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MAGNA CARTA DO DELINQUENTE VERSUS DIREITO


PENAL DA VÍTIMA NA REFORMA PENAL DO CRIME DE
VIOLAÇÃO*
Magna Carta of the delinquent versus victim's criminal law in the penal
reform of the crime of rape

Maria Fernanda Palma**

Palavras-chave: direito penal sexual; violação e consen8mento; princípios cons8tucionais; limites


da criminalização; visão liberal; direitos humanos e sexualidade.
Resumo: As alterações introduzidas pelo diálogo entre reformas europeias sobre o direito
penal sexual, em par8cular no que se refere ao crime de violação, suscitam uma
clarificação dos princípios cons8tucionais do direito penal sobre os limites e
finalidades da criminalização. A visão garan8sta, liberal, do direito penal foi uma
decisiva aquisição histórica, colocando no âmago do direito penal a relação entre
o Estado e o Arguido, e tornando as penas uma questão própria da função puni8va
do Estado e rela8va aos direitos do cidadão em face do poder estatal. A expressão
de von Liszt do Direito Penal como a Magna Carta do Delinquente exprime
incisivamente a dimensão garan8sta do Direito Penal. O princípio da necessidade
da pena, cuja primeira inspiração provém de Beccaria, que afirmava que só a pena
necessária é legí8ma, tornaria o Direito Penal um úl8mo recurso para a sociedade
e para a polí8ca criminal do Estado em associação com uma lógica de contrato
social

Keywords: sexual criminal law; rape and consent; cons8tu8onal principles; boundaries of
criminaliza8on; liberal vision; human rights and sexuality
Abstract: The changes introduced by the dialogue between European reforms on sexual
criminal law, par8cularly regarding the crime of rape, demand a clarifica8on of the
cons8tu8onal principles of criminal regarding the boundaries and purposes of
criminalisa8on. The liberal, garan8st vision of criminal law has been a significant
historical development, placing at the core of criminal law the rela8onship
between the State and the Defendant and making punishment a maYer of the
State's puni8ve func8on and rela8ve to the rights of the ci8zen state power. Von
Liszt's expression of Criminal Law as the Delinquent's Magna Carta vividly conveys
the guaranteeing dimension of Criminal Law. The principle of the necessity of
punishment, whose ini8al inspira8on comes from Beccaria, who asserted that only
necessary punishment is legi8mate, would make Criminal Law a last resort for
society and for the criminal policy of the state in associa8on with a logic of social
contract.

*
Artigo publicado a convite. Trabalho realizado no âmbito do projeto UIDB/04243/2020, apoiado pela FCT
– Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P.
**
Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Presidente do Instituto de Direito
Penal e Ciências Criminais.

Anatomia do Crime n.º 17 (janeiro–junho 2023) | ISSN 2184-027


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I.

Mais do que noutro tema, as alterações introduzidas pelo diálogo entre reformas
europeias sobre o direito penal sexual, em particular no que se refere ao crime de violação,
suscitam uma clarificação dos princípios constitucionais do direito penal sobre os limites e
finalidades da criminalização.
A visão garantista, liberal, do direito penal foi uma decisiva aquisição histórica, colocando
no âmago do direito penal a relação entre o Estado e o Arguido, e tornando as penas uma
questão própria da função punitiva do Estado e relativa aos direitos do cidadão em face do
poder estatal. A expressão de von Liszt do Direito Penal como a Magna Carta do Delinquente1
exprime incisivamente a dimensão garantista do Direito Penal. O princípio da necessidade da
pena, cuja primeira inspiração provém de Beccaria (Beccaria, 1823), que afirmava que só a
pena necessária é legítima, tornaria o Direito Penal um último recurso para a sociedade e para
a política criminal do Estado em associação com uma lógica de contrato social.
Neste modelo ideal, o direito penal sexual não teria um grande protagonismo, pois
dissolvia-se nos costumes, na moralidade sexual dominante, e poderia facilmente ser
minimizado como comportamentos do campo da moralidade ou das relações privadas.
Este modelo não foi verdadeiramente superado, na primeira grande reforma portuguesa
do século XX, realizada em 1982, com a integração dos crimes sexuais nos crimes contra os
fundamentos ético-sociais da vida em sociedade em que a intervenção do Direito do Estado
no campo sexual se justificava não propriamente nos direitos da vítima, mas sim na
monocromática organização ética da sociedade. Também, nessa perspetiva, a dimensão
pública, comunitária, acabava por remeter a liberdade sexual e a dignidade da pessoa para um
espaço livre do direito2, desprotegido pelo Estado, entregue aos poderes privados.
A intensificação progressiva do papel dos direitos humanos no campo da sexualidade
suscita inevitavelmente o confronto entre a perspetiva liberal e minimalista do Direito Penal,
por um lado, e a perspetiva estatizante baseada numa proteção da coesão social e do bem-
estar coletivo, por outro lado. Existe um espaço carente de tutela entre as duas perspetivas
anteriores, em que uma terceira emerge de modo problemático. Como é que os princípios de
Estado de Direito democrático respondem a uma tensão entre o alargamento da proteção
jurídica e o princípio da necessidade da pena minimizador da intervenção penal?

