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Resumo: A notação musical se encontra num estágio que permite a indicação de uma grande variedade
de detalhes. Há, entretanto, um nível da estrutura métrica – que estou provisoriamente chamando de
“acentuação intermediária do compasso” –, para o qual não há uma conceituação consensualmente
desenvolvida e para o qual, consequentemente, não existem recursos gráficos precisos à sua
explicitação. Nesse artigo procuro demonstrar a insuficiência do código musical vigente quanto a esse
aspecto, e proponho uma revisão no formato de indicação da organização interna das fórmulas de
compasso.
Palavras-chave: Ritmo, Métrica, Acento Métrico, Notação Musical
Abstract: The musical notation is at a stage that enables the display of an extensive variety of details.
There is, however, a level of metrical structure – that I am provisionally calling “measure intermediate
accent” – for which there is no consensus developed conceptualization and for which, consequently,
there is no precise resources to its explicitness. In this article I try to demonstrate the inadequacy of
current musical code in this respect, and propose a revision in the display format of the internal
organization of time signatures.
Keywords: Rhythm, Meter, Metrical Accent, Musical Notation
INTRODUÇÃO
1
Comunicação transformada em artigo, porém ainda não publicado.
2
Giulio Bas, italiano, teve seu nome grafado como “Julio Bas” na edição da Ricordi Americana, Buenos Aires.
3
“It is fundamental that meter is often independent of the notated bar-line”
musical se encontrar num avançado estágio em termos de indicação das durações, comecei a intuir que
o padrão de fórmula de compasso vigente é insuficiente para a notação de diversas sutilezas métricas.
A partir de uma situação de sala de aula, onde avaliávamos um exemplo do universo do
Rock, uma profunda discussão se processou, revelando a ausência tanto de uma conceituação como de
uma indicação gráfica para o que venho chamando provisoriamente de “acentuação intermediária do
compasso”. Esse artigo propõe mostrar um pouco do problema surgido em aula – e da solução que
desenvolvi em resposta –, bem como serve para registrar uma série de exemplos interessantes sobre
métrica musical, alimentando o levantamento que faço continuamente para o projeto de pesquisa
Banco de Dados para Percepção Musical, que coordeno na UFRJ.
A SITUAÇÃO PROBLEMA
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Em contraponto ao domínio microgenético, existe ainda a possibilidade de formação de conceitos nos domínios
sociocultural (essencialmente a evolução histórica de um conceito) e ontogenético (a formação de conceitos
pelos indivíduos envolvidos num processo de ensino-aprendizagem). Essa noções são claramente ancoradas nos
estudos desenvolvidos por Vygotsky.
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Versão publicada da tese de mesmo nome, defendida em 2008, na Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais.
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Importante conjunto musical canadense, geralmente vinculado aos rótulos de Hard Rock e/ou Rock
Progressivo, que já conta com mais de 40 anos de estrada e álbuns vendidos em todo o mundo. Se destaca pelo
virtuosismo de seus três músicos: Geddy Lee (voz, baixo e teclados), Alex Lifeson (guitarras), ambos nascidos
em 1953, e Neil Peart (bateria), nascido em 1952.
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Riff é um termo comumente empregado pelos músicos populares, que designa de modo vago uma espécie de
ostinato. O caráter de ostinato do segmento aqui se confirma pelas repetições subsequentes: essa frase é
reapresentada, com uma série de sutis variações, mais cinco vezes. Sua estrutura métrica – que é o cerne da
discussão – não sofre nenhuma modificação nessas variantes.
construída com power chords8 de guitarra, bastante comuns no Rock. O primeiro compasso desse
segmento, Ex.1, delineia o modo Si Frígio – com o típico 2º grau abaixado, dó natural – e apresenta
um 5/4 com uma acentuação de 3 + 2 pulsos:
Ex.1: Compasso 1 do trecho que acontece entre 2’30” e 2’40” da gravação original da canção Jacob’s Ladder,
do grupo de rock canadense Rush. Fonte: Transcrição do autor do artigo a partir da gravação (RUSH, 1980).
