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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Wendell Lopes Barbosa de Souza

A responsabilidade civil objetiva genérica fundada


na atividade de risco
(teoria geral e hipóteses práticas)

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO
2009
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Wendell Lopes Barbosa de Souza

A responsabilidade civil objetiva genérica fundada


na atividade de risco
(teoria geral e hipóteses práticas)

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE no Curso de
Pós-Graduação em Direito das Relações
Sociais, área de concentração de Direito Civil,
pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob a orientação da Professora
Doutora Odete Novais Carneiro Queiroz.

SÃO PAULO
2009
Souza, Wendell Lopes Barbosa de
A responsabilidade civil objetiva genérica fundada na
atividade de risco. (teoria geral e hipóteses práticas) /
Wendell Lopes Barbosa de Souza. – 2009.
219 f.

Orientadora: Profa. Doutora Odete Novais Carneiro


Queiroz
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Faculdade de Direito.

1. Responsabilidade. 2. Civil. 3. Objetiva. 4.


Genérica. 5. Atividade. 6. Risco.
Banca Examinadora

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total
ou parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos, desde
que citada a fonte.

São Paulo, 05 de janeiro de 2009.

Wendell Lopes Barbosa de Souza


Nosso primeiro trabalho acadêmico foi dedicado inteiramente aos pais e aos
irmãos. Desta vez, pedimos-lhes licença para compartilhar deste momento
também com outra pessoa, já que toda a presente dissertação foi redigida diante
dos olhos atentos daquela que, no exato momento em que escrevíamos esta
dedicatória, estava perto de se tornar a companheira de toda a vida. E é assim
que oferecemos, com nosso coração, este simples estudo de responsabilidade
civil, a você, Ulliana. Rendemos ainda todo nosso agradecimento de vida ao
oferecer este texto também aos amados pais e irmãos, Rubens, Olga, Eduardo
e Samara. Queremos também consignar a alegria de promover o presente
estudo ao mesmo tempo em que verdadeiramente ingressávamos numa
segunda família, orientada por dois seres humanos fantásticos, Hélio e Elba.
Ainda, sem que isso seja o bastante para agradecer a todas as lições, ao
Professor Franco Cocuzza também oferecemos as linhas que seguem. Por fim,
a trajetória pelo Estado de São Paulo nos deu a oportunidade de conhecer os
amigos Marco Truvilho, Carlos Horta Filho e Rosangela Gabriel, verdadeiros
companheiros, a quem também dedicamos este trabalho. Obrigado a todos.
À Professora Odete Novais Carneiro Queiroz, pela atenta orientação,
condição fundamental para a realização deste humilde trabalho, rendendo minha
admiração por seu conhecimento acerca das questões afetas à responsabilidade
civil, sobretudo no que tange às relações de consumo, Doutora no assunto.
RESUMO

Wendell Lopes Barbosa de Souza – A responsabilidade civil objetiva genérica


fundada na atividade de risco (teoria geral e hipóteses práticas).

Onde está o emolumento deve estar o ônus. Quem aufere o bônus deve suportar o
ônus. Constatação da deficiência da teoria subjetiva com a verificação de que a
necessidade da demonstração da culpa efetiva do agente danoso em juízo deixava
a vítima irressarcida na maioria dos infortúnios. Surgimento da teoria objetiva,
resultado da aplicação da doutrina do risco. Eclosão de vários dispositivos legais
impondo o dever indenizatório para determinadas situações concretas, tratando-se
da responsabilidade civil objetiva típica ou fechada. Abertura do sistema objetivo de
ressarcimento, prevendo-se que a atividade arriscada para os direitos alheios
desencadeia para o autor do dano o dever de reparar o prejuízo sem que se indague
de sua culpa, tratando-se da responsabilidade civil objetiva genérica - segunda parte
do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil brasileiro. Hipóteses típicas de
responsabilização objetiva genérica pela atividade de risco, como a fabricação, a
guarda, o manuseio e o transporte de substâncias inflamáveis e explosivas.
Hipóteses para a constatação, como as práticas automobilísticas, a atividade
bancária, o cartão de crédito, o comércio eletrônico, a guarda e o transporte de
valores, o serviço de segurança e escolta, a construção civil, os cadastros de
proteção ao crédito, o mercado de capitais, o empréstimo de veículos a terceiros, a
fabricação e o fornecimento de cigarros, a responsabilidade do empregador por
acidente com o empregado, as empresas de comunicação, as instalações nucleares
e radioativas, as práticas desportivas e outras atividades que podem dar ensejo à
responsabilização civil objetiva genérica fundada na atividade de risco. Situações
que podem ou não afastar o dever indenizatório nesta modalidade de
responsabilidade civil, como o estado de necessidade, a legítima defesa, o exercício
regular de um direito, o caso fortuito ou de força maior, o fato de terceiro, a culpa
exclusiva da vítima, a tomada de precauções para evitar o acidente e a prática de
conduta lícita por parte do agente causador do dano.

Palavras-chave: Responsabilidade. Civil. Objetiva. Genérica. Atividade. Risco.


SUMMARY

Wendell Lopes Barbosa de Souza – The generic objective civilian responsibility


founded on risk activities (general theory and practical hypothesis).

Where the fee is there should be the load. Who gains the bonus should support the
load. Finding the deficiency in the theory subjected to verification that the necessity
from the demonstration of guilt affected by the harmful agent of the law would leave
the victim with no reimbursement in most cases. The appearance of the objective
theory resulted from applying the risk doctrine. Emergence of various legal norms
have input the duty of indemnification for determine concrete situations, dealing with
the foreseen or closed objective civil responsibility. Opening of this reimbursement
system, expecting that the precarious activity for the right of others; triggers for the
criminal an obligation to repair the damage without the questioning of his culpability,
dealing with the generic objective civilian responsibility – second part of the only
paragraph in article 927 of the Brazilian Civil Code, Typical hypothesis of the generic
objective responsibility theory through risk activity, such as the manufacturing, the
stocking, the handling, and the transportation of flammable and explosive
substances. Hypothesis for the questioning, such as driving, bank activities, the credit
card, the electronic commerce, the protection and transport of valuables, the security
and escort services, the civil construction, the entries of credit protection, the capital
market, the loan of vehicles to third parties, the cigarette fabrication and distribution,
the employer’s responsibility with employee’s accidents, the communication
businesses, the nuclear and radioactive installations, sports practices and other
activities that could give opportunity to the generic objective responsibility based on
the risk activity. Situations that may or may not distance indemnification duty in this
type of civil responsibility, such as the necessity state, the self-defense, the daily
practice of a right, sudden cases or unpredictable events, a third person involvement,
the exclusive guilt of the victim, the precautions taken to avoid the accident and the
legal activity of the harmful agent.

Key words: Responsibility. Civil. Objective. Generic. Activity. Risk.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................... 11

1. A CLÁUSULA GERAL DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA PELA


ATIVIDADE DE RISCO……………....………………………………………... 16

2. ESBOÇO DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE


CIVIL .......................................................................................................... 22

2.1 IMPORTÂNCIA E VEEMÊNCIA DA EVOLUÇÃO DO INSTITUTO ............ 22


2.2 A VINGANÇA PELA VINGANÇA NOS PRIMÓRDIOS DA
HUMANIDADE............................................................................................ 24
2.3 O REGRAMENTO ESTATAL DA VINGANÇA............................................ 24
2.4 A COMPOSIÇÃO VOLUNTÁRIA A CRITÉRIO DA VÍTIMA, AINDA COM
FULCRO NA VINGANÇA ........................................................................... 25
2.5 A COMPOSIÇÃO TARIFADA DA LEI DAS XII TÁBUAS, ABOLINDO-SE A
VINGANÇA................................................................................................. 26
2.6 O PERÍODO ROMANO – DELITOS E AÇÕES PRIVADAS E PÚBLICAS,
DISTINGUINDO-SE INDENIZAÇÃO CIVIL E PENA CRIMINAL ................ 27
2.7 A LEI AQUÍLIA – RESQUÍCIO DA CULPA E DA GENERALIZAÇÃO DO
PRINCÍPIO INDENIZATÓRIO .................................................................... 28
2.8 DA RESPONSABILIDADE PESSOAL À PATRIMONIAL ........................... 31
2.9 O CÓDIGO DE NAPOLEÃO – A CONSAGRAÇÃO DA CULPA ................ 31
2.10 A CONSTATAÇÃO DA DEFICIÊNCIA DA TEORIA SUBJETIVA............... 34
2.11 A BUSCA POR SOLUÇÕES ALTERNATIVAS AO PROBLEMA REVELADO
PELA DIFICULDADE NA PROVA DA CULPA ........................................... 36
2.12 BREVE NOTÍCIA ACERCA DOS NOVOS RUMOS DA
RESPONSABILIDADE CIVIL ..................................................................... 38

3. A RESPONSABILIDADE OBJETIVA FUNDADA NA DOUTRINA DO


RISCO ........................................................................................................ 41

3.1 LOCAL E MOMENTO DE SEU SURGIMENTO ......................................... 42


3.2 O TRABALHO DE RAYMOND SALLEILES E LOUIS JOSSERAND.......... 46
3.3 A DOUTRINA DO RISCO NO BRASIL....................................................... 48
3.4 DA SUBDIVISÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA EM TIPIFICADA
OU FECHADA E GENÉRICA OU ABERTA ............................................... 51
3.5 DA CONVIVÊNCIA HARMÔNICA ENTRE AS TEORIAS SUBJETIVA E
OBJETIVA .................................................................................................. 55

4. A RESPONSABILIDADE SEM CULPA – CAUSAS E TEORIAS.............. 58

5. CRÍTICAS E DEFESA DA TEORIA DO RISCO, NA VISÃO DE ALVINO


LIMA........................................................................................................... 63

6. DISTINÇÃO ENTRE O “RISCO” PROPULSOR DA RESPONSABILIDADE


OBJETIVA E O “RISCO” MENCIONADO NO PARÁGRAFO ÚNICO DO
ART. 927 DO CÓDIGO CIVIL .................................................................... 68

7. JUSTIFICATIVA PARA A RESPONSABILIDADE CIVIL FUNDADA NA


ATIVIDADE DE RISCO .............................................................................. 70

8. ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA


GENÉRICA PELO EXERCÍCIO DE ATIVIDADE DE RISCO..................... 77

9. POSICIONAMENTOS CONTRÁRIOS E FAVORÁVEIS À ABERTURA DA


RESPONSABILIDADE OBJETIVA............................................................ 82

10. DIREITO ESTRANGEIRO.......................................................................... 87

10.1 O DIREITO MEXICANO E O DEVER INDENIZATÓRIO EM VIRTUDE DOS


MEIOS PELOS QUAIS A ATIVIDADE É DESENVOLVIDA........................ 87
10.2 OS CÓDIGOS DE PORTUGAL E DA ITÁLIA E A POSSIBILIDADE DE O
AGENTE DEMONSTRAR QUE SE ACAUTELOU A EVITAR O DANO..... 88
10.3 O DIREITO DA FRANÇA E DA ALEMANHA E A AUSÊNCIA DE CLÁUSULA
GENÉRICA DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.......................... 96
10.4 O RADICAL SISTEMA SOVIÉTICO DE RESPONSABILIDADE OBJETIVA
COM VISTAS À PROTEÇÃO DO PROLETARIADO.................................. 97
10.5 A COMMOM LAW DA INGLATERRA E DOS ESTADOS UNIDOS............. 98
10.6 AS LEGISLAÇÕES DE ALGUNS PAÍSES VIZINHOS DA AMÉRICA DO
SUL.............................................................................................................. 99
11. RISCO-“PROVEITO” OU RISCO-“CRIADO”?......................................... 102

12. A DISPOSIÇÃO LEGAL QUE CONSAGROU A RESPONSABILIDADE


CIVIL OBJETIVA PELA ATIVIDADE DE RISCO...................................... 106

12.1 EXAME DA EXPRESSÃO: QUANDO A ATIVIDADE NORMALMENTE


DESENVOLVIDA PELO AUTOR DO DANO.............................................. 107
12.2 EXAME DA EXPRESSÃO: IMPLICAR, POR SUA NATUREZA................ 116
12.3 EXAME DA EXPRESSÃO: RISCO PARA OS DIREITOS DE OUTREM... 119

13. CONCEITO DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA GENÉRICA


FUNDADA NA ATIVIDADE DE RISCO..................................................... 123

14. SITUAÇÕES QUE PODEM ADMITIR A APLICAÇÃO DA


RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA GENÉRICA PELA ATIVIDADE
DE RISCO.................................................................................................. 126

14.1 A FABRICAÇÃO, A GUARDA, O MANUSEIO E O TRANSPORTE DE


SUBSTÂNCIAS INFLAMÁVEIS E EXPLOSIVAS....................................... 128
14.2 RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMOBILÍSTICA − ACIDENTES
CAUSADOS POR VEÍCULOS “COMUNS”................................................ 130
14.3 O TRANSPORTE DE CARGAS PESADAS............................................... 138
14.4 A ATIVIDADE BANCÁRIA.......................................................................... 141
14.4.1 Responsabilidade pelo Pagamento de Cheque Falso................................ 141
14.4.2 Responsabilidade pela Cobrança Judicial ou Protesto de Título
Quitado....................................................................................................... 144
14.4.3 Responsabilidade pelos Saques Indevidos em Caixas Eletrônicos........... 146
14.4.4 A “Negativação” do Nome de Alguém em Virtude da Abertura de Conta por
Estelionatário.............................................................................................. 148
14.4.5 Indenização Pedida pelo Terceiro que Recebeu Cheque Falso................ 150
14.5 O CARTÃO DE CRÉDITO.......................................................................... 150
14.6 OS CONTRATOS ELETRÔNICOS............................................................ 153
14.7 A GUARDA E O TRANSPORTE DE VALORES........................................ 154
14.8 O SERVIÇO DE SEGURANÇA E ESCOLTA............................................. 156
14.9 A CONSTRUÇÃO CIVIL............................................................................. 157
14.10 OS CADASTROS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO..................................... 158
14.11 O MERCADO DE CAPITAIS...................................................................... 174
14.12 O EMPRÉSTIMO DE VEÍCULOS A TERCEIROS..................................... 177
14.13 A FABRICAÇÃO E O FORNECIMENTO DE CIGARROS......................... 180
14.14 A RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR POR ACIDENTE COM O
EMPREGADO............................................................................................ 182
14.15 A RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS DE COMUNICAÇÃO............ 183
14.16 AS INSTALAÇÕES NUCLEARES E RADIOATIVAS................................. 184
14.17 AS PRÁTICAS DESPORTIVAS................................................................. 186
14.18 OUTRAS ATIVIDADES.............................................................................. 188

15. EXAME DAS HIPÓTESES QUE PODEM OU NÃO EXONERAR DA


RESPONSABILIDADE O AGENTE QUE EXERCEU A ATIVIDADE
ARRISCADA.............................................................................................. 192

15.1 ESTADO DE NECESSIDADE, LEGÍTIMA DEFESA E EXERCÍCIO


REGULAR DE UM DIREITO...................................................................... 192
15.2 CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR..................................................... 195
15.3 O FATO DE TERCEIRO............................................................................. 199
15.4 CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA................................................................ 205
15.5 A TOMADA DE PRECAUÇÕES PARA EVITAR O ACIDENTE................. 209
15.6 A PRÁTICA DE CONDUTA LÍCITA............................................................ 211

CONCLUSÃO............................................................................................. 214

BIBLIOGRAFIA.......................................................................................... 220
11

INTRODUÇÃO

Do latim: ubi emolumentum, ibi onus; para o português: onde está o emolumento
deve estar o ônus; resultou no brocardo: quem aufere o bônus deve suportar o
ônus.

Esta a ideia central da responsabilidade civil objetiva genérica fundada na atividade


de risco, objeto deste estudo, constatando-se, hoje, com apoio na legislação, na
jurisprudência e na doutrina, com tranquilidade, a tendência de não se deixar
irressarcida a vítima de atos danosos, ainda que revestidos de licitude, respondendo
civilmente o agente pelo prejuízo causado em virtude de sua conduta arriscada para
determinados direitos alheios.

Realmente, a busca pela reposição da vítima no estado em que se encontrava antes


do infortúnio, tornando-a indene, pode ser claramente notada nos ordenamentos
jurídicos modernos e na produção jurisprudencial e doutrinária de todo o mundo.

O surgimento da responsabilidade objetiva genérica pelo desenvolvimento de


atividade arriscada se apresenta como um marco para a efetiva tutela do direito
indenizatório das vítimas de condutas perigosas praticadas no seio da sociedade,
vindo a lume por obra da nova disposição legal positivada na segunda parte do
parágrafo único do artigo 927 do Código Civil de 2002, por meio de uma cláusula
geral, que terá sua finalidade exposta logo no primeiro capítulo desta dissertação.

Até o surgimento, todavia, desta espécie de responsabilidade objetiva, percorreu-se


um longo caminho, que, no segundo capítulo deste trabalho, dará ensejo à análise
da evolução histórica da responsabilidade civil, ressaltando-se sua importância e
veemência, partindo-se dos primórdios da humanidade, quando vigorava a vingança
pela vingança, sem qualquer cogitação de culpa. Daí se chega ao período romano,
desde o regramento estatal da vingança, depois a reparação a critério da vítima
ainda com fundamento na vindita, passando-se pela composição tarifada da Lei das
XII Tábuas, após pelos primeiros elementos de distinção entre sanção civil e
criminal, chegando-se, finalmente, à ascensão da Lei Aquília, primeiro diploma civil a
conter resquícios da noção de culpa e de um princípio geral de reparação, batizando
a atual responsabilidade civil extracontratual de aquiliana.
12

Como se verá, a responsabilidade civil, antes tendo como objeto da prestação o


próprio corpo do devedor, passou a incidir sobre seu patrimônio.

Já depois da Idade Média, com o fim dos Estados Absolutistas, o Código


Napoleônico veio a lume, importando, sobretudo, o estudo de seu artigo 1.382, que
consolidou a ideia de culpa como pressuposto fundamental do dever indenizatório,
espraiando sua força por todos os diplomas civis ocidentais.

Com a Revolução Industrial iniciada na Inglaterra, no fim do século XVIII e início do


século XIX, caracterizada pela passagem da manufatura à indústria mecânica, o
chamado maquinismo constituiu-se numa verdadeira ameaça à integridade física do
operariado, subsistindo tal situação por longos anos, até o momento em que se
constatou a dificuldade da vítima na comprovação da culpa pelos acidentes de
trabalho. Então, no final do século XIX e início do século XX, vários processos
técnico-jurídicos foram implementados na tentativa de conferir adequada guarida às
novas vítimas do maquinismo gerado pela industrialização, como a facilitação da
prova da culpa pelos tribunais, a admissão da teoria do abuso de direito, o
estabelecimento de presunções de culpa e a admissão de um maior número de
casos de responsabilidade contratual.

Não suficientes, todavia, tais métodos, passou-se à cogitação da responsabilização


do agente causador do dano sem necessidade da comprovação de sua culpa
efetiva, pela mera constatação de que teria de arcar com os prejuízos decorrentes
de sua atividade em virtude dos riscos que ela propiciava aos direitos alheios,
surgindo o que se chamou de doutrina do risco, com suas variantes: o risco-proveito,
o risco-criado, o risco-administrativo, o risco-integral, o risco-profissional, o risco-
benefício e o risco-excepcional.

A mencionada doutrina do risco se constituiu no fator de propulsão da


responsabilidade objetiva (sem culpa) no final do século XIX e início do século XX,
encontrando na doutrina e jurisprudência francesas seu campo mais fértil de
desenvolvimento, notadamente pelos trabalhos de Raymond Salleiles e Louis
Josserand no âmbito doutrinário, e da Corte de Cassação de Paris no âmbito
jurisprudencial. O resultado foi a positivação jurídica da doutrina do risco, com
13

previsão da responsabilidade objetiva por todo o mundo no decorrer do século XX,


em vários campos de atuação da humanidade.

No direito brasileiro, o tema foi abordado com lucidez e primazia inicialmente por
Alvino Lima e depois por Aguiar Dias, em meados do século passado, ambos
ferrenhos defensores da doutrina do risco, que se positivou a partir do Decreto nº
2.681, de 7 de dezembro de 1912, regulando a responsabilidade civil das estradas
de ferro, com imposição de dever indenizatório sem culpa a essas entidades por
todos os danos que a exploração de suas linhas causar aos proprietários marginais
(art. 26).

A partir daí, o legislador nacional, encantado com a novel teoria do risco, passou a
formular diversos dispositivos legais esparsos com previsões de responsabilidade
sem culpa, que serão examinados em momento oportuno, chegando, finalmente, à
instituição da responsabilização civil objetiva genérica em virtude da atividade
arriscada desenvolvida pelo autor do dano, já no século XXI, positivada na segunda
parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002, núcleo deste estudo
dissertativo.

Ao longo deste trabalho, pretende-se constatar que a instituição da responsabilidade


objetiva genérica pela atividade de risco representou uma abertura no sistema
indenizatório até então vigente, que se mostrava fechado.

A convivência harmônica entre as responsabilidades subjetiva e objetiva será


atestada pela totalidade da doutrina civil nacional e internacional, concluindo-se pela
impossibilidade da substituição absoluta de uma pela outra, cada qual guardando e
oferecendo suas virtudes para o sistema de reparação civil.

Em linhas gerais, a dificuldade da vítima na comprovação da culpa e a atividade


criadora de risco desencadeada pelo maquinismo da Revolução Industrial serão
apontadas como os dois grandes motivos para que se propugnasse pela diminuição
do campo de atuação da responsabilidade subjetiva, tudo visando a mais adequada
distribuição de justiça.

Alvino Lima apresentará as críticas e os críticos, sobretudo os irmãos franceses


Mazeaud e Mazeaud, com relação à doutrina do risco e à responsabilidade objetiva,
14

rebatendo-as uma a uma, tudo levando a crer que o jurista nacional que iniciou sua
atividade jurídica na provinciana cidade de Casa Branca, no interior de São Paulo, é
realmente o mestre da matéria no Brasil.

A seguir, será feita uma distinção meramente didática entre o “risco” que
impulsionou a teoria objetiva no fim do século XIX e início do século XX, este
considerado como um perigo inerente à atuação humana em determinados setores,
e o “risco” encarado como uma fórmula genérica de responsabilidade civil positivada
na legislação brasileira no início do século XXI, tema que, conquanto obscuro nesse
momento introdutório, será explicitado no momento oportuno.

Serão trazidas algumas das vertentes doutrinárias que se propuseram a justificar a


responsabilidade civil objetiva genérica pelo risco da atividade como fórmula posta
na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, assim como será
examinado em que bases positivas, constitucionais e legais, ela se assenta,
verificando-se, a seguir, qual o seu âmbito de atuação frente a temas como a
responsabilidade subjetiva, a responsabilidade objetiva prevista em dispositivos
legais esparsos e a responsabilidade contratual.

Alguns eminentes juristas não se contentaram com a abertura da responsabilidade


civil objetiva, enquanto outros aplaudiram a inovação em nome de uma mais eficaz
distribuição de justiça, depositando sua confiança não só na atividade hermenêutica
do juiz de primeira instância, considerado isoladamente, mas no Poder Judiciário
como um todo.

No direito estrangeiro, alguns países também adotaram a responsabilidade civil


objetiva genérica, mas com algumas nuanças em relação à disciplina brasileira,
podendo-se, com o devido estudo das mencionadas legislações internacionais,
concluir se o nosso sistema é mais ou menos protecionista da vítima.

O risco-proveito e o risco-criado, em linhas gerais, foram as teses que pretenderam


influenciar a responsabilização objetiva pela atividade arriscada, sendo que a
tomada de posição sobre a prevalência de um ou de outro irradiará efeitos em
momentos posteriores, mormente quando se decidirá sobre se determinada conduta
pode ou não ser tipificada na segunda parte do parágrafo único do artigo 927 do
Código Civil.
15

A próxima tarefa será, então, dissecar qual o significado da longa expressão que
consagrou a responsabilidade civil objetiva genérica pela teoria do risco, prevista na
segunda parte do artigo 927 do Código Civil de 2002, dividindo-a em três partes: 1ª)
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano; 2ª) implicar, por
sua natureza; 3ª) risco para os direitos de outrem. Examinada cada uma das partes
da citada expressão legal, poder-se-á conceituar a responsabilidade civil objetiva
genérica pela atividade de risco.

Ao depois, será constatado que algumas atividades do dia-a-dia são eminentemente


perigosas, como a fabricação, a guarda, o manuseio e o transporte de explosivos e
de combustíveis, ensejando, sem maiores indagações, a aplicação da
responsabilidade objetiva genérica pela atividade arriscada.

Outras tantas, contudo, se encontram numa zona obscura, não se podendo, sem
que se proceda a um estudo criterioso, afirmar se são influenciadas pela
responsabilidade civil objetiva genérica, como as práticas automobilísticas, o
transporte de cargas pesadas, a atividade bancária em suas mais variadas
vertentes, o serviço oferecido pelas entidades empresariais operadoras de cartão de
crédito, as contratações eletrônicas, a guarda e o transporte de valores, o serviço de
escolta e segurança, a construção civil, os cadastros de proteção ao crédito, as
práticas no mercado de capitais, o empréstimo de veículo a terceiros, a fabricação e
o fornecimento de cigarros, a relação entre o empregador e o empregado, a
atividade das empresas de comunicação, as instalações nucleares e radioativas, as
práticas desportivas, e tantas mais que a imaginação permitir e a doutrina e a
jurisprudência oferecerem para constatação.

Posteriormente, deverá ser verificado se determinadas hipóteses têm ou não o


condão de excluir a responsabilidade daquele que desenvolve atividades arriscadas
para os direitos de outrem, como o estado de necessidade, a legítima defesa, o
exercício regular de um direito, o caso fortuito ou de força maior, o fato de terceiro e
a culpa exclusiva da vítima, até se chegar ao exame sobre se existirá a obrigação de
indenizar mesmo quando o causador do dano tenha tomado as devidas precauções
para que sua atividade não implique prejuízo para os direitos de outrem, além de se
verificar qual é a consequência sobre a licitude da conduta arriscada, concluindo-se,
após, o presente estudo.
16

1. A CLÁUSULA GERAL DE RESPONSABILIDADE CIVIL


OBJETIVA PELA ATIVIDADE DE RISCO

Para aquilo que se pensa ser um bom início de trabalho acerca de tão palpitante
tema jurídico e social, salutar se constatar, com Giselda Hironaka, que poucos
institutos jurídicos evoluem mais do que a responsabilidade civil, sendo que

[...] sua importância em face do direito é agigantada e impressionante em


decorrência dessa evolução, dessa mutabilidade constante, dessa
movimentação eterna no sentido de ser alcançado seu desiderato maior,
que é exatamente o pronto-atendimento às vítimas de danos, pela
1
atribuição, a alguém, do dever de indenizá-los.

Nesse sentido, a mesma Giselda Hironaka afirma que “o momento atual dessa trilha
evolutiva, isto é, a realidade dos dias contemporâneos, detecta uma preocupação no
sentido de ser garantido o direito de alguém de não mais ser vítima de danos”.2

Segundo ainda a mesma jurista nacional, com relação à responsabilidade civil, “a


crise está indiscutivelmente evidente” e “a inadequação e a insuficiência dos códigos
estão certamente expostas”.3 Nesse quadro, para ela, “é tempo de reformar, de
revolucionar, de superar limites, repensar e reescrever o sistema, enfim”.4

Por isso, dentre os muitos temas inovadores do Código Civil de 2002, mereceu
estudo a novel imposição do dever indenizatório lastreado na atividade de risco
desenvolvida pelo agente causador do dano, denominada responsabilidade civil
objetiva genérica - segunda parte do parágrafo único do artigo 927.

Diga-se, no entanto, que algumas ideias subsistem inalteradas mesmo após a


entrada em vigor do novel diploma civil, permanecendo, em regra, como
pressupostos de qualquer modalidade de responsabilidade civil (subjetiva ou
objetiva), a conduta, o dano e o nexo causal.

Como sabido, a responsabilidade civil se subdivide em duas modalidades: a


subjetiva (caput do art. 927 do Código Civil) e a objetiva (primeira parte do parágrafo
único do art. 927 do Código Civil). A diferença básica entre as duas reside no fato de

1
Responsabilidade pressuposta. São Paulo: Del Rey, 2005, p. 3.
2
Ibidem, p. 2.
3
Ibidem, p. 3.
4
Ibidem, p. 3.
17

a subjetiva pressupor a culpa do agente, além dos elementos acima indicados


(conduta, dano e nexo causal), enquanto a objetiva prescinde da culpa, mas requer
a imposição legal do dever indenizatório.

O que se vê é o seguinte quadro: para que se dê a responsabilidade civil subjetiva,


exige-se, em regra, a presença da conduta, do dano, do nexo causal e da culpa do
agente (caput do art. 927 do Código Civil); para que se verifique a responsabilidade
objetiva, exige-se a presença da conduta, do dano e do nexo causal, dispensando-
se a culpa, mas exigindo-se a subsunção do fato concreto a um dispositivo legal que
imponha ao agente o dever de indenizar a vítima (primeira parte do parágrafo único
do art. 927 do Código Civil).

Como será examinado no decorrer desta dissertação, antes mesmo da entrada em


vigor do Código Civil de 2002, o ordenamento jurídico brasileiro já previa diversas
situações em que se impunha ao agente o dever de indenizar independentemente
de sua culpa, com fundamento na responsabilidade objetiva, como, em dois
exemplos, a responsabilidade do fabricante pela reparação dos danos causados ao
consumidor decorrentes de defeito do produto (art. 12 da Lei nº 8.078/90) e a
responsabilidade do Estado pelos danos causados por seus agentes (§ 6º do art. 37
da Constituição Federal).

O que se via, então, até a entrada em vigor do Código Civil de 2002, eram duas
situações: ou se demonstrava a culpa do agente para que emergisse seu dever de
indenizar a vítima, no que se estava falando em responsabilidade subjetiva; ou o
caso concreto se subsumia a um dispositivo legal que impunha o dever de indenizar
sem que se perquirisse sobre a culpa do agente, numa hipótese, então, de
responsabilidade objetiva.

Melhor que se repita para que claramente se possa explicar a inovação que
representou a responsabilidade fundada na atividade de risco desenvolvida pelo
agente causador do dano: se a vítima não encontrasse um dispositivo legal em que
pudesse ser tipificada sua situação concreta, não havia como se falar em
responsabilidade objetiva, restando a ela o ônus de demonstrar a culpa do agente,
no que já se estaria falando em responsabilidade subjetiva.
18

Não havia, no Código Civil de 1916, ao lado da responsabilidade fundada na culpa


(caput do artigo 159), uma previsão expressa permissiva da responsabilidade
objetiva. No Código Beviláqua havia sim previsão da responsabilidade objetiva, mas
de forma particularizada, para determinados e específicos casos, como, por
exemplo, em seu artigo 1.529, impondo ao habitante de uma casa o dever
indenizatório pelo prejuízo ocasionado por um objeto que dela houvesse caído.

Assim, a responsabilidade objetiva se operava unicamente por força dos vários


artigos de lei espalhados pelo ordenamento jurídico que previam a obrigação de
indenizar sem que fosse necessário perquirir sobre a culpa do agente, mas sempre
visando a certos e determinados acontecimentos já devidamente previstos na
legislação.

O que fez o Código Civil de 2002 foi prever expressamente, ao lado da


responsabilidade subjetiva (caput do artigo 927), a responsabilidade objetiva,
afirmando aquilo que já se praticava desde o início do século passado: haverá
obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados
em lei (primeira parte do parágrafo único do artigo 927).

Até aí, pouca novidade, pois isso já acontecia antes mesmo da entrada em vigor do
Código Civil de 2002: ao lado da responsabilidade subjetiva (caput do artigo 159 do
Código Civil de 1916), havia os casos previstos na legislação extravagante de
responsabilidade objetiva, como se exemplificou com o artigo 12, caput, da Lei nº
8.078/90, e com o § 6º do art. 37 da Constituição Federal.

Então, nesse panorama geral sobre a responsabilidade civil, as novidades do


Código Civil de 2002 foram duas, a primeira de menor importância e a segunda tão
relevante que deu origem a esse estudo: pela primeira e menos importante
inovação, foi trazida uma cláusula permissiva da responsabilidade objetiva fundada
em hipóteses legais esparsas no ordenamento jurídico (primeira parte do parágrafo
único do artigo 927); pela segunda e muito relevante inovação, foi criada mais uma
dessas hipóteses de responsabilidade objetiva, na segunda parte do mesmo
parágrafo único do artigo 927, lastreada no risco da atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano.
19

O raciocínio continua o mesmo: ou a responsabilidade civil se sustenta na culpa,


quando se fala da teoria subjetiva; ou a responsabilidade civil se sustenta em um
dispositivo legal que impõe o dever de indenizar independentemente de culpa,
quando se trata da teoria objetiva.

Dessa forma, a vítima terá dois caminhos a percorrer na busca pela indenização
contra o agente causador do dano. O primeiro deles será comprovar a conduta, o
dano, o nexo causal e a culpa do agente pelo infortúnio, tratando-se de
responsabilidade subjetiva. O segundo caminho será encontrar um dispositivo legal
que imponha o dever indenizatório independentemente da culpa do agente,
bastando-lhe a prova da conduta, do dano e do nexo causal, tratando-se de hipótese
de responsabilidade objetiva.

Ocorre que para percorrer esse segundo caminho da responsabilidade objetiva,


duas novas vias se abrem para a vítima. Pela primeira via, deve procurar por algum
dispositivo legal esparso que fundamente o dever indenizatório independente de
culpa, passando pelo Código Civil e por todos os diversos diplomas legais
extravagantes existentes no ordenamento jurídico, como o Código de Defesa do
Consumidor, a Lei do Meio Ambiente, a Lei de Acidente do Trabalho, e a própria
Constituição Federal, além de outros, sendo que, encontrando alguma norma à qual
sua situação se subsuma, terá lugar a responsabilidade civil pela teoria objetiva. Por
uma segunda via, a vítima pode demonstrar que a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implica, por sua natureza, risco para os direitos de
outrem, oportunidade em que o agente suportará a indenização sem que haja
necessidade de demonstração de sua culpa pelo prejuízo, também se podendo falar
em responsabilidade objetiva.

Conclui-se, portanto, que o Código Civil de 2002, como novidade no tema, apenas
criou mais uma hipótese de responsabilidade sem culpa, tratando-se, assim, de mais
uma espécie de responsabilidade objetiva, quando: a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implique, por sua natureza, risco para os direitos de
outrem (segunda parte do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil).

Dessa forma, se a vítima não conseguir demonstrar a culpa do agente e tiver


passado pelos citados diplomas legais esparsos (Código de Defesa do Consumidor,
20

Lei do Meio Ambiente, Lei de Acidente do Trabalho, Constituição Federal etc.), não
encontrando qualquer dispositivo ao qual se subsuma seu caso concreto, ainda terá
uma última oportunidade, podendo recorrer à segunda parte do parágrafo único do
artigo 927 do Código Civil de 2002, desde que demonstre que a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implique, por sua natureza, risco para
os direitos de outrem. Demonstrados todos esses elementos, emergirá a
responsabilidade do causador do dano independentemente de culpa, prova de que
se está falando de espécie de responsabilidade objetiva, gênero ao qual pertence a
responsabilidade fundada no risco da atividade.

Note-se que, na esteira do que fez o Código Civil de 2002 em várias outras
passagens, a nova modalidade de responsabilização objetiva foi colocada como
mais um instituto jurídico que impõe extraordinária atividade hermenêutica ao juiz,
porquanto dele será exigida a interpretação da cláusula geral constante da segunda
parte do parágrafo único do artigo 927. Em outras palavras, caberá ao julgador
aclarar o que pretendeu o legislador ao impor o dever de indenizar
independentemente de culpa quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Retome-se, apenas, que continua sendo necessária a presença daqueles


pressupostos genéricos aos quais se fez referência no início desse capítulo, não se
podendo abrir mão, em regra, da demonstração da conduta, do dano e do nexo
causal, para que possa emergir a responsabilidade civil objetiva pela atividade de
risco.

Karl Larenz bem resumiu o conteúdo deste capítulo de maneira simples e clara5.
Afirmou que o direito civil conectou, em princípio, a obrigação de ressarcimento de
danos somente a uma conduta culposa. Assim, disse, quem se comportava de um
modo não desaprovado pelo ordenamento jurídico quedava-se liberado do dever de
ressarcimento por danos causados a outrem. Afirmou, a seguir, que esta regulação
se demonstrou demasiadamente limitada em vista dos riscos especiais de danos,
quase inevitavelmente ligados ao funcionamento dos modernos meios de transporte
e de determinadas instalações elétricas ou ao emprego de determinados materiais

5
Derecho Civil, Parte General, Tradução de Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de
Derecho Privado, Editoriales de Derecho Reunidas, 1958, t. I, p. 77.
21

extremamente perigosos. Por isso, aduziu que, quando se apresenta tal risco de
danos, não é possível reconhecer como justo que deva suportar o prejuízo única e
definitivamente quem foi afetado casualmente pelo fato danoso. Para ele, se
mostrou mais justo, socialmente, que fosse transferido o dano, total ou parcialmente,
a quem houvesse criado o foco de perigo ou a quem dele tivesse tirado proveito.
Segundo ele, então, esta é a idéia central da moderna responsabilidade por riscos.

Assim, como o presente estudo visa à responsabilidade civil objetiva pela atividade
de risco, a meta a ser alcançada é o exame daquilo que a faz diferente das outras
espécies de responsabilidade objetiva previstas na legislação, podendo-se dizer que
esse elemento discriminante se verifica quando: a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implique, por sua natureza, risco para os direitos de
outrem (segunda parte do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil).
22

2. ESBOÇO DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA


RESPONSABILIDADE CIVIL

2.1 IMPORTÂNCIA E A VEEMÊNCIA DA EVOLUÇÃO DO INSTITUTO

Como dito, necessário que se trate da evolução histórica do tema para que sejam
colhidos importantes subsídios para as conclusões a serem formuladas
posteriormente, não sendo simples a tarefa, dado que o instituto passou por diversas
modificações ao longo de milhares de anos, podendo-se dizer mesmo que durante
toda a existência humana, eis que a responsabilidade civil é essencialmente
dinâmica, tendente a adaptar-se, transformar-se na mesma proporção em que se
desenvolve a civilização, devendo ser dotada de flexibilidade suficiente para
oferecer, em qualquer época, um meio ou processo pelo qual, em face de nova
técnica, de novas conquistas, de novos gêneros de atividade, assegure a finalidade
de restabelecer o equilíbrio desfeito por ocasião do dano, considerado, em cada
tempo, em função das condições sociais então vigentes.6

Necessário mencionar sobre a interdisciplinaridade do instituto da responsabilidade


civil, traduzindo-se num fenômeno que ultrapassa as raias do direito, por força do
verdadeiro equilíbrio social que a orienta, pois se constitui na consequência
resultante do procedimento de todos os homens.7

Por isso, afirma Giselda Hironaka que:

Quando se examina o conceito jurídico da responsabilidade civil, parece


restar claro que ele não é, justamente, dado apenas pelo direito positivo ou
pelos doutrinadores da matéria. Será sempre um conceito a repercutir no
campo da ética, da política, das ciências humanas e no vulgar; mas
principalmente será derivado dessa repercussão: mais do que causa de
discussões, responsabilidade civil, como conceito ou noção, é uma criação
coletiva a muitas formas distintas do saber. Desde que o formalismo jurídico
perdeu sua força a partir de meados do século XX, a responsabilidade civil
é uma criação que nem de longe pode ser tomada com exclusividade da
teoria jurídica. Caso se pretenda considerar racionalmente o conceito
jurídico de responsabilidade civil, será preciso ir além do jurídico, porque o
jurídico, exclusivamente, não é mais base suficiente para a sua
8
compreensão.

6
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 25.
7
LYRA, Afrânio. Responsabilidade civil. Bahia, 1977, p. 31.
8
Responsabilidade pressuposta, p. 22.
23

Louis Josserand chega mesmo a afirmar que a palavra “evolução” expressa


palidamente o desenvolvimento do instituto, podendo-se falar em verdadeira
“revolução”, porquanto rápida e fulminante a chegada da responsabilidade civil a
novos destinos.9

Destarte, somente uma acurada análise da história da responsabilidade civil permite


uma visão sobre como evoluiu dos tempos em que a culpa sequer era conhecida,
passando por um período em que se apresentou como elemento fundamental, até
sua mitigação, hoje concorrendo em menor escala com a teoria objetiva, da qual é
espécie aquela decorrente da atividade arriscada.

E com certeza ainda não se vislumbram contornos definitivos para o instituto, sendo
um daqueles – senão aquele – que mais se desenvolveu no passo da humanidade,
estando em plena ebulição doutrinária e jurisprudencial, bastando notar que, mesmo
em outros termos de formulação, hodiernamente, houve, sem dúvida, uma volta ao
passado, renunciando-se à ideia de culpa para que surja a responsabilidade civil,
como nos tempos das cavernas, ressalvando-se, contudo, a disciplina jurídica hoje
vigente.

Pode-se ter uma breve noção sobre o quão vertiginosa foi a evolução da
responsabilidade civil ao se constatar que o ministro Orosimbo Nonato fez referência
à moderna teoria da culpa, sendo que hoje, passados poucos 50 anos, já se pode
dizer ultrapassada e concorrendo, cada vez com menos força, com a
responsabilidade objetiva.10

O exame dessa vertiginosa evolução é que terá lugar a seguir, iniciando-se lá pelos
denominados “tempos das cavernas”.

9
Evolução da responsabilidade civil. Tradução de Raul Lima. São Paulo: Revista Forense, n. 456,
p. 548, junho de 1941.
10
Curso de obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 56.
24

2.2 A VINGANÇA PELA VINGANÇA NOS PRIMÓRDIOS DA HUMANIDADE

Nos tempos iniciais da raça humana, o dano não era contemplado pelo direito, não
se cogitava de culpa e o agredido voltava-se diretamente contra o agressor sem
perquirição de qualquer natureza sobre como teria se verificado o infortúnio.

A vida selvagem não dava margem a qualquer formalidade para que a vítima
reagisse contra o agente causador do prejuízo. O dano provocava a reação
imediata, instintiva e brutal do ofendido, dominando, então, a vingança privada,
segundo Carlos Roberto Gonçalves.11

Era a reparação do mal pelo mal, no que se estava falando em pura vingança da
vítima contra o ofensor pelo prejuízo ocasionado, sem que se cogitasse de qualquer
noção sobre culpa ou ressarcimento, “no golpe pelo golpe”, como noticiou Wilson
Melo da Silva, anotando que este foi o “primeiro estágio ou a primeira forma de
desagravo no seio dos homens primitivos”.12

2.3 O REGRAMENTO ESTATAL DA VINGANÇA

Posteriormente, segundo Wilson Melo da Silva, a mesma vingança, antes


desregrada, passou ao domínio jurídico, sendo permitida ou proibida e executada
segundo as condições estabelecidas pela decisão do poder público, consistindo na
pena de talião: olho por olho, dente por dente, sendo buscada unicamente a
imposição de dor para o agente provocador do dano.13

Vale uma pausa para que se discorra sobre a pena de talião, segundo o vocabulário
jurídico De Plácido e Silva:

Do latim talio, taliones, é a designação atribuída à pena que consiste em


aplicar ao delinqüente um dano igual ao que ocasionou. A pena de talião
tem assento na própria Bíblia, conforme se inscreve no Cap. XXI do Êxodo,
versículos 23 a 25: se houver morte, então darás vida por vida. Olho por

11
Responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 56.
12
Responsabilidade sem culpa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 15.
13
Ibidem, p. 15, e GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Tradução de António Manuel
Hespanha e Manuel Macaísta Malheiros. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 751.
25

olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé. Queimadura por
14
queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.

Segundo José Acir Lessa Giordani, já as “legislações mais antigas, como o Código
de Hammurábi (2050 a.C.) e o Código de Manu (século XIII a.C.), prevêem sanções
baseadas na Lei do Talião, estabelecendo que o lesado pudesse causar o mesmo
mal ao agente responsável”.15

Para Giselda Hironaka, o denominado período do talião mostra-se como uma


compreensão da justiça baseada na vingança presente em praticamente todos os
povos do Mundo Antigo, antes do advento da civilização grega.16

E, segundo a mesma ilustre jurista, o Código Hammurabi é talvez o mais antigo


conjunto de leis da humanidade17, enquanto o Código de Mannu foi a primeira
codificação das leis e dos costumes hindus cronologicamente posterior ao Código de
Hammurabi.18

Tinha-se, então, nesse período, o domínio estatal da vingança, decidindo o poder


público quando e como ela teria cabimento, apenas executando-se pelas mãos da
vítima.

2.4 A COMPOSIÇÃO VOLUNTÁRIA A CRITÉRIO DA VÍTIMA, AINDA COM


FULCRO NA VINGANÇA

“A vindita, porém, gera a vindita”, nas palavras de Wilson Melo da Silva, motivo por
que, ficando mais experimentado o homem, acabou por descobrir que seu
sentimento de vingança às vezes também se aplaca pela compensação econômica,
em substituição à dor que, no período anterior, o agente deveria suportar pela
produção do dano.19

14
Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 1360.
15
A responsabilidade civil objetiva genérica - no código civil de 2002. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p. 5.
16
Responsabilidade pressuposta, p. 45.
17
Ibidem, p.46.
18
Ibidem, p. 47.
19
Responsabilidade sem culpa, p. 15.
26

Assim foi que, num estágio posterior, no período da composição voluntária, o


prejuízo dá lugar ao recebimento de vantagens devidas pelo agressor, a critério da
vítima: o ouro pode substituir o sangue.20

A entrega de objetos ou uma soma em dinheiro do agente causador do dano para a


vítima denomina-se poena, não restando qualquer dúvida quanto ao fato de a
reparação ainda ter como lastro a vingança.21

Frise-se: subsiste a vindita como fundamento do ressarcimento, de sorte que ainda


não se cogita de culpa ou de não-culpa, pois quem se vinga a isso não se atém.22

2.5 A COMPOSIÇÃO TARIFADA DA LEI DAS XII TÁBUAS, ABOLINDO-SE A


VINGANÇA

Cronologicamente caminhando, reconhecendo-se o inconveniente da composição a


critério único e exclusivo da vítima, chega-se ao período da composição tarifada,
regrada pelo poder público, nos termos da Lei das XII Tábuas, que fixava, para cada
caso concreto, o valor da pena a ser paga pelo ofensor, representando a reação
contra a vingança privada, que é, assim, substituída e abolida pela composição
obrigatória.23

Nesse sentido, Carlos Roberto Gonçalves cita Wilson Melo da Silva, nos seguintes
termos:
É quando, então, o ofensor paga um tanto ou quanto por membro roto, por
morte de um homem livre ou de um escravo, surgindo, em conseqüência,
as mais esdrúxulas tarifações, antecedentes históricos das nossas tábuas
24
de indenizações preestabelecidas por acidente do trabalho.

20
LOUIS-LUCAS, Volunté et cause, p. 22, 1918, apud SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade
sem culpa, p. 15.
21
LIMA, Alvino. Culpa e risco. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 20.
22
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa, p. 15.
23
LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 21.
24
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Horizonte:
Bernardo Álvares, 1962, p. 40, apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil, p. 4-5.
27

Foi quando se obrigou o desembolso de uns tantos ou quantos sestércios àquele


que viesse a fraturar os ossos a um homem livre, nos termos da Tábua VIII, nº 3, da
Lei das XII Tábuas.25

Nota-se que, nesse período em que as indenizações eram tarifadas, se pagava uma
predeterminada quantia pelo dano ocasionado, com previsão de casos concretos,
sem que existisse um princípio geral de responsabilidade civil.26

2.6 O PERÍODO ROMANO – DELITOS E AÇÕES PRIVADAS E PÚBLICAS,


DISTINGUINDO-SE INDENIZAÇÃO CIVIL E PENA CRIMINAL27

A partir daí, ingressa-se no período romano, momento em que se estabelece a


distinção entre a indenização civil e a pena criminal, por meio, respectivamente, da
separação entre os delitos privados (ofensa contra a pessoa ou contra os bens
desta), com o recolhimento da sanção econômica em favor da vítima, e os delitos
públicos (ofensa contra os interesses do Estado), para os quais a sanção imposta ao
agente causador do dano deveria ser recolhida aos cofres públicos.

Assim, no mesmo instante em que o Estado avocou a função de punir,


desenvolvendo-a com exclusividade e subtraindo da vítima a possibilidade da
vingança pelas próprias mãos, conferiu a esta o direito da ação indenizatória civil,
distinguindo-se, então, mas não ainda de forma absolutamente clara28, os conceitos
de responsabilidade penal (atribuição do Estado) e responsabilidade civil (direito
indenizatório da vítima).

25
ARIAS, José. Manual de derecho romano. Buenos Aires: Editora Kraft, p. 574, apud SILVA,
Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa, p. 16.
26
LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 21.
27
“Na classificação quadripartida adotada por Justiniano, as obrigações provinham do contrato, do
quase-contrato, do delito e do quase-delito. Particularmente a este trabalho, interessam o delito e o
quase-delito, eis que davam origem à obrigação extracontratual, âmbito do presente estudo. Os
delitos se constituíam nos ilícitos praticados dolosamente, enquanto os quase-delitos eram os ilícitos
praticados culposamente”. (ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1980, p. 36-38).
28
“O direito romano, entretanto, jamais chegou a separar a indenização do primitivo conceito de
pena”. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, p. 27).
28

Ressalve-se a seguinte opinião de John Gilissen: “Apesar do desenvolvimento da


responsabilidade individual no domínio penal no final da Idade Média e na época
moderna, a responsabilidade puramente civil não surge senão no século XVIII”.29

Nesse sentido, a opinião de Cunha Gonçalves, citado por Carlos Roberto


Gonçalves, de que, entre os romanos, não havia nenhuma distinção entre
responsabilidade civil e responsabilidade penal. Tudo, inclusive a compensação
pecuniária, não passava de uma pena imposta ao causador do dano. A Lex Aquilia
começou a fazer uma leve distinção: embora a responsabilidade continuasse sendo
penal, a indenização pecuniária passou a ser a única forma de sanção nos casos de
atos lesivos não criminosos.30

Ocorre que este direito indenizatório da vítima ainda se exercia de maneira tarifada,
sob os auspícios da Lei das XII Tábuas, que, repita-se, previa certas e determinadas
situações concretas de atos ilícitos e fixava as respectivas quantias devidas pelo
agente delituoso, sem que houvesse integral e efetiva reparação do dano, por vezes
ficando aquém, por vezes indo além do mal causado.

2.7 A LEI AQUÍLIA – RESQUÍCIO DA CULPA E DA GENERALIZAÇÃO DO


PRINCÍPIO INDENIZATÓRIO

Após esse contexto da tarifação indenizatória, surge, provavelmente no século III


a.C.31, a Lei Aquília32, revelando sua importância o fato de o direito romano ter
construído sob seus ditames a estrutura jurídica da responsabilidade extracontratual,
por produção de sua jurisprudência e dos pretores33, não fosse só a circunstância de
o diploma ter originado a expressão responsabilidade aquiliana, consagrada até os
dias de hoje e provavelmente para sempre.

29
Introdução histórica ao direito, p. 752.
30
GONÇALVES, Cunha. Tratado de direito civil, v. 12, t. 12, p. 456 e 563, apud GONÇALVES,
Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, p. 23.
31
GIORDANI, José Acir Lessa. A responsabilidade civil objetiva genérica - no Código Civil de
2002, p. 6.
32
“Assim batizada por ser resultado de um plebiscito proposto pelo tribuno Aquilio” (PEREIRA, Caio
Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 4.).
33
LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 21.
29

Para Giselda Hironaka, “a concepção da casualidade fundamental do dano é uma


criação, sem dúvida, da lex Aquilia”.34

A Lei Aquília, embora não sistematizando a matéria, já esboçava um princípio de


generalização com relação à reparação civil do dano, regulando o damnum injuria
datum, que constituía seu último capítulo e parte mais importante, tendo
proporcionado que os jurisconsultos do período clássico construíssem a verdadeira
doutrina romana da responsabilidade extracontratual.

Segundo Alvino Lima, “o damnum injuria datum consistia na destruição ou


deterioração da coisa alheia por fato ativo que tivesse atingido a coisa corpore et
corpori, sem direito ou escusa legal (injuria)”.35

A reparação pecuniária pelo dano causado levava em conta o valor da coisa nos 30
dias anteriores ao delito, atendendo ao seu valor venal, também de acordo com
Alvino Lima, completando que:

Concedida, a princípio, somente ao proprietário da coisa lesada, é, mais


tarde, por influência da jurisprudência, concedida aos titulares de direitos
reais e aos possuidores, como a certos detentores, assim como aos
peregrinos; estendera-se também aos casos de ferimentos em homens
livres, quando a lei se referia às coisas e ao escravo, assim como às coisas
36
imóveis.

Percebe-se, claramente, a preocupação em se estabelecer indenizações que


venham a indenizar efetivamente a vítima do evento danoso, ressarcindo-a
integralmente pelo seu prejuízo, recebendo quantia que não fique aquém e não vá
além do seu desfalque patrimonial.

Divergem os juristas sobre se a Lei Aquília teria introduzido a culpa como elemento
indispensável ao direito indenizatório. Parte deles, dentre os quais o eminente
professor Emillio Betti37, da Universidade de Roma, afirmam que o referido diploma
legislativo a previa como pressuposto para a caracterização do delito, enquanto
outra parte a nega por completo no texto do mencionado diploma legal, sustentando
que o dever de indenizar no direito romano repousava apenas na noção de dano,

34
Responsabilidade pressuposta, p. 56.
35
Culpa e risco, p. 22.
36
Culpa e risco, p. 22-23.
37
Teoria geral das obrigações. Traduzido por Francisco José Galvão Bruno. Campinas: Bookseller,
2006, p. 420-421.
30

sendo que a culpa levíssima prevista na Lei Aquília significava apenas o fundamento
de uma sanção penal.

Dúvida não há, contudo, de que o direito romano se desenvolveu no sentido de


introduzir a culpa como elemento essencial à caracterização do ato ilícito. Parte-se,
num primeiro momento, como afirma Alvino Lima38, do período em que o sentimento
de paixão predomina no direito, com a reação violenta perdendo de vista a
culpabilidade, confundindo-se pena e reparação, sem distinção de responsabilidade
penal e civil. Desse ponto, segundo o mesmo Alvino Lima, opera-se a evolução,
ingressando-se num segundo momento, com a introdução do elemento subjetivo da
culpa, distinguindo-se a responsabilidade penal da civil.39

Para Carlos Roberto Gonçalves, concordando com a conclusão de Wilson Melo da


Silva, malgrado a incerteza que ainda persiste sobre se a injúria a que se referia a
Lex Aquilia damnum injuria datum consistia no elemento caracterizador da culpa,
não paira dúvida de que, sob o influxo dos pretores e da jurisprudência, a noção de
culpa acabou por deitar raízes na própria Lei Aquília, o que justificou algumas
passagens famosas, como in Lege Aquilia levissima culpa venit.40

Essa, então, uma das evoluções encontradas, no campo da responsabilidade civil,


nos tempos romanos, isto é, o início da introdução da ideia da culpa41 para a
verificação do ilícito indenizável, noção que ingressou pelos tempos medievais,
chegando até a França do século XIX, e daí para o mundo todo do século XX,
perdurando até hoje.42

Vale a menção de Giselda Hironaka de que, em 81 a.C. – quase dois séculos depois
da lex Aquilia, portanto – surge a lex Cornelia, que, seguindo os parâmetros da sua
predecessora, vem apenas acrescentar novos casos de reparação de danos
corporais ou à honra.43

38
Culpa e risco, p. 26.
39
Culpa e risco, p. 27.
40
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa e socialização do risco. Belo Horizonte:
Bernardo Álvares, 1962, p. 46, apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil, p. 5.
41
“Idéia esta de culpa proveniente do pensamento dos grandes filósofos gregos”. (SILVA, Wilson
Melo da. Responsabilidade sem culpa, p. 17).
42
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 6.
43
Responsabilidade pressuposta, p. 57.
31

2.8 DA RESPONSABILIDADE PESSOAL À PATRIMONIAL

Necessário que se faça uma pausa para se mencionar uma outra fundamental
evolução, também no tema da responsabilidade civil, ainda nos tempos romanos,
verificando-se na forma como se dava o pagamento indenizatório. Nesse sentido,
com relação ao modo de quitação da indenização, a responsabilidade civil, antes de
ser patrimonial, como nos dias de hoje, passou por um período de violência contra o
devedor. Este respondia com seu corpo pela falta do pagamento da dívida, sendo
emblemático um exemplo trazido pelo eminente professor Renan Lotufo:

De inesquecível memória, ainda no Direito Romano das XII Tábuas, o


devedor insolvente podia ser preso e metido a ferros pelo credor, que só
tinha de lhe dar para o sustento uma libra de farinha, e, passados três dias,
se não conseguisse o réu, no mercado, obter meios para a satisfação do
débito, podia ser morto, ou vendido além do Tibre. E, se fossem diversos os
credores, podia ser esquartejado em partes tantas quantas fossem os
44
credores.

Assim, desde que a responsabilidade deixou de ser pessoal, ou seja, de recair sobre
a pessoa (o corpo) do agente, com o advento da Lex Poetelia Papiria, em 326 a.C.,
a reposição da situação ao estado anterior à prática do ato danoso se dá pela
expropriação do patrimônio do devedor, daí sendo retirado o quanto baste para o
ressarcimento do patrimônio da vítima.

2.9 O CÓDIGO DE NAPOLEÃO – A CONSAGRAÇÃO DA CULPA

Retomando o exame da evolução da culpa como elemento de caracterização do


ilícito que gera o dever indenizatório, deixa-se para trás o tempo romano e chega-se
aos tempos modernos, mais precisamente ao Código Civil francês, de 21 de março
de 1804, resultado dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, bandeiras
da Revolução Francesa de 1789. Chamado de Código Napoleão, sem perder de
vista que foi fortemente influenciado pelo direito romano, o diploma civil da França
inspirou a legislação civil moderna de vários países, como a do Canadá, do Japão,
da Suíça, da Irlanda, da Argentina, do México, da Itália, da Venezuela, do Brasil e de
tantos outros países.

44
Código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 3.
32

A influência do direito civil francês, sobretudo no âmbito jurisprudencial e nos temas


afetos à responsabilidade, pode ser percebida pela seguinte passagem de José de
Aguiar Dias:

A evolução do direito francês nos tempos modernos dispensa


considerações mais longas. Basta recordar que se deu através da mais
extraordinária obra de jurisprudência de todos os tempos. A tarefa dos
tribunais franceses, atualizando os textos e criando um direito
rejuvenescido, foi tão impressionante que não há quem a desconheça, na
45
audácia fecunda que é um dos encantos do gênio francês.

O artigo 1.382 do Código Civil francês46 proclamou genericamente a


responsabilidade extracontratual fundada na culpa efetiva e provada, ainda com
base nos ensinamentos e conceitos provindos da teoria da responsabilidade
aquiliana do direito romano, que continuam em pleno vigor para muitos dos povos
cultos de hoje em dia, mas já com muitas modificações.

A diferença, contudo, entre a responsabilidade civil traçada pelo artigo 1.382 do


Código Civil francês e a responsabilidade civil instituída pela Lei Aquília foi notada
pelos irmãos Mazeaud, conforme dá conta José de Aguiar Dias:

A Lei Aquília nunca pôde abranger senão o prejuízo visível, material,


causado aos objetos exteriores, ao passo que daí em diante se protege a
vítima também contra os danos que, sem acarretar depreciação material,
47
dão lugar a perdas, por impedirem ganho legítimo.

