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29/05/2020 Envio | Revista dos Tribunais

A ANTECIPAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL NA REFORMA DO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL*

A ANTECIPAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL NA REFORMA DO CÓDIGO DE


PROCESSO CIVIL*
Revista de Processo | vol. 81/1996 | p. 198 - 211 | Jan - Mar / 1996
DTR\1996\83

José Carlos Barbosa Moreira

Área do Direito: Civil; Processual


Sumário:

Senhora Juíza-Presidente do TRT,


Senhor Presidente da EMATRA,
Demais membros da Mesa,
Senhores Magistrados, Advogados,
Estudantes, Senhoras e Senhores,
Agradeço a honra deste convite para proferir uma palestra sobre um dos temas de maior relevo da
reforma, ainda em curso, do Processo Civil Brasileiro, o que me proporcionou, inclusive, a alegria de
voltar a Vitória, cidade tão simpática, onde contemplo, ao mesmo tempo, o mar e a montanha. Sinto-
me perfeitamente em casa.
O Dr. Sérgio, meu prezado amigo, acaba de fazer uma apresentação, naturalmente ditada por
sentimentos de amizade. Aqueles que, porventura, já tiveram alguma oportunidade de ouvir-me, terão
dado, evidentemente, o devido desconto. Aos que ainda não tiveram essa oportunidade, aconselho que
se previnam para a inevitável decepção que terão ao compararem com esta idealizadíssima
apresentação a prosaica realidade.
Tentarei desincumbir-me da tarefa que me foi cometida, desde logo sublinhando que aqui fala um
professor de Direito Processual Civil, que, portanto, encara a problemática atinente à reforma, do
ângulo do Direito Processual Civil. Não tenho grande familiaridade com o processo do trabalho e é bem
possível, diria até bem provável, que algo do que vai ser dito não seja muito relevante para os que
exercem função judicante no âmbito trabalhista ou, talvez, não tenha para eles nenhum sabor de
novidade, uma vez que, na Justiça do Trabalho, muitas vezes se nota um certo avanço, em relação aos
outros ramos do Poder Judiciário, na utilização de determinados institutos.
Feita esta observação preliminar, digo-lhes algumas palavras introdutórias acerca da razão de ser dessa
inovação agora introduzida no Código de Processo Civil (LGL\1973\5), a que se tem dado a
denominação de tutela antecipada ou antecipação da tutela, que, afinal de contas, vem a dar na
mesma.
As razões, diria eu, são, até em grande parte, intuitivas. Todos nós que lidamos com episódios forenses
tivemos ocasião de ver processos nos quais fica manifesto, por vezes desde os primeiros momentos do
itinerário processual, que constituirá uma sensível injustiça para com uma das partes, no caso,
especificamente, o autor, fazê-lo aguardar o tempo necessário para que se desenrole o processo e
atinja o seu termo normal, dada a existência de circunstâncias que, desde logo, permitem concluir que
essa parte, não caso o autor, tem razão e deve ver atendida a postulação que formula perante o órgão
judicial. Isso acontece em hipótese nas quais, pelos próprios elementos probatórios trazidos aos autos
na fase inicial do procedimento, desde logo se pode verificar que é enorme, que é muito alta, a
probabilidade de que realmente exista o direito alegado. A par disso, pode acontecer, e freqüentemente
acontece, que a demora possa revelar-se funesta para esse mesmo direito, no sentido de que, se não
for satisfeito incontinenti, corre o risco de se ver definitivamente frustrado, impedido de obter
satisfação. Ainda acontece, também, que nós nos defrontemos com defesas sem nenhuma
consistência, apresentadas, obviamente, com o exclusivo propósito de fazer prolongar a vida daquele
processo e, portanto, retardar a prestação jurisdicional.
O processo civil brasileiro apresentava, em larga medida, uma notável carência de meios capazes de
resolver esse problema, de contornar esse inconveniente. A inventiva dos advogados, que são seres,
em geral, dotados de grande imaginação criadora, e é bom que o sejam, procurou caminhos, nem
sempre muito ortodoxos, para remediar essa pobreza do Direito Processual Civil Brasileiro.

