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ACENTUAÇÃO INTERMEDIÁRIA DO COMPASSO:

UMA PROPOSTA DE NOTAÇÃO MUSICAL

Fabio Adour da Camara (UFRJ)


fabioadour@yahoo.com.br

Resumo: A notação musical se encontra num estágio que permite a indicação de uma grande variedade
de detalhes. Há, entretanto, um nível da estrutura métrica – que estou provisoriamente chamando de
“acentuação intermediária do compasso” –, para o qual não há uma conceituação consensualmente
desenvolvida e para o qual, consequentemente, não existem recursos gráficos precisos à sua
explicitação. Nesse artigo procuro demonstrar a insuficiência do código musical vigente quanto a esse
aspecto, e proponho uma revisão no formato de indicação da organização interna das fórmulas de
compasso.
Palavras-chave: Ritmo, Métrica, Acento Métrico, Notação Musical

Measure intermediate accent: a suggested musical notation

Abstract: The musical notation is at a stage that enables the display of an extensive variety of details.
There is, however, a level of metrical structure – that I am provisionally calling “measure intermediate
accent” – for which there is no consensus developed conceptualization and for which, consequently,
there is no precise resources to its explicitness. In this article I try to demonstrate the inadequacy of
current musical code in this respect, and propose a revision in the display format of the internal
organization of time signatures.
Keywords: Rhythm, Meter, Metrical Accent, Musical Notation

INTRODUÇÃO

Apresentei, no 14º Colóquio de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRJ


(2016), a comunicação Análise Motívico‐Fraseológica e Modelagem Sistêmica1, onde desenvolvo uma
reavaliação dos conceitos de motivo e frase, aspectos que são geralmente investigados nos estudos que
costumamos subsumir sob a expressão “fraseologia musical”. Nesse trabalho propus o alinhamento
conceitual entre as noções de motivo e compasso, o que revela a crença que tenho na existência de
uma fundamental congruência entre métrica e forma. Tal ideia já havia sido lançada por diversos
autores, mas extraí minha fundamentação principalmente do livro Tratado de la Forma Musical, de
Giulio Bas2 (1947). Realizo, com muita frequência, análises que enriquecem essa investigação e, ao
mesmo tempo, leciono Percepção Musical na Escola de Música da UFRJ. Por meio dessas duas
constantes atividades, percebi que muitos exemplos da literatura musical possuem indicações de
fórmula de compasso que não representam acuradamente o fenômeno sonoro. Wallace Berry é
explícito nesse sentido: “É fundamental [compreender] que a métrica com frequência é independente
da barra de compasso indicada” (1987, p. 324, tradução minha3). Além disso, não obstante a notação

1
Comunicação transformada em artigo, porém ainda não publicado.
2
Giulio Bas, italiano, teve seu nome grafado como “Julio Bas” na edição da Ricordi Americana, Buenos Aires.
3
“It is fundamental that meter is often independent of the notated bar-line”
musical se encontrar num avançado estágio em termos de indicação das durações, comecei a intuir que
o padrão de fórmula de compasso vigente é insuficiente para a notação de diversas sutilezas métricas.
A partir de uma situação de sala de aula, onde avaliávamos um exemplo do universo do
Rock, uma profunda discussão se processou, revelando a ausência tanto de uma conceituação como de
uma indicação gráfica para o que venho chamando provisoriamente de “acentuação intermediária do
compasso”. Esse artigo propõe mostrar um pouco do problema surgido em aula – e da solução que
desenvolvi em resposta –, bem como serve para registrar uma série de exemplos interessantes sobre
métrica musical, alimentando o levantamento que faço continuamente para o projeto de pesquisa
Banco de Dados para Percepção Musical, que coordeno na UFRJ.