Ex.2: Compassos 3 e 4 do trecho que acontece entre 2’30” e 2’40” da gravação original da canção Jacob’s Ladder,
do grupo de rock canadense Rush. Fonte: Transcrição do autor do artigo a partir da gravação (RUSH, 1980).
Ex.3: Compasso 2 do trecho que acontece entre 2’30” e 2’40” da gravação original da canção Jacob’s Ladder, do grupo de
rock canadense Rush. Fonte: Transcrição do autor do artigo a partir da gravação (RUSH, 1980).
Aqui podemos ver que o primeiro compasso foi aumentado em uma semínima: o 3+2 do 5/4
se transforma num 3+3 no 6/4. A grande maioria das publicações sobre Teoria Musical, entretanto,
define que compassos nessas condições são considerados como compostos. Se for esse o caso,
estaríamos diante de pulsos de mínima pontuada. Mas a semelhança do segundo com o primeiro
compasso, pela qual se ouve a simples adição de uma figura rítmica, nos alerta que não deixamos de
perceber as semínimas como pulsos. A textura de toda a frase é uniforme, não havendo, portanto, a
sensação de mudança do pulso de semínima para mínima pontuada. O problema poderia ser resolvido
com a transformação do 6/4 em dois compassos de 3/4, nos quais o pulso de semínima se manteria.
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Power chords são bíades de 1ª e 5ª justas – ou seja, tríades sem terça –, geralmente com o acréscimo de mais
uma 8ª justa. Recebem essa alcunha, que remete à “força”, devido ao poderoso som que adquirem quando
executados numa guitarra com o efeito eletrônico de distorção.
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A quinta justa, dó#, do power chord em fá#, cancela a pureza do modo frígio dos dois primeiros compassos.
Mas se formos rigorosos em termos de fraseologia, temos que admitir que continuamos a sentir o 6/4
apenas como uma extensão do 5/4 e, consequentemente, a sentir a frase completa como quatro
unidades motívicas: apenas o segundo compasso é ligeiramente maior que os outros.
Em resumo, estamos diante de um 6/4, que se divide em 3+3, mas não é percebido como um
binário composto, mas sim como um compasso simples de 6 pulsos, com acentuação intermediária do
tipo 3+3. É esse tipo de acentuação que, não obstante ser revelado em certas publicações – por
exemplo, na análise do tema principal, em 4/4, do 4º movimento da Sinfonia nº 9 de Beethoven
proposta Lerdahl e Jackendoff (1983, p.125) –, não recebe nenhuma indicação gráfica apropriada10. A
colocação do “3+3” após o 6/4 – “6/4 (3+3)” – não é suficiente, pois todo compasso binário composto
– seja um 6/8, um 6/4, um 6/16, etc. – é internamente 3+3. A diferença está no fato de que o 3+3 nos
compostos se refere a dois grupos de três subdivisões e o mesmo 3+3 na música do Rush se refere a
dois grupos de três pulsos.
Mesmo nas publicações mais recentes de música contemporânea, onde se vê uma grande
preocupação de orientar os intérpretes quanto às divisões internas dos compassos, há o emprego
indiscriminado dessas indicações para agrupamentos de pulsos e agrupamentos de subdivisões. Na
seguinte passagem, Ex.4, da ópera The Lighthouse, de Peter Maxwell Davies, observa-se o uso das
fórmulas 5/8 (3+2) e 5/16 (2+3). Uma investigação atenta da partitura revela que o 3+2 do 5/8 se
refere aos agrupamentos de três e dois pulsos de colcheia, enquanto que o 2+3 do 5/16 se refere aos
agrupamentos de duas e três subdivisões (semicolcheias). Enfim, essas expressões matemáticas são
usadas para separar coisas diferentes: grupos de pulsos e grupos de subdivisões.
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É importante comentar que, apesar de Lerdahl e Jackendoff não proporem explicitamente uma terminologia
para esse nível métrico e nem sugerirem uma indicação dessa acentuação nas fórmulas de compasso, foi o
sistema gráfico que eles empregam – pelo qual a estrutura métrica é revelada por meio de várias linhas
pontilhadas, de maneira que os pontos se alinham em relações proporcionais de duas ou três unidades –, em
conjunto com o fato de eu ter estudado com profundidade o trabalho deles, que me permitiu, durante um
contexto mesmo de ensino-aprendizagem (domínio microgenético), atentar para a existência e importância desse
nível da estrutura métrica.