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A opção preferida foi a de recorrer às formas do processo cautelar, para veicular pedidos pretensões
que nem sempre tinham verdadeiramente natureza cautelar. Era como se, diante das dificuldades, da
demora, que são inerentes ao processo civil de conhecimento, notadamente ao processo ordinário, se
buscasse um atalho para chegar mais fácil e rapidamente ao objetivo visado. Esse atalho muitos
procuram encontrar na utilização das formas do processo cautelar.
O processo cautelar, que tem sua finalidade específica própria, inconfundível com a do processo de
conhecimento, foi utilizado para fins que não condiziam e não condizem perfeitamente com suas
características essenciais. Isso aconteceu porque, por meio dele, era possível obter uma providência
urgente, notadamente quando se pensa na possibilidade da concessão da liminar, que muitas vezes
resolvia, de maneira definitiva, por assim dizer, o problema. Daí a pletora das chamadas cautelares
satisfativas, que, na realidade, dispensavam a propositura de uma segunda ação, porque exauriam por
completo, em toda a sua extensão, a tutela jurisdicional cabível naquela hipótese.
Assistimos a um fenômeno curioso em relação ao processo cautelar. Ele experimentou, sem dúvida, um
grande desenvolvimento, um notável crescimento no foro brasileiro, mas esse crescimento tinha algo
de uma inchação; não é que estivesse propriamente crescendo: estava inchando. Espera-se que, em
alguma medida, a reforma ora introduzida no Código de Processo Civil (LGL\1973\5) possa contribuir
para corrigir essa anomalia, visto que, pelo menos em parte, algumas, ou talvez numerosas, hipóteses
que estavam levando os advogados a utilizar o caminho do processo cautelar impropriamente, possam
ver-se, agora, atendidas no âmbito próprio, que é do processo de conhecimento, uma vez que a
antecipação de que estamos tratando pode representar um desaguadouro adequado para os casos de
urgência na obtenção da tutela jurisdicional.
Tem-se discutido, em sede doutrinária, sobre a natureza jurídica deste instituto, agora introduzido no
Código de Processo Civil (LGL\1973\5). São evidentes algumas afinidades que a tutela antecipada
apresenta com a tutela cautelar. Basta ver que a antecipação da tutela tem como um de seus possíveis
fundamentos a urgência, inerente, característica do processo cautelar, assim como o fato de que a
providência antecipatória, de acordo com o § 4.º do art. 273, na sua nova redação, está sempre sujeita
a ser modificada, ou mesmo revogada a qualquer tempo, traço, como todos sabemos, comum às
providências cautelares, também suscetíveis de modificação ou de revogação.
Um aspecto que poderia ser apontado como passível de caracterizar, de refletir uma diferença
substancial, uma diferença de natureza, entre a antecipação da tutela de que estamos cuidando e a
tutela cautelar, seria o fato de que, no instituto agora regulado pelo art. 273 do Código de Processo
Civil (LGL\1973\5), estamos diante de um tipo de tutela que tem a característica de ser satisfativa, e
não puramente instrumental, ao contrário do que ocorre, pelo menos de acordo com a concepção
clássica, tradicional, na tutela cautelar.
A medida cautelar é, por essência, instrumental. Ela visa, essencialmente, a assegurar a eficácia da
prática de outra medida que, esta sim, deve satisfazer o direito postulado. A medida cautelar, na sua
feição clássica, não visa diretamente a tutelar o direito de qualquer das partes; visa apenas a criar
condições para que outra providência, seja ela cognitiva, seja executiva, possa fazê-lo com a segurança
de produzir efeitos práticos eficazes. Quando, por exemplo, se apreende um bem a título cautelar,
submetendo-o a um arresto ou seqüestro, não se está querendo com isso satisfazer diretamente o
direito de qualquer das partes; quer-se, apenas, preservar aquele bem, para evitar que seja destruído,
desviado, alienado, ocultado, de tal sorte que, quando sobrevier a medida satisfativa, possa incidir
sobre tal bem e assim garantir a efetiva satisfação da parte que a ele tenha direito. A tutela cautelar é,
portanto, uma tutela essencialmente instrumental, ao passo que, aqui, nós estamos diante de uma
tutela que, antecipada, é, contudo, satisfativa, no sentido de que visa, certamente, à satisfação do
direito postulado, embora a título provisório.
Essa colocação, essa equação, esse modo de colocar o problema não está imune a controvérsias, devo
desde logo sublinhar, pela simples razão de que, de acordo com opiniões autorizadíssimas, no âmbito
do próprio processo cautelar podem comportar-se medidas que, de certo modo e em determinada
proporção, satisfazem o direito postulado. Basta que nós nos lembremos dos alimentos provisórios. No
processo da ação de alimentos, o juiz, desde o primeiro momento do itinerário processual, pode e até
deve, em certas circunstâncias, ordenar ao suposto devedor que, desde logo, passe a pensionar o
suposto credor, de maneira a satisfazer as necessidades deste com relação à sobrevivência. Ora, aí nós
não estamos diante de uma medida desprovida de satisfatividade; ao contrário, estamos diante de uma
providência que, de imediato, se destina, embora em caráter provisório, a prover a subsistência
daquele que se apresenta como credor dos alimentos.
Na mais famosa tentativa de construção sistemática do processo cautelar, feita na Itália, na primeira
metade do século, por Piero Calamandrei, numa monografia que se tornou célere e é hoje um clássico
da literatura processual, intitulada "Introdução ao Estudo Sistemático das Providências Cautelares",
uma das modalidades contempladas pelo autor, entre as várias classes de medidas cautelares, era
precisamente essa, a caracterizada pela circunstância de que, na verdade, a cautela importava, embora