A SITUAÇÃO PROBLEMA

É interessante frisar que aqui observaremos a formação de um conceito diretamente em sala


de aula, um âmbito que na área de educação é comumente denominado como domínio microgenético 4
(Adour, 2014, p. 93)5. Numa aula de Percepção Musical, propus o reconhecimento da métrica de um
trecho de uma música do grupo de rock Canadense Rush6, chamada Jacob’s Ladder, lançada no álbum
Permanent Waves (RUSH, 1980). O trecho, que vai de 2’30” a 2’40” da gravação original, é uma
passagem que, não obstante a ausência de melodia, claramente delineia uma frase musical de 4
compassos. Como discuti na comunicação mencionada na Introdução, a frase de 4 compassos é
considerada um arquétipo da fraseologia, citado por diversos autores – Berry (1966, p. 15), Caplin
(1998, p.9) – e defendido por Bas (1947) em grande parte de seu tratado. Não obstante Bas e Scliar
(1982) mencionarem possibilidades sistemáticas de ampliação desse número de compassos (para 5, 6,
7, 8 ou 9 compassos), entendo – e isso foi perceptivamente confirmado pela turma na ocasião – que tal
trecho é claramente construído com 4 unidades motívicas. A ideia básica desse riff 7 é uma harmonia

4
Em contraponto ao domínio microgenético, existe ainda a possibilidade de formação de conceitos nos domínios
sociocultural (essencialmente a evolução histórica de um conceito) e ontogenético (a formação de conceitos
pelos indivíduos envolvidos num processo de ensino-aprendizagem). Essa noções são claramente ancoradas nos
estudos desenvolvidos por Vygotsky.
5
Versão publicada da tese de mesmo nome, defendida em 2008, na Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais.
6
Importante conjunto musical canadense, geralmente vinculado aos rótulos de Hard Rock e/ou Rock
Progressivo, que já conta com mais de 40 anos de estrada e álbuns vendidos em todo o mundo. Se destaca pelo
virtuosismo de seus três músicos: Geddy Lee (voz, baixo e teclados), Alex Lifeson (guitarras), ambos nascidos
em 1953, e Neil Peart (bateria), nascido em 1952.
7
Riff é um termo comumente empregado pelos músicos populares, que designa de modo vago uma espécie de
ostinato. O caráter de ostinato do segmento aqui se confirma pelas repetições subsequentes: essa frase é
reapresentada, com uma série de sutis variações, mais cinco vezes. Sua estrutura métrica – que é o cerne da
discussão – não sofre nenhuma modificação nessas variantes.
construída com power chords8 de guitarra, bastante comuns no Rock. O primeiro compasso desse
segmento, Ex.1, delineia o modo Si Frígio – com o típico 2º grau abaixado, dó natural – e apresenta
um 5/4 com uma acentuação de 3 + 2 pulsos:

Ex.1: Compasso 1 do trecho que acontece entre 2’30” e 2’40” da gravação original da canção Jacob’s Ladder,
do grupo de rock canadense Rush. Fonte: Transcrição do autor do artigo a partir da gravação (RUSH, 1980).

Nos compassos 3 e 4 da frase, Ex.2, essa ideia é transposta9 para fá#:

Ex.2: Compassos 3 e 4 do trecho que acontece entre 2’30” e 2’40” da gravação original da canção Jacob’s Ladder,
do grupo de rock canadense Rush. Fonte: Transcrição do autor do artigo a partir da gravação (RUSH, 1980).

É no compasso 2, Ex. 3, que nosso problema se revela. Ele se constitui basicamente do


primeiro compasso com o acréscimo de um power chord em G, que conecta o A ao F# do início do 3º
compasso:

Ex.3: Compasso 2 do trecho que acontece entre 2’30” e 2’40” da gravação original da canção Jacob’s Ladder, do grupo de
rock canadense Rush. Fonte: Transcrição do autor do artigo a partir da gravação (RUSH, 1980).