O Código Civil alemão, o Burgelich Gesetzbuch (BGB), promulgado em 18 de agosto


de 1896, em vigor desde o primeiro dia do século XX, em seu artigo 823, também
proclama o princípio da responsabilidade por culpa.

No nosso direito, o período precodificado passou pelas seguintes fases: na primeira,


com as Ordenações do Reino, tinha-se presente o direito romano como subsidiário
do direito pátrio, inclusive no que se referia à responsabilidade civil, por força da Lei
da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769; na segunda, o Código Criminal de 1830
esboça a ideia de ressarcimento, com o instituto da satisfação; na terceira, Teixeira
de Freitas opunha-se à ligação havida entre a responsabilidade civil e criminal, na

45
Da responsabilidade civil, p. 30-31.
46
Tout fait quelconque de l’homme qui cause à autrui un dommage oblige celui par la faute de qui il
est arrivé, à le réparer. “Qualquer fato de um homem que cause a outrem um dano obriga aquele pela
falta que cometeu a repará-lo” (Artigo 1.382 do Código Civil francês). [Tradução livre do autor].
47
MAZEUD, Tr. Théorique et pratique de la resp. civ. dél. et contractuelle, 2ª ed. n. 36, p. 48, 1934,
apud DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, p. 30.
33

esteira da Lei de 3 de dezembro de 1841, que derrogou o Código Criminal e o de


Processo, estabelecendo, em consequência, que “a satisfação do dano causado
pelo delito passou para o seu lugar próprio, que é a legislação civil” 48. Já no período
codificado, nosso direito tratou da responsabilidade por culpa (subjetiva) no artigo
159 do Código Civil de 1916 e atualmente vige a combinação dos artigos 186 e 927,
caput, do Código Civil de 2002.

Dessa forma, praticamente em toda a ordenação civil mundial, está consagrada a


idéia de culpa como pressuposto fundamental para que se deflagre a
responsabilidade civil na modalidade subjetiva.

Então, pode-se concluir que, desde os tempos romanos da Lei Aquília, por seu
próprio texto ou por sua interpretação jurisprudencial, passando-se pelo Código
Napoleão, pelo Código Civil alemão e por toda uma gama de diplomas civis de
praticamente todo o mundo civilizado, ao lado dos pressupostos da conduta, do
dano e do nexo causal, ainda há a necessidade de um outro requisito para que se
possa falar em responsabilidade civil subjetiva: a culpa.

Está, assim, sucintamente examinada a história da responsabilidade civil subjetiva,


uma das modalidades de responsabilização patrimonial, baseada na ideia de culpa
do causador do dano. Culpa em sentido amplo, englobando aquela que resulta da
falta de observância de um dever de conduta (stricto sensu, posta nas formas de
negligência e imprudência) e aquela que resulta da consciência e vontade da
realização de um ato danoso (dolo).

Resumindo e concluindo, para que se configure a responsabilidade civil subjetiva,


faz-se necessária, em regra, a presença da conduta, do dano, do nexo causal e da
culpa.49

48
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999,
p. 6-7.
49
“Nem por isso, entretanto, deixou-se de ver na responsabilidade assentada na culpa uma
responsabilidade penal atenuada, na visão dos juristas do século XIX”. (RIPERT, Georges. A regra
moral nas obrigações civis. Tradução de Osório de Oliveira. Campinas: Bookseller, 2000, p. 207).
34

2.10 A CONSTATAÇÃO DA DEFICIÊNCIA DA TEORIA SUBJETIVA

Mesmo com toda sua imponência, conquistada a duras penas e consagrada em


praticamente todos os ordenamentos jurídicos civilizados, à teoria clássica da
responsabilidade subjetiva estava reservado o mais intenso dos ataques doutrinários
que talvez se tenha registrado na evolução de um instituto jurídico, conforme dá
conta Alvino Lima.50

Isso porque o surto do progresso, o desenvolvimento industrial e a multiplicidade dos


danos acabaram por ocasionar o surgimento de novas teorias, tendentes a propiciar
maior proteção às vítimas, que se viam invariavelmente irressarcidas por não
conseguirem comprovar a culpa do agente causador do dano, não lhes socorrendo,
pois, a teoria clássica da responsabilidade subjetiva.51

A decadência da culpa, nesse contexto, foi emblematicamente traduzida por Jhering,


um de seus mais árduos defensores, afirmando que a “história da culpa se resume
em sua abolição constante”.52

O motivo propulsor da evolução da responsabilidade civil, daquilo que se tinha no


final do século XVIII e na primeira metade do século XIX para aquilo que se
conquistou na segunda metade do século XIX e no século XX, foi muito bem
apontado por Louis Josserand, aduzindo que:

De resto, quando ocorria um acidente cuja causa permanecia


desconhecida, eliminava-se a dificuldade atirando a responsabilidade ao
passivo duma divindade; e tal acidente era damnum fatale, era acto of God,
coisa do destino, de Deus ou dos inimigos do Rei; o melhor era então deixar
as coisas em paz, não perturbar a ordem dos acontecimentos por uma força
superior a tudo, quieta non movere, tal parecia ser na matéria a divisa dos
legisladores e dos juízes.
Mas é de um ponto de vista inteiramente diverso que nos colocamos, nós,
homens do século XX, para apreciar as coisas: quando um acidente
sobrevém, em que à vítima nada se pode censurar, por haver
desempenhado um papel passivo e inerte, sentimos instintivamente que lhe
é devida uma reparação; precisamos que ela a obtenha, sem o que nos
sentimos presos de um mal-estar moral, de um sentimento de revolta; vai-se
53
a paz de nossa alma.

50
Culpa e risco, p. 39-40.
51
GONÇALVES, Carlos Roberto, Responsabilidade Civil, p. 6.
52
Colin e Capitant. Curso elemental de derecho civil, v. 3. Madri: Ed. Reus, 1943, p. 810, apud
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa, p. 5.
53
“Conferência pronunciada na Faculdade de Coimbra”. (Evolução da responsabilidade civil. Revista
Forense, n. 456, p. 550).
35

A esse respeito, também Octavio Augusto Machado de Barros notou que:

[...] no final do século XIX, alteraram-se completamente as condições de


vida, quer no aspecto material, quer no aspecto cultural. A máquina e o
progresso técnico haviam transformado a vida social e econômica. Por toda
a parte as críticas se multiplicavam no sentido de evidenciar não só a
insuficiência das leis, como também a incapacidade da própria ordem
constitucional existente, acentuando que a solução dos problemas da vida
contemporânea só seria possível com a substituição do critério individualista
54
pelo critério socialista.

Também o Desembargador Luiz Carlos de Azevedo, Professor Titular de História do


Direito da Universidade de São Paulo, detectou a motivação do surgimento da
doutrina do risco:

Na verdade, no século que se encerrou, o surto contínuo ocorrido na


tecnologia veio exigir respostas às situações emergentes, antes sequer
imaginadas no contexto dos meios locomotores de comunicação. Os jornais
dos anos que precederam ao primeiro conflito mundial descrevem o
assustador recrudescimento de acidentes de trânsito causados pelos
primeiros automóveis, os quais excediam, em números geométricos,
aqueles da época dos tilburis, vitórias e carruagens. Corrida realizada na
França, da qual participara com malogrado êxito um dos irmãos Renault,
levou a que fossem tomadas medidas rigorosas para refrear o mau uso
55
destes perigosos veículos.

Em suma, a Revolução Industrial iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII e


espalhada por toda a Europa fez surgir um maquinismo nunca antes visto,
resultando em milhares de acidentes de trabalho e correlatos, sem que os
ordenamentos jurídicos tivessem voltado os olhos para a dificuldade que as vítimas
dos infortúnios encontravam para provar a culpa efetiva dos verdadeiros causadores
dos danos – os industriais –, negando-se, destarte, as indenizações nos processos
judiciais.

Estava, desse modo, constatada a insuficiência da teoria subjetiva para a solução


dos infortúnios advindos da Revolução Industrial e seu conseguinte maquinismo,
ante a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de a vítima conseguir demonstrar a
culpa do industrial pelo acidente que a lesionou.

54
Responsabilidade pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1956, p. 7-8.
55
Introdução à história do direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 276.
36

2.11 A BUSCA POR SOLUÇÕES ALTERNATIVAS AO PROBLEMA REVELADO


PELA DIFICULDADE NA PROVA DA CULPA

Por conta da constatação da dificuldade encontrada pela vítima para provar a culpa
efetiva do agente causador dos danos surgidos com a nova ordem econômica
baseada na indústria, surgiram vários processos técnicos para atender ao problema,
como a admissão fácil da existência da culpa, a aplicação da teoria do abuso de
direito e da teoria da culpa negativa, o reconhecimento de presunções de culpa e a
transformação da responsabilidade aquiliana em contratual56, tudo visando colocar
as vítimas dos mencionados acidentes em situação processual mais favorável,
reconhecendo-se a vulnerabilidade do proletariado ante os industriais.

Sobre esses processos técnicos de facilitação da tutela do direito indenizatório da


vítima, Carlos Roberto Gonçalves traçou o seguinte quadro cronológico:

1 – Primeiramente, procurou-se proporcionar maior facilidade à prova da


culpa. Os tribunais, em muitos casos, passaram a examinar com
benignidade a prova da culpa produzida pela vítima, extraindo-a de
circunstâncias do fato e de outros elementos favoráveis;
2 – Admissão da teoria do abuso de direito como ato ilícito. A jurisprudência,
interpretando a contrario sensu o art. 160, inciso I, do CC de 1916, passou a
responsabilizar pessoas que abusavam de seu direito, desatendendo à
finalidade social para a qual foi criado, lesando terceiros;
3 – Estabelecimento de casos de presunção de culpa (Súmula 341 do STF;
a lei sobre a responsabilidade das estradas de ferro etc.), casos esses em
que intervém sempre o ônus da prova, melhorando muito a situação da
vítima. Esta não teria de provar a culpa psicológica, subjetiva, do agente,
que seria presumida. Bastaria a prova da relação de causalidade entre o ato
do agente e o dano experimentado. Para livrar-se da presunção de culpa, o
causador da lesão patrimonial ou moral é que teria de produzir prova de
inexistência de culpa ou de caso fortuito.
4 – Admissão de maior número de casos de responsabilidade contratual
(táxi, ônibus, trem etc.), que oferecem vantagem para a vítima no tocante à
prova, visto que esta precisava provar apenas que não chegou incólume ao
57
seu destino, e que houve, pois, inadimplemento contratual.

Válida, contudo, a advertência de Georges Ripert, para quem os mencionados


processos técnicos, criando-se, ao lado de presunções juris et de jure da culpa, a
teoria da culpa na guarda e as culpas pré-existentes e prováveis, constituem
demonstração irrefragável da objetividade do conceito da responsabilidade
extracontratual. Para Ripert, foram os próprios defensores da teoria subjetiva,

56
LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 40.
57
Comentários ao código civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 308-309.
37

verificando a impossibilidade de resolver o problema da reparação dos danos nos


acanhados limites da culpa subjetiva, exigindo a imputabilidade moral, que
materializaram a noção de culpa. E continua afirmando que nesta objetivação se
alongaram de tal forma, no intuito de não se desligarem jamais do elemento básico –
a culpa –, que se perderam em conceitos e teorias, cujos fundamentos são, na
realidade, o risco. Concluindo que as presunções juris et de jure não passam de
casos de responsabilidade decorrentes do próprio fato, pois, senão em teoria, mas
na realidade, tais presunções são meros artifícios, “mentiras jurídicas” criadas com o
intuito apenas de não dar às coisas os seus verdadeiros nomes.58

A par da lealdade ou não de tais processos técnicos à teoria da culpa, mesmo


depois de sua aplicação da maneira como acima transcrita, persistia a dificuldade de
se obter a justa colocação da vítima na situação em que se encontrava antes do
infortúnio. Surgiu, então, na segunda metade do século XIX, a teoria da
responsabilidade objetiva, fundada na doutrina do risco, prescindindo-se do
elemento culpa para impor ao agente o dever de indenizar o lesionado pelo
infortúnio.

Georges Ripert, então, recorda que, no fim do século XIX, procurou-se alargar o
campo da responsabilidade civil, momento em que, sem abandonar a ideia de culpa,
a doutrina formulou os conceitos de risco-profissional, do risco-propriedade e do
risco-criado, manifestando o citado jurista francês sua adesão à expressão “doutrina
do risco”.59

É a passagem do individualismo, marca do Código Napoleônico, segundo o qual só


pode responder pelo dano aquele que tenha concorrido com sua vontade para o
infortúnio, para a socialização do direito, representada na fórmula da
responsabilidade objetiva, muito mais consentânea à solução dos novos problemas
que surgiam à frente do jurista.

No dizer de Cláudio Luiz Bueno de Godoy:

A grande verdade nesse caminhar evolutivo da matéria, ao que se entende,


é que o eixo fundamental do tema e disciplina atinentes à responsabilidade
58
RIPERT, Georges. Le regime démocratique et lê droit civil moderne. Paris: Cornu, 1936, p. 261,
apud LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 327.
59
A regra moral nas obrigações civis. Tradução de Osório de Oliveira. Campinas: Bookseller,
2000, p. 45.
38

civil deslocou-se da figura do ofensor, e de sua sanção, para a pessoa da


60
vítima e para a sua completa reparação.

Arremata Massimo Franzoni afirmando que um dos resultados mais importantes


alcançados pelos estudiosos da responsabilidade civil nos anos 60 foi ter
definitivamente separado a culpa da ilicitude de fato. Aduz que a responsabilidade
civil perdeu, assim, o caráter de punição da ação lesiva, e, na espécie aquiliana, o
fato produtivo do dano ressarcível tem assumido um papel de primeiro plano. E
termina por expressar que, uma vez quebrada a equiparação entre a ilicitude do fato
e a culpa, a conduta assumiu uma fisionomia autônoma e desligada do perfil
subjetivo da vontade do agente, para assumir aquela do simples meio, causa ou
critério de ligação entre o sujeito tido como responsável e um certo evento de dano
ressarcível61.

2.12 BREVE NOTÍCIA ACERCA DOS NOVOS RUMOS DA RESPONSABILIDADE


CIVIL

A responsabilidade objetiva fundada na doutrina do risco daria ensejo, neste exame


do desenrolar da história da responsabilidade civil, à abertura de mais um item
dentro deste mesmo capítulo, mas, constituindo-se no próprio núcleo do tema que
se propôs a estudar nesta dissertação, sua evolução merece exame em capítulo
apartado, como se fará a seguir.

Antes disso, contudo, ficam três anotações sobre os rumos que a responsabilidade
civil tomou a partir da segunda metade do século passado, já que se está tratando
de sua evolução.

A primeira anotação é trazida por Arnoldo Wald, noticiando que a doutrina passou a
ver a responsabilidade como garantia e não mais como dever de indenizar,
concebendo-a independentemente da violação de um dever específico, constituindo

60
A responsabilidade civil pelo risco da atividade: uma cláusula geral no Código Civil de 2002.
Tese (Livre Docência em Direito Civil) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de
São Paulo, São Paulo, p. 44.
61
La Responsabilità Oggetiva. Milano: Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1995, p. 95.
39

o dano a suficiente prova de que o dever de garantia já foi violado62, sendo seguido
na mesmíssima esteira por Orlando Gomes, para quem “o dever de indenizar o dano
produzido sem culpa é antes uma garantia do que propriamente responsabilidade”.63

A segunda anotação se deve ao magistério de Caio Mário da Silva Pereira,


alertando sobre a passagem da responsabilidade civil de individual para social,
desaparecendo a seguir por meio da ideia de socialização dos riscos, cujo
surgimento obedece a três etapas de desenvolvimento: numa primeira fase, ocorre a
extensão da responsabilidade pela prática do seguro, que distribui o risco entre os
segurados, sendo que o seguro é a complementação da responsabilidade; numa
segunda fase, a socialização dos riscos é assegurada diretamente pela seguridade
social, a cargo de organismos coletivos que assumem os riscos sociais, sendo a
responsabilidade o complemento da seguridade social; numa terceira fase, a vítima
só pode reclamar da seguridade social, que não obtém reembolso contra o
responsável, havendo a repartição coletiva dos riscos, com a exclusão da
responsabilidade individual.64 Segundo Sérgio Cavalieri Filho, por esse novo
enfoque, o dano “deixa de ser apenas contra a vítima para ser contra a própria
coletividade, passando a ser um problema da sociedade”65, sendo o seguro uma das
técnicas utilizadas no sentido de se alcançar a socialização dos riscos, como nos
casos do DPVAT e do seguro social do INSS.

Corroborando tal afirmação, Carlos Roberto Gonçalves trás a afirmação de que “o


século XXI, por seu turno, haverá de pôr em prática um sistema verdadeiramente
novo de responsabilidade, que já se manifesta em alguns países, como Nova
Zelândia”, gerando “um sistema de cobertura social de todos os danos, com base
em fundos públicos e sem prejuízo das ações de regresso, em sua modalidade mais
enérgica”.66

A terceira informação para o fecho desta evolução histórica vem corroborar a


primeira, referente à Lei de Responsabilidade do Operador de Instalação Nuclear (nº

62
Curso de direito civil brasileiro: obrigações e contratos. São Paulo: Sugestões Literárias, 1972,
p. 424.
63
Obrigações. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 374.
64
Instituições de direito civil, p. 289.
65
Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 138.
66
ITURRASPE, Responsabilidade Civil, Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 1979, p. 29-30, apud
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, p. 13.
40

6.453/77), que, para Carlos Alberto Bittar, já gerou um novo sistema de


responsabilidade civil, impondo-se o dever indenizatório mais que independente da
culpa, prescindindo-se mesmo da própria conduta e do nexo causal no trato com as
práticas nucleares, nos seguintes termos:

Por fim, em meados do nosso século, a deflagração de atividades nucleares


(exploração do átomo, em especial em escala industrial) veio acrescer mais
fatos peculiares à teoria da responsabilidade, com a ampliação infinita dos
riscos para a sociedade, exigindo, em face do respectivo espectro, a
construção de regime próprio de responsabilidade (entre nós definido na Lei
nº 6.453/77), em que se prescinde da ação do agente em relação ao evento,
67
e também do nexo causal.

E, tendo em vista toda essa evolução, Giselda Hironaka afirma, como que num
resumo de sua obra, que:

O evoluir jurisprudencial, então, cada vez mais, passa a registrar decisões


que se expressam em termos de presunção de responsabilidade e não
presunção de culpa. Como uma espécie de responsabilidade pressuposta.
68
Nem fundada na culpa, nem derivada do risco.

E é por isso que Cláudio Luiz Bueno de Godoy chama a atenção para que ganha
corpo a ideia de coletivização, de socialização da responsabilidade civil, o que,
segundo ele, para muitos autores, inclusive, trata-se de corolário forçoso da lógica
do risco, enunciando o que se convencionou chamar de estado de seguridade,
erigido ao pressuposto de que o dano afeta toda a sociedade e, da mesma maneira,
a sua recomposição, constatando também o autor que “as atividades que criam risco
não raro beneficiam também a coletividade, razão lógica a que, então, se dilua
responsabilidade pelos danos daí advindos”.69

Feito esse breve exame da evolução histórica da responsabilidade civil, cumpre


adentrar no tema específico deste trabalho, iniciando pelo estudo da doutrina do
risco como propulsora da responsabilidade objetiva.

67
Responsabilidade civil nas atividades perigosas. In: Responsabilidade Civil: doutrina e
jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 33.
68
Responsabilidade pressuposta, p. 295-296.
69
A responsabilidade civil pelo risco da atividade: uma cláusula geral no Código Civil de 2002, p.
37.
41

3. A RESPONSABILIDADE OBJETIVA FUNDADA NA DOUTRINA


DO RISCO

Fantásticas as seguintes passagens da obra de Giselda Hironaka para a introdução


deste capítulo:

Se, no passado, antever futuro e prevenir-se dos fenômenos relacionados


ao risco foi tarefa desempenhada exclusivamente pelos deuses integrantes
do Olimpo – como a deusa Fortuna, por exemplo, a quem Júpiter atribuiu o
poder de tomar decisões acerca do destino humano – no presente é
possível tratar a idéia do risco e da incerteza de modo tão racional que a
previsão determinística da álea fica, por assim dizer, praticamente deitada
por terra. Hodiernamente, há uma significativa participação humana na
assunção dos riscos, e, conseqüentemente, haverá de ocorrer assunção,
também, da responsabilização que daí decorre. O cerne da preocupação
dos dias atuais desenvolve-se no sentido de não mais restar irressarcido
nenhum dano ao qual estejamos, todos nós, expostos, em conseqüência da
atividade por outrem desempenhada. Ou, pelo menos, que haja uma
progressiva, mas incessante e sensível diminuição das hipóteses de
irressarcibilidade. Suportar de modo fatalista a conseqüência danosa a que
estamos submetidos, em decorrência do risco que impregna a atividade de
outrem já não é mais o destino intransponível das vítimas, nem sequer a
carga que, a cada um, é designada, sem alternativa. A causa de atribuição
divina afasta-se, cada vez mais, da solução almejada, pois sua imposição
70
fere o sentido do justo e do equânime.

Para ela, Giselda Hironaka, então, “o risco é uma opção e não um destino”.71

Isso porque, segundo a autora, “O homem atual tem o domínio da teoria das
probabilidades e, por isso, administra melhor o risco”, assim, “ele é capaz de
desencadear opções mais ousadas, em sua vida e em sua empresa, obtendo com
isso, via reflexa, um extraordinário impulso no desenvolvimento das tecnologias e
dos sistemas econômicos”.72

Giselda Hironaka afirma que, “o homem tornou-se, indubitavelmente, mais ousado,


mais corajoso, predisposto a correr mais risco em prol do progresso e do
desenvolvimento”, desvencilhou-se “das asas ou do império da divindade e
enfrentou o desconhecido, expondo-se a tomar decisões acerca de um espectro
bem mais amplo e a respeito de lapsos temporais bem mais extensos do que em
qualquer outra fase da evolução dos costumes”.73

70
Responsabilidade pressuposta, p. 106.
71
Ibidem, p. 106.
72
Ibidem, p. 107.
73
Ibidem, p. 108.
42

E a civilista termina por afirmar que:

O tempo de atribuição da responsabilidade por danos a deuses, bruxas e


divindades de qualquer espécie distancia-se como distantes estão a Idade
Média e a própria Renascença neste início de milênio; o enfoque primordial
da lei, a preocupação essencial da sociedade que se quer solidária repousa
– e deve repousar – na atenção ao direito da vítima, buscando-se a
formulação de um princípio que vise, antes de tudo, assegurar a ordem
social e a salvaguarda da dignidade daquele que, sem sua culpa, sofre
dano derivado da atividade de outrem, caracterizada pela escolha relativa à
74
assunção de risco.

3.1 LOCAL E MOMENTO DE SEU SURGIMENTO

Foi na França que a responsabilidade objetiva fundada na doutrina do risco


encontrou seu campo mais fértil de desenvolvimento doutrinário, pelo trabalho de
Raymond Salleiles e Louis Josserand, entre o final do século XIX e o início do século
XX.

O tema ganhou realce quando da exegese do § 1º do artigo 1.384 do Código Civil


francês de 1804, que, para uns, contemplava a teoria do risco.75

De acordo com Wilson Melo da Silva76, a obra de Salleiles, quanto ao exame das
teses subjetiva e objetiva da responsabilidade civil, pode ser reproduzida não por
uma linha ascendente, mas por uma curva, isso porque o citado jurista francês teria
iniciado sua construção doutrinária de maneira moderada, admitindo a convivência
entre ambas, para depois sustentar a superação total da responsabilidade subjetiva
pela objetiva, e, ao final, retornar ao convencimento de que as duas tinham seu
espaço dentro da ordem jurídica, como passamos a demonstrar.

No início, isto é, antes de 1897, Salleiles, pelos idos de 1889, mesmo acolhendo a
tese da responsabilidade objetiva pelo risco, em virtude da interpretação do
mencionado § 1º do art. 1.384 do Código Civil Napoleônico, ainda admitia a

74
Responsabilidade pressuposta, p. 111.
75
LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 121.
76
SALLEILES, Raymond. Les accidents du travail et la responsabilité civille, Paris: Ed. A.
Rousseau, 1897, p. 21-22, apud SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa, p. 49-52.
43

existência da responsabilidade subjetiva por força da disposição do artigo 1.382 do


mesmo código.77

Então, em 1897, Salleiles publica sua obra Les Accidents du Travail et la


Responsabilité Civille, com apenas 97 páginas. Partindo das disposições do § 1º do
art. 1.384 do Código Civil francês (que agasalhava a teoria objetiva do risco), ele
chega até o artigo 1.382 do mesmo diploma legislativo (que, em princípio,
contemplava a teoria subjetiva da culpa). Afirma que a palavra fait prevista no art.
1.382 deve ser entendida como sinônima do termo faute inserido no § 1º do art.
1.384, como equivalente de simples causa, ordinária, de qualquer prejuízo: o dano é
simples questão de azar e não de culpa.78

Posteriormente, no entanto, em 1911,

[...] ao examinar, em face dos pronunciamentos da Corte do Canadá, a


questão atinente à responsabilidade civil por fato das coisas, volta à
primeira fase, à fase da moderação, quando termina por sugerir que fossem
79
deixadas de lado suas palavras.

O embate doutrinário não se encerrou, e, em 13 de fevereiro de 1930, por meio de


célebre aresto, a Corte de Cassação de Paris lançou fortes argumentos em favor da
teoria do risco, no que foi acompanhada por seu mais fervoroso defensor, um dos
conselheiros do mesmo colegiado, Louis Josserand, que dedicou ao julgado uma de
suas conferências, aquela pronunciada na Faculdade de Direito de Coimbra,
demonstrando que o venerando decisório consagrou de vez a tese de que o § 1º do
artigo 1.384 do Código Civil francês tratava de hipótese de responsabilidade regida
pela teoria do risco.80

Para produzir essa conferência, Josserand buscou subsídios acerca da concepção


da responsabilidade civil objetiva fundada doutrina do risco na citada obra de

77
SALLEILES, Raymond. Les accidents du travail et la responsabilité civille, Paris: Ed. A.
Rousseau, 1897, p. 74, apud SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa, p. 50.
78
SALLEILES, Raymond. Les accidents du travail et la responsabilité civille, Paris: Ed. A.
Rousseau, 1897, p. 74, apud SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa, p. 49-51.
79
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa, p. 51.
80
LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 122.
44

Raymond Salleiles denominada Les Accidents du Travail et la Responsabilité Civille,


de 1.897.81

Além de citar a obra de Salleiles como uma de suas fontes para a adoção da
responsabilidade civil pela doutrina do risco, Josserand ainda fez uma justa
homenagem à jurisprudência, verdadeira propulsora da teoria objetiva, afirmando
que,

A evolução da responsabilidade se tem produzido com um mínimo de


intervenção legislativa: ela foi, sobretudo, obra da jurisprudência, que, na
França, na Bélgica e em outros países, tem sabido tirar partido maravilhoso
dos textos e dos princípios que tinha à sua disposição e os tem acomodado
ao gosto do dia, com uma oportunidade, um senso das realidades práticas e
82
uma engenhosidade verdadeiramente admiráveis.

O trabalho de Salleiles publicado em 1897, juntamente com a doutrina de Josserand,


que, em exame ao § 1º do art. 1.384 do Código Civil francês, concluiu pela tese da
responsabilidade objetiva quanto ao fato das coisas, deu origem à edição daquela
que Georges Ripert denominou a “grande” Lei de 9 de abril de 1898, dispondo sobre
os acidentes de trabalho, impregnada da ideia de responsabilidade sem culpa,
resultando em que “pouco a pouco viu-se o princípio do risco profissional ganhar as
indústrias, as explorações comerciais, as explorações florestais e agrícolas e os
empregos domésticos”83, acolhendo, inequivocamente, a tese da responsabilidade
objetiva.

A exploração de uma mina, segundo a jurisprudência francesa, como apontado por


Louis Josserand, já no início do século passado, era tida como atividade de risco,
respondendo civilmente o proprietário “de pleno derecho de los daños que causa la
explotación, tanto a los propietarios de la superficie como a los concesionarios
vecinos”.84

Firmou-se, então, o entendimento de que a responsabilidade objetiva foi


impulsionada pela citada obra de Salleiles, de 1897, como deu conta Josserand em

81
SALLEILES, Raymond. Les accidents du travail et la responsabilité civille, Paris: Ed. A.
Rousseau, 1897, passim, apud JOSSERAND, Louis. Evolução da responsabilidade civil. Revista
Forense, n. 456, p. 52-63.
82
Evolução da responsabilidade civil. Revista Forense, n. 456, p. 559.
83
RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis, p. 209.
84
Derecho civil. Tradução de Santiago Cunchillos y Manterola. Buenos Aires: Edições Jurídicas
Europa - América, Bosch y Cia - Editores, 1950, p. 444.
45

sua conferência de 1930, interpretando a decisão da Corte de Cassação de Paris


acerca do § 1º do artigo 1.384 do Código Civil francês.

Sem prejuízo, todavia, desta consolidada ideia, o jurista húngaro G. Marton,


segundo Aguiar Dias, propugnou que as primeiras noções acerca da
responsabilidade sem culpa foram de Thomasius e Heineccius, partidários da escola
de direito natural, ainda no século XVIII, impondo-a na situação daquele desprovido
de discernimento e causador de um dano a outrem, princípio que acabou positivado
no código prussiano, mas afinal isolado e desvanecido, praticamente sem deixar
vestígio, durante a expansão do direito romano na Alemanha no século XIX. A
referência que se fez foi ao § 16 do título 6º da 1ª parte do código prussiano de
1794, onde se falava em zufälliger Schaden, obrigando o autor à reparação em
dados casos, e ao § 72, estabelecendo explicitamente que aquele que guarda
animais que, embora perigosos por seu caráter, não são utilizados, ordinariamente,
na economia rural ou urbana, responde, também, sem culpa especial de sua parte.85

Sobre as origens da positivação da responsabilidade objetiva, Aguiar Dias ainda faz


menção ao Código Civil austríaco de 1811, em cujo § 1.310 se instituía a reparação
por ato praticado sem culpa ou involuntariamente.86

Enneccerus, Kipp e Wolf, informam que “la responsabilidad por los daños causados
en virtud de exploraciones peligrosas sin culpa del empresario se introdujo
primeramente para los ferrocarriles por obra del § 25 de la ley prusiana de
ferrocarriles de 3 de noviembre de 1838”.87

Por fim, Wilson Melo da Silva noticia casos de responsabilização sem culpa no
direito romano, e, antes ainda, na velha Grécia.88

Mesmo com essas considerações, Aguiar Dias deixa isenta de qualquer dúvida a
constatação de que foram os franceses os maiores divulgadores da teoria objetiva, a
partir da segunda metade do século XIX, devendo-se ao seu trabalho de
85
MARTON, G. Les fondements de la responsabilité civile. Paris, 1938, p. 158, apud DIAS, José
de Aguiar. Da responsabilidade civil, p. 65-66.
86
Da responsabilidade civil, p. 66.
87
ENNECCERUS, Ludwig; KIPP, Theodor; WOLFF, Martín. Tratado de derecho civil: derecho de
obligaciones. Tradução de Blas Pérez González e José Alguer. Buenos Aires: Bosch Publicaciones
Jurídicas, 1948, p. 712.
88
GIOVANNI, Pacchioni. Diritto civile italiano. Pádua, 1940, p. 66, apud SILVA, Wilson Melo da.
Responsabilidade sem culpa, p. 22.
46

sistematização o impulso tomado pela doutrina do risco, sendo Salleiles e Josserand


os precursores da matéria, assentando-se na literatura francesa a ordem de ideias
alemãs anteriormente vistas.89

Vale a informação histórica de Giselda Hironaka de que a primeira decisão


fundamental no tema da Corte de Cassação foi dada em 16 de junho de 1896, e
ficou conhecida pelo nome de “L’ Arrêt Teffaine”. Dizia respeito ao acidente de um
operário em decorrência de uma explosão num rebocador a vapor. A Corte Suprema
acolheu, à época, um novo princípio segundo o qual a pessoa era responsável pela
coisa que lhe pertencia. O proprietário do rebocador não conseguiu, portanto,
exonerar-se da responsabilidade provando a culpa do construtor do rebocador, e
indenizou a viúva e as crianças do operário morto. Segundo Giselda Hironaka, essa
decisão fundamental costuma ser referida como o primeiro passo em direção, pela
via jurisprudencial francesa, da noção de risco.90

3.2 O TRABALHO DE RAYMOND SALLEILES E LOUIS JOSSERAND

Para se ter uma ideia um pouco mais precisa acerca da importância dos franceses
Raymond Salleiles e Louis Josserand, mencione-se a afirmação de Aguiar Dias de
que “sua vigorosa personalidade é tão influente que faz esquecer o fato de, ao
tempo em que surgem seus trabalhos, estar já desenvolvida em outros países a
doutrina que apresentam e prestigiam”91, referindo-se aos antecedentes alemães e
austríacos acima citados.

Salleiles se mostrou mais radical que Josserand, chegando a pregar definitivamente


a substituição da ideia de culpa pela de causalidade, repita-se, mediante a
interpretação da palavra fait do artigo 1.382 como similar ao termo faute do § 1º do
artigo 1.384, ambos do Código Civil francês, classificando de falsa e até humilhante
a ideia de culpa, considerando mais equitativo e conforme a dignidade humana que
cada qual assuma os riscos de sua atividade voluntária e livre, noção também

89
Da responsabilidade civil, p. 72.
90
Responsabilidade pressuposta, p. 136.
91
Ibidem, p. 71-72.
47

deduzida no seu já citado livro Les accidents de travail et la responsabilité civille,


sendo esta a síntese de seu pensamento:

A lei deixa a cada um a liberdade de seus atos; ela proíbe senão aqueles
que se conhecem como causa direta do dano. Não poderia proibir aqueles
que apenas trazem em si a virtualidade de atos danosos, uma vez que se
possa crer fundamentadamente que tais perigos possam ser evitados, à
base de prudência e habilidade. Mas, se a lei os permite, impõe àqueles
que tomam o risco a seu cargo a obrigação de pagar os gastos respectivos,
sejam ou não resultados da culpa. Entre eles e as vitimas não há
comparação. Ocorrido o dano, é preciso que alguém o suporte. Não há
culpa positiva de nenhum deles. Qual seria, então, o critério de imputação
do risco? A prática exige que aquele que obtém proveito de iniciativa lhe
suporte os encargos, pelo menos a título de sua causa material, uma vez
que essa iniciativa constitui um fato que, em si e por si, encerra perigos
potenciais contra os quais os terceiros não dispõem de defesa eficaz. É um
balanceamento a fazer. A justiça quer que se faça inclinar o prato da
92
responsabilidade para o lado do iniciador do risco.

Josserand, por seu turno, também como já se viu, dedicou ao julgado de 1.930 da
Corte de Cassação de Paris uma de suas conferências, aquela pronunciada na
Faculdade de Direito de Coimbra, demonstrando que o venerando acórdão
consagrou de vez a tese de que o § 1º do artigo 1.384 do Código Civil francês
tratava de hipótese de responsabilidade regida pela teoria do risco, resumindo em
apertadíssima síntese, mas suficientemente clara, sua tese, ao afirmar que o
“problema capital é o da objetivação da responsabilidade, da substituição do ponto
de vista subjetivo pelo ponto de vista objetivo, da noção de culpa pela do risco”.93

O trabalho de Salleiles e Josserand encontrou seus maiores opositores nos irmãos


Henri e Léon Mazeaud, também franceses, marcando, segundo eles, o
aparecimento da discussão acerca de um princípio até então intangível: a
necessidade de uma culpa para engendrar a responsabilidade civil daquele cuja
atividade causou um dano94, sendo que a insurgência num todo será posteriormente
examinada pela ótica de Alvino Lima.

A teoria do risco foi fartamente acolhida pela doutrina estrangeira do início do século
passado.

92
SALLEILES, Raymond. Les accidents du travail et la responsabilité civille. Paris: Ed. A.
Rousseau, 1897, apud DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, p. 77.
93
JOSSERAND, Louis. Evolução da responsabilidade civil. Revista Forense, n. 456, p. 556.
94
Traité Théorique et Pratique de la Responsabilité Civile. Paris, 1934, passim, apud PEREIRA,
Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, p. 19.
48

Percebe-se, assim, quanto ao renascimento da ideia de responsabilidade sem culpa,


uma volta ao longínquo passado dos primórdios da humanidade, como se viu no
decorrer da evolução histórica acima desenvolvida, fenômeno que não poderia
passar despercebido de um dos grandes professores no assunto, Louis Josserand:

Evolución. Las soluciones que pueden darse a este problema han dividido
y dividen cada vez más las opiniones. Desde el origen del derecho romano
hasta nuestros días, se ha producido una doble evolución, que se reduce a
un movimiento de vaivén; después de haberse alejado del punto de partida,
la teoría de la responsabilidad tiende a volver a él; doble evolución que
gravita en derredor de estas dos nociones cardinales: la culpa y el riesgo;
con la primera, la responsabilidad es subjetiva; bajo la influencia de la
95
segunda, se hace objetiva.

3.3 A DOUTRINA DO RISCO NO BRASIL

Cá em nossas terras, o precursor da responsabilidade sem culpa foi Alvino Lima, por
meio de tese apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
em 1938, sob o título Da culpa ao risco, posteriormente convertida no livro Culpa e
risco, obra que, sem sombra de dúvidas, ressalvando-se todo o respeito e
agradecimento por todas as outras magníficas literaturas citadas, foi a de maior valia
para a elaboração dessa dissertação.

Alvino Lima foi seguido de perto por Aguiar Dias96, tornando-se ambos os mais
ferrenhos defensores da doutrina do risco e da consequente responsabilização civil
objetiva no Brasil, sendo, após, acompanhados por Caio Mário da Silva Pereira97 e
outros eminentes professores de direito civil, contando hoje a tese com o beneplácito
de toda a comunidade jurídica nacional.

A obra de Wilson Melo da Silva, catedrático de direito civil da Universidade Federal


de Minas Gerais, também deve ser citada com uma das grandes fontes de
conhecimento da doutrina do risco, muitas vezes já referida neste trabalho, sob o
título Responsabilidade sem culpa, editada no início da década de 1970.

95
Derecho Civil. p. 295.
96
Da responsabilidade civil, passim.
97
Responsabilidade civil, passim.
49

Quanto à positivação, o Código Civil de 1916, apesar de elaborado e promulgado


em plena efervescência da nova ideia da responsabilidade sem culpa, acabou por
acolher, em tese, a teoria subjetiva, merecendo de Wilson Melo da Silva, o
comentário de que, com os “olhos voltados ainda para o passado, num
conservadorismo digno de lástima, nosso Código, sob esse e sob muitos outros
aspectos, como que já nasceu envelhecido e trôpego”98.

No que tange, de outro lado, à legislação civil extravagante, o mesmo Wilson Melo
da Silva dispensou sua simpatia pela “generosa acolhida à tese da causalidade
objetiva”.99

Nesse sentido, já se viu que o primeiro diploma nacional a tratar da responsabilidade


objetiva foi o Decreto nº 2.681, de 7 de dezembro de 1912, regulando a
responsabilidade civil das estradas de ferro pelos danos que a exploração de suas
linhas causar aos proprietários marginais, nos termos de seu art. 26, dispositivo que
mereceu o seguinte comentário de Pontes de Miranda, indagando:

Está em vigor esse artigo 26? Houve quem o negasse, ou por considerar
revogada toda a lei, ou derrogada quanto ao artigo 26, por se tratar do
direito civil, e não comercial. Regeria o Código Civil, artigo 1.523, segundo a
interpretação literal, que recusamos. Na maioria de seus artigos, a lei nº
2.681 é de caráter misto; regula a culpa contratual das estradas de ferro e,
por analogia, segundo a jurisprudência, nas demais companhias de
transportes, com o caráter de serviço público. Certo, o dano aos
proprietários marginais é de direito civil, e não comercial, extracontratual, e
não contratual. Mas, evidentemente, trata-se de relações especiais, criadas
pela natureza do serviço de condução do público. Os danos causados a
terceiros – não passageiros, não proprietários marginais – regem-se pelo
Código Civil, porque o artigo 26 não cogitou de outras pessoas. Somente se
100
referiu a passageiros e a proprietários marginais.

Orlando Gomes menciona que, em princípio, sustentou-se que o mencionado


Decreto 2.681/12 teria sido revogado pelo Código Civil de 1916, em virtude de sua
conotação individualista, fundando a responsabilidade civil na culpa. Mas a tese
acabou vencida, não havendo outra solução naquele momento, por conta da força
com que a doutrina do risco se espalhava pelo mundo, inclusive no Brasil.101

98
Responsabilidade sem culpa, p. 67.
99
Ibidem, p. 67.
100
Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2008. Tomo LIV, p. 24.
101
GOMES, Orlando. Obrigações. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 378.
50

Vale, contudo, a ressalva de Clóvis Beviláqua de que o mencionado decreto é nada


mais que uma norma revogadora do mais antigo Decreto nº 1.930, de 26 de Abril de
1850, que, em seu art. 142, “responsabilizava, civilmente, a administração das
estradas de ferro, fosse individual fosse colletiva, pelos damnus, que causassem os
seus empregados no exercício de suas funcções”.102

Fica apenas a seguinte notícia histórica, muito relevante: o ato ilícito, como
conceituado no projeto do Código Civil de 1916, não fazia menção alguma à culpa
como um de seus elementos de constituição, sendo que a introdução da ideia de
culpa se deveu ao trabalho do Senado Federal, encerrando no que Afrânio Lyra
chamou de decrepitude do projeto em matéria de responsabilidade civil, isentando o
grande Clóvis Beviláqua de qualquer equívoco, unicamente imputável ao legislativo
nacional da época, que, impulsionado pelo espírito do Código de Napoleão, se
apegou excessivamente ao elemento subjetivo para a configuração do ato ilícito,
desconsiderando o trabalho jurisprudencial de interpretação do artigo 1.382 do
Código Civil Francês do final do século XIX.103

Depois vieram os demais dispositivos legais impositivos do dever indenizatório


independente de culpa, como o Código de Aeronáutica (artigos 226 e 246 e
seguintes da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986), a Lei de Acidente de
Trabalho (Decreto nº 24.637, de 1934; Decreto-lei nº 7.036, de 10 de novembro de
1944; e Lei nº 6.367, de 19 de outubro de 1976), a Lei do Meio Ambiente (Lei nº
6.938/81), o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), a própria
Constituição Federal (§ 6º do art. 37), a Lei de Responsabilidade do Operador de
Instalação Nuclear (Lei nº 6.453/77), o Código de Mineração (Decreto-lei nº 277, de
28 de fevereiro de 1967), bem como as diversas passagens do Código Civil vigente
(artigos 931, 932, 933, 936, 937 e 938), e assim por diante.

Para Cláudio Luiz Bueno de Godoy, a disciplina do Código Civil de 1916 acerca da
responsabilidade civil foi fiel à tradição dos códigos do século XIX,
fundamentalmente calcada na culpa enquanto nexo de imputação, de modo a exigir

102
BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. 4. ed. São Paulo:
Livraria Francisco Alves, 1939, v. 5. t. II, p. 303.
103
Responsabilidade civil, p. 69-70.
51

a identificação de um culpado pela reparação do prejuízo causado, uma diminuição,


um desfalque patrimonial provocado pela prática de um ilícito.104

Sendo que, segundo ele mesmo,

Fundamentalmente foram dois os focos da mudança de perspectiva desse


quadro da matéria atinente à responsabilidade civil. O primeiro, a
massificação e universalização das relações entre as pessoas, fenômeno
imposto, muito em especial, pela revolução industrial. Viu-se então o
declínio das relações essencialmente individualizadas, que cederam lugar
às relações de massa, envolvendo um público indistinto de consumidores
105
de produtos e, depois, de serviços.

E assim foi que a doutrina do risco deu lastro à instituição, na segunda parte do
parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002, da responsabilidade civil
objetiva genérica pela atividade de risco desenvolvida pelo agente causador do
dano, objeto de nosso estudo.106

3.4 DA SUBDIVISÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA EM TIPIFICADA OU


FECHADA E GENÉRICA OU ABERTA

Pode-se vislumbrar uma subclassificação da responsabilidade objetiva em tipificada


ou fechada e genérica ou aberta.

Na primeira delas, na tipificada ou fechada, o fundamentando da responsabilidade


civil objetiva deve ser encontrado em algum dispositivo legal contido no
ordenamento jurídico civil que preveja exatamente aquela situação vivida pela vítima
que pretende a reparação do dano, nos termos do que estatui a primeira parte do
parágrafo único do artigo 927 do Código Civil de 2002.

104
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 27.
105
Ibidem, p. 28.
106
Ressalve-se que Ademir Canali Ferreira já sustentava a responsabilização pela exposição de
outrem a perigo mesmo antes da entrada em vigor do novo Código Civil de 2002, interpretando o
artigo 159 do Código Civil de 1916 da seguinte maneira: “Na inteligência do citado dispositivo afirma-
se uma regra geral e outra de caráter excepcional, ausente qualquer incompatibilidade entre ambas.
É intuitivo que o dever indenizatório deflui da culpa lato sensu, acorde com as suas três tradicionais
formas: imprudência, imperícia e negligência. Todavia, ao lado dessa norma convive outra
determinando que, em casos excepcionais, o simples nexo de causalidade é bastante para
determinar a mesma conseqüência” (A exposição ao perigo como fato gerador da responsabilidade
civil objetiva. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 572, p. 22, junho de 1983).
52

Nesse particular, repita-se, com relação à responsabilidade civil objetiva


denominada de tipificada ou fechada, há uma vastidão de situações espalhadas no
ordenamento jurídico, como se viu com o transporte nas estradas de ferro, no
Código de Aeronáutica, na Lei de Acidentes de Trabalho, na responsabilização
objetiva do Estado prevista na Constituição Federal, no próprio Código Civil (art.
931, por exemplo) e em outros diplomas legislativos.

Por exemplo, o dano ambiental faz emergir a responsabilidade objetiva típica ou


fechada, nos termos da Lei nº 6.938/81, em seu artigo 14, § 1º: “Sem obstar à
aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado,
independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos
causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”. Note-se que
há uma determinada situação concreta prevista como fator de imputação da
responsabilidade civil, daí se dizer que é típica ou fechada nesse sistema.

A outra espécie de responsabilidade objetiva é a que se denominou de genérica ou


aberta, encontrando fundamento no ordenamento jurídico nacional na segunda parte
do mesmo parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2.002, não tendo como
fato gerador do dever indenizatório a culpa do agente ou algum dispositivo legal em
que esteja prevista a situação concreta, mas a própria atividade arriscada
desenvolvida pelo causador do dano.

Vale destacar o binômio necessidade/suficiência deste elemento para que se


possa imputar o dever indenizatório para o agente causador do dano: que tenha
desenvolvido atividade arriscada para os direitos alheios, na clara dicção da
segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002.

Vê-se, então, que a passagem da responsabilidade subjetiva para a objetiva


aconteceu no momento em que se prescindiu da demonstração de que o causador
do dano se conduziu culposamente, ao mesmo tempo em que foram criados
dispositivos legais esparsos impondo a responsabilização sem culpa, e,
recentemente, com a previsão do dever indenizatório para a hipótese de o agente ter
desenvolvido atividade arriscada para os direitos alheios.

Foi deliberada a utilização da palavra “recentemente”, porque a responsabilidade


objetiva pela atividade de risco surgiu, no Brasil, ao menos no que se refere à
53

autorização legal (uma vez que a doutrina e a jurisprudência já caminhavam nesse


sentido, como dá conta Rui Stoco107), com o Código Civil de 2002, na segunda parte
do parágrafo único do artigo 927.

Pode-se sustentar, sem qualquer problema, que a responsabilização civil em virtude


do exercício de atividade de risco é, na verdade, mais uma hipótese de
responsabilidade objetiva, pelo simples fato de ser imposto pela lei o dever
indenizatório sem que se cogite de culpa do agente. Mas, didaticamente, dela se
tratará de maneira apartada pelo seu conteúdo genérico, ficando a critério do
intérprete o entendimento sobre o que se deve entender por atividade arriscada,
neste conceito podendo ser enquadradas várias situações.

Rui Stoco corrobora esta ilação, afirmando:

Impõe-se registrar que o Código Civil de 2002, posto a lume pela Lei nº
10.406, de 10/1/2002, abandonou, em grande parte, a culpa presumida,
para adotar, ainda que por exceção e sempre expressamente e em
numerus clausus a responsabilidade objetiva, como, por exemplo, nas
108
atividades perigosas (art. 927, parágrafo único).

E segue o próprio Rui Stoco:

O parágrafo único do art. 927 do CC encarregou o magistrado de


estabelecer se, à luz do caso concreto, a hipótese é, ou não, de exercício
de atividade perigosa. Se entendê-la perigosa, aplicará o princípio da
responsabilidade objetiva e verificará apenas se o comportamento do
agente se liga ao resultado danoso e se inexiste causa excludente da
responsabilidade. Caso entenda que a atividade é normal e, portanto, não
perigosa, fará incidir a teoria subjetiva e imporá à vítima ou ao autor da ação
109
a comprovação da culpa.

Assim, pode-se falar em mais uma hipótese de responsabilidade objetiva, mas que
não veio num dispositivo legal esparso na legislação extravagante, e sim no bojo do
próprio Código Civil de 2002, posta na fórmula genérica quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos
para os direitos de outrem (segunda parte do parágrafo único do artigo 927).

107
“Uma das virtudes do atual Código Civil que se deve ressaltar está em ter convertido em preceito
legal o que a doutrina e a jurisprudência já haviam discutido, solucionado e sedimentado, com
entendimento harmônico e pacífico. Converteu em lei o que já haviam assentado os pretórios e os
doutos. É o que ocorreu com o parágrafo único do art. 927, ao adotar a teoria do risco no exercício de
atividades perigosas”. (STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 177).
108
Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, p. 156.
109
Ibidem, p. 178.
54

Dessa forma, data venia, parece não estar correta a afirmação de Aguiar Dias de
que “nas codificações, a introdução da doutrina objetiva como princípio geral não
logrou êxito até agora”.110 Logrou sim, como se verifica pela aparição da segunda
parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002. Diga-se, todavia, que
não se trata de um equívoco, mas apenas um descompasso ocasionado pelo fato de
a obra do grande mestre ter sido produzida antes da entrada em vigor no novel
Código Civil brasileiro. Cumpre, mais uma vez com todo o respeito, anotar a
necessidade da atualização da magnífica obra nesse particular.

A mesma situação se deu com relação à obra máxima do grande Pontes de


Miranda, o seu Tratado de Direito Privado, onde se lê que “no Código Civil não há
regra jurídica escrita sobre responsabilidade pelo exercício de atividade perigosa”.111

Realmente, essa novidade não veio quando ainda em vida os eminentes professores
José de Aguiar Dias e Pontes de Miranda, mas não passou despercebida de Carlos
Roberto Gonçalves, asseverando que:

No regime do Código Civil de 1916, as atividades perigosas eram somente


aquelas assim definidas em lei especial. As que não o fossem
enquadravam-se na norma geral do Código Civil, que consagrava a
responsabilidade subjetiva. O referido parágrafo único do artigo 927 do novo
diploma, além de não revogar as leis especiais existentes, e de ressalvar as
que vierem a ser promulgadas, permite que a jurisprudência considere
determinadas atividades já existentes ou que vierem a existir, como
perigosas ou de risco. Esta é, sem dúvida, a principal inovação do novo
112
Código Civil no campo da responsabilidade civil.

Hoje, então, conta o sistema de responsabilidade civil com hipóteses típicas de


imposição do dever indenizatório sem culpa (responsabilidade objetiva típica ou
fechada) e com uma hipótese aberta, levando-se em conta a atividade de risco
desenvolvida pelo autor do dano (responsabilidade objetiva genérica ou aberta),
cada qual tendo aplicação ao seu tempo.

110
Da responsabilidade civil, p. 96.
111
Tratado de direito privado, p. 121.
112
Responsabilidade civil, p. 9.
55

3.5 DA CONVIVÊNCIA HARMÔNICA ENTRE AS TEORIAS SUBJETIVA E


OBJETIVA

Fique claro que não houve substituição da responsabilidade subjetiva pela objetiva,
sendo harmoniosa a convivência entre ambas, como sustentado por Alvino Lima:

Ambas, porém, continuarão a subsistir, como forças paralelas, convergindo


para o mesmo fim, sem que jamais, talvez, se possam exterminar ou se
confundir, fundamentando, neste ou naquele caso, a imperiosa necessidade
113
de ressarcir o dano, na proteção dos direitos lesados.

Posiciona-se da mesma forma Caio Mário da Silva Pereira, asseverando que:

[...] a regra geral, que deve presidir à responsabilidade civil, é a sua


fundamentação na idéia de culpa; mas, sendo insuficiente esta para atender
às imposições do progresso, cumpre ao legislador fixar especialmente os
casos em que deverá ocorrer a obrigação de reparar, independente daquela
noção. Não será sempre que a reparação do dano se abstrairá do conceito
de culpa, porém quando o autorizar a ordem jurídica positiva. É neste
sentido que os sistemas modernos se encaminham, como, por exemplo, o
italiano, reconhecendo em casos particulares e em matéria especial a
responsabilidade objetiva, mas conservando o princípio tradicional da
imputabilidade do fato lesivo. Insurgir-se contra a idéia tradicional da culpa é
criar uma dogmática desafinada de todos os sistemas jurídicos. Ficar
114
somente com ela é entravar o progresso.

E nem poderia mesmo acontecer a extinção da responsabilidade civil subjetiva, pois,


novamente conforme Caio Mário da Silva Pereira,

Filosoficamente, a abolição da idéia de culpa vai dar num resultado anti-


social e amoral, dispensando a distinção entre o lícito e o ilícito, ou
desatendendo à qualificação boa ou má da conduta, uma vez que o dever
de reparar tanto corre para aquele que procede na conformidade da lei
115
quanto para aquele outro que age ao seu arrepio.

Cabe à vítima, então, diante do caso concreto, buscar sua indenização com
fundamento na teoria que melhor se adequar à hipótese, posicionando-se pela
subjetiva ou objetiva. Se optar pela teoria subjetiva, deverá provar a culpa do agente
causador do dano (caput do art. 927 do Código Civil), salvo se a culpa deste for
presumida pelo ordenamento jurídico, de forma relativa ou absoluta. Se optar pela
objetiva, deverá se valer de um dos dois caminhos a seguir: ou demonstrará que a
situação vivida se subsume a algum tipo legal impositivo do dever indenizatório

113
Culpa e risco, p. 41.
114
Instituições de direito civil, p. 367.
115
Ibidem, p. 366-367.
56

(primeira parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil) ou deverá demonstrar
que o agente causador do dano exerceu atividade arriscada para um direito seu
(segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil).

Louis Josserand, no seu longínquo tempo, já vislumbrava dias de paz entre as


responsabilidades subjetiva e objetiva, nos seguintes termos:

Sin duda, la responsabilidad objetiva nunca destronará completamente a la


responsabilidad subjetiva; no que es de desear que la noción de riesgo
venza inexorablemente a la de culpa; es incluso digno de notarse que la
tesis del abuso de los derechos haya suministrado a la responsabilidad
subjetiva un elemento nuevo y le haya permitido desarrollarse en esa
dirección. Pero la tendencia actual es particularmente favorable a la
responsabilidad objetiva: indudablemente, de los dos polos de atracción, la
culpa y el riesgo, es el primero el que continúa ejerciendo la más fuerte
atracción sobre la doctrina e sobre la jurisprudencia, pero el segundo se
hace sentir cada vez con mayor fuerza, y en todos los países. Las dos
corrientes no son, por otra parte, de ningún modo inconciliables y se
completan muy bien; subjetiva u objetiva, toda tesis de responsabilidad
tiende a este fin, perseguido siempre y jamás alcanzado: el equilibrio
116
perfecto, aunque inestable, de los intereses y los derechos.

Não obstante o reconhecimento da doutrina e da jurisprudência acerca da


convivência harmônica da responsabilidade subjetiva e da responsabilidade objetiva,
o certo é que, como chamou a atenção Sérgio Cavalieri Filho, a edição de normas
impositivas da responsabilidade sem culpa foi tão grandiosa que, “após o exame
dessas hipóteses todas, haverá uma única conclusão: muito pouco sobrou para a
responsabilidade subjetiva”117, tendo o próprio Código Civil brasileiro de 2002 optado
como regra geral pela responsabilidade objetiva, mormente em virtude do
alargamento dos conceitos introduzidos nos artigos 927 e 931 do novo estatuto
civil118.

Por isso que, para Giselda Hironaka, “a ampliação do campo de abrangência da


responsabilidade, portanto, acabou por provocar certo declínio da culpa enquanto
elemento imprescindível à sua configuração”, ressalvando, todavia, que “não
desapareceu completamente a culpa, e nem desaparecerá, já que a evolução não
equivale à substituição de um sistema por outro”.119

116
Derecho civil, p. 300-301.
117
Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 141.
118
Ibidem, p. 141.
119
Responsabilidade pressuposta, p. 131.
57

Em arremate, por assim dizer, do “pai” do atual Código Civil, o Professor Miguel
Reale, a situação se resolve da seguinte maneira:

Responsabilidade subjetiva ou responsabilidade objetiva? Não há que fazer


essa alternativa. Na realidade, as duas formas de responsabilidade se
conjugam e se dinamizam. Deve ser reconhecida, penso eu, a
responsabilidade subjetiva como norma, pois o indivíduo deve ser
responsabilizado, em princípio, por sua ação ou omissão, culposa ou
dolosa. Mas isso não exclui que, atendendo à estrutura dos negócios, se
120
leve em conta a responsabilidade objetiva. Este é um ponto fundamental.

Trata-se, como alertado por Cláudio Luiz Bueno de Godoy, do que se convencionou
chamar de sistema do duplo binário.121

Ou, ainda, segundo o mesmo Cláudio Luiz Bueno de Godoy, na terminologia


lembrada por Massimo Bianca, “é o que se pode chamar de concepção eclética da
responsabilidade civil, que reconhece seu fundamento no que reputa ser os dois
princípios básicos e gerais da matéria, ou da culpa e do risco”.122

120
REALE JUNIOR, Diretrizes gerais sobre o Projeto de Código Civil, in Estudos de filosofia e
ciência do direito, São Paulo: Saraiva, 1978, p. 176-177, apud GONÇALVES, Carlos Roberto.
Direito civil brasileiro, p. 33.
121
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 50.
122
BIANCA, Massimo. Dirito Civile: la responsabilitá, Milano: Giuffrè, p. 534-539, apud GODOY,
Cláudio Luiz Bueno de. A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 50.
58

4. A RESPONSABILIDADE SEM CULPA123 – CAUSAS E TEORIAS

Algo já se disse sobre o assunto, mas é momento de se aprofundar no estudo do


motivo ou da causa que levou a se rever a culpa como elemento fundamental e
imprescindível para a responsabilização do agente danoso, afirmando Alvino Lima,
nesse sentido, que:

O entrechoque, entretanto, cada vez mais crescente de interesses,


aumentando as lesões de direitos em virtude da densidade progressiva das
populações e da diversidade múltipla das atividades na exploração do solo
e das riquezas; a multiplicação indefinida das causas produtoras do dano,
advindas das invenções criadoras de perigos que se avolumam, ameaçando
a segurança pessoal de cada um de nós; a necessidade imperiosa de se
proteger a vítima, assegurando-lhe a reparação do dano sofrido, em face da
luta díspar entre as empresas poderosas e as vítimas desprovidas de
recursos; as dificuldades, dia a dia maiores de se provar a causa dos
acidentes produtores de danos e dela se deduzir a culpa, à vista dos
fenômenos ainda não conhecidos na sua essência, como a eletricidade, a
radioatividade e outros, não podiam deixar de influenciar no espírito e na
consciência do jurista. Era imprescindível, pois, buscar um novo fundamento
à responsabilidade extracontratual, que melhor resolvesse o grave problema
da reparação dos danos, de molde a se evitarem injustiças que a
124
consciência jurídica e humana repudiavam.

