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A “demissão Big Brother: razão, sensibilidade, Direito e compliance

Em maio último uma decisão proferida pela Justiça do Trabalho de Fortaleza 1 causou
alvoroço e espanto no meio corporativo, jurídico e, especialmente, naquele que trabalha
justamente com a atuação das organizações pautada na conformidade, o compliance.

Diversos meios de comunicação veicularam notícia sobre conduta no mínimo curiosa adotada
por empresa de turismo sediada em Fortaleza/CE: a dispensa de seus empregados por meio de
“paredão”. Trata-se de verdadeira inovação, totalmente inspirada no reality show “Big
Brother Brasil”, mas sem qualquer precedente ou respaldo jurídico, muito menos coerência,
ética, empatia, razão e sensibilidade.

Aliás, a novidade nos remete ao romance escrito por Jane Austen em 1811, “Razão e
Sensibilidade”, que retrata o antagonismo entre os sentimentos das irmãs Dashwood e que faz
saltar aos olhos como a demissão por paredão amplamente divulgada foi uma conduta
completamente desprovida de ambos os sentimentos que dão nome à obra. Enquanto Elinor
sempre coloca seus sentimentos em segundo plano e age de acordo com a razão e a lógica,
Marianne é pura emoção e sensibilidade e se entrega de corpo e alma aos seus sentimentos.

A dispensa, como feita, apresentou um misto de comportamento e sentimentos inadmissíveis


dentro das organizações: despreparo, falta de sensibilidade e de razoabilidade, desrespeito,
desconhecimento da legislação trabalhista em vigor, e por aí vai. Em poucas palavras: uma
bela “trapalhada”.

Evidentemente, a novidade rendeu problemas judiciais trabalhistas para a empresa, já que os


empregados dispensados se sentiram humilhados e expostos ao ridículo, valendo dizer que
alguns deles inclusive apresentaram sintomas de depressão, de modo a permanecerem em
tratamento mesmo após meses do lamentável episódio.

Em uma das ações ajuizadas contra tal empregador, na qual se buscou (e se obteve!)
reparação por danos morais, além de diversos outros pedidos (os quais também foram
obtidos), detalhou-se como o “evento” era realizado: todos os empregados eram convocados
pelo gestor a uma reunião na qual, em estando todos presentes, dava-se início a uma
verdadeira carnificina demissional corporativa: os próprios empregados eram obrigados pelo
superior hierárquico a (a) indicar um colega para ser dispensado; e (b) explicar o motivo da
indicação ao “paredão”. Ao fim, o colaborador mais votado era simplesmente desligado da
empresa.

Detalhe: se porventura o empregado se recusasse a votar, também era dispensado.

Tal prática é de arrepiar os cabelos, e poderia servir como um belo enredo para mais um livro
de Jane Austen. Todavia, atitude como esta tem sido mais comum do que se imagina e não é a
única a chamar atenção nos últimos tempos. Dispensas por intermédio de mensagem em
grupo de WhatsApp da organização; por e-mail e no dia que finda a estabilidade da gestante
(cinco meses após o parto); ou mesmo aquela nem informada ao trabalhador, o qual somente
descobre que foi dispensado ao tentar, e não conseguir, ingressar em seu local de trabalho
passando seu crachá na catraca.

1
No processo n. 0000308-70.2020.5.07.0016.
1
Situações como essas são extremamente constrangedoras, vexatórias e humilhantes aos
empregados. Denunciam como os empregadores estão despreparados para lidar com pessoas;
como as organizações empresariais deixam escorrer pelos dedos a oportunidade de preparar
seus prepostos, superiores hierárquicos, colaboradores e, agindo em “desconformidade”,
acabam atraindo problemas internos relativos à gestão de pessoas, ao excesso de rotatividade
(turnover), assim atrapalhando a cultura organizacional e tornando as empresas rés em
demandas judiciais (para não falar no dano à sua imagem pública).

O Brasil é recordista no número de reclamações trabalhistas: segundo informações constantes


no relatório “Justiça em números” produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 2,
somente em 2019 os Tribunais Trabalhistas receberam nada mais nada menos que 2.898.238
(dois milhões, oitocentos e noventa e oito mil, duzentos e trinta e oito) ações ajuizadas por
empregados em desfavor de seus empregadores.

Os números acima denunciam que a grande maioria das organizações empregadoras ainda
concentra esforços no propósito de reduzir custos e alavancar seus resultados financeiros.
Esquecem-se de olhar a empresa como um todo e deixam à margem do planejamento
estratégico tanto a governança corporativa, quanto a gestão de riscos e o compliance. Como
consequência, experimentam o sabor amargo do despreparo de seus gestores, da falta de
políticas internas, do passivo trabalhista e da mancha na reputação/imagem do
empreendimento no mercado.