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provisoriamente, na satisfação do titular do direito. Calamandrei explicava essa posição dizendo que,
em certas hipóteses, e para certas matérias, o único modo possível e eficaz de assegurar a eficácia
prática da medida definitiva, era, desde logo, ir satisfazendo, embora provisoriamente, o direito
postulado. O exemplo, óbvio, é precisamente este dos alimentos. Se nós queremos que a sentença
concessiva de alimentos se revista de eficácia prática, temos de fazer tudo para impedir que, neste
meio tempo, o credor dos alimentos deixe de existir. Porque, se isso acontecer por falta de recursos
para prover à sua subsistência, a condenação do devedor em nada lhe aproveitará, uma vez que, no
Além, não se necessita desses alimentos que, na Terra, nosso planeta, são necessários à nossa
subsistência. Naturalmente se disporá de outros alimentos muito mais importantes, mas diferentes
destes que asseguram a subsistência do mortal, enquanto habite a terra... Dizia Calamandrei: o que se
tem aí não é o perigo de uma execução infrutífera, como acontece, por exemplo, quando se aprende
um bem para que depois a atividade executiva possa incidir sobre ele; aqui, o que se tem é o perigo de
uma execução inútil, de uma execução que cairia no vazio e não aproveitaria a parte vitoriosa.
Não é nisso que podemos encontrar um critério para estabelecer distinção perfeitamente nítida entre a
tutela antecipada e a tutela cautelar. Não sei se vale a pena, aliás, insistir nessa preocupação de traçar
uma linha divisória, absolutamente rígida, que separe esses institutos, como se se tratasse de
compartimentos estanques, de fronteiras sem nenhum poro.
De algum tempo para cá, venho tendendo a convencer-me de que, por vezes, esse tipo de preocupação
é fútil, porque no Direito, como na vida, as distinções nem sempre refletem contraposições; o Direito e
a vida são realidades que se desenvolvem e se estruturam gradualmente, sem essa obsessão por
muros opacos que separem, de maneira radical, um compartimento do outro. A própria ciência
processual reconhece hoje que muito do que se tentou fazer em matéria de distinção rigorosa, de
quase que separação absoluta entre institutos, na verdade, constituía uma preocupação
metodologicamente discutível e, em certos casos, francamente equivocada, porque há sempre uma
passagem gradual de uma realidade a outra, e quase sempre se depara uma espécie de zona de
fronteira, uma faixa cinzenta, que nem o mais aparelhado cartógrafo saberia dizer com precisão em
qual dos dois terrenos estamos pisando.
Todavia, pode objetar-se a isso que a questão tem relevância prática. Em que sentido? No sentido de
que, quando nos defrontarmos com uma lacuna do texto legal relativa à tutela antecipada, e o texto
legal é lacônico e não pretendeu descer a muitos pormenores na disciplina da matéria, surgiria a
seguinte pergunta: é próprio, é adequado, tentar suprir essas lacunas mediante a aplicação analógica
das disposições contidas no Livro IV do Código acerca do processo cautelar? Se nós partíssemos da
idéia de uma grande afinidade, de uma perfeita analogia entre as duas figuras, então a resposta seria
intuitivamente afirmativa, não haveria nenhuma dúvida sobre a possibilidade de aplicarmos
analogicamente à tutela antecipada aquilo que está disposto na lei acerca do processo cautelar. Se nós
partíssemos, ao contrário, da idéia de que se trata de duas realidades perfeitamente distintas, teríamos
maior dificuldade em recomendar essa aplicação analógica. Creio que o problema é mais interessante
do ponto de vista teórico, do que relevante do ponto de vista prático.
Do ponto de vista prático, penso que não há muita dificuldade em resolver essa questão, porque, de
um lado, algumas das disposições contidas no Livro IV, acerca do processo cautelar, têm excluída, de
maneira óbvia e indubitável, a sua aplicação à tutela antecipada. Isso acontece com todas aquelas
disposições do Livro IV que pressupõem uma seqüência de processos: um processo cautelar e, depois,
um processo de natureza satisfativa. Por exemplo: a regra do artigo 808 sobre o prazo que deve ser
observado para propositura da ação principal, com aquela sanção de perda da eficácia da medida
cautelar, se não iniciado em tempo hábil o outro processo. Esta disposição, evidentemente, não
comporta aplicação à tutela antecipada, pela simples razão que, na tutela antecipada, não se tem uma
sucessão de dois processos; tudo está contido no âmbito de um único e mesmo processo. Não há,
portanto, que cogitar de prazo nenhum, assim como também não há que cogitar, por exemplo, da regra
do artigo 810, aquela de que o resultado do processo cautelar não condiciona, necessariamente, o
resultado do processo satisfativo, a não ser quando o juiz do primeiro aprecia a existência da
decadência ou de prescrição. Aqui, também, não há cogitar de transportar essa regra para o âmbito da
tutela antecipada. Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas acho que esses dois são suficientes para
mostrar que certos números de disposições atinentes ao processo cautelar, pela natureza das coisas,
não comportam que se cogite de uma aplicação analógica à tutela antecipada.
Noutros casos, o Código de Processo Civil (LGL\1973\5), no artigo 273, na sua nova redação, já cuidou
de regular o ponto expressa e especificamente. Também não é necessário o recurso à analogia; por
exemplo, o artigo 273, § 4.º, ao qual tive a oportunidade de aludir, no início da palestra, diz,
expressamente, que a tutela antecipada pode ser modificada ou revogada a qualquer tempo, o que nos
dispensa de procurar auxílio na parte referente ao processo cautelar. Não é necessário aplicar, por
analogia, a disposição do Livro IV, segundo a qual a medida cautelar é suscetível de modificação ou
revogação, porque temos uma regra diretamente aplicável à matéria.

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Pode haver um resíduo, isto é, não se está excluindo a possibilidade de que ainda remanesçam algumas
hipóteses, não disciplinadas em termos expressos para a antecipação da tutela e em relação às quais o
intérprete ou o aplicador da lei se pergunte se é viável, adequada, a invocação da analogia para a
aplicação de disposições concernentes ao processo cautelar. Por exemplo, o artigo 804 do Código
contempla a possibilidade de uma justificação prévia antes da concessão da medida cautelar. Pergunta-
se: no âmbito da tutela antecipada é possível aplicar-se essa norma? É possível ao juiz determinar que
se realize uma justificação antes de conceder a antecipação da tutela? Penso que problemas deste tipo,
que são, repito, residuais, e não acredito que alcancem número muito alto, devem ser resolvidos
segundo um critério de razoabilidade.
Talvez não seja possível enunciar uma regra de validade universal e absolutamente inflexível, no
sentido positivo ou no sentido negativo. Penso que mais próprio e mais frutífero será examinarmos,
caso a caso, esses problemas que possam surgir e dar-lhes solução razoável, tendo em vista a função
do instituto.
Por exemplo: a essa pergunta sobre a justificação prévia eu daria, sem hesitar, resposta afirmativa. O
juiz não é obrigado, mesmo que presentes, aparentemente ao menos, os pressupostos da tutela
antecipada, a concedê-la sem estar suficientemente esclarecido sobre fatos que possam ser relevantes.
Nada o impede, a meu ver, de determinar a realização de uma audiência para que se faça essa
justificação prévia. Ele não tem que decidir aquilo no escuro. Aliás, nenhum juiz deve decidir nada no
escuro, a não ser em casos de absoluta impossibilidade de esclarecimento. Então, vamos apelar, como
último recurso, como tábua de salvação, para as regras de distribuição do ônus da prova e vamos
concluir que, se o fato que não se conseguiu esclarecer era o fato constitutivo, o autor arca com as
conseqüências desfavoráveis dessa lacuna. Se era um fato impeditivo, modificativo ou extintivo, quem
arca com as conseqüências desfavoráveis é o réu. Mas isso é a última tábua de salvação do juiz.
Não temos a possibilidade de dizer: não está claro, portanto não vou proferir sentença de mérito. O juiz
romano tinha essa possibilidade. Dizia: non liquet (não está claro); comecem tudo de novo. Nós, juízes
modernos, não podemos recorrer a essa solução. Temos de decidir. Em último caso, em desespero de
causa, utilizamos as regras legais de distribuição do ônus da prova. Mas é sempre um drama para um
juiz consciencioso decidir assim, porque pode estar dando um tiro no escuro e atingir um alvo que não
desejava. Porém, nada impede que o juiz procure esclarecer-se melhor acerca dos fatos relevantes,
determinando que se proceda a uma justificação.
Passemos, agora, a um exame que, necessariamente, não poderá ser aprofundado, porque não desejo,
de forma alguma, retribuir a gentileza do convite e a atenção dos presentes com um inominável abuso
contra a sua paciência. O exame terá de ser sucinto, superficial.
Com essa ressalva, passemos a examinar as principais questões que emergem da leitura do texto do
artigo 273, do CPC (LGL\1973\5), na sua redação atual. O tópico inicial a ser abordado é,
naturalmente, o dos pressupostos da chamada antecipação da tutela. O primeiro deles é o
requerimento da parte interessada que, no caso, é o autor, como fica óbvio, pela leitura do caput: "O
juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar total ou parcialmente os efeitos da tutela pretendida no
pedido inicial". Por conseguinte, não de ofício.
Em segundo lugar, exige a lei, ainda no caput do artigo 273, que exista "prova inequívoca" capaz de
convencer o órgão judicial da verossimilhança da alegação. Estou de propósito repetindo aqui,
literalmente, as expressões da lei que, todavia, despertam, não há dúvida, certa dose de perplexidade,
porque, de um lado, se fala em prova inequívoca e, de outro, se fala em verossimilhança.
Penso ser necessário certo esforço hermenêutico para conciliar essas duas expressões que, à primeira
vista, não se harmonizam de forma perfeita, pois uma prova inequívoca, entendida essa expressão
como a que não deixe absolutamente nenhuma dúvida no espírito do julgador, conduziria a algo
diferente de uma simples verossimilhança. Devemos interpretar as duas expressões de um modo não
estritamente literal. Prova inequívoca deve, a meu ver, entender-se nesse contexto com a prova que,
embora não necessariamente cabal, não deixe, absolutamente, nenhuma outra possibilidade de
reconstrução dos fatos, mas uma prova isenta de ambigüidade, em si mesma clara, dotada de sentido
unívoco. Isso é o que basta para que a prova seja considerada apta a atender ao que dispõe o artigo
273, caput. Claro que, se ela ultrapassar esse nível, se, além de inequívoca, nesse sentido que acabo
de explicar, for cabal, decisiva, definitiva, tanto melhor.
Não está proibido que o juiz se funde numa prova absolutamente convincente de que não há duas
maneiras de reconstruir os fatos. Mas não é preciso que se chegue a este ponto, mesmo porque, em
grande número de casos, a esse ponto só se chega depois de realizada a normal atividade de instrução,
isto é, ao fim do processo, na parte final do itinerário processual.
Por outro lado, a palavra verossimilhança também não me parece retratar, no seu sentido literal, o que
se quis dizer aqui. Verossimilhança significa qualidade daquilo que parece verdadeiro, que não parece
falso, que o nosso espírito não rejeita imediatamente como falso, admite que possa ser verdadeiro. É