Aqui podemos ver que o primeiro compasso foi aumentado em uma semínima: o 3+2 do 5/4
se transforma num 3+3 no 6/4. A grande maioria das publicações sobre Teoria Musical, entretanto,
define que compassos nessas condições são considerados como compostos. Se for esse o caso,
estaríamos diante de pulsos de mínima pontuada. Mas a semelhança do segundo com o primeiro
compasso, pela qual se ouve a simples adição de uma figura rítmica, nos alerta que não deixamos de
perceber as semínimas como pulsos. A textura de toda a frase é uniforme, não havendo, portanto, a
sensação de mudança do pulso de semínima para mínima pontuada. O problema poderia ser resolvido
com a transformação do 6/4 em dois compassos de 3/4, nos quais o pulso de semínima se manteria.

8
Power chords são bíades de 1ª e 5ª justas – ou seja, tríades sem terça –, geralmente com o acréscimo de mais
uma 8ª justa. Recebem essa alcunha, que remete à “força”, devido ao poderoso som que adquirem quando
executados numa guitarra com o efeito eletrônico de distorção.
9
A quinta justa, dó#, do power chord em fá#, cancela a pureza do modo frígio dos dois primeiros compassos.
Mas se formos rigorosos em termos de fraseologia, temos que admitir que continuamos a sentir o 6/4
apenas como uma extensão do 5/4 e, consequentemente, a sentir a frase completa como quatro
unidades motívicas: apenas o segundo compasso é ligeiramente maior que os outros.
Em resumo, estamos diante de um 6/4, que se divide em 3+3, mas não é percebido como um
binário composto, mas sim como um compasso simples de 6 pulsos, com acentuação intermediária do
tipo 3+3. É esse tipo de acentuação que, não obstante ser revelado em certas publicações – por
exemplo, na análise do tema principal, em 4/4, do 4º movimento da Sinfonia nº 9 de Beethoven
proposta Lerdahl e Jackendoff (1983, p.125) –, não recebe nenhuma indicação gráfica apropriada10. A
colocação do “3+3” após o 6/4 – “6/4 (3+3)” – não é suficiente, pois todo compasso binário composto
– seja um 6/8, um 6/4, um 6/16, etc. – é internamente 3+3. A diferença está no fato de que o 3+3 nos
compostos se refere a dois grupos de três subdivisões e o mesmo 3+3 na música do Rush se refere a
dois grupos de três pulsos.

OUTROS EXEMPLOS E AS INDICAÇÕES DE MÉTRICA NAS PUBLICAÇÕES:

Mesmo nas publicações mais recentes de música contemporânea, onde se vê uma grande
preocupação de orientar os intérpretes quanto às divisões internas dos compassos, há o emprego
indiscriminado dessas indicações para agrupamentos de pulsos e agrupamentos de subdivisões. Na
seguinte passagem, Ex.4, da ópera The Lighthouse, de Peter Maxwell Davies, observa-se o uso das
fórmulas 5/8 (3+2) e 5/16 (2+3). Uma investigação atenta da partitura revela que o 3+2 do 5/8 se
refere aos agrupamentos de três e dois pulsos de colcheia, enquanto que o 2+3 do 5/16 se refere aos
agrupamentos de duas e três subdivisões (semicolcheias). Enfim, essas expressões matemáticas são
usadas para separar coisas diferentes: grupos de pulsos e grupos de subdivisões.

10
É importante comentar que, apesar de Lerdahl e Jackendoff não proporem explicitamente uma terminologia
para esse nível métrico e nem sugerirem uma indicação dessa acentuação nas fórmulas de compasso, foi o
sistema gráfico que eles empregam – pelo qual a estrutura métrica é revelada por meio de várias linhas
pontilhadas, de maneira que os pontos se alinham em relações proporcionais de duas ou três unidades –, em
conjunto com o fato de eu ter estudado com profundidade o trabalho deles, que me permitiu, durante um
contexto mesmo de ensino-aprendizagem (domínio microgenético), atentar para a existência e importância desse
nível da estrutura métrica.
Ex.4: Trecho da Parte II da ópera Lighthouse (1980), do compositor inglês Peter Maxwell Davies (1934-2016).
Fonte: MAXWELL DAVIES, 1986.