II.

A questão anterior obriga-nos a reconstruir a natureza dos bens jurídicos envolvidos nos
crimes sexuais como aspetos essenciais da identidade pessoal, condições do reconhecimento
de si mesmo como pessoa autónoma e digna, muito para além da mera imagem social, mas

1
A expressão atribuída a Franz von Liszt num parecer para a Associação Internacional de Direito Penal em
Strafrechtliche Vortraege und Aufsaetze, 1905. Veja-se sobre o sentido paradoxal da expressão
Roxin/Greco, 2020, p. 214, nota 5.
2
Na verdade um espaço livre do Direito pela indiferença comunitária e pública à autonomia no seio de grupos
privados. O sentido da expressão espaço livre do Direito é antes na tradição filosófica caraterístico de
conflitos existenciais profundos.

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algo determinante da base existencial necessária para ser-se livre e se poder desenvolver as
capacidades adequadas a uma vida digna de ser vivida3.
A autonomia sexual e a inviolabilidade da sexualidade ascendem a um patamar de valor
essencial e objetivo a par da vida, saúde e integridade física, que requerem uma proibição
penal dos comportamentos. Estes comportamentos atingem a existência e essência desses
valores, de um modo ontológico, e não apenas o significado intersubjetivo de uma agressão
num contexto cultural.
É verdade que este essencialismo e obje[vismo universal dos valores corresponde a uma
posição metodológica sobre o conhecimento e conceção dos valores controverso, na Filosofia,
na perspe[va de que pressupõe uma espécie de realismo transcendental e uma ontologia
absoluta, contrapondo-se à perspe[va de que os valores são produto da experiência
comunica[va e intersubje[va vivenciada na sociedade, sendo o self um mero construído sem
base ôn[ca perene nem possibilidade de definição ontológica4.
As verdades de valor não exis[riam nem como factos nem sequer como verdades de
razão universais, seriam apenas construções sociais, psicossociais ou produtos culturais,
verdades convencionais, mas que funcionariam produzindo factos5.
Esta úl[ma espécie de leitura da representação do mundo e do mundo representado
subtrairia a todos os valores qualquer obje[vidade universal e faria depender de contextos
mutáveis, no espaço e no tempo, a iden[dade valora[va dos comportamentos, o que em
úl[ma análise jus[ficaria a cria[vidade legisla[va sobre o que seja um homicídio, lesão da
integridade `sica ou violação.
O rela[vismo correspondente, em parte, à evolução e diversidade do Direito, afastando-
o, plenamente, do problema da verdade e relacionando a validade das normas com premissas
sistemá[cas escolhidas e não obrigatórias, mesmo que seja aceitável no plano da
epistemologia, tem contra si uma necessidade lógica que carateriza o papel histórico e a ideia
de Direito: a autovinculação dos des[natários do Direito no plano da razão sobrepondo-se a
quaisquer outros impera[vos sociais, polí[cos ou morais, decidindo defini[vamente conflitos.
Quer isto dizer que na sua lógica o Direito requer a representação de obje[vidade e plenitude
valora[va para realizar a sua essência.
Mesmo uma visão menos essencialista sobre os bens jurídicos não dispensa a relação dos
comportamentos com contextos e significados sociais intersubje[vamente configurados, não
dispensa uma referência obje[va no mundo dos acontecimentos como âncora. Mesmo que
matar uma pessoa seja redescrito como libertá-la do sofrimento na eutanásia tal não significa
necessariamente que essa redescrição modifique uma ação básica de lesão da vida. As
descrições dos mesmos factos pela modificação de atribuições linguís[cas e de significados
culturais pode, na verdade, pretender absorver no mundo dos significados as peças basilares
do mundo real. Assim, a lesão da vida pode assumir um significado não nega[vo, mas não
deixará de ser na base lesão da vida. O plano dos significados é necessariamente posterior ao

3
Para utilizar as palavras de Martha Nussbaum, 2006, p. 69 e ss.
4
Contraposição entre o realismo e o intelectualismo.
5
Esta última ideia parece ser notória no chamado interacionismo simbólico, cuja construção impregnou a
psicologia social a partir de George Herbert Mead: “Mind, Self and Society”, apud Palma, 2022, p. 33 e ss.