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pouco, a meu ver, para a concessão da tutela antecipada, e é pouco, sobretudo, à vista da cláusula
referente à prova inequívoca.
Um pouco mais que verossimilhança deve ser exigido aqui. O juiz deve reclamar uma forte
probabilidade de que o direito alegado realmente exista. Penso que a palavra ideal seria probabilidade,
e não verossimilhança. Não basta que a versão dos fatos oferecida pelo autor seja tal que o espírito do
juiz não a rejeite como evidentemente falsa. É preciso algo mais. É preciso que ela, corroborada pelos
elementos de prova existentes nos autos, se lhe afigure, não digo necessariamente certa, mas, pelo
menos, altamente provável. Uma forte dose de probabilidade deve haver no sentido de persuadir o juiz
de que, pelo que consta dos autos, pelo que se pôde apurar até então, é bem mais provável que ao
final se tenha de dar ganho de causa ao autor do que a hipótese contrária. Esse é o segundo requisito,
depois do requerimento da parte.
Vejamos o terceiro requisito, formulado de maneira alternativa. Até aqui, estávamos diante de
requisitos cumulativos. Pois bem, os dois primeiros não são suficientes. A eles deve-se acrescentar
ainda outro. Mas esse outro vem formulado em termos alternativos: ou uma coisa ou outra.
Quais são os dois termos da alternativa? Ou o receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou,
então, o abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório por parte do réu. Frise-se,
portanto, que essas duas circunstâncias não precisam coexistir. Basta uma delas, somada aos outros
anteriormente aludidos, para fundamentar a antecipação da tutela.
Há ainda um quarto requisito que está expresso no § 2.º, sob forma negativa: "Não se concederá a
antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado." A letra da
lei fala em irreversibilidade do provimento antecipado. Não me parece que seja perfeita essa maneira
de dizer.
Na verdade, o provimento em si, isto é, o decreto do juiz que porventura conceda a antecipação da
tutela, esse ato do juiz, esse pronunciamento, a rigor, é sempre reversível, no sentido de que, mais
adiante, o juiz pode dizer o contrário do que disse, dar o dito por não dito. Não apenas na sentença, no
seu pronunciamento final, visto que, nos termos do § 4.º, a antecipação da tutela pode ser revogada. O
provimento em si não será irreversível, porque sempre podemos dizer o contrário do que dissemos
antes.
Na realidade, o que deve ser reversível, ou o que não pode ser irreversível, para que a tutela possa ser
antecipada é a situação criada pelo provimento, ou seja, o conjunto de efeitos que esse provimento
produz; isso sim, é que não deve ser irreversível ou que deve ser reversível. Por exemplo, a entrega de
uma coisa consumível, cujo uso importe destruição. Temos aí um caso de situação irreversível, gerada
pelo pronunciamento que porventura antecipe a tutela. Se o réu for obrigado a entregar ao autor uma
coisa consumível, é evidente que o consumo vai destruir essa coisa e, portanto, vai-se criar uma
situação, essa sim, irreversível. Por mais que o juiz queira desdizer-se do que disse (e poderia, em
tese, dizer: concedi a tutela antecipada, mas verifico agora que a tutela definitiva não deve ser
concedida), esse provimento, embora reverta o que o outro enunciou, cairá no vazio, porque
encontrará uma situação que já não comporta volta ao estado anterior.
Se o juiz manda que o réu entregue ao autor, uma coisa, cujo uso, embora não importe destruição,
acarretará notável deterioração, poderá ocorrer uma situação de irreversibilidade, porque, mesmo que
o réu obtenha depois a restituição da coisa, ela lhe será restituída em condições totalmente diferentes
daquelas em que o autor a recebeu.
Neste ponto, convém que nos perguntemos se isso criaria sempre e inevitavelmente um impedimento
inafastável e irremovível à concessão da tutela antecipada. E, aqui, a doutrina tem sugerido (li essa
sugestão no livro que o eminente Prof. Calmon de Passos publicou a respeito das inovações no CPC
(LGL\1973\5)), que, em hipóteses desse gênero, caso uma compensação pecuniária seja capaz de
satisfazer totalmente à parte que ficou prejudicada, seja capaz de reintegrá-la cabalmente no estado
anterior, do ponto de vista patrimonial, quem sabe, se a despeito da característica de irreversibilidade
fática, nós não podemos contornar o obstáculo, mediante uma garantia de que essa compensação
pecuniária, essa reparação seja efetivada no momento em que se perceber, em que se concluir, que
aquele que obteve a tutela antecipada, na verdade não a merecia.
Quem sabe se podemos resolver o problema mediante a imposição de uma caução, determinando que
a entrega da coisa seja precedida dessa providência que, nesse caso, terá caráter nitidamente cautelar?
Nada impede que haja instruções, intromissões cautelares, no procedimento da tutela antecipada,
ainda que se lhe negue tal natureza. A doutrina já vem, repito, propondo essa solução. A
irreversibilidade poderia ser substituída por uma garantia cabal de que os defeitos danosos fossem
pecuniariamente compensados, sempre no pressuposto de que se trate de matérias que comportem
esse tipo de compensação, porque todos sabemos que há matérias que não comportam uma
compensação pecuniária, uma vez consumado o dano. Estamos diante de um alvitre que só vale e só
pode ser aplicado em matéria estrita, rigorosa e exclusivamente patrimonial.