E continua o autor:

Ao lado destes fatores de ordem material e social, fatores morais vieram


influenciar no surto do movimento inovador. O crescente número de vítimas
sofrendo com as atividades do homem, dia a dia mais intensas, no afã de
conquistar proventos; o desequilíbrio flagrante entre os ‘criadores de risco’
poderosos e as suas vítimas; os princípios de equidade que se revoltaram
contra esta fatalidade jurídica de se impor à vítima inocente, não criadora do
fato, o peso excessivo do dano muitas vezes decorrente da atividade
exclusiva do agente, vieram unir-se aos demais fatores, fazendo explodir
intenso, demolidor, o movimento das novas idéias que fundamentam a
responsabilidade extracontratual tão-somente na relação de casualidade
125
entre o dano e o fato gerador.

E Josserand arremata,

123
Faça-se menção, neste capítulo intitulado “responsabilidade sem culpa”, ao comentário de Cunha
Gonçalves, in Tratado de Direito Civil, v. XII, t. II, p. 476: “A culpa não consiste, somente, em querer
o dano ou não evitar o dano por negligência ou imprudência. Comete culpa, de igual modo, quem cria
um risco para os outros, por espírito de lucro, desporto ou divertimento, porque, numa sociedade
civilizada e igualitária, o bem commum é absolutamente incompatível com a livre expansão dos
egoísmos. Assim, é culpa objectiva, de responsabilidade virtual pelos danos de outrem, estabelecer
uma fábrica, explorar uma mina, efectuar transportes, andar de automóvel, exercer profissão
suscetível de causar prejuízos, embora qualquer daquelas actividades seja exercida na melhor das
intenções, no interêsse do público, da economia nacional, isto é, com o propósito de dar trabalho e
criar riqueza”.
124
Culpa e risco, p. 113-114.
125
Ibidem, p. 116.
59

[...] postulando que a responsabilidade é uma mera questão de reparação


dos danos, de proteção do direito lesado, de equilíbrio social, devendo, pois,
ser resolvida atendendo-se somente ao critério objetivo: quem guarda os
benefícios que o acaso da sua atividade lhe proporciona deve,
126
inversamente, suportar os males decorrentes desta mesma atividade.

Em linhas gerais, então, como já visto e agora consolidado, a atividade criadora de


risco desencadeada pelo maquinismo da Revolução Industrial e a dificuldade da
vítima na comprovação da culpa do agente danoso foram os dois grandes motivos
para que se propugnasse pela diminuição do campo de atuação da responsabilidade
subjetiva, com o consequente surgimento da responsabilidade objetiva.

Nesse sentido, Cláudio Luiz Bueno de Godoy:

O segundo dado fundamental que concorreu para a modificação do


tratamento do tema da responsabilidade civil foi, já um pouco depois, na
primeira metade do século XX, e com eclosão das duas guerras mundiais, a
superveniência de uma nova conformação constitucional dos ordenamentos
jurídicos ocidentais. Sobretudo com o final da segunda conflagração
mundial, dada a situação conhecida de subalternização da pessoa humana
como seu produto mais candente, houve clara tomada de posição pela
elevação da dignidade do homem do valor básico do ordenamento, cuja
tutela, de maneira geral, passou a ocupar espaço central nas leis
127
constitucionais dos países, sobretudo da Europa.

Ocorre que, para que fosse possível essa passagem da responsabilidade subjetiva
para a objetiva, havia a necessidade do afastamento do elemento moral, da
pesquisa psicológica do íntimo do agente (em outras palavras, da culpa), para que
tomasse espaço a ideia exclusiva da reparação do dano de forma unicamente
objetiva.128

E, nessa mudança de concepção acerca da responsabilidade civil, foram


desenvolvidas várias teorias por juristas de escol, tendo Alvino Lima discorrido sobre
a primeira que foi lançada, a do risco integral:

No seu primeiro ímpeto, a teoria da responsabilidade sem culpa proclamara


a reparação do dano, mesmo involuntário, sendo que Venezian, Cremieu e
outros sustentaram a responsabilidade do agente por todo ato do qual seja
129
ele a causa material, excetuando, apenas, os fatos exteriores ao homem.

126
JOSSERAND, Les transports, 2 ed., Paris, 1926, n. 557 et seq., apud LIMA, Alvino. Culpa e
risco, p. 120.
127
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 30.
128
LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 39-42.
129
MAZEAUD. Tr. Théorique et pratique de la res. civ. dél. et contractuelle, 2 ed. Paris, 1934, vol.
1, n. 342, apud LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 117.
60

Radical e influenciada pelo positivismo jurídico, para esta doutrina, no conflito de


direitos, só há patrimônios em jogo, sem o elemento pessoal, afirmando Saleilles
que “é preciso materializar o direito civil, por abaixo o lado psicológico”130.

A denominada teoria do risco integral foi tachada, pelos defensores da


responsabilidade subjetiva, de brutal, levando a consequências iníquas.131

Posteriormente, surgem outras teorias menos radicais na tentativa de justificar a


evolução da responsabilidade civil de subjetiva para objetiva, segundo os irmãos
Mazeaud, como a que baseia a responsabilização extracontratual num ato anormal,
defendida por Ripert, na sua obra sobre o fundamento da responsabilidade entre
vizinhos.132

A teoria do ato anormal, respeitada sua excelência, não importa ao presente


trabalho, mesmo porque seu próprio precursor a abandonou, voltando ao campo da
responsabilidade subjetiva, afirmando os Mazeaud que não passava de uma ideia
baseada na culpa.133

Assim, taxada de radical a do risco integral e abandonada por seu próprio criador a
do ato anormal, seguiram-se outras a essas duas teorias, como noticiam Rui
Stoco134 e Sérgio Cavalieri Filho135: 1) a teoria do risco-administrativo, imposta ao
Estado e às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público
delegado, desencadeando o dever indenizatório unicamente em virtude do perigo
que a atividade administrativa impõe aos direitos alheios; 2) a teoria do risco-criado,
pela qual qualquer manifestação humana que gera risco aos direitos alheios
determina o dever indenizatório; 3) a teoria do risco-profissional, propugnando que o
dever de indenizar tem cabimento toda vez que o fato prejudicial é uma decorrência
da atividade ou profissão do lesado, abarcando a maioria dos casos de acidentes de
trabalho; 4) a teoria do risco-proveito, sustentando que responsável pela indenização

130
MAZEAUD, Tr. Théorique et pratique de la res. civ. dél. et contractuelle, 2 ed. Paris, 1934, vol.
1, n. 342, apud LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 117.
131
DEFROIDMONT, Jean. La science du droit positif, Paris, 1933, p. 339 et seq., apud LIMA,
Alvino, p. 118.
132
MAZEAUD. Tr. Théorique et pratique de la res. civ. dél. et contractuelle, 2 ed. Paris, 1934, vol.
1, n. 348, apud LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 119.
133
MAZEAUD. Tr. Théorique et pratique de la res. civ. dél. et contractuelle, 2 ed. Paris, 1934, vol.
1, n. 348, apud LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 119.
134
Tratado de responsabilidade civil, p. 161/162.
135
Programa de responsabilidade civil, p. 128-130.
61

é todo aquele que tira proveito da atividade danosa; 5) a teoria do risco-excepcional,


nas hipóteses em que o dano escapa às atividades comuns dos membros da
sociedade, podendo ser lembrados os casos de rede elétrica de alta tensão,
exploração de energia nuclear e materiais radioativos, que, por força dos riscos
excepcionais a que submetem os cidadãos em geral, resulta para o explorador da
atividade no dever indenizatório independente de culpa.

Para Alvino Lima, dentre todas, foi a do risco-criado, que funda a responsabilidade
extracontratual no risco advindo das múltiplas atividades humanas, sem dúvida, a
teoria que fixou as bases da nova concepção da responsabilidade sem culpa,
passando do campo doutrinal para o legal, tendo o movimento inaugurado por
Saleilles e defendido por Josserand se destacado como o que se consagrou não só
em dispositivos do direito comum, mas também na legislação especial.136

Nesse sentido, comentando o trabalho dos citados juristas internacionais, Alvino


Lima, assevera que:
Partindo da necessidade da segurança da vítima, que sofreu o dano, sem
para ele concorrer, os seus defensores sustentam que les faiseurs d’ actes,
nas suas múltiplas atividades, são os criadores de riscos, na busca de
proveitos individuais. Se dessas atividades colhem os seus autores todos os
seus proveitos ou pelo menos agem para consegui-los, é justo e racional
que suportem os encargos, que arquem com os ônus, que respondam pelos
riscos disseminados – ubi emolumentum, ibi onus. Não é justo, nem
racional, nem tampouco eqüitativo e humano, que a vítima, que não recolhe
os proveitos da atividade criadora dos riscos e para tais riscos não
137
concorreu, suporte os azares da atividade alheia.

Para Alvino Lima, então, fixado o conceito de teoria do risco-criado como fruto
inevitável das atividades humanas, como consequência inerente à própria ação do
homem nas suas múltiplas manifestações da vida moderna, o seu desiderato foi
verificar se tal concepção encontrou guarida no direito positivo, quer em face do
direito comum, quer na legislação especial138, o que também é objetivo deste
trabalho dissertativo, examinando-se a teoria do risco como fundamento da
responsabilidade objetiva genérica prevista na segunda parte do parágrafo único do
artigo 927 do Código Civil de 2002.

136
Culpa e risco, p. 119.
137
Ibidem, p. 119.
138
Ibidem, p. 121.
62

Estão apresentadas, pois, as causas determinantes para a adoção da doutrina do


risco, bem como as teorias que pretenderam justificar a passagem da concepção
subjetivista para a objetivista, destacando-se, dentre elas, a teoria do risco-criado,
como a seguir se verá com mais vagar.
63

5. CRÍTICAS E DEFESA DA TEORIA DO RISCO, NA VISÃO DE


ALVINO LIMA

De plano, logo no título do presente capítulo, fez-se constar que as críticas e a


defesa da teoria do risco serão trazidas pela visão de Alvino Lima, pelo único e
simples fato de ter sido o primeiro e o mais talentoso doutrinador a abordar o tema
no direito brasileiro, tendo-o feito de forma sistemática, facilitando o trabalho daquele
que se debruça sobre o assunto.

Quanto às críticas, a teoria do risco, segundo Alvino Lima, na década de 1930, vinha
sendo alvo de intensos ataques dos adeptos da teoria subjetiva, dizendo-a brutal,
retrógrada e materialista.139

Alvino Lima, desta forma, buscou sistematizar as críticas à teoria do risco, indo às
fontes das obras dos Mazeaud, Joseph Rutsaert, Ripert, Colin e Capitant, Venzi,
Defroidmont e outros, resultando nos seguintes argumentos desfavoráveis, seguidos
dos respectivos rebates140:

1ª) Por uma primeira crítica, afirmam seus opositores que a teoria do risco é
resultante da influência de idéias positivistas; é uma concepção materialista do
direito, porque regula relações entre os patrimônios, abstraindo-se das pessoas. Só
estas existem, sob o ponto de vista jurídico, não se podendo, pois, eliminar a
pessoa, com alma e vontade. O problema da responsabilidade civil ultrapassa o
aspecto puramente material do patrimônio e penetra no domínio da pessoa, de seus
pensamentos, de seus sentimentos, de suas afeições.

Alvino Lima rebate essa primeira crítica dizendo ser grave a afirmação de que a
teoria do risco põe à margem todos os princípios de ordem moral que devem presidir
aos preceitos jurídicos, calcando aos pés a dignidade humana, igualando o mundo
moral ao físico. Assevera que nada é mais falso do que ver, na teoria objetiva do
risco, ideias de puro materialismo e de um princípio contra a liberdade. Para ele,
embora partindo do fato em si mesmo para fixar a responsabilidade, a doutrina do
risco tem raízes profundas nos mais elevados princípios de justiça e de eqüidade,

139
Culpa e risco, p. 189.
140
Ibidem, p. 190 et seq.
64

exatamente no momento em que atestou a situação de penúria em que se


encontravam as vítimas de acidentes decorrentes de máquinas e similares e que
não conseguiam provar a culpa efetiva do causador do dano, ficando sem a devida
indenização, situação que não poderia perdurar, arrematando, ao lado de
Josserand, contra a insurgência, que:

A teoria da culpa não podia resolver, satisfatoriamente, os casos concretos


dos danos; pelas malhas de um princípio de ordem moral consagrado na
culpa, embora lógico e elevado, os astutos e a fortuna dos autores do delito
civil, à maneira dos que o são no crime, passaram a ser os ‘fazedores de
atos’, de atos danosos, cujas conseqüências recaem sobre as vítimas
inocentes. Foi, pois, em nome dessa insegurança da vítima, cada vez mais
evidente e alarmante, desta maioria dos indivíduos expostos aos perigos
tantas vezes a serviço da cobiça humana; foi em nome das injustiças
irreparáveis sofridas pelas vítimas esmagadas ante a impossibilidade de
provar a culpa, embora contemplando o esplendor de um princípio lógico,
natural e humano, mas incapaz de resolver com justiça, eqüidade e
equilíbrio os problemas criados pelos próprios homens; foi em nome do
princípio da igualdade que a teoria do risco colocou a vítima inocente em
igualdade de condições em que se acham as empresas poderosas; foi em
nome da fraternidade, da solidariedade humana, pelo afinamento das
nossas consciências e desenvolvimento do sentimento da responsabilidade,
141
que se ergueu a teoria do risco.

2ª) A segunda crítica destaca que a teoria do risco se apoia na socialização do


direito, estando impregnada de ideias socialistas. Desloca o centro da aplicação do
direito do indivíduo para a sociedade, quando aquele, na verdade, continua a ser o
ponto central do direito, que regula direitos e deveres individuais a fim de assegurar
a ordem social. Ademais, que se deve entender por interesses sociais? Como defini-
los e fixá-los? Qual o critério para se determinar e para se saber onde está
realmente um interesse social a superpor-se a um interesse individual? Tal teoria
não teve outro objetivo senão favorecer os modestos de recursos contra os
poderosos.

Alvino Lima retruca, afirmando que a doutrina do risco não se trata de

Anti-individualismo, porque, assentando-se em bases sociais, na proteção


da coletividade, a teoria do risco assegura ao indivíduo a reparação dos
danos oriundos das atividades criadas pelos próprios homens, cujas causas
não se descobrem, não se conhecem, não se provam, ou são ocultadas,
astuta e triunfalmente, pelos causadores dos acidentes. Não é a
socialização do direito que nega o indivíduo, que o relega ao segundo
plano, que lhe recalca os direitos; mas é a socialização do direito que, ante
o perigo real da insegurança material dos indivíduos, refletindo-se nos
142
interesses coletivos, proclama, defende e quer a segurança jurídica.

141
Culpa e risco, p. 195-196.
142
Culpa e risco, p. 196.
65

3ª) Por uma terceira crítica, propõe-se que a teoria do risco é a estagnação da
atividade individual, paralisando as iniciativas e arrastando o homem à inércia, visto
como, diante da responsabilidade sem culpa, de nada vale a prudência, a conduta
irreprovável, as precauções e cautelas, porquanto o agente deverá assumir a
responsabilidade de todos os danos que possam resultar das suas ações lícitas e
necessárias.

Sobre essa objeção, Alvino Lima não a taxa de improcedente, mas de contraditória
em face da própria teoria da culpa na guarda, como no caso de presunções
absolutas, não sendo mais que a consagração do próprio fato, não podendo o
agente demonstrar a ausência de culpa. Demais, malgrado a já instituição de
considerável número de casos de responsabilidade pela teoria do risco, como nas
atividades de transporte férreo e aeronáutico, o desenvolvimento econômico não se
arrefeceu, o que aponta para a improcedência da argumentação desfavorável.143

4ª) Para a quarta crítica, a teoria do risco é a aplicação das primitivas concepções
materiais da responsabilidade, quando o homem, sem o desenvolvimento
necessário, não tinha atingido ainda a perfeição de adotar como critério da
responsabilidade a noção de culpabilidade, fundada em ideias de ordem moral.
Seria regressar aos tempos primitivos e negar toda a evolução da responsabilidade,
a qual, provindo das ideias primitivas da vingança privada e brutal, chegou ao
conceito elevado da culpa, cuja supressão importaria em destruir toda a justiça
humana.

Alvino Lima não reconhece semelhança alguma entre a concepção primitiva da


responsabilidade decorrente do simples fato e a teoria do risco, sendo de dizer que a
vingança privada não se justifica perante nenhum princípio de ordem jurídica ou
moral, fundando-se a moderna concepção da teoria do risco em um princípio de
ordem moral e de equidade.144

5ª) Pela quinta crítica, afirma-se que, se a teoria do risco proclama a obrigação de
arcar com o risco criado em virtude dos proveitos auferidos pela atividade humana,
visto tratar-se de uma compensação entre o proveito e dano, tal responsabilidade
não se justifica se não houver proveito. E se o indivíduo, como consequência de sua
143
Ibidem, p. 196/197.
144
Ibidem, p. 197/198.
66

atividade, deve responder pelo risco criador do dano, deveria também ter direito aos
proveitos que terceiros venham a auferir de sua atividade.

Demasiadamente superficial é a presente objeção, na visão de Alvino Lima, porque


o proveito não se determina concretamente, mas é tido como finalidade da atividade
criadora do risco.145

6ª) Finalmente, diz-se, na sexta crítica, que a teoria do risco não tem posição
verdadeira e definida no terreno jurídico. O direito se funda em noções precisas e
não sobre noções de aspecto filosófico ou econômico, de contorno mal definido. O
conceito de proveito é incerto e mal definido, ao passo que na noção de culpa há um
instrumento de controle preciso, sendo que a teoria do risco compromete
gravemente a própria ordem social.

Para rebater o argumento, Alvino Lima afirmou que não há preceito mais impreciso,
incerto e vago, mormente na sua fixação em cada caso concreto, que o conceito da
culpa, terminando por afirmar que não há princípio jurídico, por mais lógico nas suas
conclusões, por mais primoroso no seu contexto, por mais preciso nos seus
contornos, que possa abranger todos os casos que pretende regular, que não se
revele impreciso, vago e incompleto ante a realidade dos casos concretos.146

Por derradeiro, Alvino Lima fez constar em sua citada obra Culpa e Risco a seguinte
passagem, suficiente, por si só, não obstante sua diminuída extensão, para rebater
integralmente a ideia dos opositores da tese de Josserand:

A teoria do risco não é fruto de uma concepção dogmática, de uma


elaboração doutrinária calcada em princípios abstratos, mas a
conseqüência inevitável da própria vida. Desde que o homem vive
ameaçado seriamente na sua segurança material, procura-se garantir a
vítima dos danos que a culpa não poderia amparar, criando uma segurança
147
jurídica.

Postas, assim, todas as críticas e respostas com relação ao tema da


responsabilidade civil objetiva baseada na doutrina do risco, permitindo-se ao nobre
leitor a visão geral da questão, possibilitando-lhe a opção pela adoção da tese que
melhor lhe convencer.

145
Culpa e risco, p. 198.
146
Ibidem, p. 199.
147
Ibidem, p. 198.
67

A nós nos parecem irretocáveis os rebates de Alvino Lima às críticas acima


formuladas contra a doutrina do risco, não havendo razão para sua rejeição, mesmo
porque já aceita amplamente, no Brasil e no mundo, pela doutrina, pela
jurisprudência e pela legislação, tendo dado origem à própria espécie de
responsabilidade objetiva em exame neste trabalho, aquela derivada do risco da
atividade desenvolvida pelo autor do dano.
68

6. DISTINÇÃO ENTRE O “RISCO” PROPULSOR DA


RESPONSABILIDADE OBJETIVA E O “RISCO” MENCIONADO NO
PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 927 DO CÓDIGO CIVIL

Não se nega – ao contrário, até agora assim se sustentou – que o risco inerente a
determinadas atividades humanas foi o fator determinante para a instituição da
responsabilidade objetiva, sem indagação de culpa, portanto.

Isso é assente na doutrina, bastando notar passagens como a de Yussef Said


Cahali, dando conta que a responsabilidade objetiva do Estado, por exemplo,
decorre do risco criado pelas atividades impostas pelo poder público.148

Rui Stoco, por seu turno, propõe que “pouco a pouco, a responsabilidade civil
marcha a passos largos para a doutrina objetiva, que encontra maior supedâneo na
doutrina do risco”.149

Ainda, diversos renomados juristas já citados neste trabalho apontam o risco como o
fator de propulsão para o afastamento da ideia de culpa quando do exame da
responsabilidade civil. Nesse sentido, pode ser citado Alvino Lima, ao afirmar que “a
teoria objetiva, que funda a responsabilidade extracontratual no risco criado pelas
múltiplas atividades humanas, foi, sem dúvida, a que fixou as bases da nova
concepção da responsabilidade sem culpa”150, e Carlos Roberto Gonçalves,
asseverando que “a responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa para a idéia
de risco”.151

Resumindo e concluindo, então, o risco da atividade humana, mormente a industrial,


foi o elemento determinante para o surgimento da responsabilidade objetiva, lá pelos
idos da segunda metade do século XIX.

Neste trabalho, todavia, o intuito não é o exame deste elemento, isto é, do “risco” da
atividade humana como fundamento da responsabilidade objetiva, apesar deste
instituto já ter sido tratado superficialmente, mas apenas como forma de se angariar

148
Responsabilidade civil do Estado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 35.
149
Tratado de responsabilidade civil, p. 157.
150
Culpa e risco, p. 119.
151
Responsabilidade Civil, p. 23.
69

elementos necessários ao estudo do tema em comento, qual seja, a


responsabilidade objetiva genérica fundada na atividade de risco.

Com efeito, o objetivo dissertativo não é examinar o elemento “risco” responsável


pela introdução da teoria objetiva nos ordenamentos jurídicos, mas sim o “risco”
expressamente previsto na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código
Civil brasileiro, gerador da responsabilidade civil objetiva genérica.

Aquela primeira ideia de “risco” deu ensejo à teoria objetiva desenvolvida no fim do
século XIX e início do século XX, resultando na edição de diversos dispositivos
legais em praticamente toda a legislação mundial, impositivos do dever indenizatório
independentemente de culpa do agente causador do dano, originando-se a
responsabilidade objetiva tipificada ou fechada, como se viu.

Outra ideia de “risco” é a prevista no novel Código Civil brasileiro, referindo-se à


responsabilidade objetiva genérica ou aberta, entregando-se ao aplicador da lei a
tarefa de decidir se determinada atividade oferece ou não perigo aos direitos de
outrem, resultando ou não, respectivamente, no dever indenizatório sem culpa.

Essa advertência serve apenas para posicionar o leitor sobre o fato de que não se
pretende, neste trabalho, discorrer sobre a doutrina do “risco” que originou a
responsabilidade objetiva tipificada ou fechada, mas sim que se pretende estudar o
“risco” como elemento nuclear da nova modalidade de responsabilidade civil objetiva
genérica advinda com o Código Civil de 2002.

Sendo só para o momento, a seguir será melhor examinado o conteúdo do termo


“risco”, colocado na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil de
2002, ponto essencial do tema dissertado.
70

7. JUSTIFICATIVA PARA A RESPONSABILIDADE CIVIL FUNDADA


NA ATIVIDADE DE RISCO

A mesma distinção que se fez no item anterior vale neste capítulo, qual seja, não se
visa analisar a justificativa para o surgimento da doutrina do risco no final do século
XIX, mas sim discorrer sobre a motivação da abertura do sistema objetivo de
responsabilização introduzido nos ordenamentos jurídicos a partir da segunda
metade do século XX, resultando na cláusula genérica de responsabilidade objetiva
fundada na atividade de risco prevista na segunda parte do parágrafo único do art.
927 do Código Civil brasileiro de 2002.

Nesse sentido, pode-se dizer que várias são as vertentes, legais e doutrinárias, que
procuram fundamentar a ideia de que uma pessoa possa ser responsabilizada
civilmente sem que tenha atuado culposamente, mas só pelo fato de ter exercido
uma atividade arriscada para os direitos de outrem.

Para Carlos Roberto Gonçalves, predomina a ideia de igualdade na ação e reação


para aquele que se dá ao exercício de uma atividade arriscada aos direitos alheios,
nos seguintes termos:

A responsabilidade objetiva funda-se num princípio de eqüidade, existente


desde o direito romano: aquele que lucra com uma situação deve responder
pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes (ubi emolumentum, ibi
onus; ubi commoda, ibi incommoda). Quem aufere os cômodos (ou lucros)
152
deve suportar os incômodos (ou riscos).

Essa noção de reposição dos cômodos (os lucros) pelos incômodos (os riscos)
parece intangível no assunto, sendo já posta em relevo durante as aulas de direito
civil ministradas pela eminente professora Rosa Maria de Andrade Nery, no curso de
mestrado da Pontifícia Universidade Católica, pronunciando a ideia com outras
palavras: “aquele que aufere o bônus deve suportar o ônus”.

Afirma Carlos A. Ghersi que:

La ley 17.711, acorde com esta nueva orientación del derecho de daños,
introdujo otros factores objetivos de atribución, especialmente el riesgo
creado.

152
Responsabilidade civil, p. 276.
71

El legislador ha querido estructurar um sistema que, sin prescindir de la


culpa como outro factor atributivo más de responsabilidad, otorgara mayor
protección a quienes están expuestos a um riesgo, frente quienes han
potenciado o aumentado la possibilidad de producción de daños. Ese riesgo
pode ser creado no solo mediante una cosa, sino también a través de una
actividad riesgosa.
La reparación de los daños es consecuencia entonces de la incorporación
de un elemento potencialmente dañoso y del beneficio obtenido con su
utilización, que impone correlativamente la obligación de asumir la
responsabilidad de reparar los daños causados.
La doctrina del riesgo parte de la relación riesgo-provecho que toda
153
actividad económica involucra.

Nota-se a noção de proveito, que levaria, então, o autor do dano a indenizar a infeliz
vítima de sua atividade lucrativa arriscada, na visão de Carlos A. Ghersi.

Rui Stoco traz uma outra noção, chamando a atenção para a cautela que deve ser
observada pelo agente da atividade arriscada, asseverando que

O fundamento nuclear da teoria está em que o dever de cuidado daquele


que exerce atividade que possa colocar em perigo a segurança e a
incolumidade de outrem deve ser maior, de modo que, havendo dano a
154
terceiro, surge a obrigação de reparar.

Aguiar Dias, ao interpretar o parágrafo único do artigo 929 (atual art. 927) do projeto
que resultou no Código Civil de 2002, reconhecendo a concessão de espaço à
responsabilidade civil baseada no risco, afirmou que:

A novidade só merece louvores, pois baseada no princípio romano neminen


laedere. As confusões que a respeito se estabelecem não levam em conta o
verdadeiro sentido desse mandamento, que não estabelece a obrigação de
indenizar para todo e qualquer dano, mas exige que ele seja injusto e que
tenha certa relevância. Nesses limites, seria possível adotar os princípios
objetivos e alargar seus domínios, além do tímido ensaio do projeto. Banir a
culpa do sistema da responsabilidade civil talvez seja uma temeridade,
dadas as repercussões econômicas que acarretariam a adoção integral do
princípio do risco. Mas já é tempo de consagrar a responsabilidade objetiva
para atividades que resultem, só pelo seu exercício, com freqüência
155
considerável, em dano injusto para a comunidade.

Verifica-se, então, a noção de que o agente que exerce a atividade arriscada deve
suportar a indenização porque a ninguém é dado lesionar o outro (neminem
laedere), de forma que foi necessária e bem vinda a introdução da responsabilidade
objetiva genérica pelo exercício da atividade de risco.
153
Theoría general de la reparación de daños. Buenos Aires: Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma,
1997, p. 145.
154
Tratado de Responsabilidade Civil, p. 177.
155
Da responsabilidade civil, p. 40-41.
72

Aida Kemelmajer Carlucci e Carlos Parellada afirmam que o dano pode dar-se entre
um inocente e um culpado, em cujo caso não há dificuldade em se valer de fatores
subjetivos de atribuição de responsabilidade. Mas, segundo eles, também é possível
que o dano derive de um proceder de um sujeito a quem não se pode reprovar sua
conduta; trata-se de dois inocentes: o que sofre o dano e o que causa o dano; neste
caso os fatores objetivos de atribuição disciplinam a questão, pois o dano não foi
injustamente causado, mas injustamente sofrido156.

Segundo Octavio Augusto Machado de Barros, “os que invocam a teoria do risco o
fazem com base principalmente na eqüidade e na solidariedade”.157

De acordo com Carlos Alberto Bittar,

A filosofia que domina esse crescente setor é a de que a vítima não pode
ficar sem reparação. Assim, as orientações básicas são as de que deve
haver uma extensão da área da responsabilidade civil e uma justa
distribuição dos riscos, posições que vão, de forma concreta, em algumas
158
situações, chegando à mencionada socialização dos riscos.

Numa outra vertente, José Acir Lessa Giordani159 enfoca a responsabilidade objetiva
genérica do Código Civil sob o prisma da ampliação do acesso à justiça, como
medida de cunho democrático, no que é seguido por Anderson Schreiber, ao
sustentar que “a orientação constitucional foi, neste particular, concretizada de forma
corajosa pelo novo Código Civil brasileiro, o qual instituiu, no parágrafo único do art.
927, uma cláusula geral de responsabilidade objetiva para a atividade de risco”.160

Georges Ripert161, visualiza a questão sob dois enfoques, ora afirmando que “não é
por ter causado o risco que o autor é obrigado à reparação, mas sim porque o
causou injustamente, o que não quer dizer contra o direito, mas contra a justiça”, ora
ao dissertar sobre o domínio da lei moral no direito, propondo que “o dever de não
fazer mal injustamente a outros é o fundamento da responsabilidade civil”,
prosseguindo no seguinte sentido:

156
In Responsabilidad Civil. ITURRASPE, Jorge Mosset (Org.). Buenos Aires: Hammurabi, 1997, p.
187.
157
Responsabilidade pública, p. 45.
158
Responsabilidade civil: teoria e prática. São Paulo: Forense Universitária, 2005, p. 97.
159
A responsabilidade civil objetiva genérica, p. 2-3.
160
Novas tendências da responsabilidade civil brasileira. Revista Trimestral de Direito Civil, n. 22,
p. 50, abr./jun. 2005. p. 50.
161
A regra moral nas obrigações civis, p. 226.
73

Não se julgue que na elaboração desta teoria nova, os espíritos não tenham
sido guiados pelas mais altas considerações morais. A repartição do mesmo
gênero de prejuízos, causados pela mesma categoria de pessoas à mesma
categoria de vítimas, atesta a existência duma desigualdade resultante da
vida social e cria um nervosismo maior que não permite mais conceber o
162
prejuízo como fatal.

Para Sérgio Cavalieri Filho, equiparam-se o fato do produto ou do serviço previsto


nos artigos 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor e a responsabilidade pelo
risco da atividade imposta pela segunda parte do parágrafo único do artigo 927 do
Código Civil.163

Mário Júlio de Almeida Costa compreende que se alguém exerce uma atividade
criadora de perigos especiais, ela deve responder pelos danos que ocasione a
terceiros, como que numa contrapartida das vantagens que aufere no exercício de
tal atividade164.

Trimarchi afirma que o empreendedor deve assumir o risco, mesmo sem ser
culpado, conexo com sua empresa, pois está capacitado a enfrentá-lo
economicamente, assegurando-se contra ele, o prevendo diretamente, e guardando
somas para ressarcimento dos danos causados pela empresa, refazendo-se com
um correspondente aumento do preço dos bens e serviços produzidos.165

E continua Trimarchi a dizer que a responsabilidade objetiva pelo risco da empresa


desenvolve uma função econômica tal de justificá-la também frente a uma grande
difusão da previdência individual ou frente a um sistema de previdência social, que
igualmente garanta a asseguração de qualquer dano. Para ele, tal função se conecta
com a teoria econômica da distribuição de custos e proveitos.166

Assim, segundo o italiano, a responsabilidade objetiva tem, então, a função de


cuidar para uma redução de risco.167

Para Jaime Santos Briz, o fundamento da responsabilidade por risco se baseia na


justiça distributiva: tem-se assim que a doutrina e as legislações modernas colocam

162
A regra moral nas obrigações civis, p. 213.
163
Programa de responsabilidade civil, p. 285.
164
Direito das Obrigações, 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1994, p. 514.
165
Rischio e responsabilitá oggettiva. Milano: Dott A. Giuffré, 1961, p. 31.
166
Ibidem, p. 34.
167
Ibidem, p. 36.
74

ou tratam de colocar frente ao tradicional princípio da culpa o novo princípio da


responsabilidade sem culpa, que responde às exigências de nossos tempos168.

E, finalizando, por assim dizer um dos maiores mestres da matéria no direito


internacional, Louis Josserand expressa o que lhe parece justificar a adoção da
responsabilidade civil objetiva pelo exercício de uma atividade arriscada para os
direitos alheios:

En suma, el principio de que el creador de un riesgo debe asumir las


consecuencias de su realización recibe desde ahora aplicación frecuente: el
directo de un organismo industrial, comercial, administrativo, judicial,
universitario, profesional, queda constituido por la ley en su propio
asegurador por razón de los riesgos que ha creado; nada tiene que ver en
este asunto la idea de mérito o demérito; el problema de la responsabilidad
en materia civil deja de ser un problema de imputabilidad, para convertirse
en un esfuerzo de repartición de los daños; la justicia distributiva, repartitiva,
sustituye a la justicia individual; a cada uno según sus actos y según sus
iniciativas, a cada uno la responsabilidad que lógicamente atrae sobre él la
autoridad y la fiscalización de que dispone, o si se quiere, es la idea de
reparación la que substituye a la responsabilidad; son éstas, unas ideas
simples que se encuentran en la base de la responsabilidad moderna,
hecha a medida de una sociedad emprendedora y sin las cuales los débiles
correrían peligro de ser triturados por los fuertes: es al hecho sin más el que
tiende a sustituir, no en todos los casos pero sí en campos cada vez más
numerosos y como elemento generador de responsabilidad, al hecho
culposo del derecho romano y del artículo 1.382; no somos responsables ya
como culpables, sino como “realizadores de actos”; fuera de esta directiva,
no hay en nuestra época equilibrio posible entre los derechos y los intereses
169
rivales en constantes rozamientos.

Até aqui, pronunciaram-se os doutos no assunto acerca dos verdadeiros


fundamentos para a adoção da responsabilidade civil objetiva genérica pela
atividade de risco, passando-se, agora, ao exame das disposições constitucionais e
legais impulsionadoras da formatação do instituto.

Já a Constituição do Império de 1824 determinava a elaboração de um Código Civil


baseado na justiça e na eqüidade, lembrando-se que parte dos juristas acima
citados acabaram de se referir aos dois institutos como essenciais na adoção da
responsabilidade civil objetiva genérica pelo exercício de atividade arriscada.

A atual Constituição da República Federativa do Brasil, logo no seu preâmbulo,


assenta suas bases na harmonia social, sendo relevante, nesse particular, a
passagem de Carlos Roberto Gonçalves, aduzindo
168
La responsabilidad civil – derecho sustantivo y derecho procesal. 7ª ed. Madrid: Editorial
Montecorvo S.A., 1993, v. 2, p. 553/554.
169
Derecho civil, p. 447-448.
75

Que quem pratica um ato, ou incorre numa omissão de que resulte dano,
deve suportar as conseqüências do seu procedimento, tratando-se de uma
regra elementar de equilíbrio social, na qual se resume, em verdade, o
170
problema da responsabilidade.

Então, encarada a responsabilidade civil como um problema social, o direito teve


que encontrar uma solução para ele no seio da própria sociedade, fazendo-o por
meio da teoria objetiva, mormente agora com o advento da responsabilidade civil
objetiva genérica decorrente do risco da atividade do agente, cumprindo-se o ideal
posto no preâmbulo constitucional no que tange à harmonia social.

Realmente, pense-se na hipótese de um pai de família tornado inválido por conta de


um acidente ocasionado por um caminhão que transportava gasolina, ficando
desprovidos todos seus entes familiares da renda mensal que o trabalhador lhes
proporcionava. Imagine-se o mesmo acontecendo com várias famílias. Estará
comprometida ou não a harmonia social? Óbvio que sim. Parte dos dependentes,
agora desprovidos da renda paterna, não vai se enveredar pelo caminho ilícito para
a satisfação de suas necessidades, dando origem a uma série de atos criminosos?
Mesmo os que se mantiverem na legalidade, terão oportunidade de estudo
adequado e futura colocação profissional? Note-se o comprometimento do bom
andamento da sociedade por conta da ocorrência de alguns acidentes, falando-se
apenas em pessoas não diretamente vitimadas pelo infortúnio, sem contar o pobre
homem que, se ainda vivo, perdeu sua capacidade de trabalho ou a teve
acentuadamente reduzida. A solução para essa desarmonia social criada pelos
acidentes foi, como se viu, a instituição da responsabilidade sem culpa, sobretudo,
doravante, de forma genérica, pelo simples desenvolvimento de uma atividade
arriscada para os direitos alheios, de sorte que a vítima possa se ver minimamente
ressarcida, evitando-se maiores desdobramentos prejudiciais ao bem comum.

Conclui-se, assim, que, logo no preâmbulo constitucional, há farto material


justificador da instituição da responsabilidade objetiva genérica em exame.

Caminhando pela Constituição Federal de 1988, encontram-se, ainda, o princípio


fundamental da dignidade da pessoa humana (inciso III do artigo 1º) e o objetivo
fundamental de construção de uma sociedade justa e solidária (inciso I do artigo 3º),

170
Responsabilidade civil, p. 3.
76

tudo a recomendar o surgimento de instituto tão eficaz na concretização dos


mencionados preceitos constitucionais.

E a respeito da relação de submissão dos dispositivos infraconstitucionais (e lembre-


se que o presente estudo lida com um deles: o parágrafo único do art. 927 do
Código Civil) às normas postas na Magna Carta, assim se manifesta Canaris:

Em quase todo e qualquer ordenamento jurídico moderno, de modo mais


ou menos cogente, coloca-se a questão da relação entre os direitos
fundamentais e o Direito Privado. Ela radica no fato de os direitos
fundamentais, enquanto parte da Constituição, terem um grau mais
elevado na hierarquia das normas do que o Direito Privado, podendo, por
conseguinte, influenciá-lo. Por outro lado, a Constituição, em princípio, não
é o lugar correto nem habitual para regulamentar as relações entre
cidadãos individuais e entre pessoas jurídicas. Nisso consiste, muito pelo
contrário, a tarefa específica do Direito Privado, que desenvolveu nesse
empenho uma pronunciada autonomia com relação à Constituição; e isso
não vale apenas em perspectiva histórica, mas também no tocante ao
conteúdo, pois o Direito Privado, em regra, disponibiliza soluções muito
mais diferenciadas para conflitos entre os seus sujeitos do que a
Constituição poderia fazer. Disso resulta certa relação de tensão entre o
grau hierárquico mais elevado da Constituição, por um lado, e a autonomia
171
do Direito Privado, por outro.

Assim, descendo mais amiúde, positivando na legislação comum as máximas


constitucionais acima referidas, o Código Civil de 2002 trouxe como princípios a
socialidade, a eticidade e a operabilidade. A socialidade enuncia a prevalência do
interesse coletivo sobre o individual, daí resultando a noção de que toda a
comunidade, vista como entidade abstrata, constituída por cada um de seus
indivíduos, tem o direito de se ver protegida preventiva e repressivamente com
relação às práticas de atividades consideradas arriscadas para os direitos alheios e
que causem estragos.

Postos, assim, os elementos doutrinários e legais que justificaram a adoção da


responsabilidade civil objetiva genérica pela atividade de risco desenvolvida pelo
autor do dano.

171
CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na
Alemanha, In Constituição, Direito Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Editora Livraria do
Advogado. 2ª edição, 2006, p. 227.
77

8. ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA


GENÉRICA PELO EXERCÍCIO DE ATIVIDADE DE RISCO

Bem se poderia delimitar o âmbito de incidência da responsabilidade objetiva


genérica pela exegese da expressão contida na segunda parte do parágrafo único
do artigo 927 do Código Civil: quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Esse é o trabalho a ser desenvolvido nos capítulos subsequentes, quando serão


levados em consideração todos os métodos de hermenêutica jurídica, como as
interpretações literal, histórica, sistemática e finalística.

Antes mesmo disso, contudo, será buscado o âmbito de atuação da


responsabilidade objetiva genérica por exclusão, em virtude da incidência de outros
sistemas de responsabilização que são específicos para aquela determinada
situação.

Assim, em primeiro plano, quando o evento danoso resulte de uma conduta culposa
(lato sensu, incluindo a dolosa ou aquela praticada por imprudência ou negligência),
haverá incidência do caput do artigo 927 do Código Civil, aplicando-se a teoria
clássica subjetiva, com exclusão da responsabilidade objetiva genérica pela
atividade de risco.

Também não haverá necessidade de se recorrer à responsabilidade objetiva


genérica pelo exercício de atividade arriscada quando a situação em apreço se
subsumir a uma das hipóteses legais de responsabilidade objetiva típica ou fechada,
como, repita-se, nos acidentes ocasionados em linhas férreas (Decreto nº 2.681/12),
nos acidentes aéreos e resultantes de queda de objetos de aeronaves (artigos 226 e
246 e seguintes da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código de
Aeronáutica), nos acidentes de trabalho (Lei nº 6.367, de 19 de outubro de 1976),
nos danos ambientais (Lei do Meio Ambiente, nº 6.938/81) etc.

Ainda, nas relações de consumo não haverá lugar para a aplicação da


responsabilidade objetiva genérica pela atividade arriscada, dado que o Código de
Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) regerá a situação, como, por exemplo, na
78

prestação de serviço defeituoso, incidindo a responsabilidade objetiva típica ou


fechada, por conta da incidência do artigo 14 do citado diploma consumerista, ou no
caso de vício de qualidade ou de quantidade do produto, aplicando-se o artigo 18 da
mesma lei.172

Nesse sentido, sobre a repartição do campo de incidência do Código de Defesa do


Consumidor e do Código Civil, assim se manifestou a professora Cláudia Lima
Marques:

Subjetivamente, o campo de aplicação do CDC é especial, regulando a


relação entre fornecedor e consumidor (arts. 1º, 2º, 3º, 17 e 29) ou relação
de consumo (arts. 4º e 5º). Já o campo de aplicação do CC/02 é geral:
regula toda relação privada não privilegiada por uma lei especial. Um, o
CDC, é um micro-sistema especial, um código para agentes “diferentes” da
sociedade ou consumidores, em relações entre “diferentes” (um vulnerável
– o consumidor – e um expert – o fornecedor). O outro, o CC/02, é um
código geral, um código para os iguais, para relações entre iguais, civis e
empresariais puras. Logo, não haveria colisão possível entre estas duas
leis, como expressamente prevê o art. 2º da lei de introdução do Código
173
Civil (LICC), de 1942 (que continua em vigor).

Por isso que o exemplo trazido por Leonardo de Faria Beraldo como de atividade de
risco, data venia, não poderia servir ao comentário que fez ao parágrafo único do
artigo 927 do Código Civil, tendo colacionado a seguinte ementa de acórdão do
Tribunal de Justiça do Paraná:

O fabricante de produto de limpeza, que coloca no mercado produto


perigoso, “diabo verde”, cujo contato com a água provoca gases explosivos,
resultando em cegueira da consumidora, deve reparar os danos materiais
decorrentes da incapacidade permanente e danos estéticos, posto que a
venda de tais produtos deve ser efetuada com suficiente advertência em
relação às transformações químicas, produzindo a formação de gases, com
explosão da embalagem. Em tal situação de perigo, não basta a simples
recomendação quanto ao modo de uso, mas também de advertências
relativas às transformações químicas. Aplicação dos artigos 9º e 10º do
Código de Proteção ao Consumidor. Recurso conhecido e não provido
(TJPR, Ap. n. 70.691-2, 3ª Câm. Cível, rel. des. conv. Sérgio Rodrigues,
174
DJPR 8-12-2000).

172
Ressalve-se, todavia, o entendimento de respeitabilíssima parte da doutrina nacional, entendendo
que a hipótese de vício de qualidade ou de quantidade do produto ou do serviço se enquadra na
teoria subjetiva, com presunção absoluta de culpa do fornecedor (QUEIROZ, Odete Novais Carneiro.
Da responsabilidade por vício do produto e do serviço. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998,
passim).
173
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, 1342 p.
174
A responsabilidade civil no parágrafo único do art. 927 do Código Civil e alguns
apontamentos do direito comparado. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 376, p. 135, nov./dez.
2004.
79

Note-se que, não obstante o v. acórdão tenha se referido a atividade perigosa, não
se pode deixar de notar que a questão não foi resolvida com fundamento na
responsabilidade objetiva genérica prevista no Código Civil, objeto do estudo de
Faria Beraldo, mas sim com lastro na já tradicional responsabilidade objetiva
tipificada ou fechada do Código de Defesa do Consumidor.

O que se quer dizer é que não incide a responsabilidade civil objetiva genérica nas
questões afetas às relações de consumo, por já terem seus regramentos exauridos
pela Lei de Proteção ao Consumidor.

A prestação de serviços defeituosos por profissionais liberais, por seu turno, também
não poderá ser resolvida pela aplicação da segunda parte do parágrafo único do art.
927 do Código Civil, porque somente será apurada mediante a verificação da culpa
do agente danoso (§ 4º do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor).

A responsabilidade civil do Estado, por seu turno, também não deriva da


mencionada atividade de risco como prevista no Código Civil, mas da teoria do risco
administrativo mitigado175, encampada pelo § 6º do art. 37 da Constituição Federal,
de forma que as relações indenizatórias entre administração (como devedora) e
administrado (como credor) são apuradas com base na responsabilidade objetiva
típica ou fechada.

A Lei de Responsabilidade do Operador de Instalação Nuclear (6.453/77), segundo


Carlos Alberto Bittar, já gerou um novo sistema de responsabilidade civil, impondo-
se o dever indenizatório mais que independente da culpa, prescindo-se da própria
conduta e do nexo causal no trato das práticas nucleares. Não tem aplicação, pois, a
responsabilidade objetiva genérica pela atividade arriscada aos acidentes
decorrentes das práticas nucleares, em virtude de seu regramento específico.

Ainda, diversas passagens do Código Civil vigente impõem a responsabilização


objetiva sem que se cogite de exercício de atividade arriscada, como nos casos do
artigo 932, inciso I (responsabilidade dos pais pelos atos dos filhos menores), inciso
II (responsabilidade dos tutores e curadores pelos atos dos tutelados ou
curatelados), inciso III (responsabilidade do empregador pelos atos do empregado),
175
Segundo Rui Stoco (Tratado de responsabilidade civil, p. 1.006), porque fica o Estado obrigado
a reparar o dano causado por seu agente, assegurado o direito de regresso contra o causador do
dano, se comprovada a culpa ou o dolo deste.
80

do artigo 936 (responsabilidade do dono pelo dano causado pelo animal), do artigo
937 (responsabilidade do dono do edifício pelo dano resultante de sua ruína) e do
artigo 938 (responsabilidade do habitante do prédio pelos danos ocasionados pela
queda de objetos), cada qual cogitando de uma específica situação, no que
claramente se está lidando com a responsabilidade objetiva típica ou fechada.

O Código de Mineração (Decreto-lei nº 277, de 28 de fevereiro de 1967) igualmente


disciplina uma dada e certa atividade, não havendo que se falar em perigo ou risco
para se eclodir a responsabilização do agente danoso, tratando-se de
responsabilidade objetiva fechada ou típica.

Por último, deve ser dito que, com relação às práticas contratuais não se deve
cogitar da incidência da responsabilidade objetiva genérica pela atividade de risco,
porquanto esta é uma modalidade de responsabilidade civil aquiliana,
extracontratual. Os problemas advindos dos negócios jurídicos, sobretudo no que
tange às indenizações devidas pelos inadimplementos das prestações, são regidos
pelas disposições contidas no Título IV do Livro I da Parte Especial do Código Civil,
denominado Do inadimplemento das obrigações, sendo que o instituto em exame
dissertativo (a responsabilidade civil objetiva genérica pela atividade de risco) está
previsto no mesmo Livro I, porém em outro Título (o de nº IX).

Dessa exclusão da disciplina da responsabilidade objetiva genérica pelo risco da


atividade às práticas negociais, conclui-se pela diminuição acentuada dos casos que
podem ser regidos pela segunda parte do parágrafo único do artigo 927 do Código
Civil, uma vez que boa parte das indenizações são buscadas com base no
inadimplemento contratual.

A questão, entretanto, da aplicação de um sistema ou de outro para a busca da


indenização não é tão simples como parece. Apenas para não ficar no vazio, mas
ressaltando-se que o tema será examinado com mais pausar no decorrer deste
estudo, cita-se o exemplo do pagamento feito pela instituição financeira de cheque
falso com fundos da conta do correntista, que se depara com o prejuízo para o qual
não contribuiu de qualquer maneira. Pergunta-se: a questão indenizatória se resolve:
1) de acordo com o direito contratual, impondo-se ao banco o dever de restituir a
quantia sacada por força do contrato de depósito estabelecido entre ele e o cliente?
81

2) de acordo com a teoria clássica da culpa, impondo-se à vítima a demonstração de


que o banco negligenciou de algum modo no pagamento da cártula, talvez com
presunção de culpa por parte da instituição de crédito? 3) de acordo com o Código
de Defesa do Consumidor, declarando-se defeituoso o serviço prestado pela
instituição financeira? ou 4) de acordo com a examinada responsabilidade objetiva
genérica, taxando-se de arriscada a atividade bancária, decorrendo daí o dever
indenizatório sem que fale em culpa?

Está aí o problema, procurando dele se ocupar quando do exame de cada uma das
atividades em que se vislumbrou algum resquício de risco para os direitos de
outrem, ainda que seja para negá-lo, como se verá.

Mais preciso, porém, que se vislumbrar um âmbito de atuação por exclusão, é


examinar criteriosamente o conteúdo da longa expressão que consagrou a
responsabilidade civil objetiva genérica pela atividade de risco, de forma a nela se
fazer subsumir o fato criador de risco para os direitos alheios, tarefa que será
desenvolvida logo mais.
82

9. POSICIONAMENTOS CONTRÁRIOS E FAVORÁVEIS À


ABERTURA DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA

A essa altura pensa-se já estar suficientemente claro o fato de que à teoria subjetiva
juntou-se, sem substituí-la, contudo, a teoria objetiva, não se cogitando da culpa
para a imposição do dever indenizatório ao agente causador do dano.

Ocorre que, como já visto, em princípio, tal dever indenizatório veio posto em
dispositivos legais que previam certos e determinados casos, sem que houvesse
uma cláusula genérica nesse sentido, daí se falando em responsabilidade objetiva
tipificada ou fechada.

Nesse particular, a evolução operada pelo Código Civil de 2002 foi exatamente a
instituição de tal cláusula indenizatória genérica, tendo como fato gerador da
responsabilidade a atividade de risco para os direitos alheios desenvolvida pelo
agente causador do dano.

Deu-se, então, a abertura do sistema da responsabilidade objetiva, pois antes eram


taxativas as situações de indenização sem culpa, e agora, após a edição da novel lei
civil de 2002, despontará o dever indenizatório desde que a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano seja considerada de risco para os direitos de
outrem.

Sobre a conveniência dessa abertura no sistema da responsabilidade objetiva é que


diverge a doutrina.

Carlos Roberto Gonçalves se filia aos que se mostraram satisfeitos com a novidade,
asseverando que “dentro dos estreitos limites de uma codificação subjetivista, como
o Código Civil brasileiro em vigor, poderão as vítimas ficar ao desamparo, em alguns
casos”, concluindo que agora a jurisprudência pode completar o quadro protecionista
da responsabilidade civil ante a realidade de novas situações de perigo que possam
surgir, a par das já consagradas.176

Da mesma forma, Rui Stoco, ao afirmar que:

176
Responsabilidade Civil, p. 279.
83

Para nós, embora contendo um título aberto e tendo a nossa legislação,


mais uma vez, sobrecarregado a responsabilidade e ampliado as
atribuições dos magistrados, em primeira e segunda instâncias, o que se
critica é o fato de o Código Civil não ter enunciado, quando menos, as
diretrizes e as características mínimas do que se deve considerar para
definir as atividades perigosas. Vencido esse aspecto, a alteração é
benéfica e garantidora, assegurando às vítimas a certeza de que os danos
177
suportados serão reparados.

Silvio Rodrigues, comentando o anteprojeto que originou o Código de 2002, concluiu


favoravelmente à abertura do sistema, nos seguintes termos:

[...] poder-se-ia dizer que o preceito do Anteprojeto representa um passo à


frente na legislação sobre a responsabilidade civil, pois abre uma porta para
ampliar os casos de responsabilidade civil, confiando ao prudente arbítrio do
Poder Judiciário o exame do caso concreto, para decidi-lo não só de acordo
178
com o direito estrito, mas também, indiretamente, por eqüidade.

Elucidativa, mais uma vez, a explanação da professora do curso de mestrado da


Pontifícia Universidade Católica, Rosa Maria de Andrade Nery, discorrendo sobre o
trabalho criador do juiz, mostrando-se favorável à abertura do sistema, trafegando
pelo seguinte caminho:

Por isso se entende que o Direito não pode prescindir, na atualidade, de


direcionar-se para o denominado sistema aberto, sob pena de não poder
acompanhar as mudanças que se desenvolvem a cada minuto no meio
social. É possível que o jurista possa superar a crise do envelhecimento do
Direito posto sem que se faça uso de método de trabalho que supere o
anacronismo da lei, desde que se comprometa com o procedimento
decisório e o trabalho de resolver conflitos, participando diretamente do
179
poder criador do Direito e exercendo parcela do Poder.

De outro lado, Silvio de Salvo Venosa se apresenta como opositor da tratada


abertura da responsabilidade objetiva, para quem:

Sob esse prisma, o Novo Código Civil apresenta, portanto, uma norma
aberta para a responsabilidade objetiva no parágrafo único do art. 927. Esse
dispositivo da lei nova transfere para a jurisprudência a conceituação de
atividade de risco no caso concreto, o que talvez signifique perigoso
alargamento da responsabilidade sem culpa. É discutível a conveniência de
uma norma genérica nesse sentido. Melhor seria que se mantivesse nas
180
rédeas do legislador a definição da teoria do risco.

177
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil, p. 179.
178
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 166.
179
NERY, Rosa Maria de Andrade. Noções preliminares de direito civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, p. 69.
180
A responsabilidade objetiva no novo Código Civil. Disponível em:
www.facs.br/revistajuridica/edicao_maio2003/convidados/c1.doc. Acesso em 07 de janeiro de 2009.
84

Também contrário à abertura da responsabilidade objetiva é o jurista Leonardo de


Faria Beraldo, afirmando que “não somos a favor de uma cláusula geral igual a esta
no âmbito da responsabilidade civil, uma vez que deixa ao alvedrio do juiz a
indicação de quais seriam os casos de aplicação da responsabilidade objetiva”.181

No plano internacional, Jaime Santos Briz propõe que deve ser rechaçada a ideia da
existência de um princípio geral de risco ou de exposição ao perigo que possa
situar-se ao lado do tradicional princípio da responsabilidade por culpa182.

Diga-se, com todo o respeito, que este é um posicionamento equivocado, sendo de


se dar boas vindas à abertura do sistema de responsabilidade civil objetiva. Isso
porque o direito não é dito apenas por um juiz, havendo todo um sistema de
recursos para a aferição da correção da decisão monocrática.

Ainda, as partes, por meio de seus procuradores, têm o ônus de levar ao juiz seu
convencimento sobre o que entendem por atividade perigosa, participando também
da interpretação e conclusão acerca do que pode ser compreendido como atividade
de risco.

Deve ser lembrado, também, que outras tantas situações são entregues ao decisório
judicial e nem por isso houve qualquer tipo de insurgência, valendo dizer, por
exemplo, do conteúdo extremamente vago do § 4º do art. 1.228 do Código Civil.
Nesse sentido, quanto ao conteúdo deste dispositivo legal, indaga-se o que significa
extensa área, ou considerável número de pessoas, ou obras e serviços de interesse
social e econômico relevante. Quem ditará o significado de tantas expressões da lei
será o juiz, apoiado, sempre, na doutrina, na jurisprudência e no trabalho
argumentativo das partes, estando sua decisão sujeita ao duplo grau de jurisdição e
ainda aos recursos especial e extraordinário, conforme o caso.

Outrossim, é cediço que o legislador não teria condições de estabelecer previamente


todas as situações de risco, tendo optado pela abertura do sistema a fim de não se
deixar irressarcida uma vítima de alguma atividade por ventura não relacionada
previamente na lei.

181
BERALDO, Leonardo de Faria. A responsabilidade civil no parágrafo único do art. 927 do Código
Civil e alguns apontamentos do direito comparado. Revista Forense, n. 376, p. 132.
182
La responsabilidad civil – derecho sustantivo y derecho procesal, p. 561/562.
85

Por fim, diga-se que a solução brasileira já foi adotada em vários países
desenvolvidos e com suas democracias já devidamente consolidadas, não
procedendo, pois, a insurgência de parte da doutrina quanto à abertura do sistema
da responsabilidade objetiva.

A manifestação mais fervorosa e fundamentada no assunto foi desenvolvida por Acir


Lessa, corroborando o posicionamento dissertativo acima escolhido como correto:

Não vemos como manter as hipóteses de responsabilidade civil baseadas


na teoria do risco especificadas na lei sob o controle absoluto do legislador,
a quem caberá, com exclusividade, instituir cada caso de responsabilidade
sem culpa. Na realidade, isso representaria, como já mencionamos, um
grave retrocesso na linha evolutiva do nosso direito em tema de
responsabilidade civil. A verdade é que, especialmente na atualidade, os
fatos sociais se revestem de tamanho dinamismo, com a evolução, muitas
vezes descontrolada, de diversas áreas da ciência, proporcionando, a todo
instante, o surgimento de novos riscos de natureza diversificada e, por isso
mesmo, de difícil análise e compreensão. O mundo vem tornando-se cada
vez menor com o desenvolvimento dos meios de comunicação e dos meios
de transportes, a cada dia mais rápidos. A evolução da ciência na área
biomédica, a possibilidade de clonagem, as novas técnicas de reprodução
assistida, o desenvolvimento dos transgênicos, a evolução da indústria, a
informática, que revoluciona nossas vidas quase diariamente, e outras
mudanças da realidade que se apresentam em seqüência impossível de ser
acompanhada, inviabilizam manter nas mãos do legislador a missão
irrealizável de prever especificamente todos estes riscos novos,
regulamentando-os sob a ótica da responsabilidade civil. É do
conhecimento de todos que a atividade legislativa é, especialmente nesta
área, por demais lenta, seja pela sua própria natureza, seja pela realidade
política que vivenciamos no momento. A instituição das hipóteses de
responsabilidade civil objetiva estaria fadada ao insucesso sem a moderna
previsão de cláusulas abertas que possibilitem ao juiz, diante do caso
concreto, de forma criteriosa e prudente, estabelecer, por meio da exegese,
as hipóteses que devem ser enquadradas, com base nos elementos
genéricos estabelecidos na lei, na responsabilidade civil objetiva. Ademais,
esta responsabilidade de enquadrar as hipóteses novas de
responsabilidade objetiva instituídas no preceito genérico do art. 927,
parágrafo único, não deve recair apenas sobre o juiz, mas, antes sobre a
própria doutrina, que não poderá se eximir de manifestar-se a respeito do
assunto, procurando fixar os critérios fundamentais para o enquadramento
das hipóteses de responsabilidade sem culpa, previstas no preceito em
183
pauta, de maneira a influenciar positivamente o direito pretoriano.

