo
(Spanos, 1993: 154; 2003: 252-253).
Hicks é de opinião que Heidegger antecipa a afirmação de Foucault, segundo a
qual os sistemas técnicos modernos visam presentificar os seres humanos como
biopoder ou indivíduos completamente presentificados para a vigilância e o controle
através das práticas disciplinares em instituições cuja finalidade é normalizar a vida
humana. Com efeito, para Heidegger, a metafísica moderna define-se precisamente pelo
facto de o homem se tornar na medida e no centro dos seres, o que, por sua vez, tem por
resultado a moderna compreensão dos entes como objectos de uso e de controle, ou seja,
entidades totalmente presentificadas como reserva disponível, ou, no caso dos seres
humanos, recursos para objectivação e controle (Hicks, 2003: 87). Neste sentido, e não
obstante toda a sua dívida para com Nietzsche, a principal influência que, para Hicks, se
exerceu sobre Foucault quanto à questão do nihilismo, foi a sugestão feita por
Heidegger de que a secularizada vontade de poder pós-nietzschiana se manifesta não
apenas no mundo exterior, transformando os seres humanos em reserva disponível, mas
também no interior, transformando os seres humanos em recursos, ou biopoder,
disponíveis para os fins totalizadores de poder de uma cultura tecnológica (Hicks, 2003:
97). A análise foucauldiana das práticas disciplinares de instituições modernas como o
manicómio, a prisão, o reformatório, a fábrica, assim como a sexualidade e o uso dos
prazeres, vai muito mais longe do que Heidegger foi no desvelamento das dimensões
subtis do nihilismo técnico. Diz-nos Hicks que “Foucault faz dar um passo em frente ao
nihilismo desvelado na leitura que Heidegger faz da era da técnica pós-nietzschiana: os
seres humanos são desvelados não apenas como recursos para a „mobilização total‟ ao
serviço de fins essencialmente destituídos de sentido, mas como indivíduos
completamente presentes para vigilância e controle disciplinar” (Hicks, 2003: 98). E é
certo que o posicionamento respectivo de Heidegger e de Foucault quanto à superação
do humanismo moderno segue vias divergentes e incompatíveis desde o início. Dreyfus
sabe-o bem: “Caracteristicamente, Foucault preocupa-se exclusivamente com o perigo
presente para as pessoas, ao passo que Heidegger se concentra naquilo que está a
acontecer às coisas. Cada um deles vê aquilo que corre perigo ao mesmo tempo como
fonte de resistência” (Dreyfus, 2003: 47). Para Heidegger, sendo os homens
desveladores de mundos, ou pastores do Ser cuja morada é a linguagem, “o maior
perigo é o modo como a moderna concepção do mundo se transformou na tecnicidade
como mobilização que tende para a eliminação de todas as práticas marginais. Todas as
práticas que são inflexíveis ou ineficazes ou são trivializadas e rejeitadas ou
transformadas em práticas eficientes” (Dreyfus, 2003: 47). Isto mesmo o confirma
Zoungrana, para quem, “(n)o total, que Foucault tenha o selo de Heidegger não tem
qualquer dúvida: toda a sua obra traz em si a impregnação ou a marca de Heidegger.
Leitor de Heidegger, essa leitura, verdadeira provocação a pensar, funcionou como um
convite a pensar com Heidegger, mas para além de Heidegger. Passar por Heidegger,
mas para de imediato sair dele, afastar-se dele, tal será ou terá sido a estratégia de leitura
de Foucault. Se Foucault se serve, utiliza e se apoia em Heidegger, é preciso acrescentar
que ele não fica fechado numa problemática heideggeriana” (Zoungrana, 1998: 290).

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António Fernando Cascais (2010), “Bioética, biopolítica, contramodernidade”

N.B.: ESTE TEXTO AGUARDA PUBLICAÇÃO NO VOLUME DE ACTAS DO


CICLO DE CONFERÊNCIAS “O QUE É A BIOPOLÍTICA?” (12 DE
FEVEREIRO A 15 DE MARÇO DE 2008), LISBOA, CULTURGEST, PEQUENO
AUDITÓRIO, 26 DE FEVEREIRO DE 2008

Bioética, biopolítica, contramodernidade

António Fernando Cascais

A possibilidade de se repetirem hoje os crimes contra a humanidade perpetrados


em contexto totalitário pela biomedicina nazi tem assombrado a investigação histórica
sobre o nazismo, bem assim como a reflexão sobre as biotecnociências contemporâneas
no quadro de fundo de globalização dos riscos tecnocientíficos e de distribuição de
recursos escassos num mundo ameaçado pela catástrofe ambiental. Esse receio parece
adensar-se cada vez mais, e à primeira vista, paradoxalmente, no contexto, que lhe
deveria ser adverso, dos Estados democráticos de direito e de uma ordem internacional
pautada por instrumentos jurídico-políticos que obrigam ao respeito dos Direitos do
Homem e em que a bioética se afirmou universalmente como meio de regulação das
tecnociências biomédicas. Ora, a explicação biopolítica do nazismo adiantada por
Michel Foucault não só mostra que este último constitui um prolongamento extremado
da modernidade, como contribui para se pensar que as respostas correntemente
ensaiadas para os problemas com que a modernidade se confronta de forma recorrente
se encontram sempre na iminência de reactivar o lado funesto, totalitário, da biopolítica
que lhe é coextensiva. O desenvolvimento dado por Giorgio Agamben à teorização

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