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Algumas palavras sobre o procedimento da tutela antecipada ou da antecipação da tutela.


A lei não indica o momento adequado para esse tipo de providências. O eminente Prof. Calmon de
Passos, se bem entendi o seu pensamento, no livro há pouco citado, considera que a decretação da
tutela antecipada só se torna cabível na ocasião em que o juiz poderá proferir a sentença, o
pronunciamento final. Esse eminente jurista considera que o efeito próprio da antecipação da tutela
consiste, precipuamente, na possibilidade que se abre de uma execução provisória em hipóteses nas
quais, normalmente, não haveria tal possibilidade.
A meu ver, com a devida vênia, e apesar da admiração e respeito que tenho pela pessoa e pela
autoridade científica do Prof. Calmon de Passos, esse entendimento não se coaduna com a letra nem,
sobretudo, com o espírito da lei. Penso ser muito pobre o resultado, que nós poderíamos extrair dessa
inovação, se só permitíssemos ao juiz - e o verbo até ficaria um pouco desprovido de significação -
antecipar a tutela no momento em que estamos habilitados a dispensar uma tutela definitiva. Estou
certo de que não se quis isso, porque participei, embora modesta e episodicamente, numa determinada
oportunidade, dos trabalhos preparatórios dessa reforma, convocado que fui a participar de uma
reunião em Belo Horizonte, alguns anos atrás, onde se discutiram algumas questões relacionadas com
a reforma.
Não só estou seguro de que isso não estava, de maneira nenhuma, na mens legislatoris, mas também
estou seguro, com a devida vênia, de que isto não está na mens legis, e é o que mais importa. Penso
que a reforma visou e visa a uma autêntica antecipação, e não vejo nada no texto do artigo 273 que
abone esse entendimento tão restritivo.
Vejamos, então, o que se pode extrair do texto em matéria de oportunidade, de momento próprio para
a eventual concessão da tutela antecipada. No caso do inciso II, leio: "fique caracterizado o abuso de
direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu." É evidente a existência de um termo
inicial. Só se pode conceder a antecipação da tutela, com este fundamento, a partir do instante em que
o réu ofereça uma defesa capaz de ser classificada como abusiva ou pratique algum ato do qual se
possa inferir um manifesto propósito protelatório. Portanto, no caso do inciso II, é inconcebível a
antecipação da tutela antes que o réu atue no processo. É preciso que o réu faça alguma coisa no
processo para que se possa dizer que ele está abusando do direito de defesa ou revelando um intuito
manifestamente protelatório.
Não excluo que, em alguma hipótese mais rara, o comportamento do réu possa revestir caráter
omissivo. É até possível que o réu manifeste um intuito protelatório deixando de fazer alguma coisa
que lhe compete. Quando digo que o réu deve estar participando da atividade processual, a minha
afirmação deve ser entendida com esta ressalva: não é preciso tratar-se de um comportamento
comissivo; pode, eventualmente, tratar-se de um comportamento omissivo. Mas, de qualquer maneira,
é preciso que o réu esteja presente no processo.
E que pensar do inciso I? O inciso I enuncia-se da seguinte maneira: "haja fundado receio de dano
irreparável ou de difícil reparação."
Ora, essa circunstância, penso eu, s.m.j., pode configurar-se em qualquer etapa do processo. Pode
acontecer que ela só venha a ficar definitivamente, claramente configurada, numa etapa avançada do
itinerário processual, mas também é possível, a meu ver, que sua existência seja visível desde o
momento em que a ação é proposta.
A doutrina tem sustentado, em geral, e digo em geral porque, como são poucos os livros publicados até
agora sobre a reforma ainda em curso, dois ou três nos autorizam a falar assim e justificam o emprego
dessa expressão, a doutrina existente a respeito tem sustentado que "não é possível ao juiz conceder a
antecipação da tutela sem prévia audiência do réu." Não existiria nenhuma possibilidade de antecipação
da tutela inaudita altera parte.
Devo dizer que tenho dúvidas sobre a exatidão desse entendimento, exatamente porque, segundo
penso, é perfeitamente possível que todos os pressupostos da antecipação da tutela já estejam
configurados no próprio momento em que se ajuíza a demanda. No primeiro contato com a postulação
do autor, não é impossível que o juiz verifique a existência dos pressupostos exigidos pela lei para a
antecipação. É possível que o autor haja, na própria inicial, formulado o seu requerimento; é possível
que essa inicial venha acompanhada de prova documental bastante para ser considerada inequívoca e
persuadir o juiz da chamada verossimilhança, ou melhor, probabilidade da existência do direito e, é
possível, também, que o juiz verifique não ser irreversível a situação porventura criada em
conseqüência do seu pronunciamento que antecipe a tutela. Ora, se tudo que a lei exige está presente,
por que impedir o juiz de antecipar a tutela antes do ingresso do réu no feito?
Dir-se-á: o que acontece, onde fica o princípio do contraditório, hoje constitucionalmente garantido?
O princípio do contraditório, como todo e qualquer princípio processual, talvez com algum atrevimento
pudesse dizer, como todo e qualquer princípio jurídico, não tem uma rigidez absoluta. Nenhum princípio