No âmbito legislativo, países como Alemanha e França não adotaram o sistema


aberto de responsabilidade civil objetiva, prevendo-a apenas na legislação especial.
Outros, ao contrário, como Itália, Portugal, Porto Rico e México, o acolheram, como
será visto no exame do item especialmente dedicado ao estudo do direito
comparado, a seguir.

183
A Responsabilidade Civil Objetiva Genérica, p.87-88.
86

Mais uma vez foram expostos os dois posicionamentos acerca do assunto,


propiciando-se argumentação para ambas as concepções, ressalvando-se, contudo,
que a abertura da responsabilidade objetiva já é uma realidade no Brasil.
87

10. DIREITO ESTRANGEIRO

Válida uma ponderação inicial, pronunciando-se o conhecimento acerca da


insuficiência da mera transcrição de legislações estrangeiras para se promover um
mínimo estudo de direito comparado. Entretanto, além do trabalho desenvolvido
neste capítulo em específico, alguns aspectos comparativos entre textos legais
internacionais e o brasileiro serão examinados pontualmente no decorrer da
dissertação, conforme os temas o exigirem, facilitando-se a compreensão do
assunto.

Dito isso, vale, então, a transcrição e análise de alguns dispositivos legais


alienígenas tocantes ao tema da responsabilidade objetiva genérica pela prática de
atividade de risco para os direitos alheios.

10.1 O DIREITO MEXICANO E O DEVER INDENIZATÓRIO EM VIRTUDE DOS


MEIOS PELOS QUAIS A ATIVIDADE É DESENVOLVIDA

Dispõe o Código Civil mexicano, de 1932, em seu artigo 1.913, que: quando uma
pessoa faz uso de mecanismos, instrumentos, aparelhos ou substâncias perigosas
por si mesmas, pela velocidade que desenvolve, por sua natureza explosiva ou
inflamável, pela energia da corrente elétrica que conduza ou por outras causas
análogas, está obrigada a responder pelo prejuízo que causar, mesmo que não obre
ilicitamente, a não ser que demonstre que esse prejuízo foi produzido por culpa ou
negligência inescusável da vítima.

Percebe-se, logo de início, que o direito mexicano não se bastou na expressão


genérica usada no nosso código “risco para os direitos de outrem”, tendo
proclamado exemplos de situações de perigo, como mecanismos, instrumentos,
aparelhos ou substâncias perigosas, e arrolado três formas de constituição deste
perigo, isto é, por si mesmas, pela velocidade que desenvolve, por sua natureza
explosiva ou inflamável e pela energia elétrica que conduza, trazendo, ao final, uma
cláusula aberta, mencionando ou por outras causas.
88

Constata-se, dessa forma, que o legislador mexicano apontou previamente algumas


situações que não geram qualquer tipo de dúvida acerca de seu perigo para os
direitos alheios, ainda deixando ao juiz a liberdade de decidir acerca do perigo
oferecido por outras tantas atividades que se lhe ponham para conhecimento e
decisão.

No Brasil, não houve essa previsão legal antecipada sobre o risco de determinadas
atividades, ficando a compreensão do que isso significa ao crivo do magistrado, em
cada caso concreto.

Ainda comparando o nosso ordenamento jurídico com o mexicano, pode-se levantar


que no Código Civil brasileiro não há referência à culpa exclusiva da vítima como
excludente da responsabilidade, de forma que, apressadamente pensando sobre o
assunto, estaria aberta a possibilidade de se concluir que, mesmo tendo o lesionado
sido culpado exclusivamente pelo infortúnio, no Brasil, teria ele direito à indenização.

Não parece, todavia, o raciocínio mais adequado, como se verá no exame do item
específico sobre o tema, a seguir. Adiantando, apenas, alguma conclusão, deve ser
mencionado que o artigo 403 do Código Civil brasileiro prevê a indenização por
perdas e danos direta e imediatamente decorrentes da inexecução da obrigação,
obviamente por parte de quem a ela estava jungido. Assim, a culpa exclusiva da
vítima não é óbice para que o prejuízo não seja a ela inteiramente imputado, à vista
da quebra do próprio nexo causal entre o dano e a conduta do suposto ofensor, de
forma que ambos os ordenamentos jurídicos, o brasileiro e o mexicano, nesse ponto,
têm idêntica solução.

10.2 OS CÓDIGOS DE PORTUGAL E DA ITÁLIA E A POSSIBILIDADE DE O


AGENTE DEMONSTRAR QUE SE ACAUTELOU A EVITAR O DANO

Continuando, serão transcritos dispositivos dos Códigos Civis português, de 1967, e


italiano, de 1865, revisto em 1942.

Código Civil português, artigo 493, item II: quem causar dano a outrem no exercício
de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios
89

utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as


providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Código Civil italiano184, art. 2.050: Chiunque cagiona danno ad altri nello svolgimento
di un’attività pericolosa, per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, è tenuto
al risarcimento, se non prova di avere adottato tutte le misture idonee a evitare il
danno.

Cabe, aqui, o exame sobre se o nosso código tende mais ou menos à proteção da
vítima em face dos códigos português e italiano, sendo tema delicado e merecedor
de estudo pausado.

Pensa-se que dois são os problemas a serem enfrentados: o primeiro é saber se o


âmbito de proteção à vítima extrapola da própria atividade desenvolvida pelo
causador do dano, alcançando também os meios pelos quais ela é desenvolvida; o
segundo é saber se é oportunizado ao agente causador do dano demonstrar que se
acautelou suficientemente para que a vítima não sofresse o prejuízo, como forma de
escapar do dever indenizatório.

Conforme forem solucionadas tais questões, será reconhecida a maior ou menor


proteção à vítima, comparando-se a legislação brasileira com os Códigos Civis
português e italiano, o que passa a ser feito.

Com relação ao primeiro problema, os Códigos Civis de Portugal e da Itália impõem,


literalmente, a reparação objetiva tanto para o risco da atividade desenvolvida
quanto para o risco dos meios utilizados. De acordo com o nosso Código Civil,
numa primeira interpretação meramente literal, apenas o risco da atividade
proporciona a responsabilidade objetiva, não o risco oferecido pelo meio utilizado.
Assim, em princípio, poder-se-ia dizer que a vítima goza de maior proteção, nesse
particular, amparada nas legislações portuguesa e italiana.

184
O Código Italiano de 1865 se inspirou no Código de Napoleão, segundo o ilustre doutrinador
daquele país Massimo Bianca, in Diritto Civile, p. 10.
90

Rui Stoco reconhece, contudo, que o nosso Código Civil é mais rigoroso e protetivo
da vítima, em razão de nossa lei ter desprezado o meio utilizado, tornando-o
desimportante para efeito de responsabilização.185

Discorda-se, data venia, da estudada opinião do eminente desembargador do


Tribunal de Justiça de São Paulo e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça.
Isso porque as legislações portuguesa e italiana fizeram constar expressamente nos
dispositivos retro transcritos a conjunção alternativa “ou”, significando que em
qualquer das duas hipóteses – no risco da atividade ou no risco do meio utilizado –
a vítima terá direito à indenização. Já na dicção literal de nossa lei, não consta como
motivo determinante da responsabilidade o risco do meio utilizado, tão-somente o
da própria atividade desenvolvida.

Assim, em princípio, repita-se, no que tange à interpretação meramente literal de


nossa lei, se uma atividade não arriscada for desenvolvida por um meio arriscado, a
vítima do dano não será indenizada. Já segundo os Códigos Civis português e
italiano, a vítima será indenizada se o dano resultar da própria atividade ou em
virtude do meio pelo qual ela é desenvolvida. Dessa forma, parece claro que o nosso
Código Civil opera com menos proteção às vítimas, se comparado aos códigos
português e italiano, nesse ponto.

Com esse raciocínio não se está admitindo que a lei brasileira não contemple a
hipótese de responsabilidade objetiva pelo risco dos meios utilizados para a
consecução da atividade-fim. Esse é um tema que será posto para exame num item
próprio, quando da exegese da expressão legal que consagrou a responsabilidade
objetiva genérica pela atividade de risco. O que se está pretendendo demonstrar é
que a lei brasileira não é mais protetiva da vítima se comparada com as legislações
portuguesa e italiana, mas, sim, menos protetiva, desde que interpretada
literalmente, pois aqui só o risco da atividade confere direito à indenização, não o
risco dos meios utilizados. Seria, no máximo, equiparada, se se concluísse que a
segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002, não obstante
a ausência de referência expressa, abarca, do mesmo modo que o risco da atividade
em si, o risco dos meios pelos quais ela é desenvolvida. Aí se estaria diante de uma
equiparação de proteção no que refere à comparação entre a lei brasileira e as leis

185
Tratado de responsabilidade civil, p. 175.
91

portuguesa e italiana, mas nunca se podendo falar em maior proteção da lei nacional
frente às leis internacionais estudadas.

O segundo problema para se constatar a maior ou menor protetividade da lei


brasileira em relação às leis portuguesa e italiana se refere à permissão ou não da
produção da prova pelo autor do dano de que tomou os devidos cuidados para que a
realização da atividade de risco não causasse prejuízo ao próximo.

Nesse ponto, sem sombra de dúvidas, o nosso código é mais protetivo da vítima
frente às leis portuguesa e italiana. Concorda-se, agora sim, com o admirado Rui
Stoco186, que, ao deixar de prever expressamente a possibilidade de o autor do dano
comprovar que empregou as providências necessárias para evitar o infortúnio, o
Código Civil brasileiro ofertou maior proteção à vítima, ao contrário do que fizeram
os códigos italiano e português, solução, aliás, compartilhada por Carlos Roberto
Gonçalves.187

Corroborando tal assertiva, Cláudio Luiz Bueno de Godoy, in verbis:

Por fim, vale lembrar que a chamada prova liberatória do direito italiano, ou
seja, a demonstração, pelo agente, de que tomou todas as providências
idôneas para evitar o dano produzido (art. 2.050), igual ressalva que se
levou ao Código Civil português (art. 493, n. 2), no direito brasileiro não
serve a beneficiar aquele que desempenha uma atividade produtiva de
especial risco. Veja que, em nosso sistema, a regra do parágrafo único do
artigo 927 foi textualmente inserida em sistema de responsabilidade sem
culpa. Aliás, trata-se mesmo, como se viu, da cláusula geral da
responsabilidade independentemente de culpa, pelo risco da atividade.
Pois, discutir a tomada de medidas preventivas idôneas, pelo agente,
mesmo que com inversão no ônus probatório, é volver a responsabilidade
para o dono da culpa. Ter-se-á, afinal, a possível discussão da não culpa do
responsável pelo desempenho da atividade. Mas culpa não se debate,
como está no preceito legal; a responsabilidade lá estabelecida se erige
188
independente de culpa.

Concluindo: num tema, sobre se a reparação deve ser objetiva apenas no que tange
à atividade ou também com relação aos meios empregados, em princípio, parece
menos protetivo da vítima o Código Civil brasileiro; enquanto noutro tema, no que
refere à possibilidade de o agente causador do dano produzir prova de seu
acautelamento quanto às conseqüências de sua atividade arriscada, parece mais

186
Tratado de responsabilidade civil, p. 175.
187
Responsabilidade Civil, p. 277.
188
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 173.
92

protetiva da vítima a nossa legislação em face dos ordenamentos jurídicos civis


português e italiano.

Ainda no assunto, valem as ponderações de Pietro Trimarchi acerca do artigo 2.050


do Código Civil italiano, sobre se o dispositivo teria se mantido na tradicional teoria
da culpa ou se teria já abarcado a doutrina do risco, a favorecer, neste último caso, a
vítima em detrimento do agente provocador do dano.

Afirma que, na verdade, por falta, na sede de trabalho de preparação do Código Civil
de 1942, de uma aprofundada discussão da questão, não se resolveu o problema da
responsabilidade pelo risco, e a única substancial inovação na matéria veio
representada pelo artigo 2.050, pela responsabilidade derivada do exercício de
atividades perigosas, num princípio intermediário entre aquele da culpa e aquele do
risco, parecendo mais fruto de uma perplexidade que de uma ponderada decisão.189

Mas, o ilustre doutrinador italiano parece não concordar plenamente com a ideia de
algo intermediário entre a culpa e o risco, indagando: mas que dizer da hipótese da
responsabilidade pelo exercício de atividade perigosa que pareceria ter uma posição
intermediária entre o princípio da culpa e aquele do risco?190

E segue Trimarchi, dizendo que, acerca do art. 2.050 do Código Civil italiano,
escreve-se que se trata de uma responsabilidade particularmente rigorosa, fundada,
porém, sempre na culpa. Mas, para ele, como se disse, de fato, entre
responsabilidade por culpa e responsabilidade sem culpa parece não existir nada de
intermediário. Ou existe uma violação de um dever de conduta e então há culpa, ou
não há uma violação de um dever de conduta e então não há culpa: uma terceira
possibilidade não existe, afirma.191

Continua o civilista italiano afirmando que se a responsabilidade de que cuida o


artigo 2.050 do Código Civil da Itália derivasse exclusivamente da falta de adoção de
medidas de segurança que se tinha o dever de adotar, então essa não seria uma
comum responsabilidade por culpa.192

189
Rischio e responsabilitá oggettiva, p. 1.
190
Ibidem, p. 275.
191
Ibidem, p. 276.
192
Ibidem, p. 276.
93

Pareceu-lhe certo que o legislador não teve a intenção, com o artigo 2.050 em
comento, de reafirmar o princípio do artigo 2.043, que trouxe somente uma inversão
do ônus da prova. Para ele, a intenção era não somente de inverter o ônus da prova,
mas também de editar, com uma regra de direito substancial, uma responsabilidade
mais rigorosa que a da responsabilidade por culpa.193

E afirma que tal intenção foi traduzida naquela fórmula legislativa (art. 2.050), porque
se impõe a responsabilidade para quem tenha faltado com a adoção de “todas as
medidas idôneas para evitar o dano”, e a falta de adoção de todas as medidas
idôneas a evitar o dano não significa necessariamente violação de um dever de
conduta. Para Trimarchi, no exercício de cada atividade perigosa pode-se pensar na
adoção de medidas suplementares de segurança além daquelas de que
razoavelmente se requer a adoção. Diz que os controles podem ser feitos de forma
mais minuciosa e mais frequente; os dispositivos de segurança podem ser
multiplicados e outros novos e complicados podem ser adotados. Mas, argumenta,
há um limite razoável a tudo isso: onde o risco residual é suficientemente escasso,
tido em conta – com base num juízo de caráter típico – a utilidade social da atividade
a qual ela está inserida, e a adoção de outras medidas maiores de segurança seria
excessivamente custosa e paralisaria a atividade. Além desse limite, segundo o
italiano, existem ainda possíveis medidas idôneas para reduzir o risco, mas não há
culpa na falta de sua adoção. E concluiu: se a responsabilidade, ainda assim, vem
imposta, ela não é fundada na culpa.194

Trimarchi, então, termina por defender que a responsabilidade do artigo 2.050 não
quer ser uma punição para o empreendedor, mas uma pressão econômica
impessoal sobre a empresa perigosa, por certo risco a ela inerente; e, se assim é, o
fato objetivo da falta de adoção das medidas idôneas a evitar o dano parece
constituir um critério mais adequado a delimitar a responsabilidade: uma
responsabilidade por risco objetivamente evitável, com sua função econômica.195

No Brasil, ao comentar o mencionado dispositivo de lei (o art. 2.050 do Código Civil


da Itália), Giselda Hironaka afirma que o legislador italiano

193
Ibidem, p. 276.
194
Ibidem, p. 277.
195
Rischio e responsabilitá oggettiva, p. 279.
94

[...] esteve muito além do que simplesmente optar por uma regulamentação
da responsabilidade por danos baseada apenas num sistema de culpas e
sanções; na verdade, ele preferiu autorizar, com controle conseqüencial
(impondo ao agente a obrigação de reparar os danos causados a terceiro),
196
o exercício de uma atividade perigosa, se ela tivesse uma utilidade social.

E a mesma civilista brasileira conclui que “culpa presumida, ainda que presumida, é
culpa”, considerando, “por isso, essa estranha descrição da prova liberatória, por
menos ambígua que seja, ao menos, contraditória em sua própria concepção”.197

Em matéria de atividades perigosas, ainda sobre o artigo 2.050 do Código Civil


italiano, Guido Alpa aduz que a jurisprudência estendeu o significado de
perigosidade até compreender atividades antes não caracterizadas por riscos
particularmente elevados, e a prova liberatória é apreciada com particular rigor198.

Ainda na comparação das legislações italiana e brasileira, Cláudio Luiz Bueno de


Godoy afirma que, “ambas diferem, em aspecto o qual se reputa muito importante,
as redações do citado artigo 2.050 do Código Civil Italiano e o parágrafo único do
artigo 927 do Código Civil Brasileiro de 2002”.199 Para ele, malgrado se imponha, na
Itália, a responsabilidade pelo risco decorrente do exercício de atividade perigosa,
abre-se ao lesante a possibilidade de dela se eximir, desde que comprove ter
adotado todas as medidas idôneas, segundo as circunstâncias, para evitar a
produção do dano.200 E, se assim é, para o eminente juiz de direito paulista Cláudio
Luiz Bueno de Godoy, a rigor, parece manter-se a legislação italiana no campo da
responsabilidade subjetiva, posto que com inversão do ônus probatório em favor da
vítima201.

Em sentido contrário, todavia, o próprio Bueno de Godoy noticia, como já referimos


acima, o ensinamento de Pietro Trimarchi, para quem o artigo 2.050 do Código Civil
italiano consagra uma forma particular e mais limitada de responsabilidade sem

196
Responsabilidade pressuposta, p. 292.
197
Ibidem, p. 295.
198
La Responsabilità Civile, Milano: Dott. A. Giuffré Editore, 1980, v. 2, p. 19.
199
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 62.
200
Ibidem, p. 74.
201
Ibidem, p. 74.
95

culpa, por risco, todavia, evitável, mediante avaliação objetiva e possibilidade de


distribuição do custo desse risco no custo da produção.202

Aduz, ainda, Cláudio Luiz Bueno de Godoy que, mesmo se considerando a hipótese
de deferimento do direito probatório nesse sentido, “a tendência da doutrina e da
jurisprudência acabou sendo sempre a de tornar mais rigorosa a prova liberatória do
artigo 2.050”.203

Já no que refere ao dispositivo do Código Civil de Portugal, Bueno de Godoy conclui


que “a cláusula geral de responsabilidade pelo exercício da atividade perigosa está
contida no critério genérico de imputação, qual seja, a culpa”. Para ele, “no máximo
se considera uma presunção, e relativa, de culpa de quem exerce a atividade
perigosa, invertido o ônus probatório em favor da vítima”. Mas, segundo o autor,
“fato é que, provada a diligência do ofensor, ainda que se a repute limitada a
diligências particulares ou especiais, exclui-se a sua responsabilidade”. De toda
sorte, então, tem-se, na sua visão, um caso de responsabilidade aquiliana. Conclui-
se que “de tudo isso se assenta para advertir que a despeito da influência que o
Código Civil português teve na elaboração do Código Civil brasileiro, sua opção, em
matéria de responsabilidade sem culpa, pelo risco da atividade, foi outra”.204

Concluiu, então, Bueno de Godoy, que a disposição do parágrafo único do artigo


927 do Código Civil Brasileiro, de maneira diversa, colocou-se sem a mesma
excludente do artigo 2.050 do Código Civil Italiano, trilhando caminho próprio, com
mais ampla possibilidade de aplicação.205

202
TRIMARCHI, Pietro. Rischio e responsabilitá oggettiva. Milano: Giuffrè, 1961, p. 270, apud
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 74.
203
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 75.
204
Ibidem, p. 79-80.
205
Ibidem, p. 76.
96

10.3 O DIREITO DA FRANÇA E DA ALEMANHA E A AUSÊNCIA DE CLÁUSULA


GENÉRICA DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA

Numa outra informação comparativa internacional, os Códigos Civis francês e


alemão não fazem referência expressa e não contêm uma cláusula geral de
responsabilidade objetiva, decorrendo esta diretamente dos dispositivos legais
espalhados pelo ordenamento jurídico daqueles países, como acontecia no Brasil
até a entrada em vigor do diploma civilista de 2002.

Interessante é notar que se trata de dois dos povos mais avançados em matéria de
responsabilidade civil, sendo desnecessário repetir que toda a teoria do risco foi
desenvolvida pelos franceses Saleilles e Josserand, com base, dentre outros
elementos, em disposições legais impositivas do dever reparatório sem culpa já da
antiga região prussiana, na Alemanha.

Como dito, não optaram as duas poderosas nações pelo sistema aberto de
responsabilidade objetiva, conquanto reconhecida toda sua história de vanguarda
nos temas afetos à responsabilidade civil.

Corroborando tais assertivas, com relação ao direito francês, Cláudio Luiz Bueno de
Godoy, afirma que:

A responsabilidade sem culpa, tendo unicamente o risco como nexo de


imputação, ainda não conta, no Direito Francês com uma cláusula geral,
mas os casos de imputação do dever indenizatório de forma objetiva
continuam ser inseridos no ordenamento jurídico daquele país. Assim, no
campo do direito do consumidor, segundo o mesmo autor, a lei nº 98.389,
de 17 de maio de 1998, acrescentou no texto do próprio Código Civil
inúmeras disposições (arts. 1.386 – 1 a 18) definindo uma responsabilidade
lá chamada de pleno direito, só elidível em hipóteses específicas, nunca
concernentes à simples falta de culpa, de que não se cogita (art. 1.386 –
206
11).

E com relação ao direito alemão, da mesma forma, Bueno de Godoy sustenta que,
“igualmente antes da reforma de 2002, Regis Fichtner salientou a opção positivista
do BGD pela ausência de previsão de uma cláusula geral de responsabilidade
extracontratual”.207

206
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 59.
207
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 50.
97

10.4 O RADICAL SISTEMA SOVIÉTICO DE RESPONSABILIDADE OBJETIVA


COM VISTAS À PROTEÇÃO DO PROLETARIADO

No direito civil soviético vigora o princípio da responsabilização sem culpa, com


exceções, como se pode verificar pela redação do artigo 403 de seu diploma civil:

Quem causa um dano à pessoa ou aos bens de outrem é obrigado a


ressarcir o dano produzido. É liberado de tal obrigação, se provar que não
podia evitar o dano ou que tinha o poder legal de causá-lo ou que o dano
resultou de ato intencional ou de grave negligência da própria parte que o
sofreu.

Vê-se com clareza a regra de que a responsabilidade se dá sem que se cogite de


culpa do agente, que apenas se exonera do dever se provar a ocorrência de força
maior (extraída da expressão que não podia evitar o dano), que exerceu
regularmente um direito de que era titular (resultado da expressão que tinha o poder
legal de causá-lo) ou se provar que a vítima se conduziu dolosamente ou ainda com
culpa gravíssima contra ela mesma. Essa é a exegese que se permite do texto do
transcrito dispositivo do Código Civil soviético.

Tão clara é a noção de que a responsabilidade civil no direito soviético se verifica


independente de culpa, que até o Código Penal a afasta na imposição da sanção
criminal, como noticia Alvino Lima ao transcrever texto da lavra de um dos autores
do Código Civil daquele país, afirmando que “o nosso Código Civil não vincula à
culpa, a responsabilidade daquele que causou um dano. O princípio da culpa é
eliminado do nosso Código Penal; tanto menos poderia ser adotado pelo Código
Civil como causa de responsabilidade”.208

Interessa-nos com mais peculiaridade o artigo 404 do mesmo Código Civil soviético:

As pessoas ou empresas cuja atividade causa um gravame de perigo ao


entourage, como as estradas de ferro, os transportes, as fábricas e as
usinas, os comerciantes de matérias inflamáveis, os detentores de animais
selvagens, as pessoas que edificam construções de prédios ou outras
instalações, são responsáveis pelos danos causados por este gravame, a
menos que provem que o dano resulta de força maior ou da premeditação
ou da negligência grosseira da própria vítima.

Como se pode observar, tem também o direito soviético disposição assemelhada ao


nosso com relação à responsabilização do agente pela atividade perigosa que

208
Culpa e risco, p. 35.
98

desenvolve, possibilitando que se exonere do dever indenizatório apenas nas


hipóteses de força maior e dolo ou culpa grave da vítima, não fazendo qualquer
referência ao caso fortuito e mesmo ao fato de terceiro, permitindo a conclusão de
que nessas hipóteses terá cabimento a indenização.

Apenas como forma de propagar a notícia já trazida por Alvino Lima, porque
portadora de uma peculiaridade ímpar, transcreve-se o artigo 406 do Código Civil
soviético:

Nos casos em que, segundo os artigos 403-405 (regras gerais sobre a


responsabilidade civil), o causador do dano não é obrigado a repará-lo, o
Tribunal pode obrigar à reparação, tomando em consideração a sua
situação de fortuna e a da vítima.

Trata-se, como bem acentuou Alvino Lima, de forte arma nas mãos dos governantes
para atingir classes mais ricas, em proveito dos trabalhadores, alcançando os
primeiros fins da revolução soviética.209

10.5 A COMMOM LAW DA INGLATERRA E DOS ESTADOS UNIDOS

Continuando esse pequeno estudo comparativo, deve apenas ser trazida uma breve
notícia acerca da matéria no direito inglês e norte-americano.

Não há, naqueles países de commom law (Inglaterra e Estados Unidos), uma regra
geral impositiva do dever indenizatório decorrente da culpa, como no nosso artigo
186 ou no artigo 1.382 do Código Civil francês e de tantos outros países da civil law.

Lá se convencionou, a partir do século XVII, chamar de tort aquilo que representava


uma violação de uma obrigação imposta por lei, sancionada com uma ação de
perdas e danos. A peculiaridade do instituto da commom law e o que o faz diferente
de nosso ato ilícito é que aquele prescinde da culpa para se consumar, enquanto
este a tem como um de seus elementos fundamentais. Em outras palavras, o nosso
ato ilícito é menos abrangente que o tort, porque este se consuma

209
Culpa e risco, p. 38-39.
99

independentemente de culpa do agente, impondo ao seu feitor o dever indenizatório


objetivamente.210

Daí que Cláudio Luiz Bueno de Godoy lembra Marco Comporti, afirmando que, “o
desenvolvimento histórico que lá se reservou à responsabilidade objetiva esteve
sempre ligado ao tema do risco exacerbado, ou perigo mesmo, ou ao se dizer da
responsabilidade rigorosa”.211

Em face do direito inglês e norte-americano, Oliver Wendell Holmes, citado por


Wilson Melo da Silva, afirma que,

[...] para aqueles povos, cada qual deve responder por todas as
conseqüências de seus atos em virtude, tão-somente, de cada um dever
arcar com os riscos e perigos derivados desses mesmos atos, para os quais
212
em pouca conta se levaria o estado de consciência daquele que lesa.

10.6 AS LEGISLAÇÕES DE ALGUNS PAÍSES VIZINHOS DA AMÉRICA DO SUL

Noticia Cláudio Luiz Bueno de Godoy que o Código Civil argentino, adotando a culpa
como critério geral de imputação foi, todavia, reformado justamente para se efetivar
o acréscimo ao artigo 1.113, de que “si el daño hubiere sido causado por el riesgo o
vicio de la cosa, solo se eximira total ou parcialmente de responsabilidad
acreditando la culpa e la víctima o de um tercero por quien no debe responder”
(redação do § 1º, 2ª parte, do dispositivo citado, dada pela Lei 17.711/68). Segundo
o autor, vê-se o caminho, ao menos, para uma regra geral de responsabilidade sem
culpa, pelo risco criado.213

Para Aida Kemelmajer Carlucci e Carlos Parellada, o Código Civil argentino não
contém uma norma que regule a responsabilidade civil pelas atividades arriscadas
na órbita extracontratual214.

210
LIMA, Alvino. Culpa e risco, p. 29-31.
211
COMPORTI, Marco. Exposizione ao el perigo e responsabilitá civile. Napoli: Morano, 1965, p.
118, apud GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 66-
67.
212
HOLMES, Oliver Wendell. Il diritto comune anglo-americano, Milão, 1870, p. 140, apud SILVA,
Wilson Melo da. Responsabilidade Sem Culpa, p. 45.
213
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 64.
214
Responsabilidad Civil. ITURRASPE, Jorge Mosset (Org.). Buenos Aires: Hammurabi, 1997, p.
198.
100

Assim, os casos de responsabilidade objetiva são regrados pontualmente, como,


segundo informado pelos mesmos doutrinadores argentinos, na Lei 23.184, artigo
33, estabelecendo-se a responsabilidade das entidades ou associações
participantes de um espetáculo desportivo por danos sofridos pelos espectadores
nos estádios ou durante seu desenvolvimento215.

Por fim, afirmam Aida Kemelmajer Carlucci e Carlos Parellada que o projeto de
unificação da legislação civil e comercial da Argentina modifica o artigo 1.113 do
Código Civil em vigor, acima transcrito, para os seguintes termos: “Lo previsto para
los dañso causados por el riesgo o vicio de la cosa es aplicable a los daños
causados por actividades que sean por su naturaleza o por las circunstancias de su
realización”216.

Dá conta ainda Cláudio Luiz Bueno de Godoy de nos trazer a redação do Código
Civil boliviano, de 06 de agosto de 1975, artigo 998: “quien en el desempeño de una
actividad peligrosa ocasiona ao outro uno daño esta obrigado a la indennización si
no prueba la culpa de la víctima”.

A seguir, o Código Civil paraguaio, (Ley nº 1.183/85), artigo 1.846: “el que crea un
peligro con su actividad o profesión, por la naturaleza de ellas, o por los medios
empleados, responde por el daño causado, salvo que pruebe fuerza mayor o que el
perjuicio fue ocasionado por culpa exclusiva de la víctima, o de un tercero por cuyo
hecho no deba responder”. Na lição de Cláudio Luiz Bueno de Godoy, portanto, uma
obrigação de indenizar, com excludentes de quebra de nexo de causalidade,
originária do exercício de uma atividade intrinsecamente perigosa.217

Enfim, Bueno de Godoy noticia acerca do Código Civil peruano, de recente edição
(Decreto Legislativo 295, de 24.06.1984), muito embora produto do trabalho de
comissão instituída em 1965. Em seu artigo 1.970, institui-se uma responsabilidade
genérica pelo risco (responsabilidad por riesgo). Porém, em sua redação,
separadamente, aludiu-se ao risco criado e ao perigo inerente. Consoante o texto do
preceito citado, “aquel que mediante un bien riesgoso o peligroso, o por el ejercicio

215
Responsabilidad Civil. ITURRASPE, Jorge Mosset (Org.). Buenos Aires: Hammurabi, 1997, p.
198.
216
Responsabilidad Civil. ITURRASPE, Jorge Mosset (Org.). Buenos Aires: Hammurabi, 1997, p.
199.
217
Ibidem, p. 71.
101

de uma actividad riesgosa o peligrosa, causa um daño a outro, esta obligado a


repararlo”. E, ao comentar o citado dispositivo da lei peruana, afirma Bueno de
Godoy que:

Se se admitir que a lei não contenha palavras inúteis, portanto afastando a


idéia de sinonímia entre as expressões, ou de mero reforço de linguagem,
não se restringiu a responsabilidade objetiva, apenas, às atividades ou
coisas que tragam um perigo intrínseco. Abriu-se margem à identificação de
hipóteses de atividades que em si não tenham carga de perigo imanente,
218
mas que de algum modo gerem risco de dano a terceiro.

Ainda acerca da tomada das medidas acautelatórias por parte do agente, o Código
Civil de Porto Rico prevê a hipótese de o autor do dano demonstrar que se
acautelou para que o prejuízo não adviesse de sua atividade, in verbis: Igualmente
responderán los propietarios de los daños causados por la explosión de máquinas
que no hubiesen sido cuidadas con la debida diligencia, y la inflamación de
sustancias explosivas que no estuviesen colocadas en lugar seguro y adecuado.

Por outro lado, os Códigos Civis da Argentina (art. 1.113), este já visto, e do Peru
(art. 1.970) não contêm a reserva da demonstração pelo autor do dano sobre a
tomada de cautelas, atuando, nesse ponto, como a nossa legislação nacional.

218
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 71.
102

11. RISCO-“PROVEITO” OU RISCO-“CRIADO”?

Como visto, a responsabilidade objetiva encontra justificativa na doutrina do risco,


enunciando que toda pessoa que exerce alguma atividade criadora de um perigo
para os direitos de terceiros deve ser obrigado a reparar o dano advindo de sua
conduta, ainda que seja isento de culpa.219

Em linhas gerais, a teoria do risco encontra duas vertentes: a do risco-proveito,


segundo a qual é reparável o dano causado a outrem em consequência de uma
atividade geradora de algum benefício ao agente; e a do risco-criado, enunciando
que todo aquele que expuser outrem a perigo deve arcar com a indenização pelo
dano ocasionado, sem que se cogite de qualquer benefício a ser alcançado.220

Cumpre firmar um posicionamento sobre qual das duas teorias – se a do risco-


proveito ou a do risco-criado – foi a que influenciou a responsabilidade objetiva
genérica pelo exercício da atividade arriscada prevista na segunda parte do
parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, o que redundará em muitas
consequências no decorrer deste trabalho, sobretudo no momento de se estabelecer
se uma determinada conduta pode ou não gerar o dever indenizatório independente
de culpa.

Nesse estudo, acompanhar-se-á a doutrina majoritária no tema, reconhecendo-se a


influência da teoria do risco-criado para a instituição da responsabilidade civil
objetiva genérica no direito brasileiro, bastando que uma pessoa tenha se conduzido
de forma perigosa aos direitos alheios para emergir daí o dever indenizatório, sem
que se cogite se o causador do dano tiraria proveito ou não de sua conduta.

Na defesa desse posicionamento encontra-se apoio nas lições de Caio Mário da


Silva Pereira, para quem:

De outro lado, muito embora a idéia de proveito haja influenciado de


maneira marcante a teoria do risco, a meu ver é indispensável eliminá-la,
porque a demonstração, por parte da vítima, de que o mal foi causado não
porque o agente empreendeu uma atividade geradora de dano, porém
porque desta atividade ele extraiu um proveito, é envolver, em última

219
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil, p. 23.
220
Anteriormente, já foram apontadas todas as teorias baseadas no risco, bastando por ora
mencionar as duas a que se refere, risco-criado e risco-proveito, sendo as que mais se destacaram.
103

análise, uma influência subjetiva na conceituação da responsabilidade


221
civil.

Ficou vencida a teoria do risco-proveito, segundo Rui Stoco, sustentando que o


parágrafo único do artigo 927 do Código Civil contemplou hipótese de risco-criado,
valendo dizer que Cavalieri Filho não tem dúvida quanto a isso.222

Ainda, Carlos Roberto Gonçalves advoga de maneira clara que, “tendo sido
acolhida, no dispositivo em tela, a teoria do risco-criado, e não do risco-proveito,
como entende a melhor doutrina, não se pode atribuir à vítima o ônus de demonstrar
que o causador do dano exercia atividade lucrativa”.223

Para o juiz de direito Bueno de Godoy, “a novidade está numa previsão genérica ou
numa cláusula geral da responsabilidade sem culpa, baseada na ideia do risco-
criado”. Afirmando, na seqüência, que, “antes, porém, força convir ostentar-se de
todo equânime a disposição de que quem cria risco a outrem com sua atividade, daí
tirando qualquer proveito, não necessariamente econômico, seja por ele
responsabilizado”.224

Acir Lessa informa que Salleiles concebeu e Josserand aprimorou a teoria do “risco-
criado”, considerando-a uma evolução da teoria do risco-proveito, com a “vantagem
de dispensar a prova de que o autor do fato auferiria vantagens econômicas da
atividade que resultou no dano, já que o risco terá incidência em todas as atividades
desenvolvidas, ainda que se trate de mero lazer ou recreação”.225

Depois da palavra dos criadores, ou ao menos dos maiores propagadores da


doutrina do risco, parece despiciendo tecer maiores comentários acerca de assunto
tão consolidado na doutrina mais abalizada sobre o tema, bastando que,
humildemente, se acolha o posicionamento de que o risco-criado deu lastro para a
edição da responsabilidade objetiva genérica pelo exercício de atividade arriscada,
não havendo necessidade de se impor à vítima a demonstração de que o agente
danoso auferiria algum proveito em virtude de sua conduta lesiva, acompanhando
José Acir Lessa Giordani nesse particular.

221
Responsabilidade civil, p. 287.
222
Tratado de responsabilidade civil, p. 162.
223
Responsabilidade Civil, p. 281.
224
Código civil comentado: doutrina e jurisprudência, p. 765, coordenação PELUSO, Cezar.
225
A responsabilidade civil objetiva genérica, p. 49.
104

Consequências sobre a presente tomada de posição serão reveladas ao longo da


dissertação.

Apenas deve ser ressalvado que, mesmo a doutrina que acolhe a responsabilidade
civil objetiva genérica como resultado do risco-criado, variavelmente, pende, como
que num vacilo, para o risco-proveito. E isso tem uma explicação: não obstante uma
pessoa desinteressada de qualquer benefício possa exercer atividade perigosa aos
interesses alheios, realizando mera atividade de lazer arriscada, a maioria torrencial
das situações geradoras de danos provém de condutas que visam à cumulação de
riquezas, como nas atividades empresariais.

Assim, sem que isso configure afirmação de equívoco do grande professor, o


mesmo Carlos Roberto Gonçalves, acima citado como defensor do risco-criado,
assevera que:

O dono da máquina que, em atividade, tenha causado dano a alguém


(acidentes de trabalho, p. ex.) responde pela indenização não porque tenha
cometido propriamente um ato ilícito ao utilizá-la, mas por ser quem,
utilizando-a em seu proveito, suporta o risco (princípio que funda a
226
responsabilidade objetiva).

Vê-se, nessa passagem, a clara influência da teoria do risco-proveito, conquanto,


como dito em linhas atrás, o mesmo autor tenha se posicionado pela adoção da
teoria do risco-criado.

Outra explicação para essa só aparente contradição é que o risco-proveito está


contido no risco-criado. Em outras palavras, se se reprime o dano causado pelo
risco-criado, com muito mais razão deve ser reprimido o dano causado pelo risco-
proveito, pois se a indenização é cabida até quando o agente não visa ao lucro, só
pode ter cabimento na exploração lucrativa da atividade.

Concluindo, não há qualquer contradição nas palavras daquele que defende o risco-
criado e traz como exemplos de atividades perigosas aquelas geradoras de
riquezas.

De outro lado, agora sim defendendo somente a adoção do risco-proveito,


manifestou-se Maria Helena Diniz, afirmando que “o Código Civil, ao prever as

226
Direito civil brasileiro, p. 34.
105

hipóteses de responsabilidade civil por atos ilícitos, consagrou a teoria objetiva em


vários momentos, como no artigo 927, parágrafo único, substituindo a culpa pela
ideia do risco-proveito (RT, 433:96)”.227

Sufraga essa tese a afirmação de Silvio Rodrigues, para quem, “o tamanho do risco
deverá ser posto em paradigma com o tamanho do lucro obtido ou almejado pelo
empresário”.228

Assim, pelo que se pôde entender das palavras dos grandes civilistas brasileiros,
defendem Maria Helena Diniz e Silvio Rodrigues o acolhimento da teoria do risco-
proveito quando da criação da responsabilidade civil objetiva genérica pela atividade
arriscada.

Postas as duas vertentes, tem o leitor a oportunidade de se orientar pela que mais
lhe agrade.

Fixa-se, no entanto, como posicionamento desta dissertação o risco-criado como


impulsionador da responsabilidade civil objetiva genérica, não se exigindo que o
causador do dano tenha visado lucro para que responda pelos prejuízos de sua
atividade perigosa.

227
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 3. p.
762.
228
Direito civil, p. 165.
106

12. A DISPOSIÇÃO LEGAL QUE CONSAGROU A


RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA PELA ATIVIDADE DE
RISCO

Promovida o que se pensa ser uma teoria geral acerca do assunto, já é momento de
se ingressar de vez na busca do conceito do instituto em exame, tentando-se
apreender aquilo que faz a responsabilidade objetiva genérica diferente da
responsabilidade objetiva típica prevista na legislação, podendo-se dizer que esse
elemento discriminante se verifica quando: a atividade normalmente desenvolvida
pelo autor do dano implique, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Assim, para melhor estudo da expressão que consagrou a responsabilidade objetiva


genérica pela atividade de risco, parece adequada a subdivisão em três módulos da
segunda parte do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil de 2002: 1º - quando
a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano; 2º - implicar, por sua
natureza; 3º - risco para os direitos de outrem.

O grande problema enfrentado por aquele se dá ao estudo do assunto é exatamente


detectar o real significado da longa e robusta expressão legal acima transcrita,
possibilitando-se, assim, que sejam selecionadas quais as atividades por ela
contempladas.

A dificuldade na solução desse problema é realmente enorme e já mereceu a escrita


de Cavalieri Filho, comentando que o Conselho da Justiça Federal, tentou, sem
sucesso, trazer à tona o verdadeiro significado da segunda parte do parágrafo único
do art. 927 do Código Civil, produzindo, data venia, o tautológico enunciado nº 38 da
Jornada de Direito Civil (Brasília, setembro de 2002), com o seguinte teor: A
responsabilidade fundada no risco da atividade, como prevista na segunda parte do
parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinado ônus
maior do que aos demais membros da coletividade. Dada a obscuridade do
respeitável enunciado, Cavalieri Filho o taxou de pouco esclarecedor.229

229
Programa de responsabilidade civil, p. 154.
107

Posto o problema e constatada a dificuldade de se encontrar sua solução, acredita-


se que a divisão da longa expressão que positivou a responsabilidade objetiva
genérica possa facilitar a conclusão sobre o que pretendeu o legislador em cada
uma das destacadas passagens, formulando definições que levarão a um conceito
geral acerca da responsabilidade civil sem culpa, decorrente de atividade arriscada,
o que passa a ser feito.

12.1 EXAME DA EXPRESSÃO: QUANDO A ATIVIDADE NORMALMENTE


DESENVOLVIDA PELO AUTOR DO DANO

Primeiro termo a ser explicitado é a palavra atividade, que Cavalieri Filho extrai
como núcleo do trecho ora em estudo, não a confundindo com ação ou omissão,
mesmo porque já inserida no artigo 186 do Código Civil, interpretando-a como
“conduta reiterada, habitualmente exercida, organizada de forma profissional ou
empresarial para fins econômicos”, equiparando-a a serviços.230

Nesse sentido, segundo o entendimento do eminente desembargador do Tribunal de


Justiça do Rio de Janeiro, importa mencionar que a responsabilidade objetiva
genérica traz a conotação de que suas destinatárias únicas são as entidades
empresariais, regulares ou irregulares, e as pessoas físicas que individualmente
promovem a prestação de serviços pagos, confundindo-se todos com os
fornecedores de serviços ou produtos.

Sendo mais incisivo em seu posicionamento, Cavalieri Filho afirma que,

Quando da elaboração do Projeto do Novo Código Civil, o legislador tinha


os olhos voltados para as atividades empresariais, que, embora criadoras
de riscos para a sociedade, eram regidas pela teoria subjetiva, pugnando
que a responsabilidade objetiva genérica incida sobre os serviços de
transportes, luz, gás, telefonia, seguros, bancos, financiamentos, cartões de
231
crédito, saúde, etc.

230
Programa de responsabilidade civil, p. 155.
231
Ibidem, p. 155-156.
108

A constatação, portanto, repita-se, de Cavalieri Filho232, é que a palavra atividade


deve ser tida como sinônima de empresa, significando o fornecimento organizado de
serviços ou produtos, com fim de lucro, na conceituação de Fábio Ulhoa Coelho.233

Rui Stoco, de certo modo, afiança esse posicionamento, afirmando que “atividade,
aqui, não significa mera ação ou omissão do agente, mas exercício profissional
contínuo e estruturado sob a forma de exploração comercial, industrial ou outra
qualquer”.234

De outro lado, Cláudio Luiz Bueno de Godoy parece manifestar-se contrariamente à


interpretação dada por Cavalieri Filho, afirmando que: “bem andou o Código Civil ao
referir o desenvolvimento, e não o exercício, de uma atividade que induz risco,
exatamente de modo a afastar eventual adstrição do risco à empresa ou proveito”.235

Exposta a crítica de Cláudio Luiz Bueno de Godoy, veja-se, sem que isso signifique
adesão ao posicionamento de Cavalieri Filho, a relação dessa noção de atividade
fornecida pelos doutos com o conceito de empresário fornecido pelo Código Civil, in
verbis: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade
econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.

Essa relação não passou despercebida de Leonardo de Faria Beraldo, entendendo


atividade como sendo os serviços praticados por pessoas físicas ou jurídicas,
citando também o art. 966 do Código Civil.236

Tudo leva a crer, então, que, para boa parte da doutrina civil brasileira, o termo
atividade está intimamente ligado ao direito empresarial, significando o fornecimento
organizado e profissional de serviços e produtos, com fins lucrativos.

Diga-se que a solução apresentada por esta abalizada gama de juristas vem ao
encontro da mais moderna teoria da empresa, sufragada pelo vigente Código Civil
de 2002.

232
Programa de responsabilidade civil, p. 154/156.
233
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 4.
234
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil, p. 174.
235
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 143.
236
A responsabilidade civil no parágrafo único do art. 927 do Código Civil e alguns apontamentos do
direito comparado. Revista Forense, n. 376, p. 132-133.
109

O único problema que se levanta quanto a essa afirmação doutrinária de vínculo


entre a palavra atividade e a prática empresarial é que, como se viu, a
responsabilidade objetiva genérica foi influenciada pelo risco-criado e não pelo risco-
proveito. Haveria, assim, certa contradição entre a interpretação da palavra atividade
como fornecimento de bens e serviços com escopo lucrativo e a aceitação de que a
responsabilidade objetiva genérica teria deitado suas raízes na teoria do risco-
criado.

A única solução que se encontra para o problema é a seguinte: concorda-se que os


fornecedores de serviços ou produtos formam a grande maioria dos alvos da
responsabilidade objetiva genérica, mas ressalva-se que não são os únicos,
incidindo também a mesma modalidade de dever indenizatório sobre os praticantes
daquelas atividades das quais não advirá qualquer proveito para o agente danoso.

A palavra atividade, portanto, na dicção da segunda parte do parágrafo único do art.


927 do Código Civil, deve ser tomada, preponderantemente, como o fornecimento
de serviços e produtos, praticado organizada e profissionalmente, com finalidade de
lucro, mas também deve ser entendida como a realização de outras condutas que
não visem ao enriquecimento, como uma atividade de lazer, por exemplo.

Lembre-se, ainda, da necessidade de reiteração da conduta para que se possa falar


em atividade, excluindo-se o dever indenizatório na hipótese de prática de meros
atos eventuais.

Para Cláudio Luiz Bueno de Godoy, a ressalva é importante porque, ao menos por
aplicação da regra geral em comento, não se sujeita à responsabilização sem culpa
“quem apenas pratique um ato, posto que de causação de dano à outra, e a
despeito até de seu eventual caráter perigoso, de extremo risco, se se preferir, ou de
indução de um risco especial”. Ressalva o ilustre jurista que tal ato pode bem se
subsumir a alguma outra previsão específica de responsabilidade sem culpa. Mas
que exclui-se a possibilidade de aplicação do dispositivo do parágrafo único do
artigo 927 do Código Civil. Por um único motivo: “ato e atividade não se
confundem”.237

É do mesmo Cláudio Luiz Bueno de Godoy o exemplo:


237
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 91-92.
110

[...] imagine-se alguém que ofereça uma carona a outrem e no percurso o


passageiro se machuque. Nesse caso, faltaria pressuposto para a aplicação
do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, justamente pela não
caracterização de uma atividade, cuidando-se, antes, da prática de um
238
ato.

E arremata:

De resto, não por diverso motivo, o parágrafo único do artigo 927, ao que se
considera, alude a uma atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
dano bem a indicar necessária a coordenação, a organização, ao menos, e
239
nunca a eventualidade, a prática ocasional.

Discorda Carlos Roberto Gonçalves, indagando se “haveria necessidade de a


atividade perigosa ser exercida reiteradamente para o agente incidir na
responsabilidade objetiva?”, passando a responder, com a primazia que lhe é
peculiar:

Penso que não. O advérbio “normalmente”, empregado no dispositivo ora


comentado, não consta nos códigos de outros países, como Itália, Portugal,
Líbano, México etc., que adotaram a teoria do exercício da atividade
perigosa antes de nós. Ao utilizá-la, pretendeu o novel legislador apenas
deixar claro que a responsabilidade do agente será objetiva quando a
atividade por ele exercida contiver uma notável potencialidade danosa, em
relação ao critério de normalidade média. É a aplicação da teoria dos atos
normais e anormais, medidos pelo padrão médio da sociedade. Basta que,
mesmo desenvolvida “normalmente” pelo autor do dano, a atividade seja,
“por sua natureza”, por implicar “riscos para os direitos de outrem”,
potencialmente perigosa, não havendo necessidade de um exercício
240
anormal, extraordinário, para que assim seja considerada.

Quanto à conduta omissiva, Franzoni241 afirma que a jurisprudência de seu país, a


Itália, considerou que “non soltanto per gli eventi dannosi che siano conseguenza
diretta di un comportamento positivo, ma anche per quelli che derivano dalla
omissione de una condota dovuta, come nel caso della mancata adozione di misure
di sicurezza per il funzionamento di una macchina”. Traduzindo livremente: responde
o agente não somente por eventos danosos que sejam consequência direta de um
comportamento positivo, mas também por aqueles que derivam da omissão de uma
conduta devida, como no caso da falta de adoção de medidas de segurança para o
funcionamento de uma máquina (Cass., 06 de maio de 1978, n. 2189, in Mass. Foro
it., 1978; Cass. , 24 de novembro de 1971 , n. 3451, in Id.., 1971).

238
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 84.
239
Ibidem, p. 94.
240
Responsabilidade Civil, p. 282.
241
La Responsabilità Oggetiva, p. 187.
111

Passa-se ao significado do termo normalmente.

Não precisaria, mas a didática recomenda afirmar que a específica conduta que
resultou no prejuízo suportado pela vítima deve ter alguma relação com a atividade
comumente desenvolvida pelo fornecedor de produtos ou serviços autor do dano, e
dessa relação é que deve ser extraído o conceito de normalmente. Dois exemplos
servirão para ilustrar o que se pretende afirmar.

Primeiro exemplo: imagine-se que uma instituição financeira assumiu o dever de


cobrança de um título de crédito, obrigação advinda do chamado endosso mandato;
caso o título já esteja pago e o banco proteste a cártula e proponha a ação de
cobrança mesmo assim, talvez porque o credor não o comunicou da quitação,
responde, segundo parte da doutrina e jurisprudência, o mandatário (o banco) pela
indenização devida pela cobrança irregular.

Veja-se, no exemplo, que o prejuízo resultante da conduta de protestar a cártula e


ajuizar a ação de cobrança se relaciona em tudo com a atividade principal
desenvolvida pela instituição financeira, de modo que o risco da atividade deve ser
suportado pelo banco, que arcará, por vezes, pelo fato de promover cobrança de
dívidas já quitadas.

Segundo exemplo: imagine-se que uma transportadora receba um cliente em seu


estabelecimento comercial e lhe ofereça um cafezinho; por um motivo qualquer no
pó de café, o cliente passe mal e seja internado, permanecendo sem trabalhar por
dois dias.

Teria a empresa de transporte o dever de indenizar a vítima pelo dano material


consistente no gasto com o hospital, bem como pelo lucro cessante consistente no
quanto o cliente deixou de ganhar pelos dois dias parados, e ainda pelos danos
morais? A resposta parece ser evidentemente negativa. Ora, nada tem a ver o
oferecimento de um cafezinho com a atividade de transporte, de tal sorte que a
indenização não seria devida, ao menos não pelo risco da atividade.

Espera-se que, com esses dois exemplos, se tenha deixado clara a necessidade de
ligação, de relação, de vínculo, entre a atividade normalmente realizada pelo agente
112

danoso fornecedor de produtos ou serviços e a específica conduta geradora do


prejuízo, sem o que não haverá responsabilização objetiva genérica pelo risco.

Daí a significação do termo normalmente, enunciando a necessidade de alguma


relação entre a conduta danosa do fornecedor de produtos e serviços e a atividade
rotineira desenvolvida pela pessoa jurídica ou física.

Por exclusão, destarte, se um fornecedor de produtos ou serviços realiza uma


conduta que foge completamente ao âmbito de suas corriqueiras atividades e causa
prejuízo a outrem, não haverá a obrigação indenizatória advinda da
responsabilidade civil objetiva genérica.

Sem que isso tenha qualquer conotação de convencimento sobre a correção do que
é produzido na operação prática do direito por esse dissertador, tudo estando sob o
crivo até mesmo dos estudantes que se iniciam na ciência jurídica, os dois exemplos
acima citados foram extraídos de sentença proferida pela Segunda Vara Judicial da
Comarca de Ibiúna, Estado de São Paulo, nos autos do processo 335/07. Pedia-se
indenização por dano moral contra uma instituição financeira pelo fato de ser de sua
propriedade o computador de onde partiram mensagens injuriosas contra a autora
da ação, bem como pelo fato de ser empregado do banco o autor das ofensas.
Negou-se a indenização, em suma, ao argumento de que o envio de mensagens
injuriosas não fazia parte, nem por extensão de interpretação, da atividade a que se
propõe realizar uma instituição de crédito, bem como pelo fato de a lei impor como
dever patronal apenas a indenização advinda de ato praticado pelo empregado no
exercício do trabalho que lhe competir, ou em razão dele, o que não se verificou no
caso posto para julgamento. Por lealdade ao leitor, que poderá aferir seu acerto ou
erro, no rodapé, transcreve-se a sentença, que se encontra aguardando reexame
pelo E. Tribunal de Justiça de São Paulo.242

242
BRASIL. Poder Judiciário do Estado de São Paulo – Comarca de Ibiúna – Segunda Vara -
Autos do Processo 335/07 - Vistos. FERNANDA RODRIGO DE CARVALHO ajuizou ação de
indenização por dano moral em face do BANCO ITAÚ S/A, alegando que: recebeu, em 07 de
março de 2007, na sua caixa de e-mail, endereço feaxl@hotmail.com, de sua titularidade, mensagem
contendo injúrias e agressões verbais gravíssimas, advindas do endereço kikaallen@yahoo.com.br,
endereço este que a autora desconhece; respondeu e recebeu outra mensagem, novamente com
palavras de baixo calão; em 08 de março, notou que as mensagens foram removidas, mas já as havia
gravado; por meio da ação cautelar nº. 210/07, logrou êxito em identificar o IP de nº. 200.178.22.27
da máquina de onde se originaram as referidas mensagens; através de pesquisa, a autora identificou
o BANK BOSTON BANCO MÚLTIPLO S/A como sendo proprietário da máquina; ocorre que a
mencionada instituição financeira foi adquirida pelo Banco Itaú S/A; o proprietário da máquina tem
113

responsabilidade objetiva pelo dano moral causado à autora, devido ao risco de sua atividade;
também, que o réu deve responder pelo ato de seus empregados, serviçais e prepostos. A autora
pediu indenização no valor de R$ 100.000,00 (fls. 02/07). O réu apresentou contestação (fls. 75/91),
argüindo, preliminarmente, ilegitimidade passiva, requerendo a retificação do pólo passivo do
processo. No mérito, alegou que: não praticou ato ilícito, um dos pressupostos da responsabilização
civil; também, que não pode responder por fato de outrem; por fim, que não pode o empregador ser
responsabilizado por ato praticado por seu empregado, posto que não estava no exercício de seu
trabalho ou em razão dele; os fatos imputados como danosos pela autora foram praticados por
terceiro e que este por sua vez não se utilizou do e-mail corporativo do banco réu. Subsidiariamente,
alegou que a autora não comprovou que sofreu dano moral e que o valor pedido a título de
indenização é exorbitante. Réplica (fls. 106/110). Sem conciliação, as partes requereram o
julgamento da lide (fls. 114). É o relatório, fundamento e decido. Acolho a preliminar argüida pelo
réu. Examinando o documento de fls. 93, verifica-se que, em ata de assembléia geral extraordinária
de 25 de agosto de 2006, por unanimidade de votos, foi aprovada a alteração da denominação de
Bank Boston Banco Múltiplo S/A para BANCO ITAUBANK S/A, devendo ser anotada a
retificação no pólo passivo do processo. No mérito, julgo improcedente o pedido. A autora alega
ter sofrido dano moral por ter recebido em sua caixa de e-mails injúrias e agressões gravíssimas,
provenientes de um e-mail que desconhece, sabendo apenas que a mensagem foi enviada através
de uma máquina de propriedade do réu. Com o máximo respeito pelos argumentos desenvolvidos
neste sentido, por qualquer um dos dois aspectos levantados na petição inicial, não se pode falar em
responsabilidade do réu pelo suposto dano moral suportado pela autora. De acordo com um primeiro
argumento, o réu deveria suportar a indenização pelo risco de sua atividade, nos termos do parágrafo
único do artigo 927 do Código Civil, falando-se em responsabilidade objetiva. Por um segundo
argumento, o réu teria responsabilidade pelo fato de ser empregador da pessoa que enviou as
mensagens ofensivas, além de ser o proprietário do computador de onde elas partiram. Como dito,
nenhuma das duas teses convence. Quanto à primeira, o agente deve suportar a indenização apenas
quando o dano advém de conduta relacionada à realização de atividade prevista no seu estatuto
social. Assim, se o risco da atividade prevista no estatuto social determina a ocorrência de um fato
danoso para outrem, deve o agente suportar a indenização. Mas importante é que deve existir
correlação entre a conduta geradora do dano e a atividade arriscada desenvolvida pela entidade
empresária. Num exemplo: imagine-se que uma instituição financeira assumiu o dever de cobrança
de um título de crédito, obrigação advinda do chamado endosso mandato; caso o título já esteja pago
e o banco proponha ação de cobrança mesmo assim, porque o credor não o comunicou da quitação,
responderá o mandatário pela indenização devida pela cobrança irregular. Veja-se, no exemplo, que
a conduta danosa (ajuizamento da ação de cobrança) se relaciona em tudo com a atividade principal
desenvolvida pela instituição financeira, de modo que o risco da atividade deve ser suportado pelo
banco, que arcará, por vezes, pelo fato de promover cobrança de dívidas já quitadas. No caso, em
exame, contudo, não existe qualquer relação entre a atividade do réu (também uma instituição
financeira, dada, portanto, a lidar com dinheiro) com o envio de e-mails ofensivos (conduta que teria
resultado nos danos morais para a autora). Num outro exemplo: imagine-se que uma empresa de
transportes receba um cliente em seu estabelecimento comercial e lhe ofereça um cafezinho; por um
motivo qualquer no pó-de-café, o cliente passe mal e seja internado, permanecendo sem trabalhar
por dois dias. Teria a empresa de transporte o dever de indenizar a vítima pelo dano material
consistente no gasto com o hospital, bem como pelo lucro cessante consistente no quanto o cliente
deixou de ganhar pelos dois dias parados, e ainda pelos danos morais? A resposta parece ser
evidentemente negativa. Ora, nada tem a ver o oferecimento de um cafezinho com o transporte, de
tal sorte que a indenização não seria devida, ao menos não pelo risco da atividade. Num outro
exemplo, contudo, referente ao mesmo ramo de transporte, a indenização seria carreada ao
transportador: um carro forte, transportando valores, é interceptado por assaltantes, e, ferido o
motorista, o veículo colhe e mata um transeunte na calçada. Pergunta-se: os parentes da vítima
atropelada poderiam buscar indenização contra a empresa de transporte pelos danos materiais e
morais resultantes do atropelamento, ou somente poderiam demandar um dos assaltantes, ou
mesmo todos eles? A questão foi posta para exame da Justiça e, em primeiro grau de jurisdição, a
empresa de transporte foi condenada ao pagamento da indenização, solução que restou modificada
em segunda instância. O C. Superior Tribunal de Justiça, finalmente, foi chamado a julgar a lide,
tendo os ministros Nilson Naves e Eduardo Ribeiro entendido que o transporte de valores é atividade
perigosa e que não parecia razoável mandar a família do pedestre atropelado reclamar dos autores
não identificados do latrocínio a indenização devida, quando a vítima foi morta pelo veículo da ré, que
explora atividade sabidamente perigosa, com o fim de lucro. Diante desse posicionamento,
114

Pede-se licença para uma ponderação que foge um pouco ao estudo objetivado,
mas que, por sua relevância, não merece apenas constar no rodapé, chamando-se a
atenção para a importância do estudo acadêmico e para a necessidade de constante
renovação e atualização para o melhor desenvolvimento da própria atividade a que
se propõe no dia-a-dia forense. Veja-se, nesse sentido, que a prática jurisdicional
jamais permitiria a constatação de três equívocos na sentença transcrita.