Ex.4: Trecho da Parte II da ópera Lighthouse (1980), do compositor inglês Peter Maxwell Davies (1934-2016).
Fonte: MAXWELL DAVIES, 1986.
Para ilustrar com ainda mais precisão a discussão iniciada com a canção do Rush, cito dois
ricos exemplos do universo jazzístico: a famosa Take Five, de Paul Desmond (1924-1977), lançada no
importante álbum Time Out (1959), do pianista Dave Brubeck (1920-2012); e o 2º movimento,
Mexicaine, do Concerto para Violão e Jazz Piano Trio (publicado em 1978 e gravado posteriormente),
de Claude Bolling (nascido em 1930). Na Take Five, Ex.5, independente da questão do swing11, é
bastante clara a organização dos cinco pulsos em dois grupos, 3+2, apesar de não haver indicação.
Ex.5: Compassos iniciais da melodia do tema de Jazz Take Five, de Paul Desmond,
do álbum Time Out, de The Dave Brubeck Quartet. Fonte: BRUBECK, 1962.
Na Mexicaine de Bolling, Ex.6, a métrica 5/8 também é apresentada sem a indicação da clara
organização em 2+3:
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Swing é um termo muito utilizado no âmbito do Jazz, que encerra amplos significados e questões – que não
pretendo aqui discutir –, mas que frequentemente é empregado para designar a tradição de escrita pela qual em
resumo há a equiparação de duas colcheias ao ritmo de semínima e colcheia em quiáltera de 3.
Ex.6: Compassos iniciais da melodia do 2º movimento, Mexicaine,
do Concerto para Violão e Jazz Piano Trio, de Claude Bolling. Fonte: BOLLING, 1978.
Se lermos esse exemplo, sem perder de vista o andamento indicado no início da partitura,
podemos senti-lo como uma espécie de valsa cortada, ou seja, o iminente ternário da valsa fica com a
metade de seu 3º pulso elidido. Se unirmos a última colcheia de cada compasso ao segundo pulso,
conclui-se que a música alterna um tempo binário e um ternário – estrutura explicitada na parte de
piano –, enfim, um compasso misto: 5/8 (2+3).
Aqui evidencia-se um problema semelhante ao instaurado pelo exemplo da canção do Rush.
Compreendemos a Take Five como um caso de compasso simples (aceitando a escrita em swing), com
os pulsos arranjados em dois grupos, de 3 e de 2 pulsos, gerando a fórmula 5/4 (3+2). Já a música de
Bolling se configura como um compasso misto de dois pulsos, um binário e um ternário, gerando a
fórmula 5/8 (2+3). Apesar da essencial diferença desses dois exemplos – um que agrupa pulsos e outro
que agrupa subdivisões –, percebe-se que essas indicações não são fundamentalmente diversas. O fato
de que as publicações empregam diferentes denominadores nas frações – 4 (semínima) em Desmond e
8 (colcheia) em Bolling – é irrelevante: qualquer compositor, teórico ou intérprete experiente sabe que,
em última análise, a figura escolhida numa representação métrica, não obstante certas tendências
históricas e estilísticas em termos de andamento, não significa muita coisa. O problema se encontra no
fato de que ambos os exemplos possuem justamente o mesmo numerador, 5, e nada nos informa de
que o primeiro é um caso de compasso simples e o segundo de compasso misto. O acréscimo das
indicações 3+2 e 2+3 é de pouca valia quanto a esse aspecto, pois não torna mais explícita a distinção
que estou propondo.