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deve ser convertido em ídolo. Os princípios destinam-se a permitir a realização da boa justiça e devem
ser observados na media em que para isso contribuam. É preciso tolerar que eles sofram determinadas
compressões, não lesões substanciais, na medida em que isto, porventura, seja necessário para
assegurar o atingimento dos verdadeiros fins do processo. O processo destina-se a assegurar boa
justiça, a fazer boa justiça. Se, para fazê-la, é indispensável antecipar a tutela, temos de interpretar os
princípios de tal maneira que não nos impeçam de utilizar esses instrumentos.
No processo cautelar não escandaliza ninguém, e jamais se argüiu a possibilidade de ser contrária à
Constituição, a concessão de uma liminar sem audiência da parte contrária, caso o juiz verifique que,
se for esperar o cumprimento dessa formalidade, a providência se frustrará ou cairá no vazio. O mesmo
raciocínio, a meu ver, aplica-se à hipótese.
Eis um exemplo de como podemos, segundo um critério de razoabilidade, que atenda sobretudo à ratio
legis e à finalidade prática do instituto, aplicar algo do que consta da disciplina legal do processo
cautelar. Se lá é possível, aqui também deve ser porque, em certa medida, os dois tipos de
providências visam não ao mesmo fim, mas a fins análogos: permitir a realização da boa justiça, de tal
maneira que ela seja praticamente eficaz e não apenas teoricamente eficaz. Uma das preocupações do
moderno direito processual civil, e diria do moderno direito processual (certamente não excluo o
processo trabalhista, muito pelo contrário), é a de arranjar as coisas de tal sorte que o resultado da
atividade judicial avance, do ponto de vista prático e não apenas do ponto de vista teórico ou
doutrinário, o máximo de rendimento e de efetividade possível.
Permito-me, então, pôr em dúvida, questionar, pelo menos, sem querer dar a estas minhas palavras
um caráter, no mau sentido da palavra, dogmático, no sentido de autoritário - que não é o sentido
técnico, como sabemos, mas é muito usado - sem querer dar um caráter de definitividade, até porque
a problemática é nova. Como sempre acontece nesses casos, muitas vezes as nossas primeiras
impressões, as nossas primeiras tendências hermenêuticas podem sujeitar-se mais tarde, com o correr
do tempo ou uma reflexão mais madura, a alterações, modificações.
Isso não acontece só em matéria nova. A cada nova edição do meu modesto volume de comentários ao
CPC (LGL\1973\5), sempre há alguma coisa que modifico, quando menos na maneira de dizer.
O autor nunca está, felizmente, satisfeito com a própria obra; encontra sempre o que modificar. Na pior
hipótese, ou na melhor, conforme o ponto de vista, encontra algo que modificar na redação, no modo
pelo qual se expressou, mas, muitas vezes, mesmo na substância.
Por isso fico um pouco preocupado quando vejo o meu livro citado em edições antigas, porque é bem
possível que estejam citando ou invocando a minha hipotética autoridade em abono de uma tese que já
não adoto, que repeli. Tenho sempre o cuidado de, quando isso, acontece, inserir uma nota de rodapé,
advertindo o leitor: estamos mudando nossa opinião sustentada na edição tal, por tais e tais razões.
Sim, porque do contrário, ele pode ver-se desconcertado quando comparar: "Este autor aqui é uma
espécie de ventoinha, vira para um lado, vira para o outro". O pior de tudo não é isso. O pior de tudo
(que espero não tenha acontecido com um livro meu), é o que acontece quando, de um trecho para
outro do mesmo livro, aparecem manifestações divergentes.
O meu saudoso e queridíssimo mestre Machado Guimarães, a quem devo tanta coisa, sobretudo o
estímulo inicial e decisivo para os meus estudos de direito processual, referindo-se a determinado livro
que não vou mencionar, dizia:
"Quando procuro nesse livro algum trecho que me seja útil numa peça processual, quero citar esse
autor, quero citar essa obra porque estou precisando de um reforço doutrinário numa contestação,
numa réplica ou num recurso, e eu o encontro, abstenho-me cuidadosamente de virar a página.
Transcrevo aquele trecho e não viro a página."
Espero em Deus que ninguém se tenha visto tentado a dizer coisa análoga em relação a um livro meu.
Mas de uma edição para outra, sem dúvida o altero, e parece-me que é muito mais honesto do que
simplesmente ficar repetindo nas sucessivas edições o que consta da primeira, como também acontece,
às vezes, apesar da mudança da lei. E como se o autor dissesse: "Não tenho nada com isso; a
legislação que mude, a minha opinião continua sempre igual"... É um tipo de coerência que não desejo
ter.
Voltemos à análise do texto. É claro que, quando abro essa janela para sugerir que, em certos casos, a
tutela possa ser antecipada pelo juiz, mesmo sem audiência da parte contrária, não estou, de modo
nenhum, exortando os juízes a que façam isso a todo momento. Tal solução deve ser reservada para
hipóteses absolutamente excepcionais. Sempre que possível, o réu deve ser ouvido antes da
decretação da tutela antecipada e até antes da decisão sobre se vamos ou não antecipar a tutela.
O princípio do contraditório pode ser e é, em determinadas circunstâncias, comprimido, atenuado pelo
seu alcance, mas não pode ser postergado levianamente. Temos de usar do nosso bom senso, da nossa