Esse é o contexto no qual a relevância do compliance emerge inquestionável: sua


implementação busca justa e precisamente evitar problemas como os encimados (além de
diversos outros), na medida em que oferece ao empregador vasto número de ferramentas
capazes, por intermédio do treinamento dos colaboradores, da capacitação de seus gestores, da
aplicação de medidas disciplinares quando cabível e necessário, da criação de um ambiente de
trabalho atento às normas de segurança e saúde do trabalhador e também da gestão de riscos
ocupacionais, de proporcionar a criação de cultura ética, respeitosa e transparente dentro da
organização.

Além de investir em ações de engajamento, melhora do clima organizacional, redução de


turnover, elaboração de Código de Conduta e Regulamento Interno, treinamentos e
monitoramento, é primordial o investimento na qualificação emocional dos gestores e dos
prepostos da organização. Não se pode esquecer que eles também são pais, mães, ou seja,
pessoas comuns, as quais também têm problemas pessoais e que, destarte, precisam receber o
treinamento adequado à ocupação de posição de liderança e aprender a desempenhar essa
função ponderando sempre a tomada de decisões pautada na ética, na razão e na sensibilidade.

Nesse sentido, para a Presidente da Comissão Permanente de Estudos de Compliance do


Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e Presidente da Comissão de Estudos de Gestão
de Terceiros do Instituto Compliance Brasil, Rogéria Gieremek3

O cenário empresarial e o ambiente regulatório trabalhista estão cada vez mais complexos,
afetando diretamente as relações profissionais. O fato requer atualizações constantes nas políticas
internas das empresas.
2
Disponível em: <https://paineis.cnj.jus.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=qvw_l
%2FPainelCNJ.qvw&host=QVS%40neodimio03&anonymous=true&sheet=shResumoDespFT >. Acesso aos
23/04/2020.
3
Em artigo intitulado “Compliance trabalhista”, disponível em <http://compliancebrasil.org/compliance-
trabalhista/. Acesso aos 02/06/2021.
2
Aplicado na criação e na manutenção de um código de condutas comportamentais da companhia, o
compliance trabalhista entra em cena para imunizar a atmosfera corporativa contra práticas
antiéticas e ilegais, atendendo à necessidade das corporações de se manterem pautadas na ética e
na legislação vigente.

Vê-se, pois, que uma maior atenção aos processos de gestão de pessoas dentro das
corporações é sempre bem-vinda, já que muitos atritos originadores de demandas trabalhistas
nascem de pequenos (e corriqueiros) problemas de relacionamento entre colegas de trabalho,
principalmente entre gestores e subordinados que, sem receber treinamento pela organização,
confundem razão com humilhação, e sensibilidade com amizade. Especialmente hoje, em que
se vive em mundo cada vez mais globalizado e se participa de um mercado cuja atuação por
vezes equivale a de um verdadeiro agente fiscalizador.

Assim, empreender com vista apenas ao lucro se mostra antiquado, obsoleto. Limitar a
atuação da organização a idéias ultrapassadas é abreviar sua permanência no mercado,
especialmente quando se verifica a existência de expedientes tais qual a “cultura do
cancelamento”, a qual consiste na exclusão, por determinados grupos, de pessoas, empresas e
marcas das redes sociais como sanção a comportamentos reprováveis por elas eventualmente
adotado4.

À guisa de exemplo, vale citar o recente caso relativo a “Karol Conká”, a qual se viu
“demitida” no verdadeiro paredão do BBB com recorde de rejeição (99,17% de votos), o que
gerou prejuízo à sua imagem pública e, pois, a perda de milhões de seguidores nas redes
sociais, de patrocínios, de contratos publicitários e de um programa de televisão apresentado
no canal GNT.

Em outras palavras, o cancelamento é um dos piores danos de que se pode sofrer no mercado
atualmente, pois equivale à morte simbólica.

A adoção das ferramentas do compliance pelas organizações, sejam elas pequenas, médias ou
grandes, levam à sua profissionalização, tornando-a consistente, sadia, ética, saudável, além
de servir como instrumento de comunicação efetiva com o trabalhador, redução de custos e da
judicialização, oferecendo à empresa a reputação e a imagem esperadas pelo mercado, além
de capacitar os líderes na gestão de pessoas. A implementação do programa de conformidade
certamente será um diferencial da organização no mercado, permitindo a tomada de decisões
saudáveis e equilibradas, pautadas na legislação, razoabilidade e com um toque de
sensibilidade.

Vê-se, portanto, que por meio de ferramentas criadas para cada empreendimento e
considerando suas particularidades e maiores necessidades, o compliance consegue condensar
o que cada uma das irmãs Dashwood apresentam como característica marcante e pessoal: a
racionalidade de Elinor, aliada à legislação e às normas para sustentação das decisões da
organização, e a sensibilidade e delicadeza de Marianne Dashwood ao trato com as pessoas,
levando equilíbrio às relações interpessoais e deixando o ambiente de trabalho mais ético,
respeitoso e, consequentemente, mais produtivo.

4
Via de regra afins a demonstrações de racismo, homofobia, à sujeição de trabalhadores a condições de trabalho
análogas à de escravo, a testes de produtos e cosméticos em animais, dentre outras.
3

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