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Por que os clássicos?

Umberto Eco

Não decidimos ainda o que seja um clássico, e dou-lhe uma definição sociológica, isto
é, sem julgamentos de mérito. “Um clássico é um livro que todos odeiam porque foram
forçados a estudá-lo na escola”.
Alguém poderá ter visto no suplemento “Sete” do Corriere della Sera que o crítico
lançou uma consulta entre seus leitores para saber qual livro jogar no lixo. A grande
maioria foi obtida por I promessi sposi, um tipo clássico. Comigo deu-se um golpe de
sorte assustador, meu pai, que não era um profissional da cultura, mas filho de um
tipógrafo, tinha feito algumas leituras na sua juventude, e me presenteou com I promessi
sposi seis meses antes que me fizessem estudá-lo na escola. Eu, portanto, o li por livre
escolha, ao invés de fazer os deveres de casa, e gostei muitíssimo, tanto que desde então
sempre o li e reli; todos os meus colegas de escola, ao contrário, viram nele apenas
matéria de estudo. A escola é organizada de modo a fazer-lhes odiar os clássicos
independentemente da habilidade do seu professor. Tínhamos um professor de grego e
latim que adorávamos porque era tão simpático, mas ele gostava demais dos clássicos, e
por isso os lia saboreando-os na boca como se comesse mel, não chegando a nos
explicar por que deveriam agradar a nós. Assistíamos ao grande espetáculo do seu
orgasmo e assim nos lembramos dele. Após o que não compreendemos jamais a beleza
de um clássico.

O que é um clássico?
É um sobrevivente. Vocês ouviram falar de expressões como o “cânone”. Há um crítico
como Harold Bloom que escreveu já o segundo livro sobre o cânone. O cânone é aquele
conjunto de textos que julgamos fundamentais para a nossa cultura. Cada qual pode
discutir se tal autor entra ou não entra no cânone, mas, enfim, ele existe, e é este
conjunto de autores. Mas um livro entra no cânone porque sobreviveu. Se vocês lerem a
Poética de Aristóteles, que trata da tragédia, verão que nomeia uma infinidade de
tragédias. Reconhecemos delas duas ou três, porque são aquelas que chegaram até nós,
as outras não sabemos o que sejam, morreram no caminho. Foram tragédias
desafortunadas. Por que sobreviveu Sófocles e não um outro? Por que era o mais
brilhante? Por que era o mais mancomunado com os organizadores teatrais? Por acaso?
Por que suas obras não estavam naquele lugar que queimou? Nós não sabemos. Se
andasse um pouco pior, Dante não teria sobrevivido, porque nos anos de 1700 ninguém
queria mais vê-lo.

No entanto, devemos ter certa fé na filtragem histórica. Em primeiro lugar, alguém de


vez em quando me vem explicar que são os livros sérios que são os clássicos, mesmo
escritos agora mas que aspiram a tornar-se clássicos, e que existem por outro lado os
bestsellers, que as pessoas pronunciam “betsellers”, e que são aqueles que, embora
divirtam etc., têm grande circulação e não têm valor literário. Bem, os clássicos
sobreviveram porque eram todos bestsellers. A Bíblia foi um bestseller e ainda o é,
Dante era recitado até pelos ferreiros, em voz alta, como diz a anedota de Boccaccio.
Manzoni, coitado, perdeu muito dinheiro, porque dezenas e dezenas de edições piratas
foram feitas de I promessi sposi, em várias línguas. Ele não tinha direitos autorais, mas
era um enorme bestseller. Então, sobreviveram como bestsellers.

É este um critério confiável?


Vocês sabem que existe um anúncio imaginário, mas não é inverossímil, que diz
“comam excremento, milhões de moscas não podem estar erradas”. Ora, existem duas
objeções a esta publicidade: primeiro, que é possível também que milhões de moscas
possam estar erradas, como é possível que milhões de cidadãos votem mal etc.;
segundo, que pode ser que as moscas tenham exigências que não são as nossas. Então
um livro era um bestseller no século II a.C. porque respondia a algumas exigências, que
não são mais as nossas. Mas essa piada da mosca baseia-se em um princípio que é usado
também na teologia, que é a demonstração da existência de Deus pelo consensus
gentium. Não é um grande demonstração racional, não tem fundamento científico. Mas
diz “você não pode negar a existência de Deus visto que por milênios e em todas as
culturas ‘as pessoas’ acreditaram em um princípio superior”. A ideia do consensus
gentium é muito importante, porque mesmo um ateu não pode deixar de levar em conta
o consensus gentium, e portanto pode como ateu não acreditar em Deus, mas não pode
tomar levianamente o fato de que ‘as pessoas’, no curso dos milênios, colocaram-se o
problema do sagrado. E então vocês vêm que o consensus gentium tem alguma
credibilidade. Os clássicos chegaram até nós porque são sobreviventes. Sobreviveram
por razões darwinianas, pelas mesmas razões que nós homo sapiens sapiens
sobrevivemos, e o homem de Neandertal ao contrário extinguiu-se. Ou seja, os clássicos
tiveram mais sorte do que os dinossauros.