Para ilustrar com ainda mais precisão a discussão iniciada com a canção do Rush, cito dois
ricos exemplos do universo jazzístico: a famosa Take Five, de Paul Desmond (1924-1977), lançada no
importante álbum Time Out (1959), do pianista Dave Brubeck (1920-2012); e o 2º movimento,
Mexicaine, do Concerto para Violão e Jazz Piano Trio (publicado em 1978 e gravado posteriormente),
de Claude Bolling (nascido em 1930). Na Take Five, Ex.5, independente da questão do swing11, é
bastante clara a organização dos cinco pulsos em dois grupos, 3+2, apesar de não haver indicação.

Ex.5: Compassos iniciais da melodia do tema de Jazz Take Five, de Paul Desmond,
do álbum Time Out, de The Dave Brubeck Quartet. Fonte: BRUBECK, 1962.

Na Mexicaine de Bolling, Ex.6, a métrica 5/8 também é apresentada sem a indicação da clara
organização em 2+3:

11
Swing é um termo muito utilizado no âmbito do Jazz, que encerra amplos significados e questões – que não
pretendo aqui discutir –, mas que frequentemente é empregado para designar a tradição de escrita pela qual em
resumo há a equiparação de duas colcheias ao ritmo de semínima e colcheia em quiáltera de 3.
Ex.6: Compassos iniciais da melodia do 2º movimento, Mexicaine,
do Concerto para Violão e Jazz Piano Trio, de Claude Bolling. Fonte: BOLLING, 1978.

Se lermos esse exemplo, sem perder de vista o andamento indicado no início da partitura,
podemos senti-lo como uma espécie de valsa cortada, ou seja, o iminente ternário da valsa fica com a
metade de seu 3º pulso elidido. Se unirmos a última colcheia de cada compasso ao segundo pulso,
conclui-se que a música alterna um tempo binário e um ternário – estrutura explicitada na parte de
piano –, enfim, um compasso misto: 5/8 (2+3).
Aqui evidencia-se um problema semelhante ao instaurado pelo exemplo da canção do Rush.
Compreendemos a Take Five como um caso de compasso simples (aceitando a escrita em swing), com
os pulsos arranjados em dois grupos, de 3 e de 2 pulsos, gerando a fórmula 5/4 (3+2). Já a música de
Bolling se configura como um compasso misto de dois pulsos, um binário e um ternário, gerando a
fórmula 5/8 (2+3). Apesar da essencial diferença desses dois exemplos – um que agrupa pulsos e outro
que agrupa subdivisões –, percebe-se que essas indicações não são fundamentalmente diversas. O fato
de que as publicações empregam diferentes denominadores nas frações – 4 (semínima) em Desmond e
8 (colcheia) em Bolling – é irrelevante: qualquer compositor, teórico ou intérprete experiente sabe que,
em última análise, a figura escolhida numa representação métrica, não obstante certas tendências
históricas e estilísticas em termos de andamento, não significa muita coisa. O problema se encontra no
fato de que ambos os exemplos possuem justamente o mesmo numerador, 5, e nada nos informa de
que o primeiro é um caso de compasso simples e o segundo de compasso misto. O acréscimo das
indicações 3+2 e 2+3 é de pouca valia quanto a esse aspecto, pois não torna mais explícita a distinção
que estou propondo.
Essa é, na verdade, uma antiga questão do código musical, que remonta ao tempo, século
XVII, em que se estabeleceu a práxis de notar compassos compostos pelas subdivisões, o que resulta
na não explicitação do número de pulsos no numerador das fórmulas de compasso. Mas por qual razão
essa tendência prevaleceu? Como podemos indicar, por exemplo, um binário composto – digamos, um
6/8 – como um verdadeiro binário, de modo que sua fórmula apresente o “2” no numerador? Para