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prudência para, diante de cada caso, pesando os prós e os contras e atentando para as circunstâncias
da espécie, chegar a uma solução mais sensata e mais equilibrada.
Aliás, devo dizer, entre parênteses, não apenas neste assunto, mas em todos os tópicos e temas que
foram e estão sendo atingidos por esta reforma do Código, a prudência do juiz é convocada a atuar de
maneira muito intensa. A reforma aposta muito no bom senso, no equilíbrio e na disposição do juiz
para resistir a duas tentações opostas e igualmente funestas: uma, a de sair galopando sem usar o
freio e, ao contrário, espicaçando, esporeando a sua montaria, a partir do texto legal, ameaçando com
isso, matar o doente por excesso de remédio, dose excessiva de medicamento. Ou, ao contrário,
deixar-se tolher por um excesso de timidez, de tal maneira que as inovações acabem passando em
brancas nuvens. Ambos são riscos ou alterações que os aconselho vivamente a evitar. Vamos tentar
fazer funcionar esses institutos, mas com aquela indispensável dose de prudência, para não provocar
inconvenientes piores do que aqueles que essas inovações pretenderam atalhar.
A decisão sobre a concessão ou não da tutela antecipada não tem, na minha opinião, caráter
discricionário. Isso pode surpreender alguém que se baseie no verbo poder. "O juiz poderá, a
requerimento da parte... " dá a idéia de uma faculdade que ele usará se quiser e não usará se não
quiser, discricionariamente. Não é esse, a meu ver, o sentido do texto legal e não é esse o sentido do
instituto. O poderá, em muitos textos legais, como sabem, equivale a deverá. Não preciso exemplificar,
porque se trata de um fenômeno notório. Aqui, o que acontece, a meu ver, é o seguinte: de duas, uma,
ou estão presentes todos os pressupostos da antecipação da tutela e, neste caso, não é lícito ao juiz
denegá-la, ou falta algum, a impossibilitar o juiz de concedê-la.
Nós nos deparamos com uma série de conceitos jurídicos indeterminados. Por exemplo: dano
irreparável, verossimilhança da alegação, propósito protelatório. São conceitos pouco precisos, do
ponto de vista teórico, que necessitam da concretização, caso a caso. Compete ao juiz, examinando
cuidadosamente as características da espécie, verificar se ela se enquadra ou não no conceito de
verossimilhança, no conceito de propósito protelatório, no conceito de dano irreparável.
Até aí há, realmente, certa dose de flexibilidade e, até diria, certa dose de subjetividade que não se
pode eliminar de todo. Aquilo que, aos olhos de um juiz, pareça constituir um dano irreparável, aos
olhos de outro poderá não sê-lo. Nisso se esgota a flexibilidade. No momento em que o juiz afirma para
si mesmo: aqui o dano é irreparável, ele está vinculado. Ele não pode dizer: apesar de ser irreparável,
eu indefiro; como também não pode dizer: apesar de ser reparável, eu defiro. Nesse sentido, a sua
decisão não é discricionária. é uma decisão vinculada. O que comporta elasticidade é apenas o critério
pelo qual o juiz vai enquadrar ou não as características do caso dentro daquelas molduras conceituais
que não são rígidas.
Trata-se de fenômenos distintos. A verdadeira discricionariedade existe quando a lei concede ao juiz a
possibilidade de optar entre fazer ou não, entre tomar esta ou aquela medida, mesmo depois da
verificação dos pressupostos. Aí, sim, existe autêntica discricionariedade. No caso, não me parece que
seja este o fenômeno.
A decisão, na minha opinião, tem nítido caráter interlocutório. Não comungo, como já afirmei, dessa
opinião evidentemente respeitável do Prof. Calmon de Passos, segundo a qual a tutela antecipada só
poderia ser concedida no momento em que o juiz já tivesse todos os elementos necessários para
formar uma convicção definitiva e, portanto, prover em caráter final. Penso que a tutela pode ser
antecipada em qualquer fase do procedimento e, na medida em que seja proferida no curso do
processo, se caracteriza, obviamente, como interlocutória e, no processo civil, o recurso cabível para
impugná-la será o agravo.
Qual é o conteúdo possível da decisão que antecipa a tutela? Esse conteúdo será determinado em
função do conteúdo possível da sentença de mérito que porventura o juiz, eventual e hipoteticamente,
possa vir a proferir em favor do autor. Deve sempre tomar como critério o limite da sentença que ele
está autorizado a proferir em favor do autor. Esse limite é dado, obviamente, pelas disposições legais
que ordenam ao juiz a observância da correlação ou da congruência, como também se diz em doutrina,
entre o pedido e a sentença.
Evidentemente, se o juiz não pode ou está proibido de, ao final, conceder ao autor algo do que pediu
ou mais do que pediu, é intuitivo que tampouco pode fazê-lo ao antecipar a tutela. A tutela antecipada
não pode ser mais ampla do que a tutela suscetível de ser concedida a final. O que se pode fazer, a
título de tutela antecipada ou de antecipação da tutela, é, no máximo, conceder ao autor,
provisoriamente, aquilo que, por hipótese, se lhe poderia conceder a final: ou uma providência de igual
conteúdo ou de menor conteúdo.
A lei diz: antecipar total ou parcialmente. Portanto, o juiz pode, a título de antecipação da tutela,
decretar, em favor do autor, uma providência menos ampla, menos abrangente, ou de eficácia menor
do que aquela que foi objeto do pedido. Por exemplo: se alguém pleiteia na inicial a anulação de
determinado ato, pode o juiz, desde logo, a título de antecipação da tutela, em vez de anular o ato,