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das ações básicas a que se refere6. Mesmo Robin dos Bosques furtava, apesar de ser em
bene`cio dos pobres e de não dever ser censurado.
A úl[ma perspe[va procura assegurar que os significados isoladamente não serão a base
da descrição do mundo dos acontecimentos por uma razão não só lógica como prá[ca ou de
controle do entendimento geral das pessoas.
Assim, a desconsideração do sexo forçado no casamento como violação seria exatamente
a sobreposição dos significados culturais à iden[ficação das ações básicas a que os significados
se refeririam.
Em suma, a importância da proteção da autonomia e da liberdade sexual tal como
acontece com a vida requer, pelo menos logicamente, uma base obje[va comportamental
como referência da denominação das agressões e lesões.

III.

A conclusão anterior procura desafiar a tendência de uma construção dos


comportamentos criminosos a par[r das representações sociais sobre o significado dos
comportamentos em certos contextos históricos e culturais, modificando a iden[dade de
condutas por vezes arbitrariamente como aconteceu no período nazi, em que não se
criminalizaria o aborto das mulheres não arianas7, ou na União Sovié[ca, em que se teria
equiparado a castração ao aborto por analogia.8 Esvaziar o refente obje[vo, a base ôn[ca, para
regular em vez de ações meros significados permite estes absurdos e uma manipulação do
mundo básico de acordo com os obje[vos dominantes. Esta construção norma[vista do mundo
sem amparo no que iden[fica estavelmente o fazer-se algo torna-se, assim, um modo de proibir
mo[vações e significados atribuídos e não ações obje[vas.
Na construção do ilícito penal, o que pode resultar desta perspe[va desencarnada do
mundo obje[vo é uma alteração de alguns [pos incriminadores, que passarão a ser
configurados como comportamentos significa[vos a par[r das representações dominantes que
circulam, numa espécie de inversão entre o [po obje[vo e o subje[vo, em que as
representações médias passam a ser a base da configuração do que é proibido e não o que
efe[vamente acontece. A violação seria um comportamento determinado mesmo na sua
obje[vidade pela compreensão do significado do relacionamento sexual para um agente médio
e não pelo facto básico do sexo não permi[do pela ví[ma.
Diferentemente do homicídio, em que é geralmente insustentável que o ter-se matado
outra pessoa na sua descrição dependa da representação média ou mesmo de um sistema de
valores9, no crime de violação, o significado das representações médias subje[vas,
tradicionalmente masculinas, parece poder reconfigurar a descrição das ações obje[vas,

6
Vejo algo semelhante a essa ideia no pensamento de Michael Moore em várias das suas obras,
nomeadamente na mais recente, Mechanical Choices, 2020, p. 57 e ss.
7
Cfr. a informação em Welzel, 1969, p. 4.
8
Cfr. a informação em Brito, 1978, p. 9.
9
A perspetiva de que a vida é um bem e valor objetivo está presente no texto constitucional (artigo 24.º da
Constituição) e é a base do igual valor de todas as vidas no Estado de Direito democrático.

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admi[ndo-se que um erro sobre o consen[mento se iden[fique com a total a[picidade, isto é,
se iden[fique com o não preenchimento do [po obje[vo. Há, assim, uma sobreposição da
representação subje[va média à factualidade obje[va.
A questão que jus[fica implicitamente parte da controvérsia nas reformas europeias tem
a ver com esta sobreposição do subje[vo ao obje[vo e uma certa anulação da importância
decisiva da vontade da ví[ma, expressão da sua autonomia, liberdade e dignidade,
transfigurada, na reforma portuguesa, por inspiração na reforma alemã, em vontade
cognoscível. Diferentemente da lesão da vida, com plena obje[vidade no homicídio, ou mesmo
da apropriação de coisa alheia no furto, na violação, [po incriminador nuclear dos crimes
sexuais, central não é hoje para o legislador a lesão da liberdade sexual, mas a lesão da
liberdade aparente da ví[ma, desvalorizando-se o consen[mento efe[vo em face das
possibilidades médias de atribuição de um significado lesivo da vontade da ví[ma.
Poderá sustentar-se que esta subjec[vização do significado lesivo dos comportamentos
sexuais, acarretando uma descrição obje[va do [po incriminador, resulta da natureza das
condutas de intercâmbio sexual, mas a questão decisiva será saber se essa via não degrada a
proteção da ví[ma e desvaloriza no plano intersubje[vo a liberdade sexual afetada no seu
núcleo mais importante no crime de violação.