tanto, temos que dividir por 3 ambos os termos da fração: , o que resulta em . Apesar da
: , …

estranheza do resultado, ele revela algo que podemos intuir. Num caso mais simples, como o 2/4, o
número 4 representa a quantidade de semínimas que cabem numa semibreve: de fato, a semínima é 1/4
da semibreve. O 2,666..., do mesmo modo, representa com exatidão o número de vezes que uma
semínima pontuada precisa ser repetida para somar uma semibreve: 2 semínimas pontuadas (uma
mínima pontuada) mais dois terços dela mesma (0,666... é 2/3), o que dá duas colcheias, já que ela
encerra três colcheias.
Qualquer outro compasso composto que imaginemos irá engendrar fórmulas igualmente
canhestras. Isso explica em parte a não adoção desse modo de notar a métrica; o outro fator é que foi
durante o mesmo século XVII que os matemáticos desenvolveram a noção de casas decimais,
separadas do número inteiro pelo ponto; ou seja, os músicos do período já haviam precisado
solucionar o problema do compasso composto antes de uma grafia como “2.666...” ser amplamente
aceita. Tal número era simplesmente representado como 8/3. Se retomamos a indicação ,
, …

podemos substituir o 2,666 por 8/3, , e resolver a fração, = 2. = 6/8, o que nos traz
/ /

tautologicamente de volta ao clássico 6/8.

CONCLUSÕES E UMA PROPOSTA PARA A NOTAÇÃO DE MÉTRICA

Com essas considerações, compreendemos as razões fundamentais pelas quais foram eleitas
como normativas as fórmulas de compasso composto baseadas no número de subdivisões do pulso. É
essencial ressaltar que os compassos mistos igualmente necessitam lançar mão do mesmo recurso,
pois, para serem mistos, precisam conter pelo menos um pulso ternário.
Ainda continuamos, contudo, com o problema da diferenciação das diversas espécies de
métrica. Como podemos deixar claro que o 6/4 da Jacob’s Ladder, do Rush, não é composto? Como
podemos diferençar os dois compassos com numerador “5” dos temas de Desmond e Bolling, já que
um é do tipo simples e o outro misto?
Observando diversas publicações de música contemporânea, acabei me deparando com a
grafia alternativa que a editora Boosey & Hawkes emprega na representação da organização interna
dos compassos: a separação dos números por pontos (Ex.7).

Ex.7: Madeiras de um trecho do 3º movimento da Sinfonia nº 4 (1989), do compositor inglês