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suspender-lhe a eficácia, decretar que não produzirá efeitos, enquanto dure o processo. Estará
antecipando, parcialmente, a tutela pretendida, já que a suspensão é uma providência menos intensa,
menos grave, menos completa do que a anulação, embora conduza a efeitos semelhantes, enquanto
vigore.
A lei explicitou o dever da fundamentação ou da motivação. Diz o § 1.º: "Na decisão que antecipar a
tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento"; e no § 4.º, parte
final, volta ao ponto: "A tutela antecipada poderá ser modificada ou revogada, a qualquer tempo, em
decisão fundamentada."
Essas cláusulas, a rigor, poderiam ser consideradas supérfluas, hoje em dia, porque existe na
Constituição Federal (LGL\1988\3) um texto que, indiscriminadamente, de maneira genérica, impõe a
todas as decisões do Poder Judiciário a exigência da fundamentação. E até sanciona a transgressão da
regra com a nulidade. Nenhum juiz pode proferir qualquer decisão em matéria de tutela antecipada ou
de qualquer outra matéria, que não seja fundamentada. Talvez o legislador tenha querido aqui dar
ênfase ao ponto, e chamar a atenção do juiz, para que, neste caso, tenha um cuidado especial com o
assunto, para fundamentar, ao conceder a tutela, de modo claro e preciso, características que,
convenhamos, nem sempre encontramos devidamente configuradas nas motivações de certas decisões
judiciais.
Por exemplo, se o juiz disser: estando presentes os pressupostos legais, concedo a antecipação. Isso,
aqui entre nós, não é fundamentar coisa nenhuma. É fingir que se fundamenta, é prestar uma
homenagem verbal à exigência da fundamentação. É como se eu passasse perto de uma pessoa de
quem não gosto e formalmente a cumprimentasse, tirando o chapéu, se usasse, ou fizesse um
movimento de cabeça e, entre dentes, estivesse mandando a pessoa ao inferno. O juiz que fundamenta
uma decisão dizendo coisas desse gênero: defiro porque presentes os pressupostos legais, está
prestando à garantia constitucional uma homenagem desse tipo. Está fazendo de conta que
fundamenta sua decisão. Talvez, por isso, foi oportuna a inclusão dessa cláusula.
O juiz tem de indicar, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento. Não bastará, portanto,
dizer: há, nos autos, prova inequívoca e a versão é verossímil, conseqüentemente, defiro a tutela. Essa
maneira de agir não poderá ser considerada satisfatória diante do texto do artigo 273, § 1.º.
A medida, uma vez decretada, dá ensejo a uma execução provisória, submetida às formalidades,
exigências, limitações, dos incisos II e III, do artigo 588, caso o pronunciamento seja condenatório,
pois, como sabemos, só decisões de teor condenatório é que dão margem à instauração de uma
execução. Poderá haver casos, sem dúvida alguma, em que o pronunciamento pelo qual o juiz antecipa
a tutela não tenha natureza condenatória.
Agora mesmo, acabei de dar um exemplo: aquele da suspensão da eficácia de um ato, cuja anulação
está sendo pleiteada. Trata-se de um provimento constitutivo, que não comporta execução. Bastará que
o juiz comunique a sua decisão a quem de direito, para que os efeitos não se produzam nesse meio
tempo.
Falamos na possibilidade de revogação ou modificação e convém, apenas, acrescentar: a meu ver, essa
possibilidade se sujeita à iniciativa do interessado. Não creio que o juiz possa livremente, de oficio, a
qualquer momento, revogar ou modificar a providência concedida, mas, no particular, está adstrito à
iniciativa da parte interessada.
O § 5.º do artigo 273 reza: "Concedida ou não a antecipação da tutela prosseguirá o processo até final
julgamento." Vejo, nesse texto, uma confirmação nítida do meu pensamento a respeito da possibilidade
de que a tutela seja concedida a qualquer momento. Do contrário, não se justificaria a regra que agora
acabo de ler.
Desejo, porém, assinalar algo, e com isto vou atingir, para natural alívio do auditório, a reta final do
meu percurso. É que, segundo penso, a sentença de mérito, aquela que decida em caráter final o
litígio, deve sobrepor-se, de maneira total, à decisão que porventura haja concedido ou indeferido a
antecipação da tutela. No caso do indeferimento, o fenômeno é tão óbvio que não merece que a
respeito dele nos demoremos, mas o mesmo talvez não aconteça com referência ao caso em que o juiz
na sentença concede, em caráter final, a tutela. Esse pronunciamento absorve o outro. A tutela
definitiva absorve a tutela antecipada, e no caso em que esta haja sido denegada, também. De
qualquer maneira, numa ou noutra hipótese, proferida a sentença, seja ela a favor do autor ou do réu,
perde, na minha opinião, todo e qualquer relevo o pronunciamento que decretou a antecipação da
tutela.
Por conseguinte, caso ao final o juiz rejeite, no mérito, o pedido, fica totalmente despojada de eficácia
a decisão que porventura haja antecipado a tutela. Se está sendo executada, a execução deve cessar e
desfazer-se. Não há mais nenhuma relevância na antecipação da tutela, a partir do momento em que o
juiz sentencie acerca do litígio. Nenhum efeito pode subsistir. Seria, a meu ver, absurdo,
completamente contrário à lógica e ao bom senso que, dada a sentença definitiva, fruto de uma
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29/05/2020 Envio | Revista dos Tribunais

cognição já agora não mais superficial, não mais provisória, como aconteceu na providência que
antecipou a tutela, essa decisão, resultado de uma cognição completa, fundada em medidas
instrutórias mais intensas, mais extensas que aquelas em que se baseou o juiz para decidir sobre o
requerimento de antecipação, pudesse acontecer, a essa altura, que algum efeito da providência que
antecipara a tutela subsistisse depois de uma sentença que nega ao autor a mesma tutela. Coisas, a
meu ver, absolutamente impensáveis, porque destituídas de qualquer fundamento, não só jurídico,
mas, sobretudo, lógico.
Aberraria do bom senso, a meu ver, que pudesse subsistir a eficácia da tutela antecipada a partir do
momento em que se tem o pronunciamento definitivo do juiz, quer tenha concedido, quer tenha
rejeitado a pretensão formulada pelo autor. Isso é importante, inclusive, para a solução de alguma
questão referente à eficácia de recursos que, porventura, venham a ser interpostos nesse momento. Na
minha opinião, esses recursos devem visar a sentença, visto que, a partir dela, nada mais subsiste do
que se havia decretado a título de antecipação, num sentido ou noutro.
Com essa observação, dou por encerrada a exposição, agradecendo, mais uma vez, penhorado, como
convém a um professor de direito processual, a gentileza do convite, a distinção que representou para
mim e, a esta altura, a incrível paciência com que os presentes se dignaram de me ouvir.
Muito obrigado a todos.

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