Primeiro equívoco: afirmou-se que o agente deve suportar a indenização apenas


quando o dano advém de conduta relacionada à realização de atividade prevista no
seu estatuto social. Errado. Não há necessidade de subsunção perfeita da conduta
geradora do dano com relação à atividade prevista no contrato social. Isso porque
não se restringe o âmbito de aplicação da responsabilidade objetiva genérica às

mandaram o transportador de valores indenizar, com base na teoria do risco da atividade (STJ, 3ª
Turma, REsp 185.659-SP, rel. Min. Nilson Naves, v.u., j. 26/06/00, DJU 18.09.00). Percebe-se, então,
que o toque essencial entre os mencionados casos ensejadores do pagamento da indenização pela
pessoa jurídica reside no fato de que a conduta geradora do dano tem estrita ligação com a atividade
arriscada desenvolvida pela entidade empresária e que lhe proporciona o lucro. No caso presente,
negada que foi a mínima correlação entre a atividade social do réu e a conduta ofensiva, descabe a
condenação da instituição financeira pelo risco de sua empresa. Assim, com base na atividade de
risco, prevista no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, fica negada a condenação do réu ao
pagamento da indenização pelos danos morais suportados pela autora. A segunda tese sustentada
na petição inicial também não merece acolhida. Afirma a autora que o réu tem o dever de indenizar
pelo fato de ser responsável pelos atos de seus empregados, serviçais e prepostos, aduzindo que a
máquina de onde partiram as mensagens injuriosas é de sua propriedade. Realmente, o artigo 932,
inciso III, do Código Civil, impõe a responsabilização civil ao empregador por ato de seus
empregados, serviçais e prepostos, mas ressalva expressamente que a conduta lesiva deve ser
praticada no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele. Nesse sentido, não se
pode, nem por esforço de interpretação, admitir que a conduta de enviar e-mails injuriosos seja parte
do exercício do trabalho ou praticada em razão dele, no que refere ao serviço realizado na
instituição financeira. Mais uma vez, portanto, negado que o empregado tenha mandado os e-mails
no exercício de seu trabalho ou em razão dele, julga-se improcedente o pedido indenizatório
formulado contra o empregador, o réu. Isso bastaria para a rejeição do pedido da autora, mas três
fatos podem ainda ser trazidos para esta fundamentação. Analisando o conteúdo das mensagens
contidas nos documentos de fls. 18/22, verifica-se que a autora, ao responder a primeira mensagem,
não demonstrou muito constrangimento, tendo, inclusive, respondido com um beijo ao seu suposto
ofensor (fls. 21), de tal forma que não se vislumbra dano moral a ser indenizado. Veja-se, também,
que a autora, em sua resposta, faz menção ao orkut fake, o qual poderia ter motivado as mensagens
ofensivas recebidas. Ora, quem se dá ao ingresso nesse tipo de comunidade virtual, se expõe a
situações como a que passou a autora, posto que oferece a BILHÕES de pessoas dados de sua vida
mais íntima, como se é casado ou não, quantos anos tem, quais suas preferências e outras
informações que certamente são, por vezes, utilizadas para seu próprio dissabor. Por fim, diga-se que
a autora ainda respondeu à provocação, se utilizando de palavras de baixo calão, como mandando o
suposto ofensor fazer algo que não se mostra nem um pouco em conformidade com a prática urbana
entre pessoas, bastando que se leia a mensagem por ela firmada a fls. 23. Ante o exposto, JULGO
IMPROCEDENTE O PEDIDO, nos termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil,
condenando a autora no pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios de 15%
sobre o valor da causa. P.R.I. Ibiúna, 24 de setembro de 2007. Wendell Lopes Barbosa de Souza,
Juiz de Direito.
115

práticas das pessoas jurídicas, não havendo qualquer menção legislativa à exclusão
da pessoa física.

Segundo equívoco da sentença transcrita: constou que, se o risco da atividade


prevista no estatuto social determina a ocorrência de um fato danoso para outrem,
deve o agente suportar a indenização. Mas não há a mínima necessidade de se falar
em estatuto social ou qualquer outro ato constitutivo de uma entidade moral para
que se dê sua responsabilização por conta da realização de atos arriscados para
interesses alheios. Isso porque uma grande parte dos acidentes que podem ser
regidos pela responsabilização objetiva genérica são ocasionados exatamente por
entidades que sequer têm estatutos sociais e atuam à margem do direito, sendo um
contra-senso retirar da vítima a possibilidade de buscar sua indenização de maneira
mais facilitada exatamente contra quem vive na ilicitude, o que somente viria a
fomentar a irregularidade.

Terceiro equívoco da sentença transcrita: afirmou-se que o toque essencial entre os


mencionados casos ensejadores do pagamento da indenização pela pessoa jurídica
reside no fato de a conduta geradora do dano ter estrita ligação com a atividade
arriscada desenvolvida pela entidade empresária que lhe proporciona o lucro. Ora, a
maioria esmagadora dos doutrinadores citados quando do exame do assunto deixou
isento de qualquer tipo de dúvida que a teoria acolhida pelo parágrafo único do art.
927 do Código Civil foi a do risco-criado, prescindindo-se absolutamente de qualquer
proveito para que o agente causador do dano suporte a indenização.

Conclui-se que atividade normalmente desenvolvida é aquela que não se apresenta


como extraordinária ou inesperada, havendo necessidade de um mínimo de ligação
entre a conduta danosa e o que frequentemente se verifica nas práticas rotineiras de
determinada pessoa.

No conceito de autor do dano estão compreendidas, preponderantemente, as


pessoas jurídicas regulares ou irregulares e as pessoas físicas que, de forma
organizada e profissional, fornecem serviços ou produtos, com fins lucrativos, bem
como, em menor número, pelas pessoas que exercem suas atividades sem a
finalidade de acumulação de riquezas.
116

Colocados esses elementos, resta saber como se interpretar a expressão quando a


atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano. Significa,
preponderantemente, o fornecimento de serviços e produtos, praticado organizada e
profissionalmente, com finalidade de lucro, bem como a realização de condutas que
não visem ao enriquecimento, não se apresentando como extraordinária ou
inesperada, havendo necessidade de alguma ligação entre a conduta danosa e as
práticas rotineiras de uma determinada pessoa física ou jurídica, regular ou irregular.

12.2 EXAME DA EXPRESSÃO: IMPLICAR, POR SUA NATUREZA

Implicar, sem maiores problemas, está a significar resultar, dar como consequência,
proporcionar.

Já quanto ao termo natureza, sua intelecção não é tão simples.

Bom início para tratar do tema, então, é a leitura do seguinte trecho da obra de
Carlos Alberto Bittar:

Inserem-se dentro deste novo contexto atividades que, embora legítimas,


merecem, pelo seu caráter de perigosas − seja pela natureza (fabricação de
explosivos e de produtos químicos, produção de energia nuclear etc.), seja
pelos meios empregados (substâncias, máquinas, aparelhos e instrumentos
perigosos, transportes etc.) −, tratamento jurídico especial em que não se
cogita da subjetividade do agente para a sua responsabilização pelos danos
243
ocorridos.

Extrai-se do texto transcrito que o risco da atividade resulta de seu próprio conteúdo,
de sua própria essência, enfim, de sua natureza.

Assim, por exemplo, a produção de energia nuclear, pela sua natureza, é de risco,
assim como a fabricação de substâncias explosivas e o transporte de substâncias
inflamáveis.

Não só, contudo, pelo seu próprio conteúdo, pela sua essência, a atividade arriscada
pode gerar o dever indenizatório objetivo, mas também pela maneira como ela é
desenvolvida. Isto é, se forem arriscados os meios utilizados para se alcançar a

243
Responsabilidade civil nas atividades perigosas. In: Responsabilidade civil, p. 90.
117

consecução da atividade-fim visada, também emergirá a obrigação objetiva de


reparação dos danos causados para a vítima.

Assim, exemplificando, fabricar bijuterias, em princípio, não ostenta qualquer


conotação de perigo no que tange à atividade-fim em si. Dependendo, contudo, dos
meios utilizados para se forjar as peças, pode existir ameaça aos direitos dos
demais cidadãos.

O exemplo não foi trazido por acaso. Num dos dias em que se redigia este trabalho,
27 de fevereiro de 2008, noticiou-se pela imprensa em geral a explosão em um
prédio no centro do Rio de Janeiro, derrubando três dos seis andares do edifício,
ferindo nove pessoas. Deram conta as notícias que, segundo os bombeiros, o
acidente ocorreu após um cilindro de gás estourar em uma fábrica de bijuterias.

Nesse passo, não obstante a fabricação de bijuterias não se apresentar, em


princípio, como uma atividade arriscada, bastando lembrar que é feita até mesmo de
forma manual, sem oferecimento de risco para quem quer que seja, se for realizada
por meios perigosos, como no exemplo, em que se utilizavam cilindros de gás para
forjar as peças ornamentais, pode gerar o dever indenizatório independentemente
de culpa, segundo a responsabilidade objetiva genérica pela atividade de risco.

Conclui-se que, seja de acordo com o próprio conteúdo ou natureza da atividade,


seja de acordo com os meios pelos quais ela é desenvolvida, se disso resulta risco
para os direitos de terceiros, haverá dever de indenizar sem que se cogite da
comprovação de culpa do agente causador do dano.

Rui Stoco parece não concordar com essa conclusão, comentando que:

Aprofundando no texto da lei e buscado refinamento exegético, é bom


lembrar que o risco referido no parágrafo único do artigo 927 tem que
decorrer da própria natureza da atividade exercida, ou seja, deve ser
244
inerente não à forma de exercer, mas à própria atividade.

Segundo o que se expôs, não há concordância quanto à conclusão de Rui Stoco


sobre o fato de apenas o risco da atividade se apresentar como apto a gerar o dever
indenizatório objetivo, afastado na hipótese de os meios utilizados serem perigosos.

244
Tratado de responsabilidade civil, p. 174.
118

Como dito quando do exame do direito comparado, “ao pé da letra”, e apenas assim,
isto é, interpretando-se apenas literalmente a segunda parte do art. 927 do Código
Civil, somente a atividade em si desenvolvida pelo agente causador do dano dá
ensejo à reparação civil objetiva genérica, não os meios pelos quais ela é realizada.

Certo parece, todavia, que essa conclusão não resiste à mais frágil análise.
Valendo-se da interpretação lógica, não seria razoável pensar que o legislador
impôs o dever indenizatório objetivo tendo em mente tão-somente a atividade e não
os meios pelos quais ela é desenvolvida. Uma coisa (a atividade) e outra (os meios)
são indissociáveis, devendo gerar para seu agente as mesmas consequências. Se
ambas são perigosas, ambas devem propiciar a reparação civil com fundamento no
mesmo sistema, resultando em inaceitável incoerência jurídica o convencimento
contrário.

Nesse sentido, Cláudio Luiz Bueno de Godoy, considera deva ser interpretado o
parágrafo único do artigo 927, nesse ponto, de forma extensiva, para considerá-lo
“atinente também aos casos de responsabilidade pelos riscos induzidos, senão pela
atividade em si, mas pelos meios normais de desempenho”. Continuando,
fundamenta que, “de mais a mais, é, de qualquer maneira, um risco especial que se
contém na atividade prestada, em seu âmbito mais extenso, porquanto dos meios de
sua prestação”.245

Pense-se no exemplo de uma sociedade empresária que tem como seu objeto social
a fabricação de explosivos. Por óbvio, que, se, durante a produção do material
explosivo, alguém vier a se ferir, haverá para a pessoa jurídica a obrigação de
reparar o dano. Mas não é só. Se, quando do transporte dos explosivos, acontecer
um acidente e um terceiro acabar por se ferir, também haverá a obrigação de
reparação dos danos sofridos pela vítima.

Assim, se mostra claro que não só a finalidade última visada dá azo à indenização,
mas também aquelas atividades acessórias sem as quais o objetivo final não seria
alcançado.

245
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 161-162.
119

Implicar, por sua natureza, então, significa que o risco para os direitos alheios
decorre da própria atividade desenvolvida pelo autor do dano ou dos meios pelos
quais ela é executada.

12.3 EXAME DA EXPRESSÃO: RISCO PARA OS DIREITOS DE OUTREM

O núcleo da expressão em comento se encontra na palavra risco.

No Vocabulário Jurídico de Plácido e Silva, encontra-se o seguinte conceito para o


termo risco: é o perigo de perda ou de prejuízo.246

Assim, necessário que se saiba o que é perigo, buscando-se a resposta no


Dicionário Aurélio: circunstância que prenuncia um mal para alguém ou para alguma
coisa.247

No mesmo dicionário, encontra-se o significado de prenunciar: anunciar


antecipadamente; predizer, profetizar, podendo-se traduzir em prever.248

Prever, por sua vez, significa ver antecipadamente.

Indaga-se, então, o que pode ser visto antecipadamente? Resposta: aquilo que
normalmente acontece em determinadas circunstâncias; aquele resultado que é
frequente naquela dada situação. Em outras palavras, pode ser visto
antecipadamente o que é provável, de probabilidade.

Probabilidade significando não mera possibilidade de que algo possa acontecer.


Probabilidade como uma possibilidade qualificada. Probabilidade como mais que
uma mera possibilidade. Probabilidade portadora de um plus em relação à
possibilidade. Veja-se a diferença entre um termo e outro: possibilidade é a
qualidade daquilo que pode acontecer; probabilidade é a qualidade daquilo que
provavelmente vai acontecer. Noutros termos, na probabilidade vislumbra-se com
maior grau de aceitação de que o fato irá acontecer, enquanto na possibilidade

246
Vocabulário jurídico, p. 1.238.
247
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio. 3. ed. Curitiba: Positivo, 2004.
p. 1.539.
248
Ibidem, p. 1.623.
120

apenas abre-se a hipótese de o fato acontecer. E esse maior grau de aceitação


quanto à verificação do acontecimento, caracterizador da probabilidade, está no alto
índice de ocorrência do fato: de tanto o fato acontecer, admite-se que, se renovadas
as circunstâncias, ele voltará a se consumar.

O raciocínio, então, é o seguinte: risco significa perigo de dano; perigo de dano


significa prenúncio de dano; prenúncio de dano significa previsibilidade de dano;
previsibilidade de dano significa vislumbrar antecipadamente que o dano pode
acontecer; e isso só é possível por conta da probabilidade do dano; e a
probabilidade do dano decorre do alto índice de sua verificação em determinadas
circunstâncias.

Assim, risco é a admissão de que um dano provavelmente acontecerá se renovadas


determinadas circunstâncias.

Por outro modo: caso seja antevisto um dano, porque em outras situações
semelhantes ele já ocorreu reiteradamente, se estará diante de uma situação de
risco.

A ideia vem corroborada por Carlos Alberto Bittar, para quem

[...] deve ser considerada perigosa, pois, aquela atividade que contenha em
si uma grave probabilidade, uma notável potencialidade danosa, em relação
ao critério da normalidade média e revelada por meio de estatísticas, de
249
elementos técnicos e da própria experiência comum.

Daí a obrigação do causador do risco de indenizar o lesionado na hipótese de o


dano se verificar, haja vista sua previsibilidade, de que decorre a probabilidade.
Nada mais justo. Como era previsível ao agente, e daí provável, que causaria um
dano a alguém em virtude da realização de sua atividade, verificado o prejuízo, ele
deve arcar com a consequência da tomada de uma conduta que previamente sabia
perigosa para terceiros.

Rui Stoco, interpretando o dispositivo em estudo, afirma que:

Segundo o preceito de regência, atividade perigosa será aquela que possa


por em risco a segurança e a incolumidade de terceiros, ou seja, de

249
Responsabilidade civil nas atividades perigosas. In: Responsabilidade civil, p. 93.
121

pessoas que estão fora da prática dessa atividade, mas cujo exercício pode
250
causar estes últimos efeitos maléficos e danosos.

Arnaldo Rizzardo propõe que:

O elemento limitador entre a responsabilidade objetiva e a subjetiva está na


possibilidade ou não de evitar o dano, desde que obedecidas certas normas
ou regras de conduta. Se o instrumento foge do controle humano, apesar do
seguimento de todas as regras ditadas pelo uso adequado que a técnica
impõe, não resta dúvida quanto à imposição da obrigatória reparação em
face dos danos que acontecerem, o que se verifica nos casos de trabalho
com objetos ou coisas cuja constituição ou fabricação não evita a
possibilidade de imperfeições e deficiências, ou o natural e nem sempre
251
perceptível desgaste.

Concluindo ser “indispensável se levar em conta a freqüente ocorrência do dano por


razões do próprio bem em si, ou das inafastáveis limitações e contingências
humanas de quem o utiliza, o que equivale à responsabilidade objetiva”.252

Válida a ponderação de Cláudio Luiz Bueno de Godoy, segundo a qual

À disposição do parágrafo único do artigo 927 não se levou a exigência de


que, para responsabilização sem culpa do agente, a atividade por ele
desenvolvida devesse ser, na sua essência, perigosa (perigo abstrato), ou
particularmente perigosa ante o evento provocado (perigo concreto). Exigiu-
se, antes, ao menos, que essa mesma atividade induzisse risco a direitos
de outrem. De novo, não uma atividade de risco, mas um risco induzido pela
atividade exercida. Quer-se é dizer de todo possível que uma atividade,
mesmo não sendo intrinsecamente perigosa, induza ou crie a terceiros um
risco pelo qual quem a exerce, posto que de forma normal, regular e lícita,
253
deve responder.

E mais, o risco deve ser considerado, isto é, relevante e anormal, pois, segundo a
explanação de Jaime Santos Briz, “não é suficiente o perigo geral inerente a toda
sorte de atividade humana”, completando que “devem excluir-se como base desta
responsabilidade os riscos normais ou razoavelmente previsíveis e ter em conta
somente os riscos imprevisíveis ou excepcionais, determinados segundo ponto de
vista objetivo".254

Nesse diapasão, segundo a lição do já citado Cláudio Luiz Bueno de Godoy,


continha-se a tese de risco relevante na redação originária que o projeto de Código

250
Tratado de responsabilidade civil, p. 177.
251
Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 725.
252
Ibidem, p. 725.
253
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 149.
254
La responsabilidad civil – derecho sustantivo y derecho procesal, p. 552/553.
122

Civil brasileiro reservou ao então parágrafo único do artigo 963. Afirma o autor que lá
se aludia a um risco especial ou, antes, a um grande risco, como se constata pela
redação do dispositivo que não chegou a integrar o texto do Novo Código Civil:

[...] haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos


casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida implicar, por sua natureza, grande risco para os direitos de
outrem, salvo se comprovado o emprego de medidas preventivas
255
tecnicamente adequadas.

Pode-se, ainda, lembrar da lição de Franzoni, para quem um primeiro indicativo


revelador da perigosidade, assim entendida, se tem quando do exercício da
atividade deriva uma elevada probabilidade ou uma notável potencialidade danosa,
consideradas em relação ao critério da normalidade média, e revelada através de
dados estatísticos e elementos técnicos de experiência comum256.

Dito isso, pode-se arriscar um significado para risco como sendo a previsibilidade da
ocorrência do dano, conseguintemente falando-se em probabilidade e não em mera
possibilidade de que algo errado possa acontecer, dado que o fato se repete
reiteradamente naquelas circunstâncias.

255
Ibidem, p. 157.
256
La Responsabilità Oggetiva, p. 142.
123

13. CONCEITO DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA


GENÉRICA FUNDADA NA ATIVIDADE DE RISCO

Responsabilidade, de responder, significa que alguém responda (do latim spondeo =


“responder a”; “comprometer-se”) perante a outrem pelo prejuízo que lhe causou.
Nesse sentido, responsabilidade pode ser conceituada como contraprestação, como
garantia pelo pagamento de algo, como reparação de dano.257

Para Afrânio Lyra, resume-se a responsabilidade na seguinte fórmula: obrigação de


suportar o dano, que, tendo as virtudes da simplicidade e da completude, fica
adotada neste texto.258

No que toca ao termo civil, destina-se a distinguir as duas modalidades de sanções


jurídicas advindas do prejuízo causado a alguém: a penal e a civil.

Quanto à palavra objetiva, trata-se de fazer referência à reparação civil


independente de culpa do agente causador do dano, unicamente decorrente da lei.

Genérica, para discriminá-la em relação à responsabilidade objetiva típica ou


fechada, tema já abordado.

Viu-se o conceito da expressão quando a atividade normalmente desenvolvida pelo


autor do dano, significando, preponderantemente, o fornecimento de serviços e
produtos, praticado organizada e profissionalmente, com finalidade de lucro, bem
como a realização de condutas que não visem ao enriquecimento, não se
apresentando como extraordinária ou inesperada, havendo necessidade de um
mínimo de ligação entre a conduta danosa e as práticas rotineiras de determinada
pessoa física ou jurídica, regular ou irregular.

Viu-se que a expressão implicar, por sua natureza significa que o risco para os
direitos alheios decorre da própria atividade desenvolvida pelo autor do dano ou dos
meios pelos quais ela é executada.

257
BITTAR, Carlos Alberto, Responsabilidade civil nas atividades perigosas. In: Responsabilidade
civil, p. 87.
258
Responsabilidade civil, p. 55.
124

Disse-se, também, que a expressão risco para os direitos de outrem pode ser vista
como a previsibilidade da ocorrência do dano, conseguintemente falando-se em
probabilidade e não mera possibilidade de que o prejuízo possa acontecer, dado que
o infortúnio se repete reiteradamente naquelas mesmas circunstâncias.

Colocados esses elementos, pode-se conceituar a responsabilidade civil objetiva


genérica – quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem: é a sanção civil
consistente na reparação do prejuízo causado à vítima, imposta ao agente
danoso, sem que se cogite de sua culpa, unicamente decorrente de lei, não só
pelo fornecimento de serviços e produtos, praticado organizada e
profissionalmente com finalidade de lucro, mas também em virtude da
realização de condutas que não visem ao enriquecimento, havendo
necessidade de mínima ligação entre a conduta danosa e as práticas rotineiras
de determinada pessoa física ou jurídica, regular ou irregular, em virtude da
própria atividade desenvolvida pelo agente ou dos meios pelos quais ela é
executada, diante da previsibilidade e efetivação do dano.

Nos desculpe o leitor pela extensão do conceito, mas é proporcional ao tamanho da


denominação do instituto conceituado, sopesadas também cada uma das suas
nuanças, estando posta a presente significação sem nenhuma pretensão de acerto,
apenas como contribuição momentânea para que futuramente se possa fixar com
mais precisão os contornos da responsabilidade civil objetiva genérica fundada na
atividade de risco.

Trata-se da utilização da moderna técnica de formulação de cláusulas gerais.

Nesse sentido, segundo Pietro Perlingieri,

“[...] ao lado da técnica de legislar com normas regulamentares (ou seja,


através de previsões específicas e circunstanciadas), coloca-se a técnica de
cláusulas gerais”, afirmando o autor que “legislar por cláusulas gerais
significa deixar ao juiz, ao intérprete, uma maior possibilidade de adaptar a
259
norma às situações de fato”.

259
Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina De
Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 27.
125

Lembrando, com Cláudio Luiz Bueno de Godoy, que a cláusula geral:

[...] encerra um preceito normativo cujos termos são propositadamente


vagos, ganhando enorme relevo a atuação integrativa da doutrina e da
jurisprudência, implicando, na concessão, pelo legislador, como que de um
mandato ao juiz para que, diante do caso concreto, desenvolva a norma,
260
preencha seu conteúdo.

Com efeito, Judith Martins-Costa, examinando o projeto do atual Código Civil,


afirmou que a responsabilidade civil decorrente da atividade de risco se apresentava
como uma das cláusulas gerais inseridas no esperado diploma civil, fazendo
referência ao então parágrafo único do artigo 926, hoje o comentado artigo 927.261

260
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 85-88.
261
A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 351.
126

14. SITUAÇÕES QUE PODEM ADMITIR A APLICAÇÃO DA


RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA GENÉRICA PELA
ATIVIDADE DE RISCO

Não obstante o risco da atividade tenha sido trazido como fundamento da


responsabilidade civil no âmbito legal somente com a entrada em vigor do Código
Civil de 2002, antes disso a jurisprudência e a doutrina já vinham sinalizando com a
possibilidade de sua aplicação a casos em que a responsabilidade subjetiva e a
objetiva fundada em dispositivos legais esparsos não resultavam em julgamentos
lastreados em justiça.

Nesse ponto, tem-se como comprovada a tese de que muitas das disposições do
Código Civil de 2002 vieram corroborar orientações jurisprudenciais acerca de
determinados temas.

Óbvio que a ausência de disposição legal expressa autorizando a aplicação da


responsabilidade objetiva genérica pela atividade de risco não permitiu que ela se
desenvolvesse com muito vigor, tendo em conta a orientação muitas vezes
tradicional dos egrégios tribunais pátrios.

Entretanto, em algumas situações, dado principalmente o fato de o julgador não


conseguir encontrar saída equânime para a situação posta em litígio, ainda que à
míngua de autorização legal expressa, a responsabilização objetiva pelo risco da
atividade já vinha sendo aplicada antes mesmo da entrada em vigor do Código Civil
vigente.

Encontram-se, na doutrina e na jurisprudência, exemplos emblemáticos de


atividades de risco que geram o dever indenizatório independente de culpa,
referindo Rui Stoco que algumas atividades são notoriamente perigosas, como das
empresas de segurança, o serviço de carro-forte, o transporte de bens e valores, o
transporte de combustível, produtos químicos ou tóxicos, a geração e distribuição de
energia, a exploração de minas, a extração mineral com uso de explosivos, fogos de
127

artifício, as atividades de fabricação e armazenamento de armas, bombas,


explosivos, as empresas de demolição e outros.262

Quanto a tais hipóteses, parece não se cogitar da mínima dúvida quanto à incidência
da segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, dada a manifesta
perigosidade da atividade para os direitos alheios.

Fica apenas a ressalva de que muitas das situações que aparentemente se mostram
como suscetíveis da aplicação da teoria da responsabilidade objetiva genérica pela
atividade de risco podem, na verdade, ser disciplinadas pelas disposições do Código
de Defesa do Consumidor atinentes ao fato do produto ou do serviço (artigos 12 a
14 da Lei nº 8.078/90), denominado por alguns como defeito, em contraposição ao
vício, este previsto nos artigos 18 a 20 da mesma legislação. Assim, mais uma vez,
terá o aplicador da lei o dever de examinar a situação criteriosamente a fim de dar-
lhe adequada solução legal, mormente em vista do princípio da especialidade.

Data venia, entretanto, doutrina e jurisprudência parecem ter se comportado um


tanto tímidas ao relacionar as situações que podem dar ensejo à aplicação da
responsabilidade objetiva genérica, não enveredando por outras hipóteses que
podem, no mínimo, gerar dúvida quanto a se constituírem em atividades arriscadas
para os direitos alheios.

Não se pretende, com essa ilação, afirmar que serão trazidas, sem qualquer critério,
praticamente todas as condutas humanas e das pessoas jurídicas como aptas a
ensejarem a responsabilização objetiva genérica, corroborando isso o fato de se
afirmar, a seguir, a necessidade da demonstração da culpa nos acidentes
envolvendo veículos “comuns”.

Não se pode, todavia, se intimidar na incursão por uma vasta gama de atividades
que podem, sim, gerar o dever indenizatório, tudo na busca, sempre criteriosa, da
reposição da vítima na situação em que se encontrava antes do infortúnio,
representando isso nada mais que a concretização de um dos princípios do vigente
Código Civil: o da efetividade dos direitos do cidadão, tutelando-se preventiva e
repressivamente sua vida, integridade física e patrimônio material.

262
Tratado de responsabilidade civil, p. 178.
128

Posto isso, o trabalho, doravante, consiste em examinar algumas situações que não
são tratadas como hipóteses consolidadas de risco, mas que, submetidas a um
exame mais perfunctório, podem, sim, desencadear o dever indenizatório sem que
se fale em culpa do agente, fundado na atividade arriscada do agente causador do
dano.

Vale dizer que Carlos Alberto Bittar consegue chegar à classificação de determinada
atividade como perigosa por meio de dois critérios, o natural e o jurídico. Pelo
primeiro, com base em elementos naturais, por sua condição ou pelos meios
empregados, considera-se perigosa a atividade. Pelo segundo, por força de
disposições legislativas e jurisprudenciais, atribui-se o caráter de perigosa a uma
determinada atividade.263

Ingressa-se, com esses e mais todos os elementos examinados até aqui, no


intrincado problema já detectado por Rui Stoco, qual seja, na grande dificuldade
sobre o que se pode considerar como “atividade perigosa”.264

14.1 A FABRICAÇÃO, A GUARDA, O MANUSEIO E O TRANSPORTE DE


SUBSTÂNCIAS INFLAMÁVEIS E EXPLOSIVAS

Inicia-se pelo mais simples, ou seja, relacionando atividades já consagradas pela


doutrina e jurisprudência como arriscadas para os direitos alheios.

Como exemplos de substâncias inflamáveis e explosivas, podem ser citados os


combustíveis (gasolina, álcool, diesel, querosene etc.), os fogos de artifício, o gás de
cozinha, as munições, além de produtos químicos em geral.

Aqui, repita-se, não há a mínima dúvida, tanto na doutrina quanto na jurisprudência,


acerca do perigo que o fabrico, a guarda e o transporte de tais elementos oferecem
aos direitos alheios, e seria desnecessária a indicação das fontes nesse sentido,
dada a notoriedade do fato.

263
Responsabilidade civil nas atividades perigosas. In: Responsabilidade civil: doutrina e
jurisprudência. p. 93.
264
Tratado de responsabilidade civil, p. 178.
129

Mas, para não deixar de ilustrar o quão simbólicas são determinadas atividades
como fatos geradores da responsabilidade objetiva genérica, diga-se, pela doutrina,
que Maria Helena Diniz265 vale-se como exemplos da fabricação de explosivos e do
transporte de líquidos inflamáveis, enquanto a jurisprudência é farta no assunto:
nesse sentido, RT 499:98, e mais

Responsabilidade civil – Danos resultantes de incêndio provocado pela


combustão de gás engarrafado – Responsabilidade da companhia de
distribuição de gás (RJTJRS 4/87).
Ação de indenização de danos decorrentes de incêndio causado por
explosão de gás engarrafado – Procedência da ação contra a empresa
concessionária da distribuição de gás (RJTJRS 5/309).

Veja-se, nessa esteira, que, ocorrendo explosões dentro de um posto de gasolina ou


de um depósito de gás, em dois exemplos, causando prejuízos aos presentes, não
há como o proprietário do estabelecimento escapar ao dever indenizatório
escudando-se na ausência de sua culpa.

Leonardo de Faria Beraldo traz a mesma situação para exemplificar uma hipótese
de responsabilidade objetiva genérica: imagine-se uma pessoa que está passeando
por uma avenida e, de repente, ocorre uma explosão dentro de um posto de
gasolina, causando-lhe ferimentos; para ele, salvo comprovação de caso fortuito ou
de força maior, ter-se-á a responsabilidade objetiva, na forma do art. 927, parágrafo
único, do Código Civil brasileiro.266

Da mesma forma, todos os fabricantes, guardiões e transportadores de combustíveis


(gasolina, álcool, diesel, querosene etc.), de fogos de artifício, de gás de cozinha, de
munições, além de produtos químicos em geral, respondem unicamente pelo risco
de sua atividade pelos danos que causarem, sem maiores problemas nesse
particular.

Ressalve-se, outra vez, a possibilidade de aplicação das disposições afetas ao fato


do produto ou do serviço, nos termos dos artigos 12 a 14 do Código de Defesa do
Consumidor, lembrando-se ainda do conceito, por extensão, de consumidor (todas
as vítimas do evento – art. 17 da Lei nº 8.078/90).

265
Código civil anotado. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 714-717.
266
A responsabilidade civil no parágrafo único do art. 927 do Código Civil e alguns apontamentos do
direito comparado. Revista Forense, n. 376, p. 140.
130

14.2 RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMOBILÍSTICA − ACIDENTES CAUSADOS


POR VEÍCULOS “COMUNS”

Longe do atual estágio do trânsito das grandes cidades, em 1974, Wilson Melo da
Silva discorreu acerca do tema, afirmando ser, “problema deveras relevante e
tormentoso, face às múltiplas situações que engendra, esse relacionado com a
responsabilidade civil por acidentes automobilísticos”, completando que:

A cada dia que passa, mais se multiplica o número dos veículos


automotores e, conseqüentemente, o dos acidentes que deles defluem. O
automóvel é sinal de progresso, de dinamismo, de evolução, de caminhadas
para rumos ignotos nestes tempos de tecnologia avançada, nos quais todos
267
buscam viver mais e melhor.

Feito esse introito acerca da problemática a ser enfrentada, por primeiro, cumpre
enunciar a significação de veículos “comuns”, termo utilizado na nomenclatura do
item em estudo. A palavra foi usada com fins meramente didáticos, dado que
“veículo é todo meio utilizado para transportar ou conduzir pessoas ou objetos de um
lugar para outro”268, não existindo essencialmente a propugnada repartição entre
“comuns” e “especiais”. Pretendeu-se, não obstante isso, com o uso do termo
veículos “comuns”, referir-se aos automóveis de passeio, às motocicletas e aos
pequenos utilitários, apartando-os dos grandes veículos de transporte de cargas
pesadas, como os caminhões, as carretas e os guinchos, que terão sua situação
examinada em item apartado, dada a sua especificidade.

Refere-se, então, neste item, aos acidentes envolvendo os automóveis de passeio,


às motocicletas, aos pequenos utilitários e similares, sendo despiciendos maiores
detalhes para se esclarecer o que se pretende dizer, bastando já o uso somente da
expressão veículos “comuns”.

A questão que se põe para verificação, dessa forma, é a admissão ou não da


aplicação da responsabilidade objetiva genérica quando dos sinistros envolvendo
tais veículos “comuns”, nas vias das cidades e nas estradas de rodagem, para o que
será necessário concluir sobre a existência ou não de risco no exercício da
condução dessas máquinas.

267
Da responsabilidade civil automobilística. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 1.
268
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio, p. 2.041.
131

Poder-se-ia conferir a pecha de inutilidade a este item, ao argumento de que


evidentemente a condução de veículos automotores “comuns” não se constitui em
atividade arriscada.

Mas, para retrucar a essa apressada ilação, basta a constatação de que inclusive já
se aventou a criação de um ramo especial no direito somente para a disciplina da
responsabilidade advinda dos acidentes causados por veículos, dada a exacerbada
proliferação dessas máquinas, absolutamente necessárias ao desenvolvimento da
sociedade.

De outro lado, ainda como forma de se sustentar a necessidade do estudo


desenvolvido neste item, como se verá, vozes já se levantaram e ainda se levantam
para taxar a condução de veículos automotores “comuns” de atividade arriscada
para os direitos alheios, o que mais ainda justifica o exame da matéria, que passa a
ser feito.

As regras que disciplinam o trânsito estão contidas no Código de Trânsito Brasileiro


(Lei Federal nº 9.503, de 23 de setembro de 1997).

Em princípio, regula-se a responsabilidade civil originada dos infortúnios


automobilísticos “comuns” pelo exame da culpa, falando-se na responsabilidade
subjetiva.

Segundo Arnaldo Rizzardo, a reparação dos danos ocorridos por acidentes de


trânsito decorre da culpa, não se podendo buscar lastro, no assunto, na
responsabilidade objetiva, sem a incidência do disposto no parágrafo único do art.
927 da lei civil.269

Para ele, desde que obedecidas as regras de trânsito, não decorre necessariamente
o risco, concordando com a aplicação da responsabilidade objetiva apenas nas
atividades ou serviços em que não basta a conduta cautelosa e prudente para evitar
o dano, completando no seguinte sentido, acerca dos acidentes automobilísticos:

Normalmente, porém, os acidentes de trânsito ocorrem por desobediência


às regras de trânsito, que envolve a série de causas fundada na culpa, e
exemplificada genericamente na imprudência, negligência e imperícia,
fatores estes que se detalham no excesso de velocidade, na distração, no

269
Responsabilidade civil, p. 725.
132

momentâneo descuido, na ausência de condições de normalidade do


estado da pessoa, o que acontece na embriaguez, no cansaço, na fadiga,
no sono, no nervosismo, no estado alcoólico ou de intoxicação. E quem se
encontra dirigindo com tais precariedades evidencia uma conduta
270
culposa.

Certo, pois, que a culpa, em princípio, se mostra como elemento fundamental à


responsabilização do agente causador de danos na esfera dos acidentes
automobilísticos “comuns”.

Entretanto, em um reviver da evolução histórica da responsabilidade civil, também


se constatou, no campo dos acidentes automobilísticos “comuns”, como em outros,
a edição de julgados considerados injustos porque lastreados na teoria clássica
subjetiva, iniciando-se um movimento renovador.

Assim, por primeiro, falou-se da facilitação da comprovação da culpa, extraindo-a


das circunstâncias do acidente, assunto já referido quando da abordagem da
evolução histórica da responsabilidade civil, resultando em julgados atuais como os
seguintes, dando-se crédito ao depoimento de uma única testemunha ou mesmo a
um simples boletim de ocorrência:

Prova – Testemunha – Acidente de trânsito – Boletim de ocorrência que


goza de presunção de veracidade - Indenizatória procedente (1º TACSP,
Ap. 429.981/89, Campinas, 2ª Câm. Esp., j. 3-1-1990, rel. Alexandre
Germano).
Prova – Testemunho único, mas seguro e convincente – Procedência da
ação – Sentença mantida. Não importa que a testemunha mencionada na
sentença seja a única a presenciar o evento. Já de há muito se abandonou
o brocardo “testis unos testis nullos”, acolhido no sistema da prova legal. O
direito processual evoluiu para o moderno sistema de persuasão racional,
consagrado no artigo 131 do CPC (1º TACSP, Ap. 456.393-7, Taubaté, 6ª
Câm., rel. Carlos Roberto Gonçalves).

Até que se construiu a teoria da presunção da culpa, encontrando abrigo em casos


como os de colisões traseiras, imputando-se a negligência ou a imprudência ao
condutor do veículo que veio de trás, que somente conseguia se safar da
indenização se demonstrasse que o condutor do veículo da frente teria sido incauto,
como se vê dos seguintes julgados:

Sempre que as peculiaridades do fato, por sua normalidade, probabilidade e


verossimilhança, façam presumir a culpa do réu, a este compete provar sua
inocência (RT, 591:147).

270
Responsabilidade civil, p. 725-726.
133

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS – ACIDENTE


DE AUTOMÓVEL – CRUZAMENTO SINALIZADO COM SEMÁFORO –
COLISÃO NA TRASEIRA – PRESUNÇÃO DE CULPA NÃO ILIDIDA –
DANOS MATERIAIS – COMPROVAÇÃO – DEVER DE INDENIZAR –
SEGURO – COBERTURA – DANO MORAL ESPÉCIE DE DANO PESSOAL
– ENTENDIMENTO PACÍFICO – RESSARCIMENTO ATÉ O VALOR
CONTRATADO – POSSIBILIDADE – DENUNCIAÇÃO DA LIDE –
HONORÁRIOS – DESCABIMENTO – SENTENÇA MANUTENÇÃO –
RECURSO – PROVIMENTO PARCIAL – 1. Há presunção de culpa ao
condutor que colide na traseira de outro veículo, a qual somente é ilidida
mediante prova cabal em contrário; 2. O contrato de seguro por danos
pessoais compreende o dano moral. Precedentes do STJ; 3. Aceitando a
denunciação à lide, e comparecendo ao processo unicamente para proteger
o capital segurado, não responde a denunciada pela verba honorária da lide
secundária. (TJPR – AC 0328098-4 – Londrina – 9ª C.Cív. – Rel. Juiz Conv.
Sérgio Luiz Patitucci – J. 18.01.2007).

Ainda no caminho da evolução da responsabilidade automobilística, passou-se a


aventar casos de abuso de direito como forma de ato ilícito, responsabilizando
pessoas que desatendiam a finalidade social do objeto de sua propriedade,
podendo-se exemplificar com os chamados rachas, nos quais o automóvel se
transmuda de veículo de transporte para objeto de aposta, diga-se, em locais
absolutamente inadequados.271

Outro passo foi o estabelecimento de um número maior de situações reconhecidas


como de transporte contratado, bastando que a vítima provasse que não teria
chegado incólume ao seu destino para que tivesse direito à indenização, sem que
houvesse necessidade da prova da culpa do agente causador do dano.

Isso redundou na atual disciplina dos transportes de pessoas posta no Código Civil
de 2002, valendo a transcrição de três de seus artigos, in verbis:

Art. 730. Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição,


a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas.
Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas
transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula
qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o
passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação
regressiva.

Os artigos de lei mencionados resultaram, sem que houvesse outra solução, no


acolhimento jurisprudencial da tese contratualista na atividade de transportes, como
se vê do seguinte julgado:

271
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil, p. 840.
134

APELAÇÃO CÍVEL – NULIDADE – INEXISTÊNCIA – DANO MORAL –


CARACTERIZAÇÃO – VALOR – RAZOABILIDADE – RECURSO
IMPROVIDO – DECISÃO UNÂNIME – É inacolhível a argüição de
julgamento extra petita, isso porque o pedido de indenização por danos
pessoais, formulado na inicial, engloba os morais e os estéticos. Tratando-
se de lesão sofrida por passageiro de ônibus, sobreleva a responsabilidade
objetiva e contratual da empresa de transporte. Para que o fato de terceiro
exclua a responsabilidade do transportador há de ser imprevisto e
inevitável, e nenhuma relação guarde com a atividade inerente à
transportadora. O acidente que ocasionou a lesão sofrida pelo apelado
(choque entre ônibus e caminhão), está dentro da margem de
previsibilidade e de risco, sobretudo quando, na espécie, o abalroamento
aconteceu por culpa exclusiva do condutor do veículo da empresa de
transporte. (TJPE – AC 93696-5 – Rel. Des. Frederico Ricardo de Almeida
Neves – DJPE 05.05.2006).

Até que o universo dos infortúnios envolvendo veículos “comuns” começou a receber
o tratamento da responsabilidade objetiva, sobretudo no que toca ao risco da
atividade do causador do dano, enquadrando-se a hipótese na segunda parte do
parágrafo único do artigo 927 do Código Civil.

Nesse sentido, o mesmo Arnaldo Rizzardo, que, em princípio, apoia a indenização


na noção de culpa, admite a aplicação da responsabilidade objetiva,
casuisticamente, nos acidentes de trânsito, afirmando que:

Todavia, não se afastam hipóteses da responsabilidade objetiva,


encontrando abrigo no mencionado parágrafo único, ditando a obrigação
indenizatória pela mera ocorrência do fato, ou sem perquirir a culpa do
condutor. Assim acontece no estouro de pneu, no rompimento de uma
peça do carro que o torna incontrolável, como quebra ou trancamento da
barra de direção, ou a repentina falta de freios. Mesmo que alguma culpa
se vislumbre na conduta da vítima, como no atravessar imprudente da via,
mas se o veículo fica sem freios, ou se impossível o controle por defeito
que apareceu, irrompe a responsabilidade objetiva, fundada no fato, na
propriedade da coisa, que implica, por sua natureza, risco aos direitos de
272
outrem.

Também Carlos Roberto Gonçalves dá conta da introdução do sistema objetivo de


responsabilidade quanto aos acidentes de trânsito, asseverando que, na esfera
cível, a situação já apresenta um quadro melhor, pois os tribunais se têm
empenhado francamente em não deixar a vítima irressarcida, facilitando-lhe a tarefa
de busca da justa indenização, nesta era de socialização do direito, observando-se,
com efeito, nos tempos atuais, uma paulatina deslocação do eixo de gravitação da
responsabilidade civil, da culpa para o risco.273

272
Responsabilidade Civil. 3ª ed. Rio de janeiro: Forense, 2007, p. 726.
273
Responsabilidade civil, p. 840.
135

Noticia Antunes Varela que as legislações modernas, sem excetuar a portuguesa,


tendem, com efeito, a responsabilizar o dono do veículo não só pelos danos
causados por fato que lhe seja imputável, como pelos danos provenientes de causa
ligada ao deficiente funcionamento do veículo, ainda que não imputável ao condutor
(art. 508 do Código Civil português)274.

Vê-se, assim, que a evolução foi no sentido de se atender ao direito indenizatório da


vítima, indo-se da prova efetiva da culpa, passando-se pela relativização dessa
prova, enveredando-se pela teoria do abuso do direito e chegando-se na base
contratual do transporte, momento em que, como dá notícia Carlos Roberto
Gonçalves, “com a teoria da culpa na guarda, inspirada no direito francês, com
presunção irrefragável da responsabilidade do agente, doutrina e jurisprudência
começaram a pisar, de maneira efetiva, no terreno firme do risco”.275

Note-se que nada é por acaso, podendo-se agora ter a exata noção sobre os
horizontes que um bom estudo histórico do tema abre para o cientista, revelando-se
que a evolução da responsabilidade automobilística aconteceu da mesma maneira
que a evolução da responsabilidade civil como um todo em outros ramos da
atividade humana.

Hoje, então, da mesma maneira que em outras esferas, tem-se decidido que “A
culpa dos motoristas nos acidentes de trânsito está sendo considerada
objetivamente” (STF - RTJ 51/631), “com base no direito francês, que não repugna
ao nosso direito positivo, por se considerar o automóvel um aparelho sumamente
perigoso” (TJSP, RDCiv, 3:304), resultando em julgados como os transcritos a
seguir:

Alegação de caso fortuito em virtude do estouro de pneu – Desacolhimento


– A teoria da culpa, em sua colocação mais tradicional (subjetiva), não pode
satisfazer os riscos que a utilização do veículo provocou. É preciso, para
solucionar determinadas situações, aceitar colocações mais atuais,
compatíveis com os riscos da utilização de máquinas perigosas, postas em
uso pelo homem (1º TACSP, JTACSP, Saraiva, 80:80).
Atropelamento – Alegação de defeitos mecânicos no veículo – Irrelevância –
Não pode o responsável pelo dano causado por ato ilícito escudar-se em
sua própria negligência, alegando defeitos em seu veículo, os quais a ele
competia sanar. Todavia, mesmo que não tenha ele agido com culpa, ainda

274
Das Obrigações em geral. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 1993, v. 1, p. 630.
275
Responsabilidade Civil, p. 841.
136

assim deve indenizar a vítima, aplicando-se o princípio do risco objetivo (1º


TACSP, RT, 610:110).

Na doutrina, Ademir Canali Ferreira é decidido:

Entre infinitesimais situações perigosas destaca-se a do uso do automóvel,


na sociedade de consumo atual, pondo em risco cotidianamente a vida do
homem, exsurgindo ao condutor uma obrigação de ressarcimento dos
276
prejuízos causados a terceiros.

Na Itália, Pietro Trimarchi, sustenta que a responsabilidade pelo risco se aplica


principalmente às atividades da empresa; mas, diz ele, não somente a elas: pense-
se no uso de um automóvel não mais por empreendedor, mas por um particular.277

Não aderimos, contudo, ao entendimento assumido por Ademir Canali Ferreira e


posto na decisão do Juizado Especial Cível do Rio Grande do Sul, no Recurso
7100538827, decretando que a atividade de transporte é considerada perigosa. Isso
porque, a nosso ver, a generalização é desaconselhada no momento.

Assim, posiciona-se a presente dissertação no sentido de que a responsabilidade


civil, nas hipóteses de acidente de trânsito por infração das normas
regulamentadoras contidas no Código de Trânsito, deve ser afastada da disposição
do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, para tipificar-se no art. 186 do mesmo
estatuto e submeter-se à teoria subjetiva da culpa.

Noticia Rui Stoco, comentando a citada e respeitável decisão do Juizado Especial


gaúcho, que o culto jurista e desembargador Enio Santarelli Zuliane redarguiu com
vantagem que:

A atividade habitual mencionada no art. 927, parágrafo único, do CC,


prevista como de risco para a incolumidade pública é algo extraordinário ou
fora do comum, fruto da ambição legítima do homem, indomável no espírito
de encontrar alternativas inéditas e perigosas de exploração econômica. O
dirigir veículos pelas ruas ou pelas estradas, a passeio ou a negócios, não
é, absolutamente, uma conduta de risco potencial; quem se serve de
automotores para deslocamentos exerce típica conduta normal da
278
cidadania, ou melhor, comete gesto obrigatório de sobrevivência.

276
A exposição ao perigo como fato gerador da responsabilidade civil objetiva. Revista dos
Tribunais, n. 572, p. 22.
277
Rischio e responsabilitá oggettiva, p. 44.
278
ZULIANI, Ênio Santarelli. Os acidentes de trânsito e o Novo Código Civil. Revista Síntese de
Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, n. 34, ano VI, p. 40-43, março-abril/05, apud STOCO,
Rui. Tratado de Responsabilidade Civil, p. 178.
137

Já para José Acir Lessa Giordani, não parece restar “dúvidas quanto ao
enquadramento da maioria dos acidentes de trânsito como uma das hipóteses de
responsabilidade civil objetiva baseada no risco-criado, estabelecida no parágrafo
único do art. 927 do Código Civil de 2002”, chamando a atenção para o interessante
fato de que o verdadeiro prejudicado pelo ato danoso, em sua grande maioria, é
uma pessoa que não teve a mínima oportunidade de gozar dos benefícios
alcançados pelo risco da atividade, afirmando que a modalidade de responsabilidade
civil decorrente dos sinistros veiculares:

Pela sistemática do Código Civil de 1916 era subjetiva, dependendo a


vítima da demonstração da culpa do condutor do veículo pelo evento lesivo.
Este fato, conforme mencionado acima, representava uma grande injustiça
diante dos riscos que são produzidos, cada dia mais intensos devido à
insegurança das rodovias, à grande quantidade de automóveis utilizados
nos tempos modernos, cada dia mais velozes, e do número crescente de
acidentes ocorridos diariamente, muitos deles fatais. Lembremos, ainda,
que o conforto, a rapidez e a segurança proporcionados pela utilização
destes veículos a seu proprietário, usuário ou condutor, não são estendidos
ao pedestre ou proprietários de bens atingidos nos acidentes. Dessa
maneira, parte-se da idéia, segundo a teoria do risco, de que a pessoa que
desenvolve a atividade deve arcar com os riscos que dela decorrem, não
sendo razoável que estes venham a recair sobre terceiro que nada tem a
ver e nenhum benefício, ainda que indireto, está percebendo da atividade
de risco. Ora, se conduzir o veículo produz um risco, por que razão o
pedestre, por exemplo, é que deverá sofrer sozinho as suas
279
conseqüências?

O problema é resolvido, no direito português, pelo artigo 503 de seu Código Civil, in
verbis:

Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação


terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de
comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do
veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.

José Acir Lessa Giordani informa que países como Alemanha, Áustria, Itália e
França adotam o mesmo sistema, não vendo, assim, “qualquer alarde contra a
adoção da teoria do risco para as hipóteses de acidentes provocados por acidentes
de veículos”.280

Não se esqueça da advertência de Enneccerus, Kipp e Wolf, comentando o Código


Civil alemão ainda no início do século passado: “De los daños causados por defecto

279
A responsabilidade civil objetiva genérica, p. 96-97.
280
A responsabilidade civil objetiva genérica, p. 100.
138

del vehículo o falta de sus dispositivos responde el tenedor incondicionalmente,


aunque ni él ni el conductor tengan culpa alguma”.281

Aí estão, pois, ambos os posicionamentos acerca da disciplina da responsabilidade


civil derivada dos acidentes automobilísticos, podendo-se dizer que boa parte da
doutrina acolhe a tese do risco da atividade como fundamento do dever
indenizatório, inclinando-se o trabalho dissertativo pela teoria subjetiva, que encontra
amparo na jurisprudência italiana, segundo Paulo Sérgio Gomes Alonso (C. 62/420,
52/1962 e Cass. 7-8-1952, nº 2.565, em Resp. Civ. Prev. 1953, 125)282.

14.3 O TRANSPORTE DE CARGAS PESADAS

Como exemplos de cargas pesadas, podem ser citadas as toras de madeira, os


automóveis (caminhões cegonha), o cimento, a pedra, a areia e os materiais para
construção em geral, as chapas de aço, o vidro etc.

Diferenciou-se o tratamento de tais cargas pesadas em relação às cargas


inflamáveis e explosivas pelo fato de não se considerar tão certo o risco naquelas
quanto nestas. Tanto se diferenciam que a fabricação e a guarda dos produtos
pesados não implica, em geral, risco algum, tão-somente o transporte, enquanto nos
produtos inflamáveis e explosivos o perigo já desponta desde sua fabricação,
subsistindo na guarda e perdurando até sua chegada ao destino.

Por esse motivo não se fez referência, no título deste item, à fabricação e à guarda,
mencionando-se apenas o transporte de cargas pesadas, impondo-se agora saber
se esse mister constitui atividade de risco para os direitos alheios.

Diga-se que a distinção entre as consequências para o acidente envolvendo


automóveis “comuns” e os infortúnios produzidos por caminhões e carretas já foi
notada pela jurisprudência:

Atropelamento. Caminhão. Responsabilidade objetiva da atividade de


transporte. Art. 927, parágrafo único do CC. Culpa concorrente não
evidenciada. Recurso parcialmente provido para redução do valor da
indenização. Ausência de provas. Na vigência do Novo Código Civil, a
281
Tratado del derecho civil, p. 721.
282
Pressupostos da responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 160.
139

atividade de transporte é considerada atividade perigosa, para os efeitos de


incidência da responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo
único do CC, cabendo ao causador do atropelamento comprovar a culpa
concorrente ou exclusiva da vítima, a fim de mitigar ou excluir sua própria
responsabilidade (TJRS – 3ª T. JEC – Recurso Inominado 7100538827 –
Rel. Eugenio Facchini Neto – J. 13.07.04, p. 179).

Para resumir, segundo o entendimento dissertativo, a condução de veículos


“comuns” não é arriscada, ressalvando-se os judiciosos posicionamentos em
contrário, mas o é o transporte feito com caminhões e carretas, em virtude das
características especiais de que se revestem as cargas transportadas,
conseguintemente gerando maior perigo para os direitos alheios.

Aproveitando, então, a menção, na tentativa de levar o leitor à vida real, pergunta-


se: quem, um dia, não se viu descendo a Serra do Mar, pela Via Anchieta,
contornando várias de suas acentuadas curvas, paralelamente àquelas carretas
transportadoras de contêineres com destino ao Porto de Santos?

Outra situação, na mesma linha, é aquela de quem vai por uma estrada qualquer e
se depara imediatamente atrás de uma carreta carregada de enormes toras de
madeira.

Ainda uma terceira hipótese, quando se está trafegando pela cidade e ingressa na
frente de seu automóvel um caminhão, no mais das vezes pequeno, cheio de
botijões de gás, uns empilhados sobre os outros, até o último centímetro da
proteção, quando não a extrapola.

Em qualquer uma das citadas três ocasiões, e em muitas outras envolvendo o


transporte de grandes cortes de vidro, mármore, granito, pedras e diversos materiais
de construção, não é preciso dizer da sensação de se estar absolutamente indefeso
contra uma queda do contêiner, de uma das toras de madeira, de um botijão de gás
ou de qualquer um dos outros produtos mencionados, bem em cima do teto de seu
carro, o que parece iminente.

As alternativas são usar a Rodovia dos Imigrantes em vez da Via Anchieta,


ultrapassar a carreta que transporta a madeira, desviar o percurso na cidade para
escapar do caminhão dos botijões de gás ou frear e esperar que o veículo vá bem à
frente, continuando a seguir.
140

O único motivo para a tomada dessas providências cautelares é o medo,


absolutamente justificado, que se tem da queda do objeto pesado sobre seu veículo,
o que decorre da experiência, ouvindo-se notícias, todos os dias, de inúmeros
acidentes, muitos deles fatais, nas mencionadas condições.

O alto número de acidentes, por sua vez, denota a previsibilidade da ocorrência de


um novo sinistro, que se torna, assim, provável. Dano provável, como se viu,
representa exatamente o risco, decorrendo daí que os citados tipos de transportes
são nada mais que atividades arriscadas para os direitos alheios, devendo o
responsável responder pelos prejuízos deles advindos, nos termos da segunda parte
do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil.

Interessante na elaboração deste trabalho foi que, durante sua redação, várias
situações noticiadas na mídia em geral foram se apresentando como exemplos
simbólicos de atividades arriscadas e geradoras de prejuízos materiais e acidentes,
inclusive fatais, com pessoas.

Assim foi que, na madrugada do dia 26 de janeiro de 2008, na Via Dutra, entre as
cidades de Guaratinguetá e Aparecida, um caminhão, no sentido São Paulo - Rio de
Janeiro, bateu no canteiro central da rodovia e seu baú, pesando catorze toneladas,
desprendeu-se, caindo na pista contrária, colidindo contra um ônibus, que tombou e
foi atingido por um caminhão que vinha atrás, caindo na ribanceira. Os resultados
foram a morte de cinco passageiros do ônibus, o ferimento de outros doze e a
destruição da casa atingida pelo caminhão.

O proprietário do caminhão que teve seu baú desprendido argumentou que o veículo
passou por revisão havia cerca de 30 dias e estava em boas condições.

É óbvio que o fato dará ensejo a toda uma instrução processual, mas, se o dono do
veículo pretendeu exonerar-se da responsabilidade atribuindo a culpa pelo acidente
a quem prestou o serviço de manutenção do caminhão, em princípio, pode-se dizer
que a escusa não surtirá efeitos, respondendo o transportador por todo o prejuízo
em virtude do risco de sua atividade, o que será objeto de julgamento posterior.
141

14.4 A ATIVIDADE BANCÁRIA

14.4.1 Responsabilidade pelo Pagamento de Cheque Falso

De conhecimento geral que a responsabilidade civil se origina do descumprimento


da lei (aquiliana) ou da vontade das partes (contratual), podendo-se operar em
virtude da culpa do agente (subjetiva) ou mesmo sem ela (objetiva).

Diante desse quadro, quanto ao tema em exame, vacilam, ainda, doutrina e


jurisprudência, ora colocando o problema no âmbito contratual, ora no
extracontratual, e ainda sem decidir se no campo da culpa ou no campo do risco da
atividade, para se alcançar a solução da lide intentada pelo cliente contra o banco
para reaver a quantia sacada de sua conta por meio de cheque com assinatura
falsificada, sem que tenha concorrido para o engodo do estelionatário.