Peter Maxwell Davies (1934-2016). Fonte: MAXWELL DAVIES, 1992.
Ainda não há a distinção que proponho: escolhi outra obra do mesmo compositor – Peter
Maxwell Davies – para mostrar que, da mesma maneira que em sua ópera The Lighthouse (ver Ex.4),
aqui novamente há o emprego indiscriminado do mesmo tipo de notação para coisas diferentes. O 7/8
do Ex.7, que aparece sob dois formatos – 2.2.3 e 3.2.2 –, é um caso de compasso misto e essas
separações por pontos se referem a grupos de subdivisões; já o 5/4 da mesma passagem é um
compasso simples e o padrão 2.3 se refere ao agrupamento de pulsos. A utilização dos pontos aqui em
nada difere da utilização do “+” na ópera mencionada: é, portanto, apenas uma opção editorial.
Ao travar contato com esses dois recursos gráficos – separação dos números por meio de
pontos ou do símbolo “+” –, pensei na possibilidade de utilizá-los diferencialmente, que é o que,
enfim, aqui proponho. Tendo já aplicado essa ideia em diversas turmas de percepção que ministrei,
percebi que inúmeras sutilezas em termos de organização métrica podem ser indicadas se usarmos o
“+” para uma coisa e os pontos para outra, o que auxilia bastante na compreensão, pelos alunos, de
conceitos relativamente avançados sobre o tema. Assim, lanço a proposta de utilizarmos o “+” para a
separação de grupos de pulsos e os pontos para separar grupos de subdivisões. Com essa explícita
distinção, podemos agora evitar a ambiguidade métrica dos temas de Desmond e Bolling: Take Five
possui o compasso simples 5/4 (3+2) e Mexicaine possui o compasso misto 5/8 (2.3).
Já o trecho citado da Jacob’s Ladder pode ser representado como 6/4 (3+3). O “+”, que
separa grupos de pulsos, será geralmente empregado nos compassos mais longos, que possuem 4 ou
mais tempos12. Não se deve confundir, contudo, compassos longos com fórmulas que recebem
numeradores de maior valor. Os temas Blue Rondo a La Turk, de Dave Brubeck, e Hispanic Dance
(with a Blue Touch), de Claude Bolling13, são exemplos de quaternários mistos, ou seja, contém menos
pulsos que a passagem em questão da canção do Rush. Como são mistos e, como tais, necessitam que
seja informada a quantidade total de subdivisões, adquirem numeradores maiores que o “6” da música
do trio canadense. Na notação que proponho, a fórmula da Blue Rondo a La Turk seria 9/8 (2.2.2.3)14 e
a da Hispanic Dance seria 10/8 (3.3.2.2)15.
Revisemos agora as peças de Peter Maxwell Davies: no trecho da The Lighthouse teríamos
que modificar apenas o 5/16, que passaria de 5/16 (2+3), como aparece no Ex.4, para 5/16 (2.3); já na
passagem da Sinfonia nº 4, teríamos que modificar o 5/4 final, que passaria de 5/4 (2.3), como
12
Compassos ternários poderiam ter uma acentuação interna de 2+1 ou 1+2, contudo entendo que esses valores
unitários não são nada mais que a acentuação natural que toda estrutura ternaria obrigatoriamente encerra.
13
Músicas encontradas nas primeiras faixas dos mesmos álbuns - Time Out (BRUBECK, 1997) e a gravação
completa do Concerto de Bolling (BOLLING; LAGOYA, 2003) – que contém as composições anteriormente
citadas de Desmond e Bolling. Ambos os álbuns apresentam diversos outros significativos exemplos de
compasso misto.
14
Com essa música notamos quão importante é a explicitação da divisão interna do compasso, pois não se trata
de um 9/8 composto. Na partitura da Blue Rondo a La Turk é indicado 9/8(2+2+2+3), mas aqui estou justamente
sugerindo a substituição dos símbolos “+” por pontos.
15
Na partitura dessa Hispanic Dance não há a explicitação dessa disposição, mas ela fica clara por meio da
união e separação dos colchetes. É interessante notar que ambos os exemplos são em acelerados andamentos:
colcheia em 376 na música de Brubeck, e colcheia em 460 na peça de Bolling. Não são, portanto, compassos de
9 e 10 pulsos respectivamente, mas compassos quaternários mistos que diferem na distribuição interna de seus
pulsos binários e ternários
indicado no Ex.7, para 5/4 (2+3). É importante ressaltar que esse tipo de notação serve para resolver
ambiguidades e assim promover maior conscientização quanto às sutilezas da construção métrica.
Notações tradicionais, como 4/4 ou mesmo os compostos, se utilizadas de modo igualmente
tradicional, não precisam adquirir nenhum detalhamento quanto à sua organização interna. O 6/4 do
Rush foi revisado justamente por não ser um composto tradicional. O “3+3” que agora acrescento
serve para mostrar a acentuação intermediária desse compasso, com o “+” separando dois grupos de
pulsos e não dois pulsos ternários, como aconteceria num composto.
Como consideração final, há a possibilidade de, nos compassos mais longos, utilizar ambas
as notações – “+” e pontos – de modo conjugado, o que permite ser ainda mais explícito com relação à
organização interna dos compassos. Assim, um 6/4 composto é um mero 3.3, um binário, enquanto
que os seis pulsos da Jacob’s Ladder, que antes notei como 6/4 (3+3), podem ser ainda mais
especificados: 6/4 (2.2.2+2.2.2). Isso será particularmente útil quando se pretende conferir maior
precisão à indicação da estrutura de compassos compostos longos. Um 18/8, por exemplo, que
congrega seis pulsos ternários, 3.3.3.3.3.3, geralmente adquire uma acentuação interna, como 3+3 ou
2+2+2. Tais situações podem ser escritas de modo mais simplificado, 18/8 (3+3) e 18/8 (2+2+2), ou
pormenorizadamente, 18/8 (3.3.3+3.3.3) e 18/8 (3.3+3.3+3.3). Esse é, de certo modo, o caso da Take
Five. Não obstante a notação com swing, pode-se claramente sentir a subdivisão ternária dos pulsos na
gravação original, principalmente quando nos detemos na audição do prato de condução da bateria16.
Ouvindo-a desse modo, teríamos um compasso composto de cinco tempos, um 15/8, com a já
conhecida acentuação interna de 3 e 2 pulsos. Podemos indicá-lo com a fórmula 15/8 (3+2) ou, mais
detalhadamente, com a fórmula 15/8 (3.3.3+3.3).
Transitamos do Rock ao Jazz, passando pela música contemporânea. Alguns exemplos
musicais desses gêneros – e a investigação deve se estender a outros! – adquiriram maior clareza com
relação às suas estruturas métricas. Uma simples proposta gráfica abriu portas para a compreensão de
complexos conceitos sobre Ritmo. Acredito que as possibilidades que daí decorrem, em termos de
educação, composição e pesquisa musicais, são múltiplas.