Por quê?
Porque com os clássicos nos deparamos com um problema, que é o da memória. A
memória é essencial para a vida individual. Quem de repente por um lesão cerebral
perde totalmente a memória torna-se uma ameba, não tem mais... É por isso que a mim
não me interessa o problema da reencarnação. Não me interessa que digam que me
reencarno em um camelo se aquele camelo não se lembra daquilo que eu mesmo me
lembro, e são problemas dele e não meus. A memória é fundamental para a sociedade.
Desde os tempos pré-históricos, o velho sentado sob um carvalho contando os mitos e
as histórias de épocas anteriores aos jovens, passam esta memória: a sociedade vive e se
desenvolve precisamente porque carrega consigo essa memória. Bibliotecas são nada
mais do que uma garantia de sobrevivência da memória coletiva e, com todas as suas
falhas, a web também. Sem memória, vive-se menos e tem-se menos personalidade.
Mas existem também os riscos da memória. Talvez você tenha lido aquela história de
Borges onde tem um personagem chamado Funes o Memorioso, que se lembra de tudo,
se lembra de cada folha de cada árvore que ele viu em sua vida, lembra de tudo o que
aconteceu com ele, em qualquer momento. Lembra de tudo. Possui uma memória total.
E é praticamente um idiota. Porque ele não pode fazer isso. É como a web. Se
pudéssemos saber, de repente, tudo que existe na web, ficaríamos loucos. Eis então a
segunda virtude da memória. A primeira é aquela que conserva, a segunda é a que filtra.
Ai!, se a memória, seja individual ou coletiva, não fizesse dizimações diárias e jogasse
fora o que não vale ou que é muito complicado de lembrar. Seríamos todos como Funes
o Memorioso.
Portanto, os clássicos são o duplo resultado do armazenamento e da filtragem da
memória. Devemos confiar nessa filtragem? Não, pelas mesmas razões que não temos
necessariamente que confiar na democracia. A maioria pode ter votado em um lado,
mas podemos contestar que essa maioria estava certa. Assim, a filtragem é
continuamente contestada. Diz-se “olha, esquecemos tal autor muito importante do
século XVII”. As universidades vivem disso, de gente que vai pescar, como os
psicanalistas, na lata de lixo da memória, coisas que foram esquecidas, e as propõem
novamente. No entanto, assim como Churchill dizia que a democracia é uma forma
ruim de governo, nada até agora nada melhor foi encontrado, também nada melhor foi
encontrado do que esse “vai e vem contínuo”, pelo qual o cânone sempre permanece
com um núcleo constante, mas na periferia se enriquece continuamente. Ficou decidido
que o autor francês mais famoso do século XIX se chamava [Eugène] Sue e ninguém
mais o lê, e na mesma época um dos autores desprezados se chamava [Alexandre]
Dumas, e hoje, não hoje, mas há cerca de um mês, o instalam no Panteão.
Mas façamos de conta que todos os clássicos sobreviventes foram mal escolhidos. Tudo
bem, foi um acidente, como se o homem de Neandertal tivesse feito isso e o sapiens
sapiens não. Veja que nós hoje, por exemplo, se formos ao psicanalista, falamos de
complexo de Édipo porque Sófocles nos contou a história. Se analisarmos nossos modos
de conhecimento, nossa linguagem, mesmo quando falamos de ângulos retos, o fazemos
porque alguém já falou sobre isso, no caso Euclides. Portanto, a leitura desses clássicos,
que sobreviveram por engano e digamos, admitamos mesmo, pelos motivos errados, no
entanto, serve porém para entender como nós pensamos. Pensamos assim pelos motivos
errados? Não importa, mas se não entendermos de onde nos vem esse pensamento,
jamais ficaremos bem. Os clássicos redescobertos ou redescobertos pela coletividade
que enriquece o cânone ou pelo indivíduo que pela primeira vez decide ler I promessi
sposi, são cheios de deliciosas surpresas. Há dois dias Benigni esteve aqui para contar
que, antes de iniciar a montagem de um filme, relê Dante porque nele encontra técnicas
de montagem fabulosas. Dediquei algumas páginas à montagem televisiva do início de I
promessi sposi. Qualquer pessoa que tenha uma câmera digital e queira filmar algo da
varanda de sua casa faria bem em reler o início deste romance, para entender como a
câmera deve se mover. As maquinações do romance policial não são compreensíveis se
não relermos as voltas e reviravoltas do Édipo rei de Sófocles. Além de Poirot, Édipo
rei é um dos maiores romances policiais de todos os séculos. Portanto, eles são um
território de aventura contínua.
Mas pode ser que a você não interesse nada disso. O problema é que a leitura dos
clássicos, com a máxima liberdade em enriquecer o cânone ao seu gosto, prolonga a
vida. Costumamos dizer que quando nada acontece, o tempo nunca passa; inversamente,
quando passamos horas ou dias apaixonados, dizemos que o tempo passou em um
minuto. Mas não é verdade! Tente lembrar de um dia ou uma semana tediosa que você