Essa é, na verdade, uma antiga questão do código musical, que remonta ao tempo, século
XVII, em que se estabeleceu a práxis de notar compassos compostos pelas subdivisões, o que resulta
na não explicitação do número de pulsos no numerador das fórmulas de compasso. Mas por qual razão
essa tendência prevaleceu? Como podemos indicar, por exemplo, um binário composto – digamos, um
6/8 – como um verdadeiro binário, de modo que sua fórmula apresente o “2” no numerador? Para
∶
tanto, temos que dividir por 3 ambos os termos da fração: , o que resulta em . Apesar da
: , …
estranheza do resultado, ele revela algo que podemos intuir. Num caso mais simples, como o 2/4, o
número 4 representa a quantidade de semínimas que cabem numa semibreve: de fato, a semínima é 1/4
da semibreve. O 2,666..., do mesmo modo, representa com exatidão o número de vezes que uma
semínima pontuada precisa ser repetida para somar uma semibreve: 2 semínimas pontuadas (uma
mínima pontuada) mais dois terços dela mesma (0,666... é 2/3), o que dá duas colcheias, já que ela
encerra três colcheias.
Qualquer outro compasso composto que imaginemos irá engendrar fórmulas igualmente
canhestras. Isso explica em parte a não adoção desse modo de notar a métrica; o outro fator é que foi
durante o mesmo século XVII que os matemáticos desenvolveram a noção de casas decimais,
separadas do número inteiro pelo ponto; ou seja, os músicos do período já haviam precisado
solucionar o problema do compasso composto antes de uma grafia como “2.666...” ser amplamente
aceita. Tal número era simplesmente representado como 8/3. Se retomamos a indicação ,
, …
podemos substituir o 2,666 por 8/3, , e resolver a fração, = 2. = 6/8, o que nos traz
/ /
Com essas considerações, compreendemos as razões fundamentais pelas quais foram eleitas
como normativas as fórmulas de compasso composto baseadas no número de subdivisões do pulso. É
essencial ressaltar que os compassos mistos igualmente necessitam lançar mão do mesmo recurso,
pois, para serem mistos, precisam conter pelo menos um pulso ternário.
Ainda continuamos, contudo, com o problema da diferenciação das diversas espécies de
métrica. Como podemos deixar claro que o 6/4 da Jacob’s Ladder, do Rush, não é composto? Como
podemos diferençar os dois compassos com numerador “5” dos temas de Desmond e Bolling, já que
um é do tipo simples e o outro misto?
Observando diversas publicações de música contemporânea, acabei me deparando com a
grafia alternativa que a editora Boosey & Hawkes emprega na representação da organização interna
dos compassos: a separação dos números por pontos (Ex.7).
REFERÊNCIAS
Livros:
ADOUR, Fabio. Sobre Harmonia: Uma Proposta de Perfil Conceitual. Rio de Janeiro: Vermelho
Marinho, 2014.
BAS, Julio. Tratado de la Forma Musical. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1947.
16
Em contraste, a flexibilidade rítmica dos solos de sax de Paul Desmond nos desencoraja a negligenciar a
escrita com swing, pois nem sempre ouvimos, em sua interpretação, essa subdivisão ternária do pulso.
BERRY, Wallace. Structural Functions in Music. New York: Dover Publications, 1987. 447p.
CAPLIN, William. Classical Form. Oxford: Oxfort University Press, 1998. 307p.
LERDAHL, Fred; JACKENDOFF, Ray. A Generative Theory of Tonal Music. Cambridge: The MIT
Press, 1983. 368p.
SCLIAR, Esther. Fraseologia Musical. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982. 95p.
Partituras publicadas:
BOLLING, Claude. Concerto for Classic Guitar and Jazz Piano. Grade de piano e violão, partes de
baixo e bateria. USA: Silhouette Music Corp., 1978.
BRUBECK, Dave. The Dave Brubeck Quartet: Time Out & Time Further Out. Piano e cifras. San
Francisco: Charles Hansen Publication, 1962.
MAXWELL DAVIES, Peter. The Lighthouse: A chamber opera in a prologue and one act. Ópera
completa. London: Chester Music, 1986.
MAXWELL DAVIES, Peter. Symphony 4. Grade completa. London: Boosey & Hawkes, 1992.
BOLLING, Claude; LAGOYA, Alexandre. Concerto for Classical Guitar and Jazz Piano Trio. CD
3448960244428. Fremeaux & Assoc, França, 2003.
BRUBECK, Dave. Time Out: The Dave Brubeck Quartet. CD 074646512227. Columbia, EUA, 1997.