IV.

Respondendo à questão anterior, tornar a afetação da liberdade sexual algo de subje[vo


a par[r das representações médias sobre a vontade da pessoa ofendida não será, no entanto,
apenas a contraface de uma atribuição às representações par[culares da ví[ma da
iden[ficação dos factos? Não se estaria apenas perante a solução que evitaria essa outra
disponibilização subje[va dos factos?
A esta per[nente questão só se poderá responder a par[r da fórmula do consen[mento
efe[vo da ví[ma. Na realidade, em comportamentos altamente lesivos da liberdade sexual,
por se tratar exatamente de liberdade de dispor do corpo, `sica e psiquicamente, o cerne da
liberdade a ser protegida só pode residir na própria vontade e autonomia da pessoa envolvida,
mesmo que incoerente e não plausível ou mesmo não conhecida, independentemente da
interpretação sobre o significado social do inter-relacionamento entre o agente e a ví[ma.
Não se pode construir o objeto da ação e o bem protegido a par[r das representações
sobre a vontade cognoscível, mas sim a par[r da vontade efe[va.

V.

Uma obje[vação do comportamento proibido a par[r da vontade efe[va implica uma


reconstrução do [po incriminador através da exigência de dissen[mento, tornando a violação
um crime em que o consen[mento da ví[ma é central e não apenas a expressão de resistência
a[va da ví[ma ou mesmo a vontade cognoscível. Nada jus[fica a diferença entre outros crimes
contra a liberdade com intervenção no corpo da ví[ma, como as intervenções médico-
cirúrgicas arbitrárias, por exemplo, e os crimes sexuais contra adultos em matéria de

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consen[mento. Também nos crimes sexuais a preservação da liberdade exige clareza quanto
ao consen[mento. Se é verdade que nas intervenções médico-cirúrgicas arbitrárias, no ar[go
156.º do Código Penal português, apenas a impossibilidade de consen[mento leva ao não
preenchimento do [po incriminador, mas apenas na perspe[va da proteção da saúde e da
vontade hipoté[ca da potencial ví[ma, no crime de violação um interesse úl[mo da ví[ma
paternalis[camente considerado não se destrinçaria da sua vontade, pois é nesta que radica o
valor ou desvalor da sexualidade.

VI.

Feita esta análise sobre a essencialidade do consen[mento, nos crimes sexuais, jus[fica-
se, agora, suscitar frontalmente a questão que deu o mote a esta apresentação. Estaremos na
matéria dos crimes sexuais, na questão do crime de violação, a inaugurar uma polí[ca criminal
de orientação retribu[va e a afastar-nos radicalmente de um direito penal baseado na
necessidade da pena, de ul&ma ra&o e de intervenção mínima? Engrossaremos ou
expandiremos os [pos incriminadores, produzindo um efeito impedi[vo de um funcionamento
processual da presunção de inocência através de uma blindagem dos [pos incriminadores
contra a invocação pelo agente das suas representações semelhantes às de um homem médio
sobre a vontade da ví[ma?
Na verdade, o princípio da presunção da inocência colapsa ou pelo menos comprime-se
quando os [pos incriminadores sejam construídos de tal modo que a ação seja reduzida a uma
dimensão estritamente fác[ca e em que o dolus in re ipsa se imponha. Se o comportamento
kpico consis[r na relação sem obje[vamente ter sido dado o consen[mento tal como na
u[lização de dados privados, o dolo basta-se com o facto de o agente não ter ob[do o
consen[mento – esse facto obje[vo dispensa a prova de uma representação mais clara ou sem
dúvidas do agente. O dolo não corresponde a um momento mental autónomo do
comportamento obje[vo e factual. O dolo está na atuação do agente.
Estaremos de facto perante uma expansão de cariz retribu[vo do direito penal sexual?
A resposta é ainda de certo modo nega[va por duas razões fundamentais: a primeira
razão é o facto de a reconstrução e densificação do bem jurídico não ser uma pura absorção de
preconceitos morais e da moralidade, mas antes uma desconstrução de preconceitos morais
da cultura patriarcal tradicional que subver[a a ordem dos valores e bens jurídicos no Estado
de Direito democrá[co a par[r de uma análise essencialista dos bens jurídicos e de uma
perspe[va ontológica; a segunda razão corresponde ao facto de a reconstrução obje[vista da
ação e do bem jurídico não obstar a que a teoria do erro funcione de modo garanks[co, bem
como factores culturais possam ter relevância em sede de culpabilidade do agente.
Finalmente, ainda quanto a este ponto, sempre se poderá considerar que a acentuação
do âmbito do comportamento incriminado no crime de violação está em rota de colisão com o
global expansionismo penal e a consequente bagatelização do Direito Penal na sua absorção
de ilícitos de organização de teor puramente administra[vo. A reconstrução do núcleo do
Direito Penal central não corresponde a qualquer expansão periférica e hipercriminalização,
fenómeno que corresponde a uma instrumentalização do Direito Penal para fins de organização
e obje[vos variados das polí[cas dos Estados. Trata-se antes de colocar no núcleo da função