passou há algum tempo: você se lembrará de muito pouco. Aquelas horas e dias vão
formar na sua memória uma massa, um espaço muito curto. Há pessoas que chegaram
ao fim da vida, depois de fazerem as mesmas coisas todos os dias, olham para trás, e a
eles parece que nem estiveram no mundo. Tudo passou assustadoramente rápido. Em
vez disso, pense em um dia, uma semana em que muitas coisas aconteceram, uma após
a outra, todas emocionantes, talvez os quinze dias que você passou nas montanhas ou a
semana de tragédia em torno da morte de uma pessoa querida. Você se lembrará de
tudo. Você vai lembrar-se deles como dias cheíssimos, que você acha difícil relatar, e
terá a impressão de ter vivido por sorte ou infelizmente, dependendo do caso,
muitíssimo. E esse é um dos motivos pelos quais os homens sempre se dedicaram a
reconstruir o seu passado, como eu disse, mesmo pela boca dos anciãos que contavam
histórias em volta do fogo. Alguém que, junto às suas lembranças pessoais, guarda
também a lembrança daquele dia em que Júlio César foi assassinado, da Batalha de
Waterloo, lembra mais coisas do que aquele que nada sabe do que aconteceu aos outros.
Entre as minhas memórias tenho algumas muito emocionantes de coisas que não
aconteceram comigo, mas com meu pai, minha mãe, minha avó, com um tio, que me
contaram, às vezes até muitas e muitas vezes, para que se tornassem parte da minha
memória pessoal. Tenho memórias muito ricas da Primeira Guerra Mundial, na qual
ainda não era nascido.
Lembrando mais, é como se você tivesse vivido mais. E acho que esta é uma boa razão
para ler os clássicos, independentemente de quaisquer outras que possam estar
encampadas. Certa vez o editor Valentino Bompiani dizia “um homem que lê vale por
dois ...”. Tomado da forma mais fácil pode-se entender que quem lê é mais culto, pois
sabendo mais coisas terá mais sucesso, mas não é isto. Sabemos muito bem que às vezes
quem nunca leu nada tem um sucesso imenso e de homens que valem por meio. Não é
para o sucesso que é preciso ler. Tenho a sensação de ter tido uma infância longuíssima
e plena justamente por ser plena de lembranças que roubei de outras pessoas. Eu roubei-
lhes Sandokan e Yanez [personagens de Emilio Salgari] enquanto eles corriam com seus
prahos [barcos] e os maleses malvados, D’Artagnan duelando com o Barão de Winter, o
Homem Mascarado que perseguia Diana Palmer, e também Renzo e Lucia fugindo em
um galho de Como, porque aquele “muito” de vida que se ganha lendo não faz distinção
entre grandes obras de arte e literatura de entretenimento. Fazem parte da minha vida
são a escadaria do Encouraçado Potemkin [Sergei Eisenstein, 1925] e as perseguições
de diligências vistas no mais fanfarrão dos filmes de faroeste, embora a perseguição de
diligências de Stagecoach [John Ford, 1939] me tenha feito viver mais do que muitas
outras perseguições de Randolph Scott em truecolor. Mas no fundo fazem parte da
minha vida eventos não romanescos, histórias de dinossauros, a maneira como Madame
Curie descobriu o rádio ou algumas questões milenares sobre o mundo. Não seja
chantageado por aqueles que lhe dizem que você só deve ler os livros importantes.
Também tenho lembranças intensas e belíssimas de livros que talvez sejam enfadonhos,
mas que me alimentaram de longas tardes de excitação. Sou grato a todos aqueles que
escrevendo para mim me concederam uma vida tão longa que não consigo me lembrar
de tudo de uma vez, e tenho que me lembrar dela em parcelas.
Por isso que espero ainda viver para me lembrar de tudo o que me contaram. Talvez
quando você é muito jovem não ache que valha a pena viver muito. Lembro-me de
quando era menino dizia: “Eu gostaria de morrer aos sessenta porque assim você não
fica doente”. Eu mudei de ideia. Garanto a vocês que avançando em anos, já depois dos
trinta, ter vivido mais não é algo para se jogar fora, além do fato de que, se a guerra
estourar agora, metade de vocês viverá menos. E, portanto, ler os clássicos de todas as
épocas, incluindo os clássicos contemporâneos, é uma boa garantia, não digo para a
velhice, mas para uma maturidade que não demorará muito para chegar depois dos vinte
e quatro anos. Pois lembrem-se que tudo o que se lê depois dos vinte e quatro anos não
fica, ficará apenas o que lemos antes, mesmo para os professores universitários.

Devemos dizer o contrário.


Sem contar a diversão de agora, porque, repito, Édipo rei é uma grande história de
amor, paixão, morte e investigação. Se toda transmissão de televisão é igual àquela da
semana anterior, todo livro, mesmo o mais estúpido, é diferente do outro. Portanto,
escolham os seus clássicos e façam para si o seu cânone.

Universidade de Bolonha, 9 de outubro de 2002

(tradução de J. Vidal)

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