Entendendo que, indubitavelmente, a questão se põe no direito dos contratos,


Carlos Roberto Gonçalves chama a atenção para que muitos julgados ainda se
baseiam na culpa para a solução desses litígios, resumindo a situação
jurisprudencial da seguinte maneira: “quando nem o banco nem o cliente têm culpa,
a responsabilidade é do primeiro, excluindo-se ou mitigando-se nos casos de,
respectivamente, culpa exclusiva ou concorrente da vítima”.283

O entendimento deu origem à súmula 28 do Supremo Tribunal Federal: O


estabelecimento bancário é responsável pelo pagamento de cheque falso,
ressalvadas as hipóteses de culpa exclusiva ou concorrente do correntista.

Como dito, não obstante o entendimento consolidado da Suprema Corte, três são as
teorias a respeito do assunto: a da culpa, a contratualista e a do risco profissional.

Ora, pela teoria da culpa, a situação teria o encaminhamento clássico, ou seja,


examinar-se-ia a falta de cautela do banco no pagamento da cártula falsificada,
presumindo-se sua culpa, que somente seria excluída pela culpa exclusiva da
vítima, segundo o verbete da súmula acima transcrita, encampada também no
seguinte aresto:

283
Responsabilidade Civil, p. 368.
142

Todas as vezes em que o falsário apresenta ao banco um saque com


assinatura falsificada, a vítima visada é o banco e não o correntista, cuja
assinatura falsificada é apenas um meio para a consecução do fim. Quem
recebe o cheque é o banco e não o correntista; quem o examina é o banco;
quem pode exigir, ou dispensar provas de identidade, é o banco. O
correntista está alheio a tudo; ignora que alguém se apresenta com um
cheque em que, aparentemente, figura a sua assinatura. Nenhuma
providência pode tomar para evitar o êxito do criminoso. Se a falsidade for
descoberta oportunamente, nenhum prejuízo sofrerá o banco; se for bem-
sucedida, é ele a vítima. A regra da responsabilidade do banco desaparece,
ou fica atenuada, se prova que o depositante concorreu com dolo ou culpa
para o evento (RT, 169:614).

Pela teoria contratualista, com a adesão de Carlos Roberto Gonçalves, em linhas


gerais, o banco seria reconhecido como depositário da quantia sacada pelo falsário
e, assim, obrigado à imediata restituição.284

Sérgio Cavalieri Filho faz uma distinção interessante: “em relação aos clientes, a
responsabilidade dos bancos é contratual; em relação a terceiros, a
responsabilidade é extracontratual”.285 Nestes termos de formulação, então, no caso
tratado neste item – o pagamento de cheque falso – o banco responderia segundo o
direito negocial, enquanto no item abaixo referente ao envio do nome de terceiros
aos cadastros de inadimplentes em virtude de conta aberta por estelionatário
utilizando-se dos documentos da vítima, esta teria direito à indenização decorrente
da responsabilidade aquiliana.

Ainda, Cavalieri Filho resolve o problema da seguinte maneira: “O dinheiro


indevidamente entregue ao estelionatário é do banco, a ele cabendo, portanto,
suportar o prejuízo, segundo o milenar princípio res perit domino”286.

Interessa a este trabalho, especialmente, por óbvio, a teoria do risco profissional,


fundando-se no pressuposto de que o banco, ao exercer a sua atividade com fim de
lucro, assume o risco dos danos que vier a causar, recaindo a responsabilidade
sobre aquele que aufere os cômodos (lucros) da atividade, segundo basilar princípio
da teoria objetiva: ubi emolumentum, ibi onus.287

Já em 1978, Washington de Barros Monteiro apontou como tendência acolhida pelo


Supremo Tribunal Federal o risco como lastro da imputação ao banqueiro da

284
Responsabilidade Civil, p. 368.
285
Programa de responsabilidade civil, p. 385.
286
Ibidem, p. 388.
287
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil, p. 368.
143

responsabilidade pelo pagamento de cheques falsificados, independentemente de


culpa, em aresto transcrito na Revista Forense 96/73.

Pode-se afirmar, bem acompanhado por Caio Mário da Silva Pereira, que a
tendência de nossos Tribunais, no caso em exame, é agravar a responsabilidade
dos bancos, impondo, seja pela teoria da culpa pura, pela teoria da culpa presumida
ou pela teoria do risco profissional, o dever indenizatório à instituição financeira.288

Desde o início da década de 1980, a jurisprudência já caminha, cada vez em passos


mais largos, ao reconhecimento da responsabilidade aquiliana objetiva em virtude da
atividade profissional de risco:

Os bancos respondem pelo risco profissional assumido, só elidindo tal


responsabilidade a prova, pela instituição financeira, de culpa grave do
cliente ou de caso fortuito ou força maior (1º TACSP, 7ª C., Ap. Rel. Luiz de
Azevedo, j. 22.11.83, RT, 589/143).
Não provada a culpa do correntista, mas a do banco, é deste a
responsabilidade pelo pagamento de cheque falso, uma vez que é o
estabelecimento bancário quem assume o risco e a obrigação de vigilância,
garantia e segurança sobre o objeto do contrato (1º TACSP – 3ª C. – Ap. –
Rel. Souza Lima – j. 13.06.84 – RT, 596/136).

E assim é até os dias de hoje:

DIREITO CIVIL – INSTITUIÇÃO BANCÁRIA – LEI Nº 8.078/90 –


RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA – CEF – TALÃO DE CHEQUE
ENTREGUE A TERCEIROS – DANO AO CORRENTISTA – NEXO DE
CAUSALIDADE – DANO MORAL CONFIGURADO – DIREITO À
INDENIZAÇÃO – 1. A Lei nº 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor -,
inclui a atividade bancária no conceito de serviço (art. 3º, § 2º),
estabelecendo como objetiva a responsabilidade contratual do banco (art.
14), que se funda na teoria do risco do empreendimento, segundo a qual
todo aquele que se dispõe a exercer alguma atividade no campo do
fornecimento de bens e serviços, tem o dever de responder pelos fatos e
vícios resultantes do empreendimento, independentemente de culpa. 2. In
casu, do conjunto probatório constante dos autos, verifica-se que realmente
um talão de cheques do Autor foi entregue ao correntista ORLANDO
TADEU DE ALCÂNTARA, o qual declarou que, "por volta do ano de 1997,
ao requisitar um talão de cheques perante a Caixa Econômica Federal,
agência 620, em Belo Horizonte, me foi entregue um talonário do Sr.
MARCELO PAES MENEZES, também cliente daquela agência e que o
equívoco só foi desfeito após terem sido utilizados aproximadamente 10
(dez) folhas do referido talonário. Constatado o erro, compareci naquela
agência, devolvi o talão parcialmente utilizado, onde recebi a informação de
que a situação já estava regularizada e que os valores dos cheques
indevidamente utilizados, tinham sido debitados na minha conte corrente".
3. Infere-se dos autos, também, que o cheque do Banco Real pertencente à
parte autora não foi aceito em estabelecimento comercial, em virtude de seu
nome constar em "Lista Negra" de devedores. 4. Se os riscos do negócio

288
Responsabilidade civil, p. 182.
144

correm por conta do empreendedor e resta configurado na espécie o nexo


de causalidade entre a conduta negligente da CEF e o dano provocado ao
Autor, correta a condenação ao pagamento de indenização por danos
morais, cujo direito à reparação foi expressamente reconhecido na
Constituição Federal de 1988 (art. 5º, V e X), que além de ínsito à dignidade
humana, é reconhecido como fundamento da República Federativa do
Brasil (art. 1º, III). 5. Segundo critérios sugeridos pela doutrina e
jurisprudência, os quais prevêem que a fixação do valor indenizatório pelo
dano moral deve levar em conta as circunstâncias da causa, bem como a
condição sócio-econômica do ofendido e do ofensor, de modo que o valor a
ser pago não constitua enriquecimento sem causa da vítima, e sirva
também para coibir que as atitudes negligentes e lesivas não venham a se
repetir, merece ser mantida a quantia de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), a
ser paga pela CEF. 6. Nos termos da sentença, o fato de o Autor ocupar o
cargo de Juiz Federal do Trabalho não torna o seu constrangimento maior
ou menor do que o de qualquer outro cidadão, sobretudo porque não está o
fato ligado a sua atuação funcional, razão pela qual merece ser improvida a
pretensão recursal de majoração da indenização por dano moral. 7.
Apelações conhecidas e improvidas. (TRF 2ª R. – AC 2001.51.03.000505-1
– RJ – Rel. Juiz Guilherme Calmon – DJU 04.10.2006 – p. 181).

Vê-se, assim, a introdução cada dia maior da responsabilidade pela atividade de


risco no âmbito da reparação civil decorrente do pagamento de cheque sem a
devida provisão de fundos na conta do correntista.

14.4.2 Responsabilidade pela Cobrança Judicial ou Protesto de Título Quitado

Retome-se o exemplo: imagine-se que uma instituição financeira assumiu o dever de


cobrança de um título de crédito, obrigação advinda do chamado endosso mandato;
caso o título já esteja pago e o banco proponha ação de cobrança mesmo assim,
talvez porque o credor não o comunicou da quitação, responderá o mandatário pela
indenização devida pela cobrança irregular.

Veja-se, no exemplo, que o prejuízo resultante da conduta de ajuizar a ação de


cobrança se relaciona em tudo com a atividade principal desenvolvida pela
instituição financeira, de modo que o risco da atividade deve ser suportado pelo
banco, que arcará, por vezes, pelo fato de promover cobrança de dívidas já
quitadas, como vem sendo reconhecido pela jurisprudência:

Protesto Indevido do Título - O banco, para quem a duplicata foi endossada,


responde pelos danos que o devedor sofreu, em decorrência do protesto do
título, se este havia sido pago diretamente ao vendedor das mercadorias,
que, por sua vez, repassou o valor à instituição endossatária (RTJ,
108/1237).
145

No mesmo sentido: RT 789/188, 751/277, 743/284; RDM 122/202, e ainda:

Responsabilidade civil de estabelecimento bancário. Ação de indenização.


Dano comprovado. Título indevidamente protestado – Resultado dos autos
que houve indevido protesto de título, por parte do estabelecimento
bancário, com abalo de crédito de seu emitente, e daí lhe advindo sérios
prejuízos, cabe-lhe o direito de obter indenização correspondente (STF, 2ª
T. – RE – Rel. Adir Passarinho – j. 02.12.83 – DJU 24.02.84 – RT, 587/233).

Decorre, neste caso, evidentemente, a responsabilidade objetiva em virtude da


atividade arriscada desenvolvida pela instituição financeira.

Destoa, contudo, do posicionamento acima adotado, o recente julgado do Superior


Tribunal de Justiça, relatado pelo Ministro Cesar Asfor Rocha:

Direito civil. Responsabilidade civil. Danos morais. Protesto de duplicata


sem causa. Endosso-mandato. Responsabilidade do endossatário pelos
danos causados ao sacado – No endosso-mandato, só responde o
endossatário pelo protesto indevido da duplicata sem aceite quando
manteve ou procedeu ao apontamento após advertido de sua irregularidade,
seja pela falta de higidez da cártula, seja pelo seu devido pagamento (4ª T.
– Resp 549.733-0 – DJU 13.09.04, RSTJ 182/66).

Aberta, mais uma vez, a oportunidade para que se escolha qual a tese que mais
agrada ao leitor, fixando-se o posicionamento dissertativo no sentido de que o banco
responde sempre pela cobrança judicial irregular ou pelo protesto de um título pago,
em virtude do desenvolvimento de atividade arriscada.

Compartilhamos do entendimento do eminente Cavalieri Filho, para quem “se o


banco não tem condições de averiguar a realidade do negócio que deu causa ao
título, deve, pelo menos, nas operações de desconto, ter a máxima cautela”, não
considerando possível “querer repassar os riscos do seu negócio para terceiros que,
além da boa-fé, nenhum negócio fizeram com o falsário”, mesma solução adotada
pelo ministro Ruy Rosado de Aguiar, do Superior Tribunal de Justiça:289

Duplicata – Protesto – Cancelamento – Dano moral – Responsabilidade do


banco – A jurisprudência predominante do Superior Tribunal de Justiça
admite o cancelamento do protesto de duplicata sem causa. A
responsabilidade pela indenização dos danos causados é do banco que
levou o título sem causa ao cartório. (4ª T. =, Resp 112.236/RJ, RSTJ
102/370).

289
Programa de responsabilidade civil, p. 396.
146

Ainda, compartilhando do entendimento dissertativo, Cláudio Luiz Bueno de Godoy


afirma que

São de todos conhecidos os efeitos que medidas de cobrança, em especial


antes do ajuizamento que incide a demanda, ou seja, providências de
protesto a de comunicação aos órgãos de proteção ao crédito, pode
significar a vítima. Por outro, trata-se de atividade, frise-se, posto não se
queira intrinsecamente perigosa, que já carrega em si um risco especial,
diferenciada, pela repetição da ocorrência danosa. Isso, acrescente-se, por
relevante, mesmo que o seu exercício se dê normalmente. A atividade de
cobrança monetária não pode ser considerada de perigo inerente, uma
atividade, enfim, intrinsecamente perigosa. É muito diversa de atividades
como manuseio de explosivos, mineração, explosão de energia nuclear e
outras semelhantes. Nem por isso, porém, deixa de, pelas suas atuais
290
características induzir o risco diferenciado.

E conclui o eminente Bueno de Godoy:

Enfim, o que se considera é que a subsunção dessa antiga ocorrência,


envolvendo protesto ou negativação de títulos entregues para cobrança, à
previsão do parágrafo único do artigo 927 e ao risco da atividade nele
contido, com o conteúdo que se identificou, atinente a um risco especial,
justifique de per si a responsabilização do banco endossatário, sem que
seja necessário discutir se ele era devido e, mais, se nele era possível
verificar a regularidade da cártula, se eventual regularidade era perceptiva,
se era razoável apercebe-se, portanto uma responsabilidade que decorre
291
tão só do risco da atividade, sem cogitação de risco.

14.4.3 Responsabilidade pelos Saques Indevidos em Caixas Eletrônicos

Atine a situação com o problema da clonagem de cartões de saques em caixas


eletrônicos, obtendo os criminosos a senha do usuário por meio de engodos, como o
oferecimento de ajuda a pessoas menos instruídas ou mesmo as vigiando quando
da realização de alguma operação.

A argumentação da instituição financeira será no sentido de que o saque indevido foi


propiciado pela desídia do cliente, que contribuiu de qualquer forma para a obtenção
pelo estelionatário de uma cópia do cartão e do número da senha, levando a
questão para o âmbito da culpa exclusiva da vítima, que, como se viu, tem o condão
de afastar o dever indenizatório.

290
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 182.
291
Ibidem, p. 185.
147

Levantar-se-á, de outro lado, que a inocência de parcela das pessoas que utilizam o
sistema bancário para o recebimento de suas míseras rendas, como os benefícios
previdenciários e assistenciais, fica rendida frente à vultosa criminalidade que se
dedica única e exclusivamente à prática delituosa dessa espécie, contando com o
beneplácito implícito dos banqueiros, eis que as instituições financeiras não estão se
preocupando o mínimo com a movimentação bancária em caixas eletrônicos, que se
processa aos milhões por todo o país.

Com efeito, não resta a menor dúvida de que a intenção única das entidades de
crédito é o aumento cada vez mais desenfreado de seus lucros, e para isso não
podem gastar sequer um salário mínimo a fim de que uma pessoa de alguma
instrução possa ficar constantemente postada no caixa eletrônico, o que bastaria
para diminuir vertiginosamente o número de saques indevidos nas contas bancárias
dos clientes.

E já que se falou em números, lembre-se da ideia que se desenvolveu para se


imputar de arriscada uma determinada atividade. Pois bem, discorrer acerca do
elevado número de saques indevidos em caixas eletrônicos seria o mesmo que
afirmar a competência de Alvino Lima no trato da doutrina do risco. Como se viu, o
alto índice de determinada ocorrência gera a previsibilidade de que haverá
reincidência se renovadas as circunstâncias anteriores, decorrendo daí a
probabilidade de sua verificação, que consiste exatamente no perigo, ou melhor, no
risco.

De acordo com o raciocínio mais uma vez exposto, então, a atividade bancária
consistente no oferecimento de caixas eletrônicos para a clientela realizar seus
saques de dinheiro se constitui em risco para os direitos alheios, impositivo do dever
indenizatório de acordo com a responsabilidade objetiva genérica, subsumindo-se a
situação na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil.

Levanta-se, ainda, a hipótese de aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao


caso em tela, taxando-se de defeituoso o serviço prestado pela instituição financeira
consistente na falta de segurança evidenciada por saques sucessivos de numerário
da conta do correntista, obrigando-se o banco à devolução das quantias com
148

fundamento no art. 14 da Lei nº 8.078/90, com acolhimento da tese pela


jurisprudência:

Caixa Eletrônico – Saques com cartão clonado – Responsabilidade objetiva


da instituição financeira. É objetiva a responsabilidade da instituição
financeira decorrente de defeito do serviço, consistente na falta de
segurança, evidenciada por saques sucessivos de numerário da conta do
correntista, em caixas eletrônicos, por meio de cartão magnético clonado,
caso não demonstradas as excludentes previstas no artigo 14, § 3º, do
CDC (RT, 806:331).

Mais uma vez será o critério da especialidade que determinará a aplicação do


Código de Defesa do Consumidor ou do Código Civil.

14.4.4 A “Negativação” do Nome de Alguém em Virtude da Abertura de Conta por


Estelionatário

Situação corriqueira essa, geralmente surgida pelo extravio dos documentos


pessoais da vítima, admitida pelos bancos em suas próprias contestações,
procurando se isentar do dever indenizatório ao argumento de que também foi vítima
do estelionatário, pois este se apresentou munido de documentação escorreita para
a abertura da conta corrente e consequente tomada de crédito.

Mais uma vez, sem pretender afirmar a correção do julgado proferido em caso
idêntico ao tratado neste item, num processo tramitado pelo Juizado Especial da
Comarca de Ibiúna, número de ordem 51/06, foram postas na contestação do banco
duas teses, uma principal e uma subsidiária: a principal sustentava que a
negativação do nome do autor da ação indenizatória se deu em virtude de contrato
de abertura de conta corrente com disponibilidade de crédito a ele, que não honrou o
pagamento do mútuo, justificando-se o envio de seu nome para a Serasa e o SCPC;
subsidiariamente, argumentava-se que, se as partes não celebraram o negócio
jurídico, a fraude perpetrada pelo estelionatário foi muito bem feita, excluindo-se a
responsabilidade da instituição financeira em decorrência da ausência de sua culpa.

Ao cabo do processo, foi deferida a indenização, fundando-se o julgado nos


seguintes elementos: É evidente que a chamada de atenção para a boa qualidade
da fraude não exonera o réu de sua responsabilidade. Isso porque é empresa de
149

enorme poder econômico e deveria ter pessoal e material adequados para evitar
problemas como o que enfrenta o autor. Aliás, não seria necessário dizer que, para
um caso de fraude em abertura de conta bancária, milhares de outras contas
idôneas são abertas, propiciando os enormes lucros das instituições financeiras. Daí
que o risco de ter que arcar com a indenização pela abertura de uma conta
fraudulenta deve ser suportado por quem enriquece com a abertura de milhares de
outras contas regulares. Quem aufere o bônus, deve arcar com o ônus. E, como
é cediço, esse risco já está devidamente contabilizado e inserido nas taxas que a
instituição financeira cobra dos seus clientes honestos, de tal forma que nem a
ínfima quantia arbitrada a título de danos morais para as vítimas de fraudes é
sentida pelos bancos.

Certa ou errada, a decisão foi confirmada pelo Colégio Recursal da 19ª Circunscrição
Judiciária de Sorocaba – SP.

A jurisprudência não vem destoando do entendimento, sempre com fundamento no


risco da atividade bancária:

BANCO – Indenização – Danos moral e material – Abertura de conta


corrente através de ato fraudulento, consistente na utilização de carteira de
identidade que havia sido perdida pelo titular do documento – Fato que
culminou no protesto de cheques – Verba devida pela instituição financeira,
pois a falsificação foi montada contra ela, decorrendo sua responsabilidade
em virtude do risco profissional. A abertura de conta corrente através de ato
fraudulento, consistente na utilização de carteira de identidade, que havia
sido perdida pelo titular do documento, sem o seu conhecimento ou
participação, que acabou por culminar no protesto dos cheques, impõe ao
banco o dever de indenizar os danos morais e materiais suportados em
decorrência da fraude, pois a falsificação foi montada contra a instituição
financeira, decorrendo sua responsabilidade em virtude do risco profissional
(TJSP, RT, 779/216).
Dano moral. Instituição bancária. Inclusão errônea do nome do correntista
junto ao cadastro de emitentes de cheques sem fundos. Responsabilização.
Teoria do risco profissional – Não elide a responsabilidade da instituição
bancária pelo ressarcimento dos danos morais oriundos da inclusão errônea
do nome do correntista junto ao cadastro de emitentes de cheques sem
fundos o fato de a falsificação da assinatura emitida na cártula devolvida ser
de boa qualidade, impossibilitando a identificação da inautenticidade. A
instituição bancária deve arcar com os danos oriundos dos riscos da
atividade empreendedora (TRF, 4ª R. - 3ª T., Ap. 97.04.24359-6 – Rel.
Paulo Afonso Brun Vaz – j. 11.05.2000).

Daí a tipificação da conduta tratada neste item também ao artigo 927, segunda parte
do parágrafo único, do Código Civil, sendo o que se propõe.
150

14.4.5 Indenização Pedida pelo Terceiro que Recebeu Cheque Falso

Leonardo de Faria Beraldo taxa de ousado e inovador o tema por ele proposto,
referente à responsabilização solidária das instituições financeiras pelo pagamento
de cheques falsos passados a terceiros, afirmando que:

Dois fatos são notórios: 1) que as instituições financeiras estão, a cada ano,
aumentando ainda mais os seus lucros, e, 2) o número de cheques falsos e
cheques “sem fundos” está crescendo de forma espantosa no Brasil. Assim
sendo, levando em consideração estas assertivas, convidamos o leitor a
refletir sobre a possibilidade de as instituições financeiras responderem,
solidariamente, perante terceiros lesados que recebem cheques falsos ou
cheques “sem fundos”. A princípio, pode parecer absurda a idéia, mas será
que a atividade normalmente desenvolvida pelos bancos, por sua natureza,
não representa risco a terceiros? Particularmente, acreditamos que a
resposta seja positiva. No tocante aos cheques falsos, vê-se que há vários
anos as instituições financeiras não se preocupam em criar mecanismos
para dificultar a sua falsificação; selos tridimensionais e marcas d’água, por
exemplo, são idéias de como inibir falsificadores e proteger a sociedade
como um todo. Já com relação aos ditos cheques sem fundo, cremos que
os bancos poderiam ter critérios mais rígidos e severos antes de abrirem
novas contas bancárias e distribuir talões de cheque aos seus clientes. Ora,
por que é que as instituições financeiras não podem ser penalizadas em vez
de pessoas comuns, que, muitas vezes, não têm dinheiro nem mesmo para
pagar sua alimentação? Deste modo, repetindo, convidamos o leitor a
meditar a este respeito, tendo em vista a inovação objeto deste trabalho e,
292
ainda, em homenagem ao princípio da socialização do risco.

É posicionamento de vanguarda e sustentado em sólidos argumentos, sendo trazido


para que a reflexão do autor possa ser compartilhada por todos os leitores deste
trabalho.

14.5 O CARTÃO DE CRÉDITO

Como explicado por Cavalieri Filho, no mecanismo dos cartões de crédito aparecem
três elementos: o emissor do cartão (empresa que explora o negócio), o titular do
cartão e o vendedor (empresa pertencente à rede filiada).293

O emissor se interpõe entre o titular do cartão e o comerciante filiado, credenciando


o uso do cartão, comprometendo-se a pagar as dívidas com ele assumidas perante

292
A responsabilidade civil no parágrafo único do art. 927 do Código Civil e alguns apontamentos do
direito comparado. Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 376, p. 131-143, nov./dez. 2004.
293
Programa de responsabilidade civil, p. 390.
151

o fornecedor de serviços e produtos. Assim, o titular do cartão paga uma anuidade


ao emissor pelo credenciamento por este proporcionado àquele.

Trata-se, então, de um contrato de prestação de serviços, oferecendo o emissor


certo crédito para que o titular do cartão usufrua perante comerciantes filiados. Esse
é um primeiro contrato, o celebrado entre o emissor e o titular do cartão de crédito.

Outro é o contrato celebrado entre o emissor e o fornecedor de serviços e produtos,


denominado de filiação, obrigando-se o primeiro a pagar para o segundo as
despesas do titular do cartão.

É constante a falta de cautela das lojas vendedoras, deixando de conferir a


assinatura do portador do cartão de crédito com a lançada na nota de compra, bem
como deixando de exigir do comprador outro documento de identificação.

Para Cavalieri Filho, o titular do cartão não pode responder pela desídia dos
estabelecimentos comerciais filiados ao sistema por não ter com esses nenhum
vínculo contratual, concluindo que, “em suma, o risco de aceitar o cartão, sem
conferir assinaturas e sem exigir qualquer outro documento, é do vendedor”.294

Já a jurisprudência, em casos idênticos, vem carreando a responsabilidade à


entidade administradora do cartão de crédito, torrencialmente proclamando o risco
desta atividade como fundamento da responsabilidade civil:

Cartão de crédito furtado – Compras efetuadas antes da comunicação do


furto – Riscos do empreendimento. Como prestadora de serviços, correm
por conta da empresa exploradora de cartão de crédito os riscos de seu
empreendimento. Destarte, cabe-lhe arcar com os prejuízos decorrentes do
furto, roubo, ou extravio do cartão, salvo prova inequívoca de ter o evento
ocorrido por fato exclusivo do titular. A demora da comunicação do furto não
se erige em causa adequada se a prova evidencia que ela teria sido inócua
em face da ausência de cautela do estabelecimento vendedor e por terem
sido efetuadas as compras antes do prazo normal de comunicação. Pelo
fato culposo no estabelecimento vendedor, que não atentou para a
assinatura grosseiramente falsificada, o titular do cartão não pode ser
responsabilizado por não ter com aquele nenhum vínculo jurídico (TJRJ, Ap.
6.255/96, 2ª Cam. Rel. Desembargador Sérgio Cavalieri).
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO INDENIZATÓRIA – USO DE DOCUMENTOS
FURTADOS – AUSÊNCIA DE CHECAGEM PRÉVIA DE DADOS E DE
DOCUMENTOS APRESENTADOS PARA REALIZAÇÃO DO CONTRATO –
AUSÊNCIA DAS CAUTELAS NECESSÁRIAS PARA A PRÁTICA DE ATOS
A SEUS CUIDADOS – INCLUSÃO INDEVIDA DO NOME NO SPC –
DANOS MORAIS – A empresa que fornece serviços ao público, como

294
Programa de responsabilidade civil, p. 392.
152

contrato de cartão de crédito, assume o risco da sua atividade, devendo


revestir-se das cautelas necessárias para a prática de atos a seus cuidados,
principalmente quanto à conferência dos documentos que lhe são
apresentados, bem como conferir e a checar os dados constantes destes
documentos. A indenização por dano moral deve ser fixada em patamares
comedidos, ou seja, não exibe uma forma de enriquecimento para o
ofendido, nem, tampouco, constitui um valor ínfimo que nada indenize e que
deixe de retratar uma reprovação à atitude imprópria do ofensor,
considerada a sua capacidade econômico-financeira. A reparação desse
tipo de dano tem tríplice caráter : Punitivo, indenizatório e educativo, como
forma de desestimular a reiteração do ato danoso. Apelação 1:
Desprovimento. Apelação 2: Não conhecida. (TJRJ – AC 2004.001.35054 –
18ª C.Cív. – Rel. Des. Jorge Luiz Habib – J. 05.04.2005).
Cartão de crédito – Extravio – Comunicação à companhia emissora – Uso
por terceiro – Exclusão de responsabilidade pelo usuário (TJRJ) (RT,
593/198).

Diga-se mais uma vez da possível chamada do Código de Defesa do Consumidor


para a solução do problema, taxando-se de defeituoso o serviço prestado pela
emissora do cartão de crédito, aplicando-se o art. 14 da Lei nº 8.078/90.

DANO MORAL – BLOQUEIO INDEVIDO DE CARTÃO DE CRÉDITO –


Indenização devida, reconhecido o vínculo contratual entre a administradora
e o titular, e, portanto, a responsabilidade da primeira, fundada no risco,
sendo irrelevante a indagação quanto à presença de culpa ou dolo,
incidente o art. 14 do Código de Defesa do Consumidor – Justificada,
entretanto, a redução da verba, tendo em conta a pequena intensidade do
dano – Honorários de advogado corretamente fixados – Recurso
parcialmente provido. (1º TACSP – AC 836.458-5 – 3ª C. – Rel. Juiz Itamar
Gaino – DJSP 03.02.2003 – p. 149).
CIVIL – CONSUMIDOR – RESPONSABILIDADE CIVIL – DÉBITO NÃO
AUTORIZADO – FORNECIMENTO DE CARTÃO DE CRÉDITO SEM
AUTORIZAÇÃO DO CONSUMIDOR – SUPOSTA FRAUDE POR
TERCEIROS – NEGATIVAÇÃO INDEVIDA NO SPC-SERASA –
COBRANÇA POR SERVIÇO NÃO PRESTADO – DEFEITO NA
PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – RESPONSABILIDADE OBJETIVA – TEORIA
DO RISCO DA ATIVIDADE (ART. 927, CCB/02) – CULPA – NEGLIGÊNCIA
E IMPRUDÊNCIA CONFIGURADAS – DANO MORAL CONFIGURADO –
INEXISTÊNCIA DE FATO IMPEDITIVO, MODIFICATIVO OU EXTINTIVO
DO DIREITO BUSCADO – CONSTRANGIMENTOS E ANGÚSTIA
SUPORTADOS – "DANO IN RE IPSA" – PRECEDENTES DESTE
TRIBUNAL – QUANTUM FIXADO – PRINCÍPIOS DA
PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE – 1. Ao optar por sistema de
contratação por telefone, no intuito de diminuir despesas operacionais e
aumentar seus lucros, deve a prestadora de serviços assumir os riscos que
dele decorrem - Teoria do risco da atividade negocial - Art. 927 parágrafo
único, do CCb/02. 2. quantum fixado na indenização por dano moral de
conformidade com as circunstâncias específicas do evento, atento à
situação patrimonial das partes (condição econômico-financeira), para a
gravidade da repercussão da ofensa, atendido o caráter compensatório,
pedagógico e punitivo da condenação, sem gerar enriquecimento sem
causa, indevido pelo direito vigente (art. 884, CCb/02), sempre em sintonia
com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Sentença
confirmada. Recurso conhecido e improvido. Unânime. (TJDF – ACJ
20060110489619 – 2ª T.R.J.E. – Rel. Des. Alfeu Machado – DJU
23.02.2007 – p. 202).
153

14.6 OS CONTRATOS ELETRÔNICOS

O tema em estudo se refere ao comércio eletrônico, via internet, denominado


comércio-e, conceituando-se, nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho, como “... a
venda de produtos (virtuais ou físicos) ou a prestação de serviços realizadas em
estabelecimento virtual”, sendo que a “oferta e o contrato são feitos por transmissão
e recepção eletrônica de dados”.295

Importa para a caracterização do comércio eletrônico que ele seja realizado no


estabelecimento virtual, independendo do fato de o produto ou serviço ser virtual ou
físico, podendo-se citar, como exemplos, a aplicação financeira através de
homebanking ou a compra de supermercado feita pela internet.296

O questionamento que se propõe visa fixar de quem seria a responsabilidade pelo


dano causado em virtude da interferência de um terceiro no contrato eletrônico que
está sendo celebrado entre a fornecedora e o consumidor.

Para que se tente uma solução para esta questão, deve-se formular uma pergunta: a
culpa deste terceiro excluiria a responsabilidade da fornecedora?

E para que se responda a esta pergunta, deve ser formulada uma nova pergunta:
não é arriscado contratar pela internet?

Segundo o presente estudo dissertativo, esta última pergunta seria respondida da


seguinte maneira: não é arriscado contratar pela internet, é muito arriscado
contratar pela internet!

A qualidade de muito arriscada que se atribuiu à contratação pela rede mundial de


computadores se deve ao altíssimo índice de complicações que essa maneira de
negociar acarreta, além das ilicitudes cometidas por terceiros que se introduzem
virtualmente na contratação eletrônica e colhem os dados dos consumidores para
finalidades não escusas.

295
Curso de direito comercial. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 3, p. 32.
296
Ibidem, p. 32.
154

Por isso é que a jurisprudência, atenta ao fenômeno, vem conferindo a devida


guarida àquele que adquire produtos ou serviços pela rede de computadores, com
fundamento no risco da atividade de contratação eletrônica:

Banco – Movimentação irregular em conta corrente pela internet – Teoria do


risco do empreendimento. Não havendo o banco demonstrado a ocorrência
de culpa exclusiva da correntista, permanece sua responsabilidade pelos
defeitos na prestação dos serviços, responsabilidade essa que independe
de culpa e está fundada na teoria do risco do empreendimento (TJRS, Ap.
2006.001.36127, 18ª Câm. Cív, Rel. Desembargadora Cássia Negreiros, j.
14.09.06).
Banco – Prejuízos – Responsabilidade civil. A autorização de operações
bancárias, via internet, por se tratar de mecanismos que resultam em maior
benefício ao banco, pela redução de custos, geram-lhe correlatamente
obrigações de garantir a segurança de tais operações. Hipótese em que foi
feita a aplicação de R$ 100.000,00 na conta do autor, embora por esse não
solicitada, inexiste a culpa da vítima, cabendo a responsabilidade do banco
pelos prejuízos morais advindos do indevido encerramento da conta, já que
o débito existente ainda se encontra no limite contratual, da comunicação ao
Bacen e inscrição no SPC dela decorrente (JECívRS, rec. 71.000.516.476,
Rel. Juiz Ricardo T. Hermann, j. 24-6-2004).

Ressalve-se que o contrato de consumo eletrônico internacional obedece ao


disposto no art. 9º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina a
aplicação, à hipótese, da lei do domicílio do proponente, concluindo que, por essa
razão, se um brasileiro faz a aquisição de algum produto oferecido pela internet por
empresa estrangeira, o contrato então celebrado será regido pelas leis do país do
contratante que fez a oferta ou proposta.

14.7 A GUARDA E O TRANSPORTE DE VALORES

Como já visto à exaustão, o Colendo Superior Tribunal de Justiça já considerou o


transporte de valores como atividade perigosa e impulsionadora da responsabilidade
civil sem culpa, antes mesmo do início da vigência do novel Código Civil, in verbis:

Responsabilidade civil. Teoria do risco (presunção de culpa). Atividade


perigosa (transportador de valores). Acidente de trânsito (atropelamento de
terceiro). Inexistência de culpa da vítima (indenização).
1. É responsável aquele que causa dano a terceiro no exercício de atividade
perigosa, sem culpa da vítima.
2. Ultimamente vem conquistando espaço o princípio que se assenta na
teoria do risco, ou do exercício de atividade perigosa, daí há de se entender
que aquele que desenvolve tal atividade responderá pelo dano causado.
3. A atividade de transporte de valores cria um risco para terceiros. "Neste
quadro", conforme o acórdão estadual, "não parece razoável mandar a
155

família do pedestre atropelado reclamar, dos autores não identificados do


latrocínio, a indenização devida, quando a vítima foi morta pelo veículo da
ré, que explora atividade sabidamente perigosa, com o fim de lucro".
Inexistência de caso fortuito ou força maior. (REsp 185.659-SP).

A ementa acima transcrita é a súmula de um acórdão que será reproduzido abaixo


quando do exame das questões afetas ao caso fortuito e à força maior, merecendo
destaque agora os julgados transcritos a seguir, todos imputando o dever
indenizatório àquele que se dá à arriscada atividade de guarda e transporte de
riquezas em dinheiro, ouro, títulos etc.

RESPONSABILIDADE CIVIL – Reparação de Danos – Banco – Roubo


ocorrido no interior da agência – Fato previsível na atividade bancária –
Circunstância que torna a instituição financeira parte legítima passiva para a
demanda e a responsabiliza pela reparação dos prejuízos causados pelo
evento, eis que lhe é atribuída a obrigação de guardar bens e valores dos
particulares e oferecer a segurança necessária aos seus usuários. A
instituição financeira é parte legítima passiva para responder pela reparação
dos danos causados por roubo ocorrido no interior de suas dependências,
pois, além de tratar-se de fato previsível na atividade bancária, ao banco é
atribuída, por lei, a obrigação de guardar bens e valores dos particulares,
bem como oferecer a segurança necessária aos seus usuários (STJ, RT,
794/226).

No mesmo sentido: RT, 784/186.

AGRAVO INTERNO – APELAÇÃO – NEGATIVA DE SEGUIMENTO A


RECURSO DE APELAÇÃO – INDENIZAÇÃO – ROUBO À MÃO ARMADA
EM ESTACIONAMENTO DE AGÊNCIA BANCÁRIA – SOLIDARIEDADE –
RECURSO IMPROVIDO – É de responsabilidade do banco e do
estacionamento a segurança de seus clientes, de forma que pelo roubo no
estacionamento de agência bancária localizada no subsolo, da quantia
sacada pelo apelante, deve ser responsabilizado tanto o banco quanto o
estacionamento. (TJMS – AgRg-AC-O 2004.001294-2/0001-00 – Campo
Grande – 4ª T.Cív. – Rel. Des. Paschoal Carmello Leandro – J. 13.12.2005).
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – ROUBO EM
AGÊNCIA BANCÁRIA – TROCA DE TIROS ENTRE BANDIDOS E O VIGIA
DO BANCO – ferimentos ocasionados em cliente. Responsabilidade civil do
banco. Lei nº 7.102/83. Precedentes. Aplicação das Súmulas nº 07 e 83
desta Corte. Recurso Especial não conhecido. (STJ – RESP 182284 – SP –
3ª T. – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – DJU 19.12.2003 – p. 00450).
CIVIL – DANOS MATERIAIS – TRANSPORTE DE MALOTES – ROUBO –
RISCO INERENTE À ATIVIDADE – RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
– PROVIMENTO DO APELO DA CAIXA – O risco de roubo no transporte de
malotes bancários é inerente à própria atividade. Responsabilidade
contratualmente estabelecida. Ressarcimento dos danos materiais sofridos
pela apelante. Apelação da Caixa Econômica Federal provida. (TRF 5ª R. –
AC 2002.81.00.020926-4 – 4ª T. – Rel. Des. Fed. Conv. Ivan Lira de
Carvalho – DJU 27.02.2007 – p. 610).

O assalto às vítimas nos caixas eletrônicos, pelos mesmos argumentos, e valendo-


se ainda do que acima foi dito quanto à falta de segurança nos mencionados
156

equipamentos, é resultante unicamente da atividade arriscada a que se propõe a


instituição financeira, qual seja, oferecer dinheiro de maneira fácil, a qualquer hora
do dia e da noite e em qualquer local, tudo como forma de colocar seu produto em
circulação, devendo arcar com os prejuízos sofridos pelas vítimas de crimes
cometidos, como se diz, na “boca do caixa” – neste caso, eletrônico.

Resulta o dever indenizatório neste caso do que Cavalieri Filho denominou de dever
de segurança em relação ao público em geral, imposto pela legislação pertinente
(Lei nº 7.102/83) às instituições financeiras, que não pode ser afastado nem pelo
fato doloso de terceiro (o assalto), “assumindo o banco, nesse particular, uma
responsabilidade fundada no risco integral”297, no que foi seguido por mais de uma
vez pelo Superior Tribunal de Justiça:

Assalto em caixa eletrônico dentro da agência bancária – Morte da vítima –


Dever de indenizar. Inocorrendo o assalto, em que houve vítima fatal, na via
pública, porém, dentro da agência onde o cliente sacava valor de caixa
eletrônico após o horário do expediente, responde a instituição-ré pela
indenização respectiva, pelo seu dever de proporcionar segurança
adequada no local, que está sob a sua responsabilidade exclusiva (4ª T.,
Resp. 488.310-RJ, rel. Min. Aldir Passarinho Jr.).

Mesma solução adotada no Resp. 227364-AL, de relatoria do ministro Sálvio de


Figueiredo Teixeira.

14.8 O SERVIÇO DE SEGURANÇA E ESCOLTA

Lida-se, agora, com a atividade das empresas especializadas no ramo de segurança


e escolta, contando com o trabalho de homens fortemente armados, preparados
para o enfrentamento das mais audaciosas investidas criminosas, oferecendo mais
que risco de produzir disparos de armas de fogo que venham a atingir terceiros.

No caso a seguir, foram condenados solidariamente o banco e a empresa de


segurança a indenizar um vigia que ficou tetraplégico em troca de tiros com
bandidos dentro de uma agência bancária, in verbis:

RESPONSABILIDADE CIVIL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – TENTATIVA DE


ROUBO EM AGÊNCIA BANCÁRIA – Disparo de arma de fogo que deixou o

297
Programa de responsabilidade civil, p. 397.
157

vigilante tetraplégico - Legitimidade passiva dos requeridos configurada -


Culpa reconhecida - Responsabilidade solidária dos réus - Dever de
observância da legislação federal e municipal que regulam o sistema de
segurança em estabelecimentos financeiros - Ausência de culpa da vítima -
Fato de terceiro - Inocorrência - Dano moral - Fixação do quantum -
Apreciação eqüitativa - Conversão para valor certo - Termo a quo dos juros
e da correção monetária, que se conta a partir da sentença - Dano estético
englobado no dano moral - Pensionamento - Limitado até quando a vítima
completasse 65 anos de idade nos termos do pleito exordial - Pensão
vitalícia afastada - 13º salário e 1/3 de férias - Verbas devidamente incluídas
na pensão mensal - Desconto do valor recebido do INSS e a título de
seguro de vida - Fatos geradores distintos - Cumulação - Possibilidade -
Sucumbência recíproca - Artigo 21, CPC - Recursos parcialmente providos.
(TAPR – AC 0247507-8 – (225129) – Londrina – 9ª C.Cív. – Rel. Juiz Luiz
Lopes – DJPR 10.12.2004).

Segundo Rui Stoco, a responsabilidade das empresas de segurança e vigilância,

[...] também é objetiva perante seus funcionários ou prepostos, como frente


a terceiros prejudicados, nos termos do parágrafo único do art. 927 do
Código Civil, que estabelece a obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, quando a atividade desenvolvida pelo autor
298
do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

De acordo com a melhor jurisprudência:

Responsabilidade civil. Vigia de empresa de segurança que efetua disparo


com arma de fogo, para evitar assalto, atingindo mortalmente cliente de
banco. Dever de indenizar por parte da empresa de vigilância de segurança
empregadora. Cabimento. Apelo da ré improvido (TJSP – 6ª C. Dir. Privado
– Ap. 174.664-4 – Rel. Testa Marchi – j. 21.06.2001 – JTJ – LEX 250/165).

Muito mais não precisa ser dito para que reconheça com tranquilidade o risco da
atividade das empresas de segurança e escolta, pelo fato único de estarem sempre
a vigiar objetos valiosos cobiçados pela criminalidade, que os tenta subtrair
mediante o uso de violência ou grave ameaça exercidas com emprego de armas de
fogo, resultando daí o perigo para os direitos alheios, uma vez que o revide vem na
mesma proporção.

14.9 A CONSTRUÇÃO CIVIL

A doutrina quanto à imputação da responsabilidade pelos danos provocados a


terceiros em virtude da edificação segue a seguinte distinção: se se trata de
vizinhos, há solidariedade entre o proprietário e o construtor, e a responsabilidade se

298
Tratado de Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência, p. 739-740.
158

constituiria independentemente da culpa de um ou de outro; em relação ao terceiro


“não vizinho”, a responsabilidade é do construtor, sendo que o proprietário somente
com ele se solidariza se houver confiado a obra a pessoa inabilitada para os
trabalhos de engenharia e arquitetura.

Para Cavalieri Filho a questão dos danos suportados por terceiros não se põe no
campo da culpa, taxando de arriscada a atividade do construtor, nos seguintes
termos:

Inexistindo relação jurídica precedente entre o construtor e os terceiros


eventualmente prejudicados pelo fato da construção, a sua
responsabilidade é extracontratual em todos esses eventos comuns nas
edificações. Essa responsabilidade pode ser também enquadrada no
parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, pois a atividade
profissionalmente desenvolvida pelo construtor é de risco, e, como tal,
objetiva, bastando para sua caracterização a relação de causalidade entre
299
o dano e a construção.

Cite-se mais um julgado em que o construtor – ou seja, o engenheiro, o arquiteto, o


licenciado ou a sociedade autorizada a construir – que assume os encargos técnicos
da construção e aufere as vantagens econômicas da execução da obra juntamente
com seu dono, é responsável solidariamente com este por danos causados à
propriedade vizinha: RT, 489/96.

Informa Franzoni, por fim, que na Itália a atividade edilícia é considerada perigosa
(Cass. 12 de dezembro de 1988, n. 6739, in Mass. Foro it., 1988)300.

14.10 OS CADASTROS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO

Interessante o exame das entidades de proteção ao crédito que montam bancos de


dados com nomes de inadimplentes, analisando se sua atividade poderia dar azo à
responsabilização pela teoria do risco, sendo que o assunto já foi parcialmente
desenvolvido no trabalho de conclusão de um dos créditos do mestrado que ora se
pretende concluir.

299
Programa de responsabilidade civil, p. 345.
300
La Responsabilità Oggetiva, p. 154.
159

A situação se põe da seguinte maneira: dado negócio jurídico foi formulado entre
duas pessoas; o credor recebe a prestação a que tem direito; passado certo tempo,
o mesmo credor, não importa por qual motivo, leva até uma empresa de proteção ao
crédito a notícia de que não recebeu a prestação a ele devida e requer a inscrição
do nome do devedor no banco de dados de inadimplentes; a empresa de proteção
ao crédito envia ao domicílio do falso devedor a notificação dando conta de que irá
incluí-lo em seu cadastro; mas o devedor não é efetivamente notificado, por
exemplo, porque se mudou de endereço; então, o nome do falso devedor é inscrito
no cadastro de não pagadores.

A questão é saber se a empresa de proteção ao crédito deve indenizar o falso


devedor pela inclusão indevida de seu nome no cadastro de inadimplentes. Para fins
didáticos, essa será chamada de situação nº 1, e, porque é exatamente aquela que
se pensa ter uma solução jurisprudencial injusta, somente será examinada após a
análise de outras três situações que se encontram resolvidas com justiça pela
jurisprudência.

Esta situação nº 1 foi trazida com certo detalhamento porque, na falta de um dos
dados acima colocados no caso narrado, o fato se enquadra numa das três
situações abaixo examinadas e a resposta quanto à responsabilidade civil se
apresenta tranquila na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por suas duas
Turmas de Direito Privado (3ª e 4ª), conforme a seguir se demonstrará.

Passa-se à situação nº 2: pense-se na hipótese de a empresa de proteção ao crédito


não ter notificado o falso devedor da pretensa inscrição e incluir seu nome no
cadastro de maus pagadores.

Houve descumprimento de norma contida no Código de Defesa do Consumidor, in


verbis:

Art. 43, § 2º - A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de


consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não
solicitada por ele.

O consumerista Luiz Antonio Rizzato Nunes diz da obrigatoriedade imposta à


empresa de proteção ao crédito quanto à comunicação prévia ao devedor sobre a
solicitação de inclusão de seu nome na lista de inadimplentes:
160

A norma do § 2º é expressa e clara, não deixando margem à dúvida: a


abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá
ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.
Dessa forma, estão os serviços de proteção ao crédito obrigados a avisar,
por escrito, previamente o consumidor de que irão fazer a anotação. Tal
aviso deve ser remetido com antecedência mínima de 5 dias úteis. É que,
na falta de regra específica sobre o prazo, aplica-se a hipótese do § 3º por
301
analogia, preenchendo-se a lacuna existente.

O descumprimento do dispositivo legal transcrito acarreta o dever de a empresa de


proteção ao crédito indenizar o falso devedor, conforme os julgados do Superior
Tribunal de Justiça, in verbis:

A inscrição feita em cadastro negativo sem a devida comunicação, prevista


no artigo 42, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor, dá ensejo à
indenização por dano moral, cancelado o registro feito em desobediência ao
302
que dispõe a lei especial de regência.
Consumidor. Recurso especial. Registro de proteção ao crédito. Inscrição.
Necessidade de prévia notificação ao consumidor. Ausência. Ilegalidade da
inscrição. Legitimidade passiva dos responsáveis pela manutenção do
registro. Art. 43, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. Os requisitos
legais previstos no § 2º do artigo 43 do Código de Defesa do Consumidor
devem ser cumpridos para se garantir a aptidão, a procedibilidade da
inscrição. Após isso é que caberá a discussão sobre a exigibilidade ou não
do débito que deu origem à inscrição e, conseqüentemente, se esta é
303
devida ou não.

E, nesse mesmo sentido, ainda, as revistas jurídicas RSTJ 153/391, 162/295,


179/382 e 115/369, e LEXSTJ 167/58.

Finalizando, o presente entendimento acaba de ser sufragado por meio da súmula


359 do C. Superior Tribunal de Justiça, in verbis: Cabe ao órgão mantenedor do
cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à
inscrição.

Repita-se, então: a empresa de proteção ao crédito tem a obrigação de comunicar


ao devedor que irá inscrever seu nome no cadastro de inadimplentes, sob pena de
arcar com a indenização pela indevida inscrição.

A força deste posicionamento está no fato de que os julgados sobre a matéria


contaram com votações unânimes e relatorias produzidas por praticamente todos os

301
Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 513.
302
Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, REsp. 137972-6, DJ 26.09.05, p. 372.
303
Relatora Ministra Nancy Andrighi, REsp. 46921-7, DJ 25/04/06, p. 8.
161

eminentes ministros da citada Corte Federal, desde o ano de 2003 até hoje, além de
ter dado origem à edição, como já se disse, de uma súmula.

Tantos outros julgados poderiam ser colacionados, mas a providência se mostraria


sem maior relevância, diante da consolidação do entendimento.

Vale chamar a atenção para a justiça do mencionado posicionamento


jurisprudencial, pois nada mais fez que garantir o contraditório, ainda que
administrativamente, àquele contra o qual se pretende a inclusão do nome num
cadastro de inadimplentes.

Concluindo acerca desta situação de nº 2, se a empresa de proteção ao crédito não


notifica o devedor e inclui seu nome no cadastro de maus pagadores, responde pela
indenização por danos morais.

Outra situação pode ser denominada de nº 3: o credor já recebeu o que lhe é devido
e, não importa por qual motivo, envia o nome do falso devedor ao cadastro de
inadimplentes.

Nesse caso, parece desnecessário discorrer muito para afirmar que o falso credor
deverá pagar indenização por danos morais ao falso devedor.

Aqui, a desídia do falso credor, no que terá agido com culpa, ou sua ganância, no
que terá agido com dolo, justificam a indenização por ele devida ao falso devedor.

Uma 4ª situação poderia prever a conjugação das duas situações acima tratadas
(números 2 e 3), de tal sorte que o falso credor já havia recebido a prestação e ainda
assim indicou o nome do falso devedor ao órgão de proteção ao crédito, que não se
incumbiu da obrigação de comunicação imposta pelo artigo 43, § 2º, do Código de
Defesa do Consumidor.

Aqui, só por lógica já se poderia dizer que ambos (falso credor e empresa de
proteção ao crédito) responderiam pelos danos morais causados ao lesionado falso
devedor, por tudo o que se disse nas situações números 2 e 3.

Estas foram, portanto, as três últimas situações (números 2, 3 e 4) examinadas e


tranquilas quanto à indicação de quem deve a indenização pelo dano moral
162

ocasionado ao falso devedor que teve seu nome irregularmente incluído no cadastro
de inadimplentes.

Veja-se que, nas três situações anteriores, a negação do contraditório ao falso


devedor (no caso de a empresa de proteção ao crédito deixar de lhe enviar
notificação sobre o requerimento de inclusão de seu nome no rol dos maus
pagadores) e a culpa ou mesmo o dolo do credor (na tentativa de renovação do
recebimento da prestação) justificam plenamente a adoção maciça da postura de
que o falso devedor tem de ser indenizado pelos danos morais.

Desta maneira, foram passadas três ocorrências que encontram soluções já


pacificadas na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no que se refere à
inclusão indevida do nome de alguém em um cadastro de proteção ao crédito,
sempre com tendência vertiginosa no sentido de que o falso devedor deve ser
indenizado.

Lembre-se agora da situação nº 1, que é o objeto de exame neste trabalho, e


também encontra solução bastante tranquila no Superior Tribunal de Justiça: dado
negócio jurídico foi formulado entre duas pessoas; o credor recebe a prestação a
que tem direito; passado certo tempo, o mesmo credor, não importa por qual motivo,
leva a notícia a uma empresa de proteção ao crédito de que não recebeu a
prestação a ele devida e requer a inscrição do nome do devedor no banco de dados
de inadimplentes; a empresa de proteção ao crédito envia ao domicílio do falso
devedor a notificação dando conta que irá incluí-lo em seu cadastro, mas ele não
toma qualquer providência para evitar a inscrição; o nome do devedor é inscrito no
cadastro de inadimplentes.

Como se disse, no Superior Tribunal de Justiça há posicionamento pacificado para a


lide instaurada entre o falso devedor e a empresa de proteção ao crédito, sendo
negada a indenização por danos morais sob o argumento de que houve
cumprimento do dever legal de notificação sobre o requerimento de inclusão no rol
de maus pagadores.

Não seria necessário que se trouxessem julgados dando conta dessa maneira de
decidir a questão, bastando interpretar inversamente os decisórios que acima foram
transcritos quando do exame da situação nº 2. Com efeito, ali se afirmou que, na
163

falta do cumprimento do dever imposto pelo artigo 43, § 2º, do Código de Defesa do
Consumidor (notificação do devedor sobre a pretensa inclusão de seu nome no
cadastro de inadimplentes), a empresa de proteção ao crédito responde pela
indenização por danos morais. Ora, então, se esta empresa cumpriu o dever de
cientificar o falso devedor, assegurou-se de não pagar a indenização na
eventualidade de o crédito não mais existir por qualquer motivo, segundo o Superior
Tribunal de Justiça.

Em palavras vulgares, cientificado o devedor sobre a pretensão do credor em ver


seu nome inscrito ao lado dos inadimplentes, a empresa de proteção ao crédito
“lavou as mãos”, não se responsabilizando pela eventualidade de o credor estar
cobrando dívida inexistente.

Para que não se fique na obrigatoriedade da interpretação inversa dos julgados


acima transcritos, a fim de se chegar à conclusão de que a empresa de proteção de
crédito não responde se cumpriu o dever de cientificar o devedor, segue um julgado
no qual literalmente se adota este posicionamento, in verbis:

De fato, verifica-se, a fls. 68/69 dos autos, que a Serasa comunicou


efetivamente ao autor, por correspondência postada em 26.02.04, da
inclusão nos seus registros de proteção ao crédito.
Indubitável, portanto, que o recorrente foi devidamente informado do
registro negativo de seu nome, conforme prescreve o parágrafo segundo,
do artigo 43.
Constata-se, portanto, que ao recorrente, ao ser efetivamente informado
previamente da inscrição, lhe foi propiciado tanto o direito de acesso aos
dados arquivados, como a possibilidade de retificação de informações
eventualmente incorretas.
Desta forma, inexistindo dano e nexo causal a estribar o pedido de
indenização, impõe-se à improcedência do recurso.
Por tais fundamentos, nego provimento ao recurso especial, mantendo
304
íntegro o v. acórdão recorrido.

Em suma, para concluir a esse respeito, cumprida a obrigação de comunicar o falso


devedor acerca da pretensa inscrição de seu nome, ainda que a dívida não exista,
não responde a empresa de proteção ao crédito pela indenização resultante da
indevida inclusão do prejudicado na lista dos não pagadores, segundo pacificado no
Superior Tribunal de Justiça.

Passa-se à respeitosa insurgência contra essa consagrada interpretação.


304
Relator ministro Jorge Scartezzini, REsp 763745, v.u., j. em 06.04.2006.
164

Antes, porém, uma ponderação importante. O tema, como tudo na ciência jurídica,
não apresenta apenas interesse teórico. A sua incidência na prática forense vem
demonstrada pelo dado a seguir, colhido numa pesquisa superficial: só na Comarca
da Capital Paulista, e só no ano de 2005, foram distribuídas 115 ações contra o
SCPC - Serviço Central de Proteção ao Crédito e 263 ações contra a Serasa,
valendo dizer que estas são apenas duas das empresas que se dispõem a listar
devedores inadimplentes.

Agora, sim, passa-se a fundamentar a ideia de que a simples notificação acerca da


pretensa inclusão do nome do falso devedor não pode ser óbice à indenização a ser
pleiteada contra a empresa de proteção ao crédito.

Óbvio que todo posicionamento judicial deve estar baseado num primado de justiça.
Nas situações números 2, 3 e 4, que deferem a indenização pela indevida inscrição,
como se disse, esse primado de justiça está representado pela falta de oportunidade
ao contraditório, ocasionada pela ausência de notificação ao falso devedor ou pela
culpa ou dolo do credor em pretender receber duas vezes pelo mesmo crédito, ou
por ambos.

Indaga-se onde está a razão para que seja negada ao falso devedor a possibilidade
de buscar no administrador da lista de inadimplentes a indenização pela indevida
inscrição de seu nome na situação de nº 1 acima.

Evidentemente, neste caso, porque inexistente o crédito, estará aberta a


oportunidade para o falso devedor pleitear a indenização contra o credor desidioso
ou doloso, como se verificou na situação nº 3, acima examinada.

Mas, pense-se na hipótese de o falso credor não mais existir, ter desaparecido ou
ainda, e o que é mais comum, não suportar a indenização pelo ilícito que cometeu.
Pode-se pensar na hipótese de a empresa de proteção ao crédito, que nada mais
fez que estar a serviço daquele falso credor, ser chamada a responder pela indevida
inclusão do nome do falso devedor no rol dos “caloteiros” por ela administrado.

Cogita-se da imposição da responsabilidade civil fundada da atividade de risco,


prevista na segunda parte do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, como
165

autorização para que o falso devedor busque a indenização contra a administradora


do banco de dados de inadimplentes.

É o que se passa a propugnar, fundamentadamente.

No segundo capítulo deste trabalho, foi desenvolvido um breve escorço histórico


acerca da evolução da responsabilidade civil, que passou da responsabilização
pessoal do sujeito passivo da obrigação à ideia de que seu patrimônio é o garante
do pagamento da dívida, iniciando esta etapa com a exigência da demonstração da
culpa, passando pela responsabilidade objetiva e chegando ao risco da atividade,
tudo em nome do princípio da efetiva reparação do lesionado.

É hora de examinar a situação da empresa de proteção ao crédito à luz dessa


evolução histórica da responsabilidade civil, sempre pensando na efetiva reparação
do prejudicado.

Não é mais possível imaginar que, cumprido um pífio dever legal, de


operacionalização extremamente fácil (postar uma carta), possa tornar imune a
empresa de proteção ao crédito da obrigação indenizatória.

A simples postagem de uma carta de aviso sobre a solicitação de inclusão do nome


de alguém num cadastro de nefastas conseqüências não pode dar à empresa de
proteção ao crédito, como se disse, a faculdade de “lavar as mãos” acerca da
cobrança de uma dívida inexistente. Postar uma carta nada significa para empresas
que lucram milhões de reais simplesmente taxando publicamente pessoas como
devedoras.

O toque fundamental da responsabilização pela teoria do risco é exatamente a


obrigação de pagar indenização a outrem mesmo tendo se conduzido de acordo
com a lei, mas de forma perigosa.