REFERÊNCIAS

Livros:

ADOUR, Fabio. Sobre Harmonia: Uma Proposta de Perfil Conceitual. Rio de Janeiro: Vermelho
Marinho, 2014.

BAS, Julio. Tratado de la Forma Musical. Buenos Aires: Ricordi Americana, 1947.

BERRY, Wallace. Form in Music. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1966. 472p.

16
Em contraste, a flexibilidade rítmica dos solos de sax de Paul Desmond nos desencoraja a negligenciar a
escrita com swing, pois nem sempre ouvimos, em sua interpretação, essa subdivisão ternária do pulso.
BERRY, Wallace. Structural Functions in Music. New York: Dover Publications, 1987. 447p.

CAPLIN, William. Classical Form. Oxford: Oxfort University Press, 1998. 307p.

LERDAHL, Fred; JACKENDOFF, Ray. A Generative Theory of Tonal Music. Cambridge: The MIT
Press, 1983. 368p.

SCLIAR, Esther. Fraseologia Musical. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982. 95p.

Partituras publicadas:

BOLLING, Claude. Concerto for Classic Guitar and Jazz Piano. Grade de piano e violão, partes de
baixo e bateria. USA: Silhouette Music Corp., 1978.

BRUBECK, Dave. The Dave Brubeck Quartet: Time Out & Time Further Out. Piano e cifras. San
Francisco: Charles Hansen Publication, 1962.

MAXWELL DAVIES, Peter. The Lighthouse: A chamber opera in a prologue and one act. Ópera
completa. London: Chester Music, 1986.

MAXWELL DAVIES, Peter. Symphony 4. Grade completa. London: Boosey & Hawkes, 1992.

Gravações em mídias sonoras:

BOLLING, Claude; LAGOYA, Alexandre. Concerto for Classical Guitar and Jazz Piano Trio. CD
3448960244428. Fremeaux & Assoc, França, 2003.

BRUBECK, Dave. Time Out: The Dave Brubeck Quartet. CD 074646512227. Columbia, EUA, 1997.

RUSH. Permanent Waves. VINIL 9111 065. Mercury, EUA, 1980.

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