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puni[va do Estado a pessoa na sua plena autonomia, na autonomia para a sua dignidade. Um
tal recentramento não corresponde a um expansionismo moralista do Direito Penal do Estado,
mas à compreensão do Estado como meio ambiente do florescimento pessoal.
VII.

Uma questão processual intrinsecamente associada a esta úl[ma análise é a natureza


pública dos crimes sexuais, em par[cular dos crimes contra adultos, que, na legislação
portuguesa, mantêm a natureza de crimes semipúblicos, diferentemente dos crimes de
violência domés[ca, que, desde 1998, passaram a crimes públicos exatamente para se impedir
os constrangimentos da ví[ma para tomar a inicia[va de denunciar os agressores. No crime de
violação tem-se procurado com algum êxito impedir a publicização para evitar a es[gma[zação
da ví[ma, mas esse argumento assenta na prévia aceitação pelo Estado da representação
es[gma[zada da ví[ma e de uma passiva complacência com essa situação. Uma vez admi[do
que o núcleo da proibição no crime de violação é não uma representação social ou um
significado social, mas o facto obje[vo com dignidade ontológica do relacionamento sexual
sem consen[mento da ví[ma, dado o valor insuperável da decisão sobre o seu “corpo sexual”
como fator da preservação da dignidade da pessoa, não há razões para deixar na
disponibilidade da ví[ma a ação penal, diferentemente do que se passa nas ofensas à vida ou
integridade `sica graves. Todos os problemas de proteção da ví[ma perante os es[gmas sociais
estão para além da natureza da ação penal, exigem antes uma proteção especifica da ví[ma e
uma polí[ca criminal preven[va e modeladora dos comportamentos sociais. Não se coaduna
com a gravidade dos crimes sexuais como a violação uma margem de “cumplicidade” do Estado
com a sociedade es[gma[zante da ví[ma. A proteção da ví[ma não se concre[za no seu
abandono penal.

VIII.

A discussão portuguesa, conver[da numa reforma pouco profunda realizada em 2020,


sobretudo no crime de violação, e man[da acerca da conversão do crime de violação em crime
público, abordada no Parlamento, não tem sido muito proa[va nem legisla[va nem
doutrinariamente, mas na sua kmida hesitação sobre a natureza da infração e constante
preocupação sobre a relação do dolo do agente e a vontade da ví[ma, o caminho da reforma
portuguesa exprime a dificuldade de um crime nuclear do sistema ser desvinculado de uma
conceção social algo tolerante e excessivamente compreensiva da lesão do corpo sexual e de
um empenho decisivo das diversas esferas sociais em qualificar a violação como o que é
absolutamente intolerável e inequívoco comportamentalmente.

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IX.

Extrairia três conclusões fundamentais:


Primeiro, uma conceção essencialista, ontológica, obje[vista sobre o comportamento
incriminado na violação que a caraterizará como a u[lização do “corpo sexual” sem
consen[mento da ví[ma;
Segundo, uma expansão da conduta incriminada nesse crime nuclear sem prejuízo da
necessidade da pena, da exigência de dolo do agente e da presunção da inocência, sem abrir
caminho nem à moralização nem à banalização do Direito Penal, numa perspe[va de
densificação dos bens jurídicos nucleares suporte do Estado de Direito democrá[co;
Terceiro, reconhecimento da natureza pública do crime de violação e em geral dos crimes
contra a liberdade e autodeterminação sexual.

Bibliografia

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