Ora, a empresa de proteção ao crédito que notifica o devedor sobre a pretensão de


inclusão de seu nome no rol de inadimplentes está se conduzindo como manda a lei,
mas está desenvolvendo atividade de risco para os direitos alheios. É exatamente
esta a situação que a teoria do risco pretendeu abarcar: uma conduta dotada de
legalidade, mas praticada com certa carga de risco para os direitos alheios.
166

A posição adotada com a inovação trazida pela responsabilidade civil baseada na


ideia do risco representa, sem dúvida, um elogiável avanço em matéria de
responsabilidade civil, aproximando o nosso Código Civil dos de outros países que
já alcançaram, nesse ponto, estágio superior, como o Código Civil italiano.

Apesar de os novos institutos jurídicos demandarem aplicação cautelosa, o operador


do direito não pode recusar sua incidência às situações consideradas injustas pelo
legislador e que por isso mesmo mereceram sua atenção.

Insista-se que não se está diante de uma pequena mudança pontual na legislação,
como dá conta o civilista Carlos Roberto Gonçalves:

Trata-se da mais relevante inovação introduzida no atual Código Civil, no


que tange à responsabilidade civil. A responsabilidade independentemente
de culpa somente existe nos casos especificados em leis especiais.
Atualmente, não existindo lei que regulamente o fato, pode o juiz aplicar o
princípio da responsabilidade objetiva (independentemente de culpa),
baseando-se no dispositivo legal mencionado, quando a atividade
normalmente desenvolvida, pela sua natureza, cria risco para os direitos de
305
outrem.

Ora, não pode ser admitida a aplicação parcimoniosa de inovação tão importante e
desejada por uma sociedade que viu, durante séculos, a lesão a direitos de pessoas
hipossuficientes ser relegada pelo fato de não terem as vítimas conseguido
demonstrar a culpa do causador do dano.

Objeção à aceitação do risco como propulsor da responsabilidade civil no caso em


comento seria a ideia que se disseminou sobre a dúvida acerca de quais seriam as
atividades consideradas perigosas, arriscadas. Do que se lê nos livros de direito,
tem-se a percepção de que a doutrina se inclina em aceitar como atividade de risco
aquela com probabilidade de ofender a integridade física de outrem ou mesmo de
tirar a sua vida, haja vista que os exemplos se restringem à fabricação de
explosivos, transporte de líquidos inflamáveis e produção de energia nuclear.

Também a jurisprudência, como se viu em um dos julgados anteriormente


transcritos, considerou a atividade de transportes de valores como de risco, tomada,
por óbvio, a consideração de que o embate entre os seguranças e os bandidos
possa ferir ou matar pessoas.

305
Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 313.
167

Ocorre que o dispositivo legal que disciplina a responsabilização pela teoria do risco
não prevê que apenas os direitos à integridade física e à vida, quando postos em
perigo, determinam a obrigação de indenizar por parte do causador do dano.

A segunda parte do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil menciona direitos
de outrem, dando a entender que a ofensa a qualquer bem jurídico é suscetível de
indenização pela teoria do risco, não só os direitos à integridade física e à vida.

Assim, atividades que ponham em risco outros direitos que não os dois acima
mencionados (integridade física e vida) também impõem ao ofensor o dever de
indenização, como, por exemplo, uma atividade que possa atingir o direito à honra
de um cidadão.

Por isso, a atividade bancária já foi considerada como de risco, com condenação da
instituição financeira a arcar com a indenização sem que fosse necessário pesquisar
sobre sua culpa no evento, in verbis:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E


MATERIAL – SALDO BANCÁRIO POSITIVO – CHEQUE DEVOLVIDO SEM
PROVISÃO DE FUNDOS – CONTA ENCERRADA – INSCRIÇÃO
INDEVIDA NA SERASA – DANO MORAL CONFIGURADO – DEVER DE
INDENIZAR – LIVRE-ARBÍTRIO DO MAGISTRADO – SENTENÇA
REFORMADA – RECURSO PROVIDO – Evidenciado o abalo moral
suportado pelo apelante, ao ser surpreendido pelo encerramento de sua
conta corrente, relativo a um cheque devolvido pelo acréscimo de taxas
bancárias, devida é a indenização, como forma de compensação pelo dano
moral sofrido. É presumida a culpa da instituição financeira, bastando a
prova do dano e do nexo de causalidade, por tratar-se de responsabilidade
civil decorrente do risco da atividade financeira. Deve o magistrado observar
a situação econômica das partes, bem como o abalo suportado pelo lesado,
a fim de proporcionar, com o valor da condenação, maior conforto a este,
306
além de punição pelo ato ilícito praticado.

Daí que inexiste qualquer óbice à aplicação da teoria do risco quanto à atividade
desenvolvida pelas empresas de proteção ao crédito no caso de ofensa ao direito à
honra de uma pessoa que já pagou o que devia e teve seu nome inserido numa lista
pública de inadimplentes.

Necessário também que se examine a condição com que se apresentam as


empresas de proteção ao crédito, podendo-se comparar o seu poderio perante a

306
TJSC, AC 2004.001073-7, Araranguá, 3ª CDCiv., Rel. Des. Wilson Augusto do Nascimento, j.
30.09.2005.
168

humildade da imensa maioria dos devedores que ficam à mercê dos cadastros de
inadimplentes.

Quanto à maior das empresas de proteção ao crédito, a Serasa, foi colhido o


seguinte texto de seu site (www.serasa.com.br):

A Serasa, uma das maiores empresas do mundo em análises em


informações para decisões de crédito e apoio a negócios, atua com
completa cobertura nacional e internacional, por meio de acordos com as
principais empresas de informações de todos os continentes. Presente em
todas as capitais e principais cidades do país, totalizando 140 pontos
estratégicos, a Serasa conta com um quadro de pessoal com mais de dois
mil e quinhentos profissionais e a retaguarda de um amplo centro de
telemática. Como maior banco de dados da América Latina sobre
consumidores, empresas e grupos econômicos, a Serasa participa da
maioria das decisões de crédito e de negócios tomadas no Brasil,
respondendo on line/real time, a 4 milhões de consultas por dia,
demandadas por quatrocentos mil clientes diretos e indiretos.

Não se pode conceber que uma empresa do porte da Serasa possa se desonerar de
responder pelo envio do nome de um falso devedor somente ao argumento de que
expediu uma simples notificação sobre a pretensa inclusão do lesionado no rol dos
maus pagadores.

Veja-se que a Serasa atende, segundo se viu acima no trecho colhido de seu site,
quatro milhões de consultas por dia, podendo-se inferir daí a renda mensal desta
empresa, isso porque conseguiu montar uma lista com o nome de quase todos os
devedores do país.

Num exame mais aprofundado do objeto social da Serasa, pode-se dizer que ela se
colocou num patamar de superioridade às demais pessoas físicas e jurídicas
brasileiras e passou a taxá-las publicamente de inadimplentes, e ainda recebe uma
fábula de dinheiro por quatro milhões de consultas diárias.

Não se chegaria a dizer que essa espécie de atividade se assemelha à de um


parasita, que vive à custa de outro ser, mas pode-se dizer, sim, que a empresa de
proteção ao crédito vive da infelicidade alheia.

Do outro lado da atividade da gigantesca empresa de proteção ao crédito está o


abalo que uma pessoa sofre quando vê seu nome jogado numa lista de não
pagadores, mesmo tendo cumprido integralmente sua obrigação contratual,
resultando daí prejuízo emocional enorme.
169

Poder-se-ia argumentar que o fato de serem tantas as consultas formuladas por dia
demonstram que a sociedade necessita da atividade desenvolvida pela Serasa. Pois
bem, isso não se nega, tanto que sua atividade foi regulamenta pela própria lei que
visa à proteção do consumidor (artigo 43 da Lei nº 8.078/90).

Com efeito, não se nega a necessidade e a legalidade do serviço prestado pela


Serasa, mas o que não se admite é que, ao mero argumento de que cientificou o
falso devedor, esteja desonerada de arcar com a indevida inclusão de seu nome da
lista de inadimplentes.

Também, o argumento de que houve cumprimento do dever legal de notificação do


devedor não pode servir de motivo para que se deixe de atribuir responsabilidade à
empresa de proteção ao crédito. O cumprimento do dever imposto pelo § 2º do
artigo 43 do Código de Defesa do Consumidor não é uma “carta branca” para a
indevida inclusão de nomes de pessoas cumpridoras de suas obrigações em listas
públicas vexatórias. Não se pode esquecer que o Código de Defesa do Consumidor
é uma lei que contém normas de vários ramos do direito, como o comercial, o civil, o
penal etc. O artigo 43 está inserido num dispositivo de cunho administrativo, porque
relacionado à regulamentação dos bancos de dados e cadastros de consumidores.

Assim, o simples cumprimento de um dever imposto por uma norma administrativa


não pode dar ensejo à negação de indenização no caso de a administradora da lista
de inadimplentes ter promovido uma inclusão indevida. A todos nós da sociedade
são impostas obrigações administrativas e nem por isso nos é dado praticar
atividades que provavelmente atentarão contra os direitos de outrem.

Poder-se-ia, ainda, argumentar com o fato de que foi dada oportunidade para que o
falso devedor envidasse esforços para que seu nome não fosse negativado, por
exemplo, apresentando administrativamente ou em juízo o instrumento de quitação
da dívida e requerendo a suspensão da indevida inclusão. Não tendo o devedor se
incumbido de tal tarefa, teria que arcar com as consequências da negativação,
justificada que estaria pela sua inércia.

O tema merece análise à luz do princípio constitucional da legalidade: ninguém será


obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (inciso II do
artigo 5º da Constituição Federal).
170

Pergunta-se: em qual dispositivo legal está o dever de alguém de informar para a


empresa de proteção ao crédito que já pagou pelo que está sendo cobrado?
Responde-se: em nenhum dispositivo.

Quer dizer, o ordenamento jurídico vigente não reserva qualquer consequência para
aquele que já pagou o que devia, recebeu uma comunicação de uma empresa de
proteção ao crédito, mas não se manifestou porque não foi efetivamente notificado.

Não pode o aplicador da lei, então, diante desta lacuna legislativa, impor ao falso
devedor a negativa de buscar da empresa de proteção ao crédito a indenização pela
indevida inclusão.

Veja-se que a lei estabelece casos em que a inércia de alguém faz acarretar
consequências. Por exemplo, se o credor, depois de cientificado por carta com aviso
de recebimento, não se manifestar em 10 dias quanto ao valor oferecido pelo
devedor de quantia em dinheiro depositada em conta bancária oficial, reputar-se-á o
devedor liberado da obrigação (§§ 2º e 3º do artigo 890 do Código de Processo
Civil). Ainda, se o réu não contestar o pedido do autor, tem-se como verdadeiro o
quanto alegado na petição inicial (artigo 319 do Código de Processo Civil), salvo
exceções (artigo 320 do mesmo Código).

Assim, não se deixa ao alvedrio do aplicador da lei o estabelecimento de casos em


que haverá a produção de efeitos para a hipótese de inércia do devedor, sendo que
tais consequências já estão expressamente consignadas na legislação.

Nota-se, então, no atual estágio do direito brasileiro, ausência de dispositivo legal


que imponha efeitos para a inércia do devedor contra o qual se requer a inclusão do
nome em uma lista de inadimplentes, de tal sorte que não se pode argumentar com
isso para que se negue a indenização por ele pugnada contra a empresa de
proteção ao crédito que anotou um débito inexistente.

Vale dizer da proliferação das empresas que se intitulam protetoras do crédito, ao


argumento de que possuem uma listagem das pessoas que, segundo elas, não
honram seus compromissos. Basta que se queira e qualquer um acessa, com
extrema facilidade, um site denominado “Caloteiros.Net” (www.caloteiros.net). Nele,
até uma criança consegue promover a inclusão do nome de um devedor, seja ele
171

quem for. Se alguém quiser incluir o nome de Sua Excelência o Presidente da


República, é só acessar o site mencionado e lá encontrará instruções muito fáceis
sobre como alcançar seu intento.

Não se pode coadunar com tamanha irresponsabilidade!

Argumentar-se-á com o exagero do exemplo, dada a excepcionalidade da maneira


como o “Caloteiros.Net” permite a inclusão de não pagadores, dentre eles bons
pagadores. Mas, para contra-arrazoar, basta dizer que a única diferença entre a
citada empresa virtual e órgãos como o SCPC e a Serasa é que estes exigem um
início de prova documental acerca da existência da dívida. Mas esse início de prova
é, muitas vezes, equiparado a nada.

Pense-se na seguinte situação: um devedor paga em dia suas prestações de uma


compra e venda de um automóvel; não paga uma ou mais prestações, segundo o
credor, este encaminha o contrato ao SCPC ou à Serasa. Ocorre que,
invariavelmente, o comprovante da quitação está com o falso devedor (um recibo ou
um comprovante de depósito) e, com certeza, isso nem será indagado do falso
credor pelas empresas de proteção ao crédito. Simplesmente, o nome do falso
devedor será inscrito e a indenização depois terá que ser pedida contra o falso
credor, sem que a empresa de proteção ao crédito arque com qualquer valor,
segundo entendimento que vem sendo adotado pela jurisprudência.

Diante da facilidade que se tem para a inserção do nome de outrem em tais


cadastros de inadimplentes, pergunta-se: não é arriscado incluir o nome de alguém
nesta lista?

Imagine-se a mesma situação, com o adicional de que o falso credor, por qualquer
sentimento de vingança e completamente despreocupado com as consequências
civis de sua conduta, porque sem patrimônio para arcar com futura indenização,
resolva indicar o nome do falso devedor ao cadastro de inadimplentes. Não se volte
contra o exemplo alegando sua inventividade, vez que ele faz parte do dia-a-dia
forense, mormente no que tange às posteriores condutas de comerciantes que não
mais negociam, mas que antes viviam um para o outro. Seria o caso de a empresa
de proteção ao crédito assumir o risco de sua atividade e arcar com a indenização.
172

A teoria da responsabilidade pelo risco veio na esteira do princípio da socialidade,


norteador de toda a produção do Novo Código Civil, vislumbrando hipóteses em que
o prejuízo não pode ser suportado apenas pelo mais frágil, imputando
responsabilidade àqueles que fazem do seu “ganha-pão” uma atividade perigosa
para os direitos de outrem.

Outrossim, examina-se a questão à luz do princípio da eticidade, que, segundo


Carlos Roberto Gonçalves:

Funda-se no valor da pessoa humana como fonte de todos os demais


valores. Prioriza a eqüidade, a boa-fé, a justa causa e demais critérios
éticos. Confere mais poder ao juiz para encontrar a solução mais justa ou
307
eqüitativa.

O princípio em comento constitui uma cláusula fundamental de todo o novo


ordenamento jurídico civil trazido pelo Código de 2002, consagrando, dentre outros
valores, a equidade, conferindo a faculdade e impondo o dever ao magistrado de
buscar a solução mais justa para a solução da lide.

Destarte, considera-se correto o entendimento segundo o qual pode o falso devedor


buscar indenização contra a empresa de proteção ao crédito pela indevida inclusão
de seu nome numa lista pública de inadimplentes, ainda que tenha havido a
expedição da comunicação acerca da pretensa inclusão, com fundamento na
responsabilização civil pela atividade de risco.

Corrobora o presente entendimento o acórdão produzido por votação unânime pela


4ª Câmara de Direito Privado do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, sob a
relatoria do eminente desembargador Francisco Loureiro (Ap. Cível n. 364.951.4/0-
00, julgado em 08.09.05). Pedia-se indenização por dano moral em virtude de
indevido envio do nome da autora da ação para o SCPC, tendo ficado tão claro
quanto o papel em que está impresso este trabalho que a responsabilidade do órgão
de cadastro de inadimplentes decorre do risco da atividade que desempenha,
valendo a transcrição de alguns trechos do voto condutor por força de seu firme
posicionamento nesse sentido:

Ainda que assim não fosse, a responsabilidade da ré/recorrente independe


de conduta culposa. Afirmou em contestação que o SPC é mero receptáculo
de dados sem que faça qualquer verificação quanto à sua autenticidade e
307
Principais inovações do Código Civil de 2002. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5.
173

legitimidade. Dizendo de outro modo, a Associação Comercial não tem


mínimo controle sobre a veracidade e correção dos dados que alimentam o
cadastro, uma vez que os estabelecimentos comerciais associados fazem
remessa unilateral e por via eletrônica. Invoca em sua defesa regulamento
interno, que atribui a responsabilidade por danos causados a terceiros
inteiramente aos estabelecimentos associados.
Parece claro que a Associação Comercial resolver criar, de modo oneroso e
em benefício exclusivo de seus associados, arriscado sistema de cadastro
de proteção ao crédito, pelo qual aceita toda e qualquer afirmação unilateral
do pretenso credor por via eletrônica, sem exigir exibição ou prova
documental da real existência do crédito.
Isso permite aos associados a possibilidade de, a qualquer tempo,
encaminhar ao cadastro nomes de consumidores ou de terceiros que
julguem inadimplentes, haja ou não inadimplemento. Os efeitos da inclusão
no cadastro são nefastos, provocando restrição ao crédito e pagamento por
meio de cheques ou cartões de crédito, em manifesta ofensa ao bom nome
e à boa reputação perante o meio social.
O sistema adotado pela Associação Comercial certamente gera expressiva
receita e agrada aos próprios associados, que podem negativar o nome de
quem bem entendam, a seu exclusivo critério, sem a necessidade de
demonstrar a real existência do crédito. Mais ainda. Os mecanismos de
controle são mínimos e de custo reduzido. Claro que a qualificação dos
documentos encaminhados pelos pretensos credores e a verificação de sua
aptidão para alimentar o cadastro exigiriam custosa estrutura e pessoal
capacitado. Mais cômodo, econômico e interessante para a associação e
para seus associados a singela inserção automática dos dados
encaminhados, sem maiores indagações ou exigências.
Em contra-partida, esse sistema temerário e remunerado gera amplo risco
de ofensa a bens integrantes da personalidade, porque pessoas podem ter
seus nomes ou dados pessoais indevidamente negativados. Se o risco se
consuma, convertendo-se em dano, natural que aquele que criou o risco, e
dele aufere vantagem, responda pelo prejuízo causado. É a teoria do risco-
criado ou do risco da atividade, positivado no artigo 927, parágrafo único, do
atual Código Civil.
Decorre daí a responsabilidade objetiva dos bancos de dados que, em
razão de sistema arriscado de negativação, criado em benefício próprio e de
seus associados, criam fácil possibilidade de lesão a interesse alheio.

No âmbito da doutrina, Cláudio Luiz Bueno de Godoy se faz companheiro de nosso


entendimento, afirmando que: “Essa, enfim, a idéia central. Admitido que a atividade
de cadastramento de informações restritivas ao crédito induz risco diferenciado,
diversa passa a se ostentar a responsabilidade de quem a exercita”308, arrematando
que

A atividade de cadastro de informações negativas acerca das pessoas


encerra um risco especial, uma potencialidade de danos diferenciados. Se
assim é, quer parecer que as hipóteses de ações de indenização movidas
contra as entidades que exercem essa mesma atividade possam, também
elas, receber uma recompreensão à luz da incidência, que se reconheça,
309
do dispositivo do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil de 2002.

308
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 195-196.
309
Ibidem, p. 187.
174

14.11 O MERCADO DE CAPITAIS

As operações de compra e venda das ações das companhias abertas, também


denominadas de valores mobiliários, são realizadas no âmbito desta entidade
chamada mercado de capitais. Assim, o titular de uma ação de uma sociedade
anônima aberta dá ordem ao seu corretor para que negocie o valor mobiliário na
bolsa de valores, vendendo-a a qualquer interessado, no pregão da bolsa.310

Esse mercado de valores passou a ser controlado pelo Estado a partir de 1960, por
meio das Leis nº 4.595/64 e nº 4.728/65, no que se fala em controle pelo próprio
Poder Legislativo, sem prejuízo do controle exercido pelo Conselho Monetário
Nacional, por meio de Resoluções do Banco Central do Brasil, órgão fiscalizador do
mercado de capitais, com competência para autorizar o funcionamento de bolsas de
valores, o registro das ações nelas negociáveis, o controle do fluxo de informações,
entre outras, tudo em virtude de razões macroeconômicas.311

A partir de 1976, parte dessas atribuições do Banco Central do Brasil foi transferida
para uma agência constituída naquele ano, a Comissão de Valores Mobiliários,
autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda, tendo como tarefa básica a
proteção dos investidores contra fraudes, irregularidades ou abusos na
administração das empresas que captam os recursos financeiros, tudo como forma
de fortalecer o mercado de capitais como uma boa alternativa de investimento.312

O mercado de capitais, então, pode ser conceituado como o sistema estruturado e


controlado pelos órgãos competentes do governo federal, por meio do qual a
sociedade anônima que pretende captar recursos junto aos investidores oferece à
venda suas ações.313

As bolsas de valores são pessoas jurídicas de direito privado que, mediante


autorização da Comissão de Valores Mobiliários, têm como objeto social a
manutenção de local e sistema adequado à realização das operações de compra e
venda de títulos ou valores mobiliários. Em outras palavras, é a sede em que se
desenvolve o mercado de capitais.
310
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, v. 2, p. 69.
311
Ibidem, p. 69.
312
Ibidem, p. 69.
313
Ibidem, p. 69.
175

O tema proposto neste item versa sobre a responsabilidade civil do administrador da


sociedade anônima aberta que capta os recursos dos investidores no mercado de
capitais.

A Lei das Sociedades por Ações (nº 6.404/76) dispõe que o administrador responde
civilmente pelos prejuízos que causar quando proceder: I – dentro de suas
atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II – com violação da lei ou do estatuto.

Quanto à primeira hipótese, não resta qualquer dúvida, advindo a responsabilidade


civil do administrador da sociedade com lastro na clássica teoria subjetiva, de forma
que arcará com o prejuízo a que der causa se obrar com culpa ou dolo.

O tema em debate se restringe à segunda hipótese legal de responsabilidade civil do


administrador: quando atuar com violação da lei ou do estatuto.

Sustentam alguns, dentre os quais Fábio Ulhoa Coelho, que o inciso II do art. 158 da
Lei de Sociedades por Ações impõe responsabilidade civil também na modalidade
subjetiva, afirmando que toda violação da lei ou dos estatutos se traduz numa
conduta culposa ou dolosa, que deve ser efetivamente demonstrada no processo
indenizatório, sem que se fale em qualquer espécie de presunção de culpa.314

Outros renomados juristas, todavia, encabeçados por Modesto Carvalhosa,


sustentam que o inciso II do art. 158 da Lei das Sociedades por Ações prescinde da
demonstração do elemento culpa para a eclosão da responsabilidade civil dos
administradores das empresas, falando-se em responsabilidade civil por culpa
presumida. Para Modesto Carvalhosa, a despreparada redação do artigo ora em
estudo reproduz velhos paradigmas normativos, sem qualquer preocupação de
trazer o capítulo da responsabilidade dos administradores para a teoria da culpa
presumida, completando que “o legislador desatento e repetitivo, por desconhecer
talvez a evolução do instituto, faz ainda a velha distinção entre procedimento do
administrador (I) dentre o de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo e (II)
violação da lei ou do estatuto”.315

Vê-se, de pronto, mais uma vez, a insatisfação de um grande jurista nacional no que
tange à elaboração das leis brasileiras no caminhar do século XX, desconhecendo o
314
Curso de Direito Comercial, v. 2, p. 259.
315
Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 3, p. 355.
176

legislador a evolução por que passou a teoria da responsabilidade civil em toda a


doutrina e jurisprudência mundiais.

Segundo Modesto Carvalhosa, em ambas as hipóteses do artigo 158 da Lei de


Sociedades por Ações, estamos diante da responsabilidade presumida, “em que se
conciliam o elemento moral subjetivo – a imputabilidade moral – com a teoria
objetiva da conduta”, terminando por afirmar que “o elemento psicológico não é mais
preponderante na configuração da responsabilidade do administrador, que resultará
de sua conduta que tenha como efeito o dano jurídico ou material à companhia”, e
assim “não mais se impõe a prova da intenção que levou ao comportamento
antijurídico no capítulo da culpa”.316

Afirma o eminente doutrinador que do nexo entre a má conduta do administrador e o


dano surge o dever do agente de indenizar a companhia, por culpa presumida.317

Encontra-se, portanto, ainda, a necessidade do elemento culpa para a


caracterização da responsabilidade civil do administrador da companhia, haja ou não
a imperiosidade de demonstrá-la efetivamente no processo indenizatório.

Conquanto assim se entenda o pensamento do grande comentador da Lei das


Sociedades Anônimas, para Fábio Ulhoa Coelho a linha de raciocínio de Modesto
Carvalhosa tende à aceitação da teoria objetiva no que tange à responsabilidade
civil do administrador da companhia.318

Não obstante a divergência sobre se Modesto Carvalhosa sustenta a


responsabilidade civil com culpa presumida ou pela teoria objetiva, a finalidade do
exame do mercado de capitais, neste trabalho, se constitui em verificar se ao menos
se pode pensar na imposição do dever indenizatório do administrador da companhia
aberta com lastro na responsabilidade objetiva genérica pela atividade de risco.

Indaga-se, então, se a captação de recursos no mercado de capitais constituiria


atividade de risco que propiciasse o dever do administrador da companhia de
indenizar pelo dano eventualmente ocasionado.

316
Comentários à lei de sociedades anônimas, p. 355-366.
317
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei das sociedades anônimas, p. 357.
318
Curso de direito comercial, v. 2, p. 250.
177

Como já se adiantou, o tema está apenas posto para pensamento, sem que se
possa, neste momento, fornecer a devida resposta.

Com efeito, trata-se de mera hipótese colocada para estudo, mas não se perdendo
de vista que o próprio Modesto Carvalhosa, para sustentar a culpa presumida do
administrador da companhia, trouxe ensinamentos já adotados neste trabalho como
fundamentos da responsabilidade objetiva genérica pela atividade de risco, in verbis:

Há nítida superação, nas relações sociais modernas, da teoria da culpa, que


se fundava no pressuposto da igualdade de situação jurídica entre o autor
do dano e a vítima. Essa teoria foi revista desde o início do séc. XX, por não
se compatibilizar com as situações de desigualdade que foram detectadas
na sociedade de massas. Nesta, não se logra distribuir as oportunidades de
aceso ao conhecimento dos fatos de forma igual entre os sujeitos de direito
justaposto e isolados no contexto social, como formalmente se presumia
nos tempos romanos. É o caso da companhia. Não tem o seu órgão
máximo – a assembléia geral – acesso pleno a todos os atos e negócios
praticados pelos administradores. E, com efeito, estes são detentores de
todos os meios e dados necessários para o exercício das funções de
representação e gestão da companhia. E, ao detê-los, devem operá-los
lealmente, com diligência e competência, sem abuso ou desvio de poder, na
eficaz e oportuna conservação e defesa do interesse social; na perseguição
rigorosa do seu objeto e no estrito cumprimento dos deveres de natureza
legal e estatutária. Devem, outrossim, os administradores observar o caráter
institucional da companhia e os compromissos que a vinculam à
319
comunidade em que atua e a seus empregados e dependentes.

14.12 O EMPRÉSTIMO DE VEÍCULOS A TERCEIROS

Atente-se para a conduta daquele proprietário de veículo que promove a


transferência, ainda que momentânea, da detenção ou mesmo da posse de seu
automóvel para um terceiro, vindo este a provocar um acidente. Vejamos como a
situação encontra regência jurídica segundo a jurisprudência, podendo-se adiantar
que iterativamente se reconhece a solidariedade passiva da dívida indenizatória
entre os dois, o motorista e o dono do carro:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS – ACIDENTE


DE TRÂNSITO – PRELIMINARES AFASTADAS – REGULARIDADE DA
REPRESENTAÇÃO – NOMEAÇÃO DE CURADOR ESPECIAL – NÃO-
OCORRÊNCIA DO CERCEAMENTO DE DEFESA – LEGITIMIDADE
PASSIVA DO PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO – RESPONSABILIDADE
CIVIL – REQUISITOS PREENCHIDOS – INDENIZAÇÃO DEVIDA –

319
Comentários à lei de sociedades anônimas, p. 355.
178

RECURSO IMPROVIDO – É regular a nomeação do Defensor Público como


curador especial do requerido, quando este, mesmo citado e tendo
apresentado contestação através de Defensoria Pública de outro Estado
que não o Mato Grosso do Sul, não comparece na audiência de conciliação,
tampouco é representado pelo seu defensor. O julgamento antecipado da
lide, quando a questão proposta é exclusivamente de direito ou, sendo de
direito e de fato, não existir a necessidade de maior dilação probatória, não
leva a cerceamento de defesa. O proprietário de veículo causador de
acidente é parte legítima para responder pelos danos dele decorrentes.
Preenchidos os requisitos da responsabilidade civil (conduta culposa ou
dolosa, dano, nexo causal), a demanda ressarcitória deve ser julgada
procedente, sujeitando-se os responsáveis ao pagamento da devida
indenização por danos materiais à vítima do acidente de trânsito. (TJMS –
AC 2007.004788-9/0000-00 – Campo Grande – 3ª T.Cív. – Rel. Des. Paulo
Alfeu Puccinelli – J. 23.04.2007).

Provada a responsabilidade do condutor, fica o proprietário do automóvel necessária


e solidariamente responsável pelos danos causados, como criador do risco para
seus semelhantes. Com efeito, confiando seu veículo a outrem, o proprietário
assume o risco do uso indevido da coisa e nessa condição é solidariamente
responsável pela reparação dos danos que venham a serem causados por culpa do
motorista (RTJ 58/905 e 84/930).

Recurso Especial nº 604.758, da Terceira Turma do Superior Tribunal de


Justiça, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, julgado em 18 de
dezembro de 2006: Quanto à preliminar de ilegitimidade passiva, o acórdão
recorrido não discrepa da orientação assentada neste Superior Tribunal, a
dizer que: "Quem permite que terceiro conduza seu veículo é responsável
solidário pelos danos causados culposamente pelo permissionário" (REsp
343.649/HUMBERTO); "- O proprietário de veículo que o empresta a
terceiro responde por danos causados pelo seu uso culposo. (...)" (REsp
243.878/PÁDUA); "(...) o proprietário do veículo responde solidariamente
com o condutor do veículo. Em outras palavras, a responsabilidade do dono
da coisa é presumida, invertendo-se, em razão disso, o ônus da prova. (...)"
(REsp 145.358/SÁLVIO). Além dos paradigmas referidos, estão nesse
sentido: REsp 335.058/HUMBERTO; REsp 402.886/NANCY; REsp
116.828/ROSADO; REsp 6.852/EDUARDO, dentre outros.

O próprio mestre Carlos Roberto Gonçalves, quando ainda juiz do extinto Tribunal
de Alçada Civil de São Paulo, relatou uma apelação no seguinte sentido:

Responsabilidade civil – Acidente de Trânsito – Reconhecimento da


responsabilidade solidária entre a proprietária da carreta e o proprietário do
cavalo mecânico – Aplicação da teoria da guarda da coisa inanimada, que
presume a responsabilidade do dono da coisa pelos danos que ela venha a
causar a terceiros e representa consagração da teoria do risco. O simples
fato de ser a proprietária da carreta, que estava sendo manobrada pelo
motorista causador do sinistro, torna a primeira apelante solidariamente
responsável pelo pagamento da indenização (1º TACSP, Ap. 363.420-SP,
6ª Câmara).
179

Veja-se que os eminentes doutrinadores e julgadores da questão situam o tema no


âmbito da teoria da guarda da coisa inanimada, atribuindo ao proprietário do veículo
a responsabilidade em virtude da transferência, ainda que momentânea, da
detenção ou mesmo da posse do automóvel para um terceiro, o verdadeiro causador
do prejuízo.

Até mesmo por se entender assente na doutrina que a mencionada teoria da guarda
da coisa teve parcial acolhida expressa no Código Civil de 2002, que se restringiu à
disciplina da guarda de animais, à ruína de edifício ou construção e à queda de
objetos de um prédio, nossa legislação não conta com regulamentação clara sobre o
assunto afeto aos veículos postos em circulação nas mãos de outrem que não o
proprietário, daí o fato de os julgados sempre fazerem menção à teoria do risco
como forma de se imputar o dever indenizatório ao dono do automóvel.

Ora, diante desse quadro, pergunta-se: por que, então, não se fazer subsumir a
situação à responsabilidade objetiva genérica pela atividade de risco? Sim, pois,
tendo o veículo sob seu controle, sabe o proprietário que haverá de responder
somente por aquilo que produzir culposamente. Mas, que seja ao meramente
emprestar seu carro para que alguém vá até a esquina comprar pão, já perde
completamente o domínio daquilo que pode ser produzido com o manuseio de seu
bem.

Nem se diga do número infindável de lides que chegam às barras da justiça tendo
como tema central – no mais das vezes desenvolvido em sede de preliminar de
contestação – exatamente o acidente de trânsito produzido por pessoas
inexperientes ao volante que cometem barbaridades na condução de veículos de
propriedade de terceiros.

Disso resulta a noção de perigo que a referida conduta pode gerar à integridade
física e à vida dos demais cidadãos, legitimando que, sobretudo à míngua de
regulamentação expressa, se adote como fundamento do dever indenizatório do
dono do veículo a teoria da responsabilidade civil objetiva genérica pela atividade de
risco – segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil. É o que se
propõe.
180

14.13 A FABRICAÇÃO E O FORNECIMENTO DE CIGARROS

Poder-se-ia pensar também sobre a incidência da responsabilidade civil objetiva


genérica no que toca à atividade de fabricação e fornecimento de cigarros.

O tema foi abordado por Rui Stoco, enfocando-o sob o regramento do Código de
Defesa do Consumidor, negando, contudo, que o cigarro seja um produto
defeituoso, a teor do que dispõe o § 1º do art. 12 da Lei nº 8.078/90, ante a
previsibilidade e a normalidade dos riscos à saúde acarretados por seu longo
consumo.320

A bem da verdade, o eminente jurista se colocou muito refratário à ideia de


indenização pelos danos causados pelo cigarro, fundando-se, basicamente, além da
negativa de aplicação do art. 12 da Lei Consumerista, em duas premissas: primeira,
na dificuldade da prova do nexo causal entre a fabricação e o fornecimento do
cigarro e o dano acarretado por seu consumo; segunda, pela adesão voluntária do
consumidor ao eventual prejuízo para sua saúde.321

O mesmo Rui Stoco consolida sua não aderência à tese indenizatória diante de um
dado: deu notícia da procedência de uma única ação dessa natureza em primeira
instância da justiça brasileira, confirmada em grau de recurso, no estado do Rio
Grande do Sul (Ap. 70.007.090.798 – j. 19.11.2003), sem informar quanto ao
desfecho em Tribunal Superior.322

Mas, no caso presente, não se pode olvidar da presença de todos os elementos


necessários para a regência do tema pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo
o fumante consumidor de um produto fornecido pelos fabricantes de cigarros. E, “se
o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se
espera” (§ 1º do art. 12 do CDC), pode-se argumentar com a hipótese de o cigarro
ser considerado como um produto defeituoso, obrigando o fabricante ao reparo do
mal causado pelo seu consumo, lembrando Cláudia Lima Marques, nesse particular,
que:

320
Tratado de responsabilidade civil, p. 797.
321
Ibidem, p. 794-795.
322
Ibidem, p. 793.
181

No CDC a garantia de segurança do produto ou serviço deve ser


interpretada como reflexo do princípio geral do CDC de proteção da
confiança. Nesse sentido, o dever de qualidade-segurança será limitado,
como afirma o § 1º do artigo 12 do CDC. Não se trata de uma segurança
absoluta, mesmo porque o CDC não desconhece ou proíbe que produtos
normalmente perigosos sejam colocados no mercado de consumo – ao
contrário, concentra-se na idéia defeito, de falha na segurança
323
legitimamente esperada.

Diga-se que, durante a confecção do presente trabalho, a Souza Cruz foi condenada
a indenizar uma consumidora que desenvolveu doença pelo uso de cigarros. A 9ª
Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no dia 27 de agosto de
2008, nos autos do processo nº 70015107600, reformou sentença de primeiro grau e
condenou, por dois votos a um, a Souza Cruz S.A. a indenizar uma fumante que
desenvolveu cardiopatia esquêmica, tendo enfartado em decorrência do consumo,
por trinta e cinco anos, de cigarros fabricados pela ré. Reconhecendo a culpa
concorrente no ato de fumar, o Colegiado arbitrou em R$ 100.000,00 (cem mil reais)
a reparação por danos morais à consumidora Cleomar Terezinha Gonçalves, de
Passo Fundo. Aplicando o Código do Consumidor, o relator do apelo da
demandante, Desembargador Tasso Caubi Soares de Delabary, ressaltou que há
responsabilidade objetiva da indústria pelos danos causados à saúde da fumante.
Salientou existir farta prova da relação de causa e efeito entre o defeito do produto e
a doença da consumidora. Conforme o magistrado, as provas demonstram que a
autora adquiriu o hábito de fumar a partir da propaganda enganosa da ré. Afirmou
que “a indústria associou o consumo de cigarro ao sucesso pessoal, ocultando do
público, por décadas, os componentes maléficos à saúde humana existentes no
produto”. Cleomar Terezinha começou a fumar por volta da década de 70, aos 13
anos. Em alguns períodos chegou a consumir cerca de quatro carteiras de cigarros
por dia. O enfarto do miocárdio aconteceu em 1997. O Desembargador Odone
Sanguiné acompanhou o mesmo entendimento do relator, reconhecendo “a
existência de provas contundentes de que a autora adquiriu o vício estimulada pelas
propagandas veiculadas pela ré”. A Desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi
também entendeu ser possível a aplicação do Código do Consumidor para que se
reconheça o dever de indenizar. Porém, ressaltou ser necessário que se demonstre
o nexo causal entre a doença e o hábito de fumar, o que não verificou na hipótese.

323
Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais, p.
1.199.
182

Ainda são cabíveis os respectivos recursos, inclusive o especial ao Superior Tribunal


de Justiça, que até o presente momento não se pronunciou sobre a questão.

Caso não se admita a tese do julgado, pode-se examinar o assunto sob o enfoque
da responsabilidade civil objetiva genérica pela atividade de risco. Sem pretender
defender a ideia nesse momento, o que demandaria talvez outra dissertação, pode-
se ao menos argumentar que o cigarro traz muito mais que risco à saúde alheia, e
sim verdadeira certeza de dano, ficando o tema colocado para reflexão.

A título de informação, apenas, o cenário da questão na justiça brasileira, segundo


dados fornecidos pela Souza Cruz S.A., é o seguinte: até o momento, do total de
554 ações ajuizadas contra a companhia desde 1995, há 344 ações judiciais com
decisões rejeitando tais pretensões indenizatórias (237 definitivas) e 10 em sentido
contrário, as quais estão pendentes de recurso324.

14.14 A RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR POR ACIDENTE COM O


EMPREGADO

Leonardo de Faria Beraldo propõe um tema para debate:

Questão controvertida é saber se o ambiente de trabalho poderia ser


considerado como sendo atividade de risco. Pois, então, a responsabilidade
do empregador não mais seria subjetiva (art. 7º, XXVIII, da CR/88), mas sim
objetiva. Em nossa opinião, por mais que gostaríamos de concordar com a
assertiva acima levantada, pensamos não ser possível, haja vista que o
constituinte quis que a responsabilidade civil do empregador, perante o
empregado, em acidente de trabalho, fosse subjetiva. Sendo assim, não
poderia a lei ordinária modificar tal preceito, sob pena de incorrer em
inconstitucionalidade. Todavia, seria uma boa sugestão de emenda à
325
Constituição!

Cláudio Luiz Bueno de Godoy sustenta que não em diferente direção, agora já à luz
do novo texto civil, a responsabilidade do empregador, por acidente com o

324
Disponível em: www.conjur.com.br. Acesso em 29 de janeiro de 2009.
325
A responsabilidade civil no parágrafo único do art. 927 do Código Civil e alguns apontamentos do
direito comparado. Revista Forense, n. 376, p. 140.
183

empregado, será objetiva justamente na hipótese de atividade que se enquadre na


previsão do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil de 2002.326

Nesse sentido: TAP – AC nº 134.970-4, 4ª C., Rel. Juiz Ruy Cunha Sobrinho, j.
16/06/99, RT 772/403: Em acidente de trabalho, em que a atividade do empregado é
potencialmente perigosa, responde o empregador pelo simples risco e somente
estará isento da responsabilidade civil se restar comprovado que a hipótese é de
caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima.

Data venia, pensa-se que a disposição constitucional que determina a apuração da


responsabilidade do empregador mediante a verificação de sua culpa pelo infortúnio
(art. 7º, inciso XXVIII) não pode ser sobreposta pela disposição legal do parágrafo
único do art. 927 do Código Civil.

14.15 A RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS DE COMUNICAÇÃO

Poderíamos, ainda, pensar na atividade desenvolvida pelas empresas de


comunicação, propiciando ao público, por exemplo, o acesso, ao vivo, a entrevistas
com pessoas que eventualmente passam a ofender a honra alheia. Ora, a empresa
de informação, ao ceder seu espaço de mídia para que uma pessoa exponha suas
ideias, corre o risco de, eventualmente, contribuir decisivamente para que terceiros
venham a ser atingidos em sua paz espiritual, tornando-se co-responsável pelo
pagamento da consequente indenização por danos morais, sem falar nas não raras
matérias jornalísticas que acarretam imensuráveis danos materiais e morais ao
ofendido, como no caso de um educador que tem contra si assacadas acusações de
pedofilia, não havendo como não se lembrar do caso da “Escola Base”.

Nesse sentido, a jurisprudência já apontou o risco da atividade da empresa de


comunicação como fator de imputação de responsabilidade: “Indenização. Ofensa
moral decorrente de entrevista dada ao vivo em programa radiofônico.
Responsabilidade da emissora pelo risco inerente à atividade a que se propõe a
empresa de comunicação. Co-responsabilidade da entrevistada, que assacou as
326
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 212.
184

inverdades, por ela mesma desmentidas em programa subseqüente. Quantum


indenizatório a ser suportado por ambas as partes”. (STJ – RT 815/207).

Com esse entendimento, afinado com a moderna teoria do risco da atividade, foi-se
mitigando a restrição imposta pelo § 2º do art. 49 da Lei nº 5.250/67, que permitia o
ajuizamento da ação indenizatória apenas contra o órgão que explora o meio de
informação ou divulgação da notícia ofensiva, resultando na atual súmula 221 do
STJ: São civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente da
publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo
de divulgação.

Nestes termos é que se propõe – e apenas se propõe – mais uma atividade como
potencial fator de imposição do dever indenizatório em virtude do risco a que expõe
os direitos das pessoas atingidas pelas eventuais ofensas proferidas durante as
entrevistas ou mesmo nas matérias jornalísticas veiculadas pelas empresas de
comunicação.

Nesse tema referente às empresas de comunicação, Cláudio Luiz Bueno de Godoy,


se posiciona pela adoção da teoria do risco da atividade, asseverando que:

Pois sobrevindo um novo código civil, considera-se que na hipótese em


tela, a dar acrescido fundamento à responsabilidade sem culpa, tal qual já
se defendia, está, agora, no parágrafo único do artigo 927, de que ora se
cogita. Isso por se crer de todo evidenciado o risco especial que há na
atividade da empresa. Basta, no entanto, não olvidar a enorme penetração
e o grande alcance e conseqüências da divulgação de uma notícia em
327
ocasional maltrato a direitos outros da personalidade.

14.16 AS INSTALAÇÕES NUCLEARES E RADIOATIVAS

Merece uma breve nota a opinião de Carlos Alberto Bittar acerca dos eventos
danosos relativos às “instalações radioativas”.328

327
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 218.
328
Responsabilidade Civil nas atividades nucleares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p.
113, apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, p. 92.
185

Como visto, o Brasil, seguindo quase toda a diretriz internacional, adotou, no que
tange às atividades nucleares, o sistema de responsabilidade que prescinde
absolutamente da demonstração da culpa do agente causador do dano, editando a
Lei nº 64.573/77, sobretudo em seu artigo 4º. Assim, no caso das usinas nucleares,
a empresa exploradora é responsável pelos danos causados, independentemente
de prova de culpa a ser produzida pela vítima.329

A Lei nº 64.573/77, no entanto, restringe o conceito de dano nuclear àquele que


envolva materiais nucleares existentes em “instalação nuclear”, conforme clara
dicção de seu 4º artigo, deixando a descoberto de seu rígido e adequado sistema
protetivo os eventos danosos relativos a “instalações radioativas”, que em outros
países também se encontram sob a égide da responsabilidade nuclear.330

Tais atividades, dessa forma, ficam subordinadas aos princípios e regras da teoria
geral da responsabilidade civil e, quando muito, conforme o caso, aos das atividades
perigosas, se possível o encarte.

Por essa razão, Carlos Roberto Gonçalves afirma que

Impõe-se, imediatamente, a formulação de projeto de lei, por parte de


nossos legisladores, tendente a submeter aos efeitos da Lei nº 64.573/77,
os acidentes radiológicos ocorridos fora de instalações nucleares,
abrangendo-se todas as situações possíveis, inclusive as decorrentes da
331
desídia no uso, na guarda e na conservação de materiais radioativos.

Com isso, teria o mesmo regramento da responsabilidade civil decorrente de


atividades nucleares o acidente ocorrido em Goiânia, com a cápsula de Césio-137
apropriada por particular, considerado o mais grave acidente radiológico e o de
maior extensão acontecido até hoje.

Não obstante a ausência de diploma legislativo próprio para as atividades


radioativas, impõe-se concluir, como já assinalado pelo próprio Carlos Alberto Bittar,
pela sua submissão à responsabilidade objetiva genérica em exame, dado o seu
caráter extremamente perigoso à sociedade como um todo.

329
Responsabilidade Civil nas atividades nucleares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p.
113, apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, p. 92-93.
330
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, p. 94.
331
Direito civil brasileiro, p. 95.
186

14.17 AS PRÁTICAS DESPORTIVAS

O jurista italiano Pietro Trimarchi advoga que também o exercício de uma atividade
desportiva ou a organização de espetáculos esportivos podem implicar uma
responsabilidade objetiva, em particular pelo uso que se faça de animais (ex.:
corrida de cavalo) ou de coisas suscetíveis de descontrole pelo homem e de
eclodirem uma energia destrutiva (ex.: uma corrida automobilística ou uma acrobacia
aeronáutica).332

Nesse mesmo sentido, dá conta Franzoni que frequentemente os juízes italianos


precisam enfrentar a questão da aplicação do artigo 2.050 do Código Civil daquele
país às atividades esportivas. Assim, decidiu-se que é perigoso o exercício da
atividade de caça (Cass. pen., 25 de setembro de 1980, in Giur. Agr. It., 1982, p.
629), assim como a equitação (App. Catania, 26 de março de 1982, in Revista de
Direito Desportivo, 1982, p. 192).333

Ainda, quanto à aplicação do art. 2.050 do Código Civil italiano, Guido Alpa afirma
que se considera perigosa a organização de atividades esportivas como a
natação334.

Carlos A. Ghersi, afirma que, na Argentina:

(...) se han calificado como riesgosas ciertas actividades que tienen um alto
índice de dañosidad, por ejemplo, el ambiente de trabajo que produce
deterioros en la salud del trabajador, la deficiente organización de
335
espectáculos deportivos, la difusión perjudicial de información, etcétera.

E continua, afirmando que:

Algunas normas específicas han incoporporado la responsabilidad objetiva


por actividades riesgosas; tal es el caso de la ley 23.184, para la actividad
futbolística, cuyo art. 33 pone en cabeza de las entidades o asociaciones
organizadoras de un espectáculo deportivo los daños sufridos por el
336
público en los estadios durante el desarrollo de aquél.

332
Rischio e responsabilitá oggettiva, p. 344.
333
La Responsabilità Oggetiva, p. 149.
334
La Responsabilità Civile, p. 29.
335
Theoría general de la reparación de daños. Buenos Aires: Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma,
1997, p. 148.
336
Theoría general de la reparación de daños, p. 149.
187

José Acir Lessa Giordani faz uma analogia entre a situação dos automóveis com as
lanchas, o jet ski e as bicicletas, impondo aos seus condutores a responsabilidade
objetiva genérica, nos seguintes termos:

Deve-se observar que não são incomuns os acidentes causados por


lanchas, tais como atropelamentos que resultam em eventos trágicos,
desde a amputação de membros até a própria morte da vítima. O mesmo
pode ser afirmado em relação aos ciclistas, que, sem dúvida, expõem as
pessoas a um certo risco quando utilizam este veículo, devendo responder
objetivamente pelos danos decorrentes de atropelamentos e outros
337
acidentes.

O eminente jurista chega a afirmar que o jogo de futebol, se praticado normalmente


em um determinado local, constitui risco para os direitos alheios, como na hipótese
de uma vidraça de um vizinho ser acertada pela bola, podendo buscar a indenização
sem ter que demonstrar a culpa de quem quer que seja.338

Ainda, para José Acir Lessa Giordani, até mesmo o frescobol jogado na praia pode
ser considerado atividade arriscada, assim como a prática do surfe, exemplificando
com um caso por ele testemunhado:

Tivemos a oportunidade de, certa vez, observar um caso no qual um


surfista, no desempenho de seu esporte, ao descer em uma onda, atingiu
os destroços de uma embarcação naufragada que haviam sido trazidos
pela maré. A colisão jogou o desportista na água, enquanto a prancha,
soltando-se de sua perna, atingiu um banhista que se encontrava próximo,
causando-lhe um corte sério próximo à vista. Podemos indagar: a atividade
desportiva do surfe é, por sua natureza, perigosa? Evidente que sim, pois
não raras vezes observamos acidentes com banhistas, sendo interessante
observar que as pessoas, normalmente, procuram se afastar da parte da
praia que está sendo freqüentada pelos praticantes do esporte, no
momento de entrar na água, em decorrência do receio de serem
atropeladas ou atingidas pela prancha ou pelo próprio praticante do
esporte. Assim, a responsabilidade não pode ser outra se não a objetiva,
sendo que qualquer fato, tal como a presença de destroços de
embarcações, existência de recifes ou ataques de tubarões que possam ter
contribuído para o evento lesivo devem ser considerados como fortuitos
339
internos, não se prestando como excludente da responsabilidade.

Para Carlos Roberto Gonçalves, os rachas e a farra do boi são atividades


abrangidas pelo parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, e menciona, em

337
A responsabilidade civil objetiva genérica, p. 102.
338
GIORDANI, José Acir Lessa. A responsabilidade civil objetiva genérica, p. 95.
339
A responsabilidade civil objetiva genérica, p. 103-104.
188

exame ao direito comparado, Leonardo de Faria Beraldo, lembrando que a caça é


também considerada atividade arriscada.340

14.18 OUTRAS ATIVIDADES

Muitas outras atividades que a imaginação permitir podem ser analisadas para se
constatar se devem ou não ser regidas pela responsabilidade objetiva genérica pela
atividade de risco, podendo-se citar algumas coletadas na doutrina e jurisprudência,
além de outras livremente escolhidas.

Para Carlos Alberto Bittar, podem ser consideradas perigosas as atividades de


exploração de minas, uso de energia, de telefonia e de telegrafia.341

Risco à integridade física e à vida de seus frequentadores também é oferecido pelas


atividades desenvolvidas pelos parques de diversões e parques aquáticos, mas aí a
situação se põe novamente no âmbito de proteção do Código de Defesa do
Consumidor, como, mais uma vez, chama a atenção Cláudia Lima Marques, pois

O consumidor que adquire um produto ou utiliza um serviço oferecido no


mercado brasileiro passa a ter, no sistema do CDC, dois tipos de garantia: a
garantia legal da adequação do produto ou do serviço, que será
concretizada através da utilização das novas normas sobre o vício, e a
garantia de segurança razoável do produto, imposta pelo CDC nos artigos
8º a 17, e que têm por fim a proteção da incolumidade física do consumidor
342
e daqueles equiparados a consumidores.

As empresas de elevadores e escadas rolantes também podem desenvolver


atividades arriscadas.

Ainda, para Sérgio Cavalieri Filho, a responsabilidade das locadoras de veículos


pelos danos causados pelo locatário a terceiros no uso do carro locado, que resultou
na súmula 492 do Supremo Tribunal Federal, impondo responsabilidade solidária
entre os dois, por alargamento do conceito de culpa, hoje se enquadra com justeza

340
Responsabilidade civil, p. 281.
341
Responsabilidade civil, p. 33.
342
Contratos no código de defesa do consumidor, p. 1.199.
189

no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil de 2002, por se tratar de atividade
de risco, perigosa.343

No mesmo sentido, Cláudio Luiz Bueno de Godoy, para quem:

A menção que a ela, à atividade de locação de veículos, se faz decorre da


necessidade da exata identificação do fundamento dessa responsabilidade,
ao que, segundo se entende, concorre à disposição do parágrafo único do
344
artigo 927 e o risco da atividade que ali se erige.

Outra questão é a das lojas que repassam aos bancos o recebimento de seus
créditos, e, não comunicadas do pagamento efetuado, lançam o nome do cliente nos
cadastros de inadimplentes. Em verdade, o comércio de produtos feito por lojas
como as Casas Bahia, Cybelar, Lojas Cem e similares não tem qualquer conotação
de risco. Mas a maneira como recebem os preços de seus produtos já se mostra
suscetível de reiterada ofensa a direitos alheios, no que se está falando em risco dos
meios no exercício da empresa. Realmente, a incidência forense do problema é
enorme, sempre buscando a loja imputar ao banco a inércia quanto à comunicação
do pagamento, enquanto este levanta sua ilegitimidade passiva no processo por não
fazer parte do contrato de compra e venda. Nesse panorama, a primeira constatação
é que, se acolhidas ambas as defesas, a primeira de mérito e a segunda processual,
o consumidor fica sem a devida indenização, mesmo tendo promovido o pagamento
no tempo e ainda assim tendo sido apontado como inadimplente. A solução não
parece ser outra senão a responsabilização solidária da loja e do banco, a primeira
pelo risco do meio representado pela cobrança transferida a terceiro e o segundo
pelo risco da própria atividade de resgate de créditos, como já se pôde sustentar
acima.

Outrossim, para Sérgio Cavalieri Filho, a responsabilidade do condomínio pela


guarda de coisas perigosas pode também ser enquadrada na disciplina do parágrafo
único do art. 927 do Código Civil, chamando a atenção para os

casos, por exemplo, de morte ocorrida em elevadores porque o carro não


estava parado no andar, afogamento de crianças em piscina, e outros casos
análogos. Os jornais noticiaram que o corpo de um garoto de treze anos foi
encontrado dentro do sistema de tratamento de esgoto de um determinado
condomínio. Ele estava jogando futebol com amigos quando a bola caiu no
terreno do condomínio. No que foi procurá-la, caiu na caixa de esgoto, que

343
Programa de responsabilidade civil, p. 161.
344
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 196-197.
190

estava destampada. Não se aplica nesse caso o Código do Consumidor,


porque não há relação de consumo entre o condomínio e o condômino ou
terceiros. Antes da vigência do Código Civil de 2002 esse caso teria que ser
resolvido com base na responsabilidade pelo fato da coisa. O dano não foi
causado pelo preposto do condomínio, mas por coisa de que era o
guardião. Hoje não mais será necessário o mecanismo da responsabilidade
indireta. O condomínio terá responsabilidade direta, objetiva, com base no
parágrafo único do artigo 927 do Código Civil. A guarda e vigilância de
coisas perigosas – como piscinas, elevadores e estações de esgoto –
podem e devem ser consideradas atividade perigosa de que trata o referido
dispositivo, que gera para o condomínio o dever de segurança, cuja
345
violação enseja a obrigação de indenizar.

No âmbito internacional, segundo Paulo Sérgio Gomes Alonso346, foram


consideradas pela jurisprudência italiana como perigosas as seguintes atividades: a
caça (De Cupis, v. jurisp. C. 68/4072); o teleférico (Trib. Savona, 20-12-1965, G. it.
66, I, 2, 557); a indústria de produção e a distribuição de gás de botijão (C. 81/294,
80/5795, 69/1595); a produção e fornecimento de energia elétrica; as atividades de
construção civil (Cass. 10-8-1949, nº 2.271); e a serraria elétrica com depósito anexo
de troncos de madeira amontoados (Trib. Bologna, 1º-4-1952, Marchi e Ocetulli,
1952, 486).

É absolutamente pacífico, segundo Franzoni, que a produção de energia elétrica é


considerada atividade perigosa, com aplicação do artigo 2050 do Código Civil
italiano347, assim como a produção e a distribuição de botijões de gás (Cass., 24 de
novembro de 1988, n. 6325, in Mass. Foro it., 1988)348.

Com relação aos provedores de internet, Cláudio Luiz Bueno de Godoy afirma que
“não têm sido raras as ocorrências envolvendo atentados à privacidade, honra e
imagem das pessoas, praticadas e propagadas, com particular amplitude, por sites
ou páginas de responsabilidade dos provedores da informação”, verificando,
portanto, “outro dado a concorrer para a identificação de que haja um risco especial
induzido, também por isso aplicável o parágrafo único do artigo 927 do Código
Civil”.349

345
Programa de responsabilidade civil, p. 161.
346
Pressupostos da responsabilidade civil objetiva. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 160.
347
La Responsabilità Oggetiva, p. 153.
348
La Responsabilità Oggetiva, p. 159.
349
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 232.
191

Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça quanto à assunção do risco


pelas empresas provedoras de internet, carreando-lhes o dever indenizatório.350

Por fim, Cláudio Luiz Bueno de Godoy, chama a atenção para a atividade das
empresas organizadoras de eventos frequentados por centenas ou até milhares de
pessoas:

Pense-se, a respeito, na organização de eventos religiosos, ou outros de


qualquer forma voltados até a uma finalidade altruística. Como se considera
que o risco especial da atividade, previsto no parágrafo único do artigo 927,
não esteja a exigir proveito econômico, e como se o tem por configurado no
fato da organização, então eis mais um caso de concreta aplicação da
351
cláusula geral erigida pela nova lei civil.

Depois de tantas incertezas e certezas (estas ainda suscetíveis de qualquer tipo de


insurgência) com relação ao que pode ser considerado como atividade de risco para
os direitos de outrem, conclui-se, com Rui Stoco, que, “para o Judiciário, a tarefa de
decidir o que deve ser considerado atividade perigosa no caso concreto não será
fácil, nem se obterá, em curto prazo, uma consolidação dessas hipóteses”.352

350
AGE n. 55648, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 02/02/04.
351
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 249.
352
Tratado de responsabilidade civil, p. 179.
192

15. EXAME DAS HIPÓTESES QUE PODEM OU NÃO EXONERAR DA


RESPONSABILIDADE O AGENTE QUE EXERCEU A ATIVIDADE
ARRISCADA

O sistema de responsabilidade objetiva trás, em muitos casos, consequências


diversas para as tradicionais causas excludentes do dever indenizatório, e isso já foi
notado por toda a doutrina, como Carlos A. Ghersi, citando que:

En los casos de daños ocasionados por el riesgo e vicio de la cosa, por


tratarse de un régimen objetivo, se prescinde de toda calificación de
conducta, existiendo una presunción de responsabilidad en contra del
dueño o guardián de la cosa. La víctima del hecho dañoso sólo debe probar
el daño, la intervención de la cosa y la relación causal entre ella y el daño.
Para liberarse de responsabilidad, el dueño o guardián debe acreditar el
rompimiento del nexo causal, es decir, culpa de la víctima, de un tercero por
quien no debe responder. También puede alegar el caso fortuito, incluido
como eximente en la doctrina y la jurisprudencia.
Con respecto al caso fortuito, debe ser externo o ajeno al riesgo de la cosa
o la actividad. Debe tratarse de un acontecimiento imprevisible y exterior a
ella, ya que si fuera interno se encontraría dentro del riesgo proprio o
específico de la cosa o de la actividad desarrolada. En tal sentido se ha
resuelto que no revisten las características de caso fortuito la fallas de
funcionamiento de un automóvil, los baches u obstáculos del camino,
353
etcétera.

E são exatamente estas causas supostamente excludentes do dever indenizatório


que passam a ser examinadas, tendo sempre como norte o fato de estarmos
trabalhando com a responsabilidade sem culpa.

15.1 ESTADO DE NECESSIDADE, LEGÍTIMA DEFESA E EXERCÍCIO REGULAR


DE UM DIREITO

Segundo Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery, “age em estado de


necessidade aquele que, para salvar a si ou a terceiro de perigo grave e iminente,
pratica ato que ofende direito de outrem”; a legítima defesa “é a repulsa,
proporcional à ofensa, no intuito de evitar que direito próprio ou de outrem seja

353
Theoría general de la reparación de daños, p. 153.
193

violado”; e o exercício regular de um direito “é a utilização do direito sem invadir a


esfera do direito de outrem”.354

Encontram-se previstos no artigo 188 do Código Civil; a legítima defesa e o exercício


regular de um direito no inciso I, e o estado de necessidade no inciso II combinado
com o parágrafo único.

Quanto ao estado de necessidade, mesmo que o agente causador do dano tenha


atuado na mais estrita legalidade, tem ele o dever de reparar o prejuízo à pessoa
lesada ou ao dono da coisa, se estes não forem os culpados pelo perigo, nos termos
do artigo 929, caput, do Código Civil.

É esclarecedor, quanto ao tema, o exemplo de Carlos Roberto Gonçalves, para


quem

Se um motorista, por exemplo, atira o seu veículo contra um muro,


derrubando-o, para não atropelar uma criança que, inesperadamente,
surgiu-lhe à frente, o seu ato, embora lícito e mesmo nobilíssimo, não o
355
exonera de pagar a reparação do muro.

O mesmo civilista, todavia, traz ementa de acórdão no sentido contrário, negando


por absoluto o nexo causal entre a conduta do motorista e o prejuízo: “Não há
obrigação de indenizar da parte do motorista que, para não atropelar uma criança,
que surgiu na frente do ônibus, lançou este contra um carro estacionado” (RT,
543:99).356

Gonçalves não concordou com a solução adotada pelo v. acórdão, trazendo à baila
aspectos relacionados ao perigo da atividade da empresa de ônibus, nos seguintes
termos:

Não podemos, no entanto, concordar em que o prejuízo recaia sobre a


vítima inocente. Entre responsabilizar a empresa de transportes coletivos,
que assumiu o risco de explorar tais serviços, colocando em atividade
máquina potencialmente perigosa, ou isentá-la de qualquer
responsabilidade, fazendo com que todo o prejuízo seja suportado por
aquele que nenhuma culpa teve no evento (o dono da coisa danificada),
mais justa é, sem dúvida, a primeira alternativa, ressalvando-se-lhe a

354
Código civil anotado - e legislação extravagante. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
p. 258.
355
Responsabilidade civil, p. 786.
356
Ibidem, p. 786.
194

possibilidade de propor ação regressiva contra o responsável pela


357
criança.

Se, então, a responsabilidade civil não é excluída nem nos casos de atuação lícita e
normal do agente, nos termos do caput do art. 929 do Código Civil, muito menos
razão há para se afastar o dever indenizatório no caso de desenvolvimento de
atividade arriscada para os direitos alheios, ainda que acobertada pelo estado de
necessidade.

Quanto à legítima defesa, foi trazida apenas para que não faltasse no estudo, pois
seu exame neste trabalho fica quase prejudicado como causa excludente do dever
indenizatório, ante a dificuldade de se imaginar alguma situação em que alguém não
esteja se conduzindo de forma arriscada contra o autor da injusta agressão atual ou
iminente a direito seu ou de outrem, hipótese em que sempre haverá o afastamento
da responsabilidade civil. Não se trata de risco da atividade. Trata-se de
legitimidade da atividade, senão perecido ou lesionado estará o direito posto em
jogo, nunca se podendo falar em dever indenizatório daquele que se conduziu em
legítima defesa, salvo nas hipóteses de terceiro atingido e putatividade no exercício
da legítima.

Talvez o exercício regular de um direito possa ser o instituto que mais trará
problemas no seu exame como potencial causa excludente da responsabilidade civil
objetiva genérica. Isso porque, com relação ao exercício regular de um direito, o seu
titular levantará o argumento de que atua de acordo com a lei, e que, se houve
prejuízo para alguém, não tem o dever de ressarcir a vítima, exatamente pelo fato de
se ter conduzido conforme ao direito.

O tema é intrincado e em tudo se relaciona com a hipótese a seguir examinada


sobre se a licitude da conduta do agente causador do dano afasta o dever
indenizatório, relegando o estudo do exercício regular de um direito como forma de
exclusão da responsabilidade objetiva para o mencionado item infra.

357
Responsabilidade civil, p. 786.
195

15.2 CASO FORTUITO OU FORÇA MAIOR

A regra quanto ao nexo causal entre a conduta do agente e o dano suportado pela
vítima está estabelecida no artigo 403 do Código Civil: ainda que a inexecução
resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os
lucros cessantes por efeito dela direto e imediato... (negritamos e sublinhamos).

Segundo a doutrina e a jurisprudência majoritárias, traduz o transcrito dispositivo


legal a aplicação da teoria da causalidade adequada, para a qual apenas responde
pelo evento aquele que concorreu com uma conduta adequada à produção do dano.

O raciocínio se realiza da seguinte maneira: subtrai-se mentalmente a conduta em


exame; se, mesmo após a mencionada subtração, persistir a ocorrência do
resultado, não responde o agente pelo dano; ao contrário, se o resultado não mais
subsistir após a subtração da conduta, responde o agente pelo evento.

A solução de cada caso concreto não se fará, todavia, com a simplicidade que a
citada fórmula parece propiciar, sendo que a dificuldade já havia sido notada pelo
eminente Sérgio Cavalieri Filho:

À luz do exposto, é forçoso concluir que, não obstante as teorias existentes


sobre o nexo causal e tudo quanto já se escreveu sobre o tema, o problema
da causalidade, como ressaltamos, não encontra solução numa fórmula
simples e unitária, válida para todos os casos. Na minha experiência de
magistrado tenho constatado que é um ponto onde se registra o maior
número de divergências entre os julgadores de todos os graus. E assim é
porque esta ou aquela teoria fornece apenas um rumo a seguir, posto que a
solução do caso concreto sempre exige do julgador alta dose de bom-senso
prático e da justa relação das coisas; em suma, é imprescindível um juízo
358
de adequação, a ser realizado com base na lógica do razoável.

Finalizando por afirmar que “a incorreta visualização do nexo causal pode levar à
distorção de rumos, fazendo alguém responder pelo que não fez”.359

E é nesse âmbito desprovido de consolidação de ideias que se põe o problema do


exame do nexo causal frente ao caso fortuito, à força maior, ao fato da vítima e de
terceiro.

Iniciemos, então, pelo caso fortuito e pela força maior.

358
Programa de responsabilidade civil, p. 52.
359
Ibidem, p. 52.
196

O jurista português Fernando de Sandy Lopes Pessoa Jorge, quanto ao tratamento


do caso fortuito ou de força maior no direito de seu país, noticia que a opinião
dominante considera que não é necessário estabelecer distinção entre eles por lhes
corresponderem regimes idênticos, conceituando-os, indistintamente, como um

(...) acontecimento que cria uma impossibilidade de cumprir não atribuível


nem à vontade do devedor, nem à do credor (...) trata-se sempre de um
obstáculo ao cumprimento do dever, mas obstáculo que para o devedor ou
agente é invencível ou intransponível, que ele não pode remover ou
360
afastar.

No campo da teoria objetiva as duas causas devem ser examinadas com muitíssima
cautela, diferentemente da forma como se lhes atribui efeitos a teoria subjetiva,
como já notado pelo mesmo Pessoa Jorge:

O caso fortuito ou de força maior não interessa apenas para efeito de o


devedor não incorrer em responsabilidade, mas projecta-se noutros campos
do direito das obrigações e mesmo noutros ramos do direito. Pense-se, por
exemplo, em toda a problemática do risco, que em parte consiste na
determinação de quem suporta os prejuízos decorrentes dum caso fortuito
361
ou de força maior.

Em nosso direito o parágrafo único do artigo 393 do Código Civil não faz distinção
entre o caso fortuito e a força maior, definindo-os da seguinte maneira: “O caso
fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era
possível evitar ou impedir”.

Não interessam ao presente estudo as divagações doutrinárias acerca do elemento


discriminante entre um e outro, dado o tratamento igualitário conferido pela
legislação civil a ambos, no que tange ao sistema de responsabilidade subjetiva.

Destarte, corroborando o acima afirmado por Pessoa Jorge, para Ragner Limongelli
Vianna, caso fortuito e força maior são expressões sinônimas no âmbito da
responsabilidade apurada com base na culpa. Já no que tange à responsabilidade
objetiva, de outro lado, segundo o citado jurista, se diferenciam nos seus efeitos.362

360
Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 1995. p. 119-
120.
361
Ibidem, p. 121.
362
VIANNA, Ragner Limongelli. Causas e cláusulas ou convenções de impedimento de formação
ou de exclusão da obrigação de reparação de danos. 2001. Dissertação (Mestrado em Direito
Civil) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2001. p. 32-33.
197

A questão ganhou novos contornos depois de se enveredar pela moderna teoria do


caso fortuito interno e externo, que, impulsionada por Agostinho Alvim, ganhou a
confiança da doutrina, merecendo exame mais pausado.

A doutrina passou a ver no “caso fortuito um impedimento relacionado com a pessoa


do devedor ou com sua empresa, enquanto que a força maior é um acontecimento
externo”.363

Se a responsabilidade for apurada com base na culpa, não haverá consequência


prática na diferenciação entre os dois: o fortuito exonerará o agente do dever
indenizatório, assim como, com maior razão, a força maior.

Mas, de outro lado, se a responsabilidade for apurada com base no risco, isto é,
segundo a teoria objetiva, será importantíssima a consequência prática da distinção:
a força maior servirá para excluir o dever indenizatório, mas o fortuito não
aproveitará ao agente danoso.364

De acordo com essa nova tendência, o caso fortuito denomina-se fortuito interno (e
não exclui o dever indenizatório), enquanto a força maior denomina-se fortuito
externo (e exclui o dever indenizatório).

Assim, restringem-se, para o Professor Agostinho Alvim, como exemplos de fortuito


externo os fenômenos naturais, como um raio ou uma tempestade, ou quaisquer
outras impossibilidades de cumprir a obrigação derivadas de força externa
invencível, como uma guerra ou uma revolução.365

Resumindo, então, a teoria trazida pelo Professor Agostinho Alvim, no que tange à
responsabilidade objetiva, centro de nosso estudo: o fortuito externo (ou força maior)
é absolutamente estranho à atividade desenvolvida pelo agente, e, por isso, exclui a
responsabilidade do agente; o fortuito interno tem relação com a atividade
desenvolvida pelo agente, resultando que a responsabilidade não fique excluída.

O exemplo seguinte é de Acir Lessa:

363
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 1972. p. 330.
364
Ibidem, p. 330.
365
Ibidem, p. 330.
198

Se, na hipótese, o atropelamento ocorreu em virtude de um descontrole do


carro, decorrente do pneu ter estourado, haverá responsabilidade do
proprietário ou condutor do veículo, pois o risco por este fato é seu, eis que
se trata de fortuito interno (inerente à atividade de conduzir veículo
automotor). Isto é, qualquer um que conduza ou que seja proprietário de
veículo automotor está sujeito ao risco de um pneu estourar, ainda que seja
novo, em virtude de algum objeto pontudo que tenha sido deixado na
estrada ou em decorrência de algum buraco feito pela ação da chuva.
Vejam que este fortuito não exclui o nexo de causalidade, pois foi do ato de
conduzir o carro que decorreu o acidente. Se, por outro lado, ocorre a
queda de uma barreira sobre o carro, empurrando-o contra a vítima que
caminhava pela calçada, ocasionando o evento lesivo, não haverá
responsabilidade, pois neste caso temos um fortuito externo, ou seja,
fortuito que não constitui risco inerente à atividade de conduzir o veículo.
Esse fortuito exclui o nexo de causalidade, pois o que ocasionou o acidente
não foi a condução do veículo, mas a queda da barreira, excluindo também
366
a responsabilidade do condutor ou proprietário do carro.

Num rápido exame de direito comparado acerca da responsabilidade civil em


decorrência dos acidentes de trânsito, o direito espanhol prevê expressamente a
hipótese de caso fortuito interno, impondo ao proprietário ou condutor do veículo o
dever indenizatório, por meio do art. 1º de seu Decreto de 21 de março de 1968, in
verbis:

O condutor de um veículo de motor que por motivo da circulação cause


danos às pessoas ou às coisas estará obrigado a reparar o mal causado,
exceto quando se prove que o fato fora devido unicamente à culpa ou
negligência do prejudicado ou à força maior estranha à condição ou ao
funcionamento do veículo. Não se consideram como causas de força maior
os defeitos deste nem a ruptura ou falha de algumas de suas peças ou
mecanismos.

A jurisprudência nacional caminha no mesmo sentido:

Veículo parado – abalroamento – estouro de burrinho – culpa do motorista –


indenização devida. O estouro do burrinho de caminhão não exonera o
preponente de indenizar o dano material causado por colisão com outro
veículo, que estava parado (RT, 503:88).

Responsabilidade civil – acidente de trânsito – colisão com outro carro na


direção contrária – alegação de caso fortuito em virtude do estouro de pneu
– desacolhimento. Os problemas criados pela utilização de automotores não
são pequenos, nem pouco complexos; merecem, por isso, um tratamento
diferenciado, compatível com as situações criadas pelo seu próprio
surgimento no mundo moderno. É preciso, para solucionar determinadas
situações, aceitar colocações mais atuais, compatíveis com os riscos da
utilização de máquinas perigosas, postas em uso pelo homem (Primeiro
Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, julgados - 80:80).

366
A responsabilidade civil objetiva genérica, p. 60-61.
199

Concluindo o presente item, no tema de responsabilidade civil objetiva, as


expressões caso fortuito e força maior equivalem, respectivamente, a caso fortuito
interno e caso fortuito externo. Assim, quando se fala em caso fortuito se está
falando de caso fortuito interno, que não exclui a responsabilidade. Quando se fala
em força maior se está falando em caso fortuito externo, excluindo-se a
responsabilidade do agente.

15.3 O FATO DE TERCEIRO

Terceiro é aquele que não é o causador do dano, e, em princípio, sua culpa não
exonera o autor direto do prejuízo do dever de indenizar.367

Há que se distinguir, contudo, cada hipótese em concreto. Assim, da mesma forma


que no item anterior, se o fato de terceiro foi a causa exclusiva do prejuízo,
equipara-se à força maior ou ao fortuito externo, desaparecendo a relação de
causalidade entre a conduta do agente e o dano suportado pela vítima.

Imagine-se a situação de quem é assaltado num posto de gasolina quando


abastecia seu veículo. Seu prejuízo decorreu de fato de terceiro, imprevisível e
inevitável para o proprietário do estabelecimento, que, assim, não arcará com a
correspondente indenização.

Agora, imagine-se uma "bituca" de cigarro jogada por um transeunte que provoca a
explosão de uma bomba de gasolina do posto e fere um consumidor que estava
abastecendo seu veículo. Aqui, pode-se pensar (veja-se: pensar, apenas) na
hipótese de fortuito interno, podendo-se, eventualmente, carrear ao posto de
gasolina o dever acautelatório para que o tal infortúnio não acontecesse. É óbvio
que esta solução poderia ser veementemente contrariada com lastro no art. 403 do
Código Civil brasileiro, impondo a responsabilização pelas perdas e danos
resultantes direta e imediatamente da inexecução do dever pelo suposto agente
danoso. Mas não se pretende aqui dar uma solução definitiva para um problema tão
complexo, apenas levantar uma ideia para reflexão.

367
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil, p. 799.
200

Imagine-se, ainda, que um caminhão transportando gasolina seja abalroado por um


outro caminhão. Pergunta-se: a vítima da explosão do tanque de combustível poderá
buscar a indenização contra a empresa transportadora do material inflamável ou terá
de acionar o motorista do caminhão culpado pelo acidente? Pergunta de difícil
resposta. Se o motorista do caminhão que transportava o combustível tiver mínima
culpa que seja pelo acidente, responderá pela indenização pedida pela vítima da
explosão, mas para isso bastaria a velha teoria subjetiva. O problema surge quando
a culpa é exclusiva do motorista do caminhão que bateu contra o transportador da
gasolina. Neste caso, respeitado qualquer entendimento diverso, poder-se-ia
imaginar o enquadramento da hipótese no caso fortuito, que, para o sistema de
responsabilidade civil objetiva, equivale ao fortuito interno, não excludente do dever
indenizatório. Ora, se não se permitir ao menos vislumbrar essa solução, nenhuma
valia teria o ingresso no ordenamento jurídico da responsabilidade civil objetiva
genérica pela atividade de risco para os direitos de outrem, pois, ou se teria que
demonstrar que o motorista do caminhão transportador da gasolina teria incorrido
em culpa, ou, não provada a imprudência ou negligência deste, deixaríamos a vítima
irressarcida, e, então, estaríamos voltando ao início do século XIX.

De uma vez por todas, a nova modalidade de responsabilidade objetiva genérica


tem como única função abarcar exatamente as situações em que o causador do
dano não incorreu em culpa, respondendo pelo simples desenvolver de uma
atividade arriscada, exemplificando-se facilmente a hipótese com o transporte de
gasolina pelas ruas de uma cidade.

Válida, diante deste problema, e corroborando o entendimento dissertativo, a


advertência de Rui Stoco acerca da diminuição da eficácia da excludente do fato de
terceiro:

Como se verifica, o parágrafo único do art. 927 do CC/02 ampliou o campo


da ilicitude e redimensionou o conceito de culpa e, ainda, estabeleceu,
desenganadamente, mesmo que por exceção, verdadeira hipótese de
responsabilidade objetiva, mitigando e restringindo, dessa forma, as
definições de caso fortuito, força maior e do chamado fato de terceiro,
como excludentes da responsabilidade por rompimento do nexo causal,
que têm por tarefa ligar a ação ou omissão voluntária do agente ao
368
resultado lesivo.

368
Tratado de responsabilidade civil, p. 178.
201

A jurisprudência, por sua vez, também acena para que o fato de terceiro deve ser
absolutamente imprevisível e inevitável para se verificar a exclusão da
responsabilidade do agente da atividade arriscada, mas sempre foi vacilante.

Nos casos de arremesso de pedra contra trem ou ônibus e assalto no curso da


viagem, a situação se pôs da seguinte maneira. Inicialmente, a jurisprudência
obrigava o transportador a indenizar as vítimas com base na súmula 187 do
Supremo Tribunal Federal: A responsabilidade contratual do transportador, pelo
acidente com o passageiro, não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem
ação regressiva.

Com o passar do tempo, a jurisprudência, especialmente do Superior Tribunal de


Justiça, iniciou movimento tendente a não responsabilização do transportador neste
tipo de situação, alicerçada no chamado fortuito externo, resultando em julgados
como o relatado pelo Ministro Eduardo Ribeiro: “Responsabilidade civil – Estrada de
ferro – Lesões em passageira, atingida por pedra atirada do exterior da composição.
O fato de terceiro que não exonera de responsabilidade o transportador é aquele em
que o transporte guarda conexidade, inserindo-se nos riscos próprios do
deslocamento. O mesmo não se verifica quando intervenha fato inteiramente
estranho, devendo-se o dano a causa alheia ao transporte em si (Resp 13.351-RJ)”.

E assim foi-se firmando a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, segundo


Cavalieri Filho (2007), fazendo-se a distinção entre o fortuito interno e o externo,
apenas excepcionando-se e impondo-se a indenização ao transportador nos casos
em que seu preposto haja contribuído para o resultado de forma conivente com o
prejuízo, como no caso de passageiro atingido por pedra lançada de fora quando a
porta do trem estava aberta.

A situação se consolidou com a reunião da Segunda Seção de Direito Privado do


Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Resp 435.865-RJ, do qual foi
relator o Ministro Barros Monteiro, com a seguinte ementa:

Responsabilidade civil – Transporte coletivo – Assalto à mão armada –


Força maior – Constitui causa excludente da responsabilidade da empresa
transportadora o fato inteiramente estranho ao transporte em si, como é o
assalto ocorrido no interior do coletivo – Precedentes – Recurso especial
conhecido e provido. Nessas condições, a simples circunstância de serem
comuns hoje, no Brasil, delitos de natureza semelhante à versada nesta
causa não é o bastante para atribuir-se responsabilidade à transportadora,
202

que não deu por causa alguma ao fato lesivo, sabido que a segurança
pública dos cidadãos se encontra afeta às providências do Estado. Em
nosso país, com as tarifas cobradas dos usuários, em que não é incluso o
prêmio relativo ao seguro, que seria a forma escorreita de proteger o
passageiro contra atentados desse tipo, descabido é – a meu ver –
transferir-se o ônus à empresa privada.

Firme nessa posição, valendo-se dos argumentos de que o transportador não tem
condições econômicas de montar um esquema de segurança capaz de evitar
assaltos e outras ocorrências dessa natureza, Sérgio Cavalieri Filho compartilha do
entendimento de que a responsabilidade não pode ser atribuída à empresa
transportadora, no que é acompanhado por diversos Tribunais Estaduais369:

APELAÇÃO CÍVEL – 1) ÔNIBUS – ASSALTO COM ARMA DE FOGO NO


INTERIOR DO VEÍCULO – FORTUITO – AUSÊNCIA DE
RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR – PRECEDENTES – 2)
FATO DOLOSO EXCLUSIVO DE TERCEIRO – FORTUITO EXTERNO –
IMPERTINÊNCIA AO RISCO DO TRANSPORTE – PREVENÇÃO A
CARGO DO ESTADO – RECURSO IMPROVIDO – 1) O transportador só
responde pelos danos resultantes de fatos conexos com o serviço que
presta, de modo que, ocorrendo assalto com arma de fogo no interior de
ônibus, presente o fortuito apto a afastar a responsabilidade do
transportador. 2) Nos dizeres de Cavalieri, o fato exclusivo de terceiro,
mormente quando doloso, caracteriza o fortuito externo, inteiramente
estranho aos riscos do transporte, razão pela qual não cabe ao
transportador transformar o seu veículo em blindado, nem colocar uma
escolta de policiais em cada ônibus para evitar os assaltos, visto que a
prevenção de atos dessa natureza cabe ao estado, inexistindo fundamento
jurídico para transferi-lo ao transportador. Recurso improvido. (TJES – AC
024030113419 – 3ª C.Cív. – Rel. Des. Rômulo Taddei – J. 28.03.2006).

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – RESPONSABILIDADE CIVIL – PASSAGEIRO


– VÍTIMA DE PEDRADA DENTRO DO COLETIVO –
DESCARACTERIZAÇÃO DE ATO DE TERCEIRO – REDUÇÃO DE
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS – IMPOSSIBILIDADE – RECURSO
IMPROVIDO – O arremesso de pedra conta ônibus – normalmente como
fato exclusivo de terceiro, mormente quando doloso, caracterizando o
fortuito externo – seria inteiramente estranho ao risco do transporte se não
fosse a comprovação de que houve conivência dos seus prepostos,
omissão ou qualquer outra forma de participação que caracterize a culpa do
transportador, fato reconhecido pela jurisprudência, que tem, em tal
hipótese, responsabilizado o transportador por assaltos, pedradas e outros
fatos de terceiros ocorridos no curso da viagem. (TJBA – AC 39693-1/2005
– (18780) – Rel. Des. Justino Telles – DJU 07.12.2005).

Ousa-se discordar da estudada opinião, tendo como norte o mais lúcido voto
produzido no Superior Tribunal de Justiça sobre a questão, da lavra do Ministro Ruy
Rosado de Aguiar, no Resp 175.794-SP, nos seguintes termos: Transporte coletivo
– Assalto – Responsabilidade da empresa transportadora. O assalto a cobrador de
ônibus não é fato imprevisível nem alheio ao transporte coletivo em zona de

369
Programa de responsabilidade civil, p. 297/298.
203

freqüentes roubos, razão pela qual não vulnera a lei a decisão que impõe à empresa
a prova da excludente da responsabilidade pela morte de passageiro. Os
assaltantes levaram o dinheiro do cobrador, a evidenciar que o fato aconteceu em
razão da existência do transporte, pois o interesse dos meliantes era o de assaltar o
patrimônio da empresa, e na consecução desse objetivo terminaram por atingir a
infeliz vítima.

Concorde com o julgado retro mencionado está Ragner Limongelli Vianna, para
quem

(...) nos dias atuais, também o roubo é fato interno e ligado à atividade do
transporte oneroso, a não permitir a caracterização de excludente de
obrigação reparatória. A empresa que exerce o transporte com finalidade
social, está tão ciente da realidade do acidente de trânsito como do roubo.
370
São realidades do transporte de passageiro, bagagem ou carga.

Ainda é válido alertar para outros julgados, inclusive do Superior Tribunal de Justiça,
acolhedores dos pedidos indenizatórios quando o infortúnio se verifica em razão de
fato de terceiro:

PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ESPECIAL – AÇÃO INDENIZATÓRIA –


ACIDENTE DE TRÂNSITO ENVOLVENDO ÔNIBUS EM PASSAGEM DE
NÍVEL – PREVISIBILIDADE – FATO DE TERCEIRO NÃO RECONHECIDO
– I - Na linha da jurisprudência deste Tribunal, o fato de terceiro que exclui a
responsabilidade do transportador é aquele imprevisto e inevitável, que
nenhuma relação guarda com a atividade inerente à transportadora. II - Não
afasta a responsabilidade objetiva da ré o fato de terceiro, equiparado a
caso fortuito, que guarda conexidade com a exploração do transporte. No
caso, está dentro da margem de previsibilidade e risco o acidente
provocado por abalroamento entre ônibus e vagão em passagem de nível.
Recurso Especial não conhecido. (STJ – RESP 200200441480 – (427582
MS) – 3ª T. – Rel. Min. Castro Filho – DJU 17.12.2004 – p. 00515).

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR – RECURSO


ESPECIAL – Roubo de talonário de cheques durante transporte. Empresa
terceirizada. Uso indevido dos cheques por terceiros posteriormente.
Inscrição do correntista nos registros de proteção ao crédito.
Responsabilidade do banco. Teoria do risco profissional. Excludentes da
responsabilidade do fornecedor de serviços. Art. 14, § 3º, do CDC. Ônus da
prova. - Segundo a doutrina e a jurisprudência do STJ, o fato de terceiro só
atua como excludente da responsabilidade quando tal fato for inevitável e
imprevisível. − O roubo do talonário de cheques durante o transporte por
empresa contratada pelo banco não constituiu causa excludente da sua
responsabilidade, pois trata-se de caso fortuito interno. − Se o banco envia
talões de cheques para seus clientes, por intermédio de empresa
terceirizada, deve assumir todos os riscos com tal atividade. − O ônus da
prova das excludentes da responsabilidade do fornecedor de serviços,

370
Causas e cláusulas ou convenções de impedimento de formação ou de exclusão da
obrigação de reparação de danos, p. 67.
204

previstas no art. 14, § 3º, do CDC, é do fornecedor, por força do art. 12, §
3º, também do CDC. Recurso Especial provido. (STJ – REsp 200401229836
– (685662 RJ) – 3ª T. – Relª. Min. Nancy Andrighi – DJU 05.12.2005 – p.
00323).

Responsabilidade civil – colisão de veículos – culpa de terceiro –


irrelevância – ação de indenização contra o condutor do veículo que
abalroou outro. Acidente de trânsito. Culpa. Fato de terceiro. Direito de
regresso. O fato isolado de haver óleo na pista não basta para excluir culpa
se desacompanhado da demonstração de que, por sua causa, tornar-se-ia
impossível ao motorista manter o controle do veículo. (RT, 579:216).
Colisão de veículos – dano – reparação – alegação de fato de terceiro – não
acolhimento – ação procedente. Fato de terceiro não afasta a
responsabilidade do causador do dano (RT, 497:113).

O magistrado João Batista Lopes reviveu uma de suas atuações em um processo


judicial no qual o pedestre atingido na calçada pedia indenização contra o condutor
do veículo que teve sua barra de direção rompida, resultando no acidente. Em seu
depoimento pessoal, o autor da ação (a vítima do infortúnio) disse: “Eu sei que o
motorista não teve culpa. Mas se ele não teve, eu tive menos ainda...”. A
mencionada vítima, de maneira coloquial e sucinta, causadora de inveja a qualquer
dissertador sobre o tema, resumiu em poucas palavras toda a teoria do caso fortuito
interno e externo, decretando que o fato de terceiro não afasta o dever indenizatório
do agente causador do dano, senão excepcionalmente.371

Sobre o assunto, Sérgio Cavalieri Filho, para fazer a diferença entre força maior
(fortuito externo) e o fortuito interno sempre se refere à expressão o transporte não
é causa do evento, apenas a sua ocasião.372

Concluindo, para que o fato de terceiro exonere o causador do dano de


responsabilidade deve-se revestir de imprevisibilidade e inevitabilidade,
configurando-se, portanto, num verdadeiro caso fortuito externo, o que deve ser
examinado caso a caso.

371
Perspectivas atuais da responsabilidade civil no direito brasileiro. Revista de Jurisprudência do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, v. 57, p. 20.
372
Programa de responsabilidade civil, passim.
205

15.4 CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA

A culpa exclusiva da vítima exonera o agente do dever indenizatório, pois faz


desaparecer o nexo de causalidade entre a conduta deste e o dano suportado por
aquela.

Como se viu, o Código Civil mexicano, em seu artigo 1.913, expressamente, abre a
possibilidade de o agente supostamente danoso demonstrar que a vítima foi a
verdadeira culpada pelo seu infortúnio, ao contrário do Código Civil brasileiro, no
qual não há referência à culpa exclusiva da vítima, de forma que, num exame
apressado, estaria aberta a possibilidade de se pensar que, mesmo tendo o
lesionado sido culpado exclusivamente pelo infortúnio, no Brasil, teria ele direito à
indenização.

Também como já visto, contudo, não parece ser esse o raciocínio mais adequado.
Isso porque, não obstante a ausência em nossa lei de expressa exclusão da
responsabilidade para o caso de culpa exclusiva da vítima, isso não é óbice para
que o prejuízo não seja a ela inteiramente imputado, à vista da quebra do próprio
nexo causal entre o dano e a conduta do suposto ofensor.

Para Acir Lessa, “não há responsabilidade do agente quando o dano decorre de


uma conduta da própria vítima, o que devemos chamar de fato da vítima, pois o que
causou o acidente foi o comportamento dela mesma”, exemplificando: “... se uma
pessoa mentalmente insana atravessa uma rua de grande movimento, lançando-se
na frente de um veículo sem dar qualquer oportunidade ao condutor de evitar o
acidente, não haverá responsabilidade deste, eis que houve um fato exclusivo da
vítima que ensejou o evento trágico”.373

Leonardo de Faria Beraldo sustenta que “na culpa exclusiva da vítima, não existiu
conduta antijurídica, mas, sim, uma autolesão”.374

Resumindo e concluindo, a culpa exclusiva da vítima afasta a responsabilidade do


agente que desenvolveu a atividade arriscada, conforme reiterada jurisprudência:

373
A responsabilidade civil objetiva genérica, p. 59.
374
A responsabilidade civil no parágrafo único do art. 927 do Código Civil e alguns apontamentos do
direito comparado. Revista Forense, n. 376, p. 137.
206

Acidente ferroviário – Indenização – Morte da vítima – “Surfista” – Verba


indevida. Não há culpa da companhia de transportes ferroviários pela morte
de passageiro, se este, na condição de “surfista”, desafiando o perigo,
posta-se sobre a composição, onde não há qualquer segurança, assumindo,
portanto, os riscos de uma queda normalmente fatal (RT 758:239).
Responsabilidade civil – acidente de trânsito – atropelamento – ajuizamento
contra condutor de veículo que atropela a vítima excessivamente
embriagada cambaleando em pista de rodovia durante a noite – velocidade
excessiva desacolhida, visto ser compatível com pista – culpa do condutor
descaracterizada – improcedência da ação (1º TACSP, Ap. 443.359/90, 6ª
Câm. Esp., j. 31-7-1990, Rel. Augusto Marin).
Responsabilidade civil morte causada por cerca eletrificada – meio de
defesa da propriedade camuflado que não se situa na esfera de licitude, eis
que caracterizador de abuso de direito, evidente a desproporção entre o
valor do bem protegido e do que foi sacrificado – Hipótese, porém, de culpa
exclusiva da vítima que, sabedora da existência do mecanismo de defesa,
assumiu conscientemente o risco de neutralizá-lo para consumar furto – Ato
ilícito descaracterizado – Culpa do proprietário afastado – Indenização não
devida (TJMG, RT, 632:191).
Responsabilidade civil – Atropelamento – Vítima de idade avançada e de
constituição física débil – Falta de cautela para atravessar a rua – Fato que
não elide a responsabilidade – Velocidade excessiva de motocicleta dirigida
por menor – Culpa concorrente, no entanto, reconhecida – Redução
proporcional do valor indenizatório (1º TACSP, RT, 609:112).
Responsabilidade civil – Atropelamento – Culpa exclusiva da vítima, que
assumiu completamente o risco da travessia da rua, sem tomar qualquer
cautela, fazendo-o fora da faixa de pedestre, próximo a cruzamento onde se
encontra localizado um farol – Existência de placas, nas proximidades do
evento, indicativas de que a travessia de pedestres só pode ser feita pela
faixa apropriada – Pista da avenida separada por canteiro central, onde se
encontram cravados piquetes utilizados para o suporte decorrentes (duas)
obstaculizando a travessia de pedestres, fora da faixa apropriada, existente
junto ao semáforo – Improcedência da ação (1º TACSP, Ap. 321.812, 7ª
Câm., j. 27-11-1984, Rel. Regis de Oliveira).

Por um último julgado, toma-se conhecimento de uma vítima que se deitou nos
trilhos de um trem, tendo a família, após, com todo o respeito pelo seu sofrimento
em virtude da perda do ente querido, pleiteado absurda indenização material e
moral:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS


E MORAIS – ACIDENTE FERROVIÁRIO – RESPONSABILIDADE
OBJETIVA – ATROPELAMENTO – VÍTIMA DEITADA SOBRE OS
TRILHOS – LOCAL DESABITADO E NÃO DESTINADO À PASSAGEM DE
NÍVEL OU DE PEDESTRES – INEXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO DE
CERCAR A LINHA FÉRREA – VELOCIDADE DA LOCOMOTIVA
COMPATÍVEL COM O LOCAL – CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. 1. Os
apelados ajuizaram a presente ação, em 27 de julho de 2001, objetivando
indenização por danos materiais e morais, em virtude do atropelamento de
seu filho por um trem de cargas de propriedade da empresa apelante,
ocorrido em 03 de abril de 1994, o que o levou à morte. Afirmaram na
exordial que o maquinista, muito embora tenha avistado uma pessoa sobre
os trilhos, não conseguiu evitar o acidente, pois estava desenvolvendo
velocidade incompatível com o local. 2. Como é cediço, a responsabilidade
207

das empresas de estrada de ferro é classificada pela doutrina e pela


jurisprudência como objetiva, corroborada pela teoria do risco. Acerca da
matéria, leciona Sérgio Cavalieri Filho que risco é perigo, é probabilidade de
dano, importando dizer que aquele que exerce uma atividade perigosa deve
assumir os riscos e reparar o dano dela decorrente. O aludido autor resume
a doutrina do risco da seguinte forma: "todo prejuízo deve ser atribuído ao
seu autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não
agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade,
dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é
aquele que materialmente causou o dano" (in Programa de
responsabilidade civil, 2ª edição, Malheiros, 1998, página 143). 3. Assim, a
fim de atenuar ou eximir essa responsabilidade, cabe à apelante provar ter
tomado todas as medidas preventivas cabíveis e idôneas para evitar o
perigo ou a culpa exclusiva da vítima. Registra-se que o juízo de origem
concluiu pela culpa da empresa requerida, excluindo a tese de culpa
exclusiva da vítima, em razão daquela não haver colocado cercas ou outro
tipo de proteção na linha férrea, a fim de impedir que pedestres fossem
expostos ao perigo. 4. No entanto, o fato de a vítima encontrar-se, à noite e
em local desabitado, deitada sobre os trilhos, caracteriza, por si só,
inquestionavelmente, sua culpa concorrente. Diante dessas considerações,
deve-se perquirir acerca da responsabilidade da empresa apelante pela não
colocação de cercas ou muros divisórios visando evitar acidentes tais como
esse, pois se verificada tal obrigação, conclui-se pela culpa concorrente, do
contrário, pela culpa exclusiva da vítima. A culpa exclusiva da vítima, como
sabido, faz com que o causador do dano seja mero instrumento do acidente,
não havendo que se falar em relação causa e efeito entre o ato e o prejuízo
experimentado pela vítima (nesse caso, o falecimento desta). 5. Com efeito,
não resta dúvida de que, se fosse local urbano, a empresa teria a obrigação
de cercar e fiscalizar a área destinada ao trânsito das locomotivas. Da
mesma forma, se o local fosse de passagem de nível ou de pedestre
haveria o dever de sinalização e de desenvolvimento de velocidade
compatível para o local. O regulamento das estradas de ferro, Decreto nº
2.089, de 18 de fevereiro de 1963, estabelece normas que impõem às
ferrovias a obrigação de dotar as passagens de nível de sinalização
adequada, de cancela e de guardas, visando à segurança dos pedestres e
dos veículos, em local de trânsito habitual. 6. Ocorre que, no caso dos
autos, o local do acidente não é urbano ou mesmo populoso e sequer é
destinado à passagem de nível ou de pedestre. Segundo o depoimento do
maquinista da locomotiva, a vítima, que estava deitada sobre a linha do
trem por volta das 18:30 horas, tentou se mover e levantar quando avistou o
trem, mas não conseguiu. O motorista relata que estava com os faróis
acessos, que buzinou e acionou a frenagem máxima, mas o trem não parou
a tempo de evitar o acidente. O maquinista esclareceu que desenvolvia a
velocidade de 55 km/h, e que o local − que era sinuoso e no início de um
aclive − era exclusivo para linha de trem. Acentuou, ainda, que as
locomotivas só conseguem empreender uma velocidade de até 62 km/h, em
virtude de um sistema de segurança que bloqueia o desenrolar de maior
velocidade com o acionamento dos freios. No mesmo sentido, o depoimento
do ferroviário de folhas 231, que afirmou que o local não tem passagem de
nível, de pedestres ou de qualquer animal, havendo vegetação de um lado,
e uma barreira de aproximadamente 800 (oitocentos) metros de outro.
Importante observar que a vítima foi decapitada e teve a perna decepada −
pois estava literalmente deitada sobre os trilhos (fotografias acostadas a
folhas 94). Portanto, diante desses fatos, vislumbra-se a hipótese de culpa
exclusiva da vítima pelo evento que resultou na sua morte. Recurso provido.
(TJES – AC 022030004620 – 2ª C. Cív. – Rel. Des. Álvaro Manoel Rosindo
Bourguignon – J. 05.09.2006).
208

É causa, portanto, de exclusão da responsabilidade do “agente” (entre aspas


porque, na verdade, ele não é agente de coisa alguma) o fato exclusivo da vítima
que tenha dado causa ao seu próprio prejuízo.

Vale dizer acerca do consentimento da vítima na produção do resultado danoso em


seu desfavor. Cláudio Luiz Bueno de Godoy lembra que, apenas excepcionalmente,
se pode pensar em consentimento esclarecido da vítima acerca do prejuízo; alguém
que, dele totalmente ciente, delibera assumir para si o risco da ocorrência lesiva.
Mas não é só. Acrescenta que a voluntária exposição ao risco não servirá de
eximente quando ela, a exposição, seja necessariamente pertinente, nas suas
palavras, à atividade desenvolvida, para tanto valendo-se do exemplo do empregado
em cuja atuação se envolve, forçosamente, com o desempenho de uma atividade
empresarial indutiva de especial risco, tanto quanto a atividade de transporte em
relação ao passageiro, que a ela se integra, por natureza, ou como na situação de
espectadores do evento ou espetáculo perigoso que se posicionam juntamente com
quem o protagoniza.375

Para estes casos, Pietro Trimarchi, propõe, então, que é de se excluir a assunção do
risco dos expectadores, sendo do agente dos danos o dever de indenizar os
prejuízos resultantes de sua atividade.376

Ressalva, todavia, Carlos A. Ghersi que a participação de um espectador em um


evento proibido também compromete sua situação, não podendo se valer do pedido
indenizatório no caso de acidente que lhe prejudique377.

Por fim, válida a ponderação de Ghersi, para quem entre o espectador e o


organizador se celebra um contrato inominado de “espetáculo público”. Para ele,
esta convenção leva implicitamente uma cláusula de incolumidade pela qual o
organizador assume um dever de seguridade. Em consequência, aduz, responde
por todos os danos ocasionados aos espectadores em virtude da violação deste
dever. Assim, o organizador não pode invocar que se trata de atos de terceiros, caso

375
A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 172.
376
Rischio e responsabilitá oggettiva, p. 345.
377
Responsabilidad Civil. ITURRASPE, Jorge Mosset (Org.). Buenos Aires: Hammurabi, 1997, p.
474.
209

ocorra um tumulto causador de danos, pois os efeitos prejudiciais não são


imprevisíveis nem inevitáveis.378

Nesse sentido, Carlos A. Ghersi dá como exemplos os prejuízos ocasionados nas


corridas de carros e de cavalos379.

Por isso, segundo o mesmo Ghersi, a Lei 19.628 da Argentina determina que deve
haver a contratação de seguro obrigatório para a realização de eventos desportivos,
sendo um típico seguro de pessoas, cobrindo os risco por mortes, incapacidade total
ou parcial, gastos médicos etc380.

Houvesse, no Brasil, semelhante disposição, menos dificuldades teriam para serem


ressarcidas as vítimas das tragédias ocorridas por ocasião da queda da
arquibancada do estádio do time de futebol do Bahia e do alambrado do estádio do
Vasco da Gama.

15.5 A TOMADA DE PRECAUÇÕES PARA EVITAR O ACIDENTE

A questão é saber se o agente pode exonerar-se da responsabilidade pelo


desenvolvimento de atividade arriscada alegando que tomou todas as precauções
para que o dano não adviesse de sua conduta.

Como já referido, o Código Civil português, no artigo 493, item II, e o Código Civil
italiano, no art. 2.050, abrem a possibilidade para que o agente demonstre que
tomou todas as cautelas recomendáveis para que o infortúnio não decorresse de
sua atividade arriscada, hipótese em que se livra da indenização.

Cabe, agora, examinar se, no direito brasileiro, é conferida ao agente causador do


dano esta mesma oportunidade.

378
Responsabilidad Civil. ITURRASPE, Jorge Mosset (Org.). Buenos Aires: Hammurabi, 1997, p.
481-482.
379
Responsabilidad Civil. ITURRASPE, Jorge Mosset (Org.). Buenos Aires: Hammurabi, 1997. p.
484-485.
380
Responsabilidad Civil. ITURRASPE, Jorge Mosset (Org.). Buenos Aires: Hammurabi, 1997. p.
487.
210

O fato é que, ao deixar de prever expressamente, negou o Código Civil brasileiro ao


autor do dano a possibilidade de comprovar que empregou as providências
necessárias para evitar o infortúnio.

Mesmo porque, valendo-se da interpretação histórica, importa dizer que a previsão


para que o agente pudesse eximir-se de sua responsabilidade objetiva provando a
tomada de cautelas para evitar o dano constava no anteprojeto do Código Civil,
sendo suprimida no trâmite legislativo, revelando-se implicitamente a vontade do
legislador no sentido oposto. A redação do dispositivo no anteprojeto era a seguinte,
in verbis:

Todavia, haverá a obrigação de reparar o dano, independentemente de


culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, grande risco
para os direitos de outrem, salvo se comprovado o emprego de medidas
preventivas tecnicamente adequadas.

Resultando que Silvio Rodrigues advogasse que “o texto é justificadamente tímido,


pois a responsabilidade só emergirá se não houver o agente causador do dano
tomado medidas tecnicamente adequadas para preveni-lo”.381

Note-se, contudo, que a obra do professor Silvio Rodrigues foi escrita quando ainda
em trâmite o projeto de Código Civil, que, como visto, contemplava a oportunidade
para que o agente causador do dano demonstrasse que tinha se acautelado para
que o dano não ocorresse, mesmo praticando conduta arriscada.

A mens legis, implícita que seja, é clara: não cabe a demonstração de tomada de
providências acautelatórias por parte do agente danoso, devendo o magistrado
indeferir a produção de prova nesse sentido, por desnecessária e inútil. Essa é a
conclusão quanto ao tema.

381
Direito civil, p. 165.
211

15.6 A PRÁTICA DE CONDUTA LÍCITA

Ressalte-se, mais uma vez, a dualidade do sistema de responsabilidade civil pelas


teorias subjetiva e objetiva. A primeira está prevista no caput do art. 927 do Código
Civil, que faz referência expressa ao ato ilícito (art. 186). A segunda está prevista no
parágrafo único do art. 927 do Código Civil, não fazendo qualquer menção ao ato
ilícito.

Dessume-se, então, que, no âmbito legal, a única teoria que requer a prática de um
ato ilícito para que se fale em responsabilidade é a subjetiva, não importando a
licitude ou ilicitude da conduta para a teoria objetiva.

Na doutrina, parece estreme de qualquer dúvida que a licitude da conduta do


causador do dano não o exonera da responsabilidade decorrente do exercício de
atividade arriscada.

Segundo Rui Stoco:

Em algumas hipóteses, em que se admite a reparação pela prática de atos


lícitos, não se indaga, também, se o ato é jurídico ou injurídico, ou seja,
contrário ou conforme ao direito, basta, portanto uma ação voluntária, um
dano e o nexo de causalidade que os ligue. Tome-se como exemplo a
hipótese do parágrafo único do art. 927 do CC, que, ademais de
responsabilizar independentemente de culpa, não impõe que o ato seja
ilícito, bastando que a atividade lícita desenvolvida possa implicar, por sua
natureza, riscos para os direitos de outrem e dela, eventualmente, se
382
origine um dano.

Para Carlos Roberto Gonçalves:

Via de regra, a obrigação de indenizar assenta-se na prática de um fato


ilícito. É o caso, por exemplo, do motorista que tem de pagar as despesas
médico-hospitalares e os lucros cessantes da vítima que atropelou, por ter
agido de forma imprudente, praticando um ato ilícito. Outras vezes, porém,
essa obrigação pode decorrer, como vimos, do exercício de uma atividade
perigosa. O dono da máquina que, em atividade, tenha causado dano a
alguém (acidentes de trabalho, p. ex.) responde pela indenização não
porque tenha cometido propriamente um ato ilícito ao utilizá-la, mas por ser
quem, utilizando-a em seu proveito, suporta o risco (princípio em que se
383
funda a responsabilidade objetiva).

382
Tratado de responsabilidade civil, p. 157.
383
Responsabilidade civil, p. 30-31.
212

Carlos Alberto Bittar afirma que “cuida-se, simplesmente, do emprego ou


acionamento de máquinas ou aparatos carregados de perigo, em atividades lícitas,
mas perigosas”.384

Enneccerus, Kipp e Wolff, comentando o BGB, acerca da responsabilidade civil pela


doutrina do risco no direito alemão, propõem que:

Es acto ilícito o delito, como ya se expuso en la parte general (§ 195 II), la


conducta culposa contraria a derecho, de la cual el ordenamiento jurídico
deriva, como consecuencia sustantiva, un deber de indemnizar. Pero, como
también se expuso (§ 199), igualmente brotan deberes de indemnización
con sustantividad propia de un gran número de actos sin culpa, que
subdividimos en cinco categorías inspiradas en las distintas ideas
fundamentales en que se basa la responsabilidad (tomo I § 199 I-IV). Cuatro
de estas categorías (I, III, IV, V), apenas tienen afinidad alguna con la
responsabilidad por delito. En cambio, la responsabilidad derivada de actos
conformes a derecho, pero especialmente peligrosos (II) y que
abreviadamente designamos bajo el nombre de responsabilidad por riesgo,
si bien esencialmente distinta de la responsabilidad por delito, ya que no
presupone ni una conducta objetivamente contraria a derecho, ni una culpa,
revela, sin embargo, ciertos parecidos en otros aspectos, que conducen a
una aplicación, ya más extensa, ya más limitada, de algunas de las
385
disposiciones relativas a los delitos.

Larenz expressa que o ordenamento jurídico impõe ao sujeito o dever de cumprir


uma prestação frente a outro pelos mais diversos motivos. E, enumerando não
exaustivamente tais motivos, o jurista alemão aponta a responsabilidade por risco,
afirmando que se atribui esta responsabilidade ao sujeito por aqueles prejuízos que
se causam por um dano em si mesmo não ilícito, mas de que o sujeito, como
possuidor da empresa ou da coisa prejudicial, há de suportar a responsabilidade
social, ainda que não concorra sua responsabilidade pessoal386.

Atente-se apenas para o raciocínio de Sérgio Cavalieri Filho, para quem mesmo nos
casos de responsabilidade objetiva há sempre uma transgressão a algum dever
jurídico preexistente, como o de resguardo da incolumidade física alheia ou o dever
de segurança, que se contrapõe ao risco.387

Ainda sobre o tema, Cláudio Luiz Bueno de Godoy, para quem: “De todo o modo, e
quando menos, forçoso reconhecer, como acentua Eduardo Zannoni, que a noção

384
Responsabilidade civil, p. 33.
385
Tratado de derecho civil, p. 615-616.
386
Derecho de Obligaciones, p. 61-62.
387
Programa de responsabilidade civil, p. 08 e 131.
213

de ilicitude se amplia e se desprende da necessária vinculação à culpa do agente”.


Concluindo que “conforme o fator de imputação de responsabilidade porque opte o
sistema, dão-se hipóteses em que a ilicitude ou antijuridicidade se evidenciam na
concreta produção de danos em que se converta o risco de uma certa atividade, em
si abstratamente lícita e legal”.388

Por fim, Cláudia Lima Marques, propõe que a teoria do risco concentra-se na
atividade perigosa, mas lícita, não deixando qualquer dúvida acerca da subsistência
do dever reparatório mesmo no caso de exercício de atividade conforme ao
direito.389

Como visto, nesse particular, não há qualquer espaço para se sustentar o contrário,
não aproveitando a licitude da conduta ao agente danoso, que arcará com o dever
indenizatório de qualquer maneira, bastando que tenha criado um risco com sua
atividade.

388
ZANONNI, Eduardo A. El daño em responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea, 1993, p. 4-8,
apud GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A responsabilidade civil pelo risco da atividade, p. 36.
389
Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 1216.
214

CONCLUSÃO

A tarefa – confessa-se – foi mais árdua do que se esperava, consequência da


imensa gama de atividades que, em meio ao estudo, se apresentavam como aptas a
serem disciplinadas pela responsabilidade civil objetiva genérica fundada na
atividade de risco.

Em duas situações veiculadas pela mídia durante a produção da dissertação,


verificaram-se presentes os elementos necessários e suficientes à subsunção dos
fatos à cláusula geral de responsabilidade civil objetiva em estudo.

Numa delas, o frentista de um posto de gasolina foi abrir o tanque de um caminhão


que transportava gasolina e uma explosão o matou. Observando-se a filmagem feita
por uma câmera colocada no estabelecimento, verificou-se que, possivelmente, a
explosão se deu porque o frentista havia atendido a uma ligação feita para seu
telefone celular. O dono do posto, durante a entrevista, informou que seu funcionário
passou por um treinamento específico para o exercício da profissão e que estava
ciente de que o aparelho de telefonia celular poderia ocasionar uma explosão. Não
de forma jurídica, o empresário levantou, logo de início, sem que nenhum advogado
o tivesse orientado, ao que se sabe, a tese de culpa exclusiva da vítima.

Numa outra situação, os jornais noticiaram a queda de um caminhão transportador


de cimento – daqueles que vão revirando o produto para que ele não endureça (tipo
betoneira) – em cima de uma casa, com destruição total da habitação. Também sem
que nenhuma indenização tivesse ainda sido pedida, o motorista do caminhão
argumentou imediatamente ao repórter que um buraco na rua determinou a queda
do veículo na casa atingida.

Ocorre que ambas as atividades, como se viu, proporcionam risco para os direitos
alheios, resultando, conseguintemente, que a força das causas de exclusão de
responsabilidade seja reduzida e mesmo atenuada a eficácia de cada uma delas,
devendo-se aguardar o julgamento final dos processos que certamente resultarão na
justiça para que se verifique como se distribuirá o prejuízo experimentado pelas
vítimas.
215

E essa gama de situações eventualmente subsumíveis à cláusula geral impositiva


do dever indenizatório determinou a rendição deste dissertador ao estudo do tema
mais palpitante que se teve contato desde o ingresso na faculdade de direito: a
responsabilidade civil.

Examinada, inicialmente, à luz de sua vertiginosa evolução histórica, constatou-se


que a responsabilidade civil representou, em outros termos de formulação, uma volta
ao passado, pois a ideia de reparação civil baseada na culpa, como um dos ditames
maiores do direito francês do período napoleônico, cedeu espaço à doutrina do
risco, impulsionadora da teoria objetiva, com a imposição do dever de indenizar
independentemente de culpa, pelos idos da segunda metade do século XIX, tendo
como seus motivos propulsores o maquinismo originado pela Revolução Industrial e
a dificuldade da vítima na comprovação da culpa pelo infortúnio.

No Brasil, a doutrina do risco foi ferrenhamente defendida por Alvino Lima e depois
por Aguiar Dias, resultando na positivação da teoria objetiva a partir do Decreto nº
2.681, de 7 de dezembro de 1912, regulando a responsabilidade civil das estradas
de ferro, com imposição do dever indenizatório sem culpa para essas entidades por
todos os danos que a exploração de suas linhas causar aos proprietários marginais
(art. 26), e depois em vários outros diplomas esparsos, chegando-se, finalmente, à
instituição da responsabilização civil objetiva genérica em virtude da atividade
arriscada desenvolvida pelo autor do dano, já no século XXI, positivada na segunda
parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002, núcleo deste estudo
dissertativo, representando uma abertura no sistema indenizatório até então vigente,
que se mostrava fechado.

Alvino Lima apresentou as críticas e os críticos com relação à doutrina do risco e à


responsabilidade objetiva, rebatendo-as uma a uma com a perfeição que lhe é
peculiar, não deixando qualquer dúvida acerca da benignidade que o novo sistema
representou à busca da verdadeira justiça.

Foram examinadas as vertentes doutrinárias que se propuseram a justificar a


responsabilidade civil objetiva genérica pelo risco da atividade como fórmula posta
na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, resultado também
de posturas normativas, legais e constitucionais, como, fundamentalmente, o
216

princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição


Federal).

Destacou-se que alguns sistemas de responsabilidade civil têm seus regimes


jurídicos próprios, afastando-se, portanto, a aplicação da reparação objetiva
genérica pela atividade de risco. Nesse sentido, a teoria subjetiva requer a
comprovação da culpa efetiva do agente causador do dano. Quando o fato concreto
se subsumir a um dispositivo legal impositivo do dever indenizatório sem culpa,
estar-se-á diante da responsabilidade objetiva típica ou fechada, como na
responsabilidade do Estado (§ 6º do art. 37 da Constituição Federal). Nas relações
de consumo, tem-se a responsabilidade civil objetiva pelo fato e pelo vício do
produto ou do serviço, prevista nos artigos 12 a 25 da Lei nº 8.078/90. O próprio
Código Civil, em diversas passagens, prevê a responsabilidade objetiva para certos
e determinados casos, como, por exemplo, a do pai pelo dano causado pelo filho
menor e a do patrão pelo ato do empregado (artigo 932, incisos I e III). E, por fim, se
o dano resultar de ato de vontade das partes e de posterior inadimplemento de um
dever atribuído a qualquer uma delas, estaremos diante do sistema de
responsabilidade civil contratual. Em suma, ao se deparar com qualquer das
hipóteses acima exemplificadas, a indenização não será apurada com lastro na
responsabilidade civil objetiva genérica, mas sim com fundamento num sistema
próprio de reparação.

A abertura do sistema de responsabilidade civil objetiva foi amplamente acolhida


pela doutrina, em nome de uma mais eficaz distribuição de justiça, depositando sua
confiança não só na atividade hermenêutica do juiz de primeira instância
considerado isoladamente, mas no Poder Judiciário como um todo, conquanto
poucos juristas de escol tenham se insurgido ao argumento de ofensa ao princípio
da segurança jurídica.

Atentou-se para a parcial adoção internacional da responsabilidade civil objetiva


genérica, com algumas nuanças em relação à disciplina brasileira, concluindo-se,
quase que na totalidade, pela maior proteção conferida pelo ordenamento civil
brasileiro à vítima em relação aos vários ordenamentos alienígenas examinados.
217

O risco-criado, em detrimento do risco-proveito, foi apontado como o influenciador


da responsabilização objetiva pela atividade arriscada, posicionamento que
posteriormente dirigiu a decisão sobre se dada conduta poderia ou não ser tipificada
na segunda parte do parágrafo único do artigo 927 do Código Civil.

Examinou-se o significado da comprida expressão que consagrou a


responsabilidade civil objetiva genérica pela teoria do risco, prevista na segunda
parte do artigo 927 do Código Civil de 2002, dividindo a longa expressão em três
partes: 1ª) quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano; 2ª)
implicar, por sua natureza; 3ª) risco para os direitos de outrem.

Após, foi elaborado um longo conceito acerca da responsabilidade civil objetiva


genérica pela atividade de risco: é a sanção civil consistente na reparação do
prejuízo causado à vítima, imposta ao agente danoso, sem que se cogite de
sua culpa, unicamente decorrente de lei, não só pelo fornecimento de serviços
e produtos, praticado organizada e profissionalmente com finalidade de lucro,
mas também em virtude da realização de condutas que não visem ao
enriquecimento, havendo necessidade de mínima ligação entre a conduta
danosa e as práticas rotineiras de determinada pessoa física ou jurídica,
regular ou irregular, em virtude da própria atividade desenvolvida pelo agente
ou dos meios pelos quais ela é executada, diante da previsibilidade e
efetivação do dano.

Posteriormente, foi constatado que algumas atividades do dia-a-dia são


eminentemente perigosas, como a fabricação, a guarda, o manuseio e o transporte
de explosivos e de combustíveis, ensejando, sem maiores indagações, a aplicação
da responsabilidade objetiva genérica pela atividade arriscada.

Outras tantas, contudo, que se encontram numa zona obscura, foram examinadas
para que se pudesse afirmar se dariam ou não ensejo à responsabilização civil pela
atividade de risco do agente causador do dano, como as práticas automobilísticas,
consideradas não arriscadas. Ao contrário, o transporte de cargas pesadas foi tido
como conduta de risco, assim como a atividade bancária em suas mais variadas
vertentes, bem como o serviço oferecido pelas entidades empresárias operadoras
de cartão de crédito, as contratações eletrônicas, a guarda e o transporte de valores,
218

o serviço de escolta e segurança, a construção civil, os cadastros de proteção ao


crédito, o empréstimo de veículos a terceiros, o mister das empresas de
comunicação, as instalações nucleares e radiotivas e as práticas desportivas, todas
tidas como perigosas. Chegou-se, então, ao exame das negociações no mercado de
capitais e da fabricação e do fornecimento de cigarros, sem que se pudesse concluir
com firmeza sobre a subsunção destas à responsabilidade civil objetiva genérica
pela atividade de risco. Por fim, foi negada a imputação do dever indenizