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Keywords: sexual criminal law; rape and consent; cons8tu8onal principles; boundaries of
criminaliza8on; liberal vision; human rights and sexuality
Abstract: The changes introduced by the dialogue between European reforms on sexual
criminal law, par8cularly regarding the crime of rape, demand a clarifica8on of the
cons8tu8onal principles of criminal regarding the boundaries and purposes of
criminalisa8on. The liberal, garan8st vision of criminal law has been a significant
historical development, placing at the core of criminal law the rela8onship
between the State and the Defendant and making punishment a maYer of the
State's puni8ve func8on and rela8ve to the rights of the ci8zen state power. Von
Liszt's expression of Criminal Law as the Delinquent's Magna Carta vividly conveys
the guaranteeing dimension of Criminal Law. The principle of the necessity of
punishment, whose ini8al inspira8on comes from Beccaria, who asserted that only
necessary punishment is legi8mate, would make Criminal Law a last resort for
society and for the criminal policy of the state in associa8on with a logic of social
contract.
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Artigo publicado a convite. Trabalho realizado no âmbito do projeto UIDB/04243/2020, apoiado pela FCT
– Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P.
**
Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Presidente do Instituto de Direito
Penal e Ciências Criminais.
I.
Mais do que noutro tema, as alterações introduzidas pelo diálogo entre reformas
europeias sobre o direito penal sexual, em particular no que se refere ao crime de violação,
suscitam uma clarificação dos princípios constitucionais do direito penal sobre os limites e
finalidades da criminalização.
A visão garantista, liberal, do direito penal foi uma decisiva aquisição histórica, colocando
no âmago do direito penal a relação entre o Estado e o Arguido, e tornando as penas uma
questão própria da função punitiva do Estado e relativa aos direitos do cidadão em face do
poder estatal. A expressão de von Liszt do Direito Penal como a Magna Carta do Delinquente1
exprime incisivamente a dimensão garantista do Direito Penal. O princípio da necessidade da
pena, cuja primeira inspiração provém de Beccaria (Beccaria, 1823), que afirmava que só a
pena necessária é legítima, tornaria o Direito Penal um último recurso para a sociedade e para
a política criminal do Estado em associação com uma lógica de contrato social.
Neste modelo ideal, o direito penal sexual não teria um grande protagonismo, pois
dissolvia-se nos costumes, na moralidade sexual dominante, e poderia facilmente ser
minimizado como comportamentos do campo da moralidade ou das relações privadas.
Este modelo não foi verdadeiramente superado, na primeira grande reforma portuguesa
do século XX, realizada em 1982, com a integração dos crimes sexuais nos crimes contra os
fundamentos ético-sociais da vida em sociedade em que a intervenção do Direito do Estado
no campo sexual se justificava não propriamente nos direitos da vítima, mas sim na
monocromática organização ética da sociedade. Também, nessa perspetiva, a dimensão
pública, comunitária, acabava por remeter a liberdade sexual e a dignidade da pessoa para um
espaço livre do direito2, desprotegido pelo Estado, entregue aos poderes privados.
A intensificação progressiva do papel dos direitos humanos no campo da sexualidade
suscita inevitavelmente o confronto entre a perspetiva liberal e minimalista do Direito Penal,
por um lado, e a perspetiva estatizante baseada numa proteção da coesão social e do bem-
estar coletivo, por outro lado. Existe um espaço carente de tutela entre as duas perspetivas
anteriores, em que uma terceira emerge de modo problemático. Como é que os princípios de
Estado de Direito democrático respondem a uma tensão entre o alargamento da proteção
jurídica e o princípio da necessidade da pena minimizador da intervenção penal?
II.
A questão anterior obriga-nos a reconstruir a natureza dos bens jurídicos envolvidos nos
crimes sexuais como aspetos essenciais da identidade pessoal, condições do reconhecimento
de si mesmo como pessoa autónoma e digna, muito para além da mera imagem social, mas
1
A expressão atribuída a Franz von Liszt num parecer para a Associação Internacional de Direito Penal em
Strafrechtliche Vortraege und Aufsaetze, 1905. Veja-se sobre o sentido paradoxal da expressão
Roxin/Greco, 2020, p. 214, nota 5.
2
Na verdade um espaço livre do Direito pela indiferença comunitária e pública à autonomia no seio de grupos
privados. O sentido da expressão espaço livre do Direito é antes na tradição filosófica caraterístico de
conflitos existenciais profundos.
algo determinante da base existencial necessária para ser-se livre e se poder desenvolver as
capacidades adequadas a uma vida digna de ser vivida3.
A autonomia sexual e a inviolabilidade da sexualidade ascendem a um patamar de valor
essencial e objetivo a par da vida, saúde e integridade física, que requerem uma proibição
penal dos comportamentos. Estes comportamentos atingem a existência e essência desses
valores, de um modo ontológico, e não apenas o significado intersubjetivo de uma agressão
num contexto cultural.
É verdade que este essencialismo e obje[vismo universal dos valores corresponde a uma
posição metodológica sobre o conhecimento e conceção dos valores controverso, na Filosofia,
na perspe[va de que pressupõe uma espécie de realismo transcendental e uma ontologia
absoluta, contrapondo-se à perspe[va de que os valores são produto da experiência
comunica[va e intersubje[va vivenciada na sociedade, sendo o self um mero construído sem
base ôn[ca perene nem possibilidade de definição ontológica4.
As verdades de valor não exis[riam nem como factos nem sequer como verdades de
razão universais, seriam apenas construções sociais, psicossociais ou produtos culturais,
verdades convencionais, mas que funcionariam produzindo factos5.
Esta úl[ma espécie de leitura da representação do mundo e do mundo representado
subtrairia a todos os valores qualquer obje[vidade universal e faria depender de contextos
mutáveis, no espaço e no tempo, a iden[dade valora[va dos comportamentos, o que em
úl[ma análise jus[ficaria a cria[vidade legisla[va sobre o que seja um homicídio, lesão da
integridade `sica ou violação.
O rela[vismo correspondente, em parte, à evolução e diversidade do Direito, afastando-
o, plenamente, do problema da verdade e relacionando a validade das normas com premissas
sistemá[cas escolhidas e não obrigatórias, mesmo que seja aceitável no plano da
epistemologia, tem contra si uma necessidade lógica que carateriza o papel histórico e a ideia
de Direito: a autovinculação dos des[natários do Direito no plano da razão sobrepondo-se a
quaisquer outros impera[vos sociais, polí[cos ou morais, decidindo defini[vamente conflitos.
Quer isto dizer que na sua lógica o Direito requer a representação de obje[vidade e plenitude
valora[va para realizar a sua essência.
Mesmo uma visão menos essencialista sobre os bens jurídicos não dispensa a relação dos
comportamentos com contextos e significados sociais intersubje[vamente configurados, não
dispensa uma referência obje[va no mundo dos acontecimentos como âncora. Mesmo que
matar uma pessoa seja redescrito como libertá-la do sofrimento na eutanásia tal não significa
necessariamente que essa redescrição modifique uma ação básica de lesão da vida. As
descrições dos mesmos factos pela modificação de atribuições linguís[cas e de significados
culturais pode, na verdade, pretender absorver no mundo dos significados as peças basilares
do mundo real. Assim, a lesão da vida pode assumir um significado não nega[vo, mas não
deixará de ser na base lesão da vida. O plano dos significados é necessariamente posterior ao
3
Para utilizar as palavras de Martha Nussbaum, 2006, p. 69 e ss.
4
Contraposição entre o realismo e o intelectualismo.
5
Esta última ideia parece ser notória no chamado interacionismo simbólico, cuja construção impregnou a
psicologia social a partir de George Herbert Mead: “Mind, Self and Society”, apud Palma, 2022, p. 33 e ss.
das ações básicas a que se refere6. Mesmo Robin dos Bosques furtava, apesar de ser em
bene`cio dos pobres e de não dever ser censurado.
A úl[ma perspe[va procura assegurar que os significados isoladamente não serão a base
da descrição do mundo dos acontecimentos por uma razão não só lógica como prá[ca ou de
controle do entendimento geral das pessoas.
Assim, a desconsideração do sexo forçado no casamento como violação seria exatamente
a sobreposição dos significados culturais à iden[ficação das ações básicas a que os significados
se refeririam.
Em suma, a importância da proteção da autonomia e da liberdade sexual tal como
acontece com a vida requer, pelo menos logicamente, uma base obje[va comportamental
como referência da denominação das agressões e lesões.
III.
6
Vejo algo semelhante a essa ideia no pensamento de Michael Moore em várias das suas obras,
nomeadamente na mais recente, Mechanical Choices, 2020, p. 57 e ss.
7
Cfr. a informação em Welzel, 1969, p. 4.
8
Cfr. a informação em Brito, 1978, p. 9.
9
A perspetiva de que a vida é um bem e valor objetivo está presente no texto constitucional (artigo 24.º da
Constituição) e é a base do igual valor de todas as vidas no Estado de Direito democrático.
admi[ndo-se que um erro sobre o consen[mento se iden[fique com a total a[picidade, isto é,
se iden[fique com o não preenchimento do [po obje[vo. Há, assim, uma sobreposição da
representação subje[va média à factualidade obje[va.
A questão que jus[fica implicitamente parte da controvérsia nas reformas europeias tem
a ver com esta sobreposição do subje[vo ao obje[vo e uma certa anulação da importância
decisiva da vontade da ví[ma, expressão da sua autonomia, liberdade e dignidade,
transfigurada, na reforma portuguesa, por inspiração na reforma alemã, em vontade
cognoscível. Diferentemente da lesão da vida, com plena obje[vidade no homicídio, ou mesmo
da apropriação de coisa alheia no furto, na violação, [po incriminador nuclear dos crimes
sexuais, central não é hoje para o legislador a lesão da liberdade sexual, mas a lesão da
liberdade aparente da ví[ma, desvalorizando-se o consen[mento efe[vo em face das
possibilidades médias de atribuição de um significado lesivo da vontade da ví[ma.
Poderá sustentar-se que esta subjec[vização do significado lesivo dos comportamentos
sexuais, acarretando uma descrição obje[va do [po incriminador, resulta da natureza das
condutas de intercâmbio sexual, mas a questão decisiva será saber se essa via não degrada a
proteção da ví[ma e desvaloriza no plano intersubje[vo a liberdade sexual afetada no seu
núcleo mais importante no crime de violação.
IV.
V.
consen[mento. Também nos crimes sexuais a preservação da liberdade exige clareza quanto
ao consen[mento. Se é verdade que nas intervenções médico-cirúrgicas arbitrárias, no ar[go
156.º do Código Penal português, apenas a impossibilidade de consen[mento leva ao não
preenchimento do [po incriminador, mas apenas na perspe[va da proteção da saúde e da
vontade hipoté[ca da potencial ví[ma, no crime de violação um interesse úl[mo da ví[ma
paternalis[camente considerado não se destrinçaria da sua vontade, pois é nesta que radica o
valor ou desvalor da sexualidade.
VI.
Feita esta análise sobre a essencialidade do consen[mento, nos crimes sexuais, jus[fica-
se, agora, suscitar frontalmente a questão que deu o mote a esta apresentação. Estaremos na
matéria dos crimes sexuais, na questão do crime de violação, a inaugurar uma polí[ca criminal
de orientação retribu[va e a afastar-nos radicalmente de um direito penal baseado na
necessidade da pena, de ul&ma ra&o e de intervenção mínima? Engrossaremos ou
expandiremos os [pos incriminadores, produzindo um efeito impedi[vo de um funcionamento
processual da presunção de inocência através de uma blindagem dos [pos incriminadores
contra a invocação pelo agente das suas representações semelhantes às de um homem médio
sobre a vontade da ví[ma?
Na verdade, o princípio da presunção da inocência colapsa ou pelo menos comprime-se
quando os [pos incriminadores sejam construídos de tal modo que a ação seja reduzida a uma
dimensão estritamente fác[ca e em que o dolus in re ipsa se imponha. Se o comportamento
kpico consis[r na relação sem obje[vamente ter sido dado o consen[mento tal como na
u[lização de dados privados, o dolo basta-se com o facto de o agente não ter ob[do o
consen[mento – esse facto obje[vo dispensa a prova de uma representação mais clara ou sem
dúvidas do agente. O dolo não corresponde a um momento mental autónomo do
comportamento obje[vo e factual. O dolo está na atuação do agente.
Estaremos de facto perante uma expansão de cariz retribu[vo do direito penal sexual?
A resposta é ainda de certo modo nega[va por duas razões fundamentais: a primeira
razão é o facto de a reconstrução e densificação do bem jurídico não ser uma pura absorção de
preconceitos morais e da moralidade, mas antes uma desconstrução de preconceitos morais
da cultura patriarcal tradicional que subver[a a ordem dos valores e bens jurídicos no Estado
de Direito democrá[co a par[r de uma análise essencialista dos bens jurídicos e de uma
perspe[va ontológica; a segunda razão corresponde ao facto de a reconstrução obje[vista da
ação e do bem jurídico não obstar a que a teoria do erro funcione de modo garanks[co, bem
como factores culturais possam ter relevância em sede de culpabilidade do agente.
Finalmente, ainda quanto a este ponto, sempre se poderá considerar que a acentuação
do âmbito do comportamento incriminado no crime de violação está em rota de colisão com o
global expansionismo penal e a consequente bagatelização do Direito Penal na sua absorção
de ilícitos de organização de teor puramente administra[vo. A reconstrução do núcleo do
Direito Penal central não corresponde a qualquer expansão periférica e hipercriminalização,
fenómeno que corresponde a uma instrumentalização do Direito Penal para fins de organização
e obje[vos variados das polí[cas dos Estados. Trata-se antes de colocar no núcleo da função
puni[va do Estado a pessoa na sua plena autonomia, na autonomia para a sua dignidade. Um
tal recentramento não corresponde a um expansionismo moralista do Direito Penal do Estado,
mas à compreensão do Estado como meio ambiente do florescimento pessoal.
VII.
VIII.
IX.
Bibliografia
BECCARIA, Cesare (1823). Dei deli1 e delle pene, 1764 (trad. francesa: Des Délits et des Peines).
BRITO, José de Sousa e (1978). Lei Penal na Cons&tuição (separata de Estudos sobre a
Cons&tuição, vol. 2), Lisboa, Petrony.
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Oxford, Oxford University Press.
NUSSBAUM, Martha (2006). The Fron&ers of Jus&ce, Cambridge (MA), Belknap Press of Harvard
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PALMA, Maria Fernanda (2022). Direito Penal – Conceito material de crime, 5.ª ed., Lisboa,
AAFDL.
ROXIN, Claus; GRECO, Luís (2020), Strafrecht – Allgemeiner Teil, 5.ª ed., München, C. H. Beck.
WELZEL, Hans (1969). Strafrecht – Allgemeiner Teil, 11.ª ed., Berlin, De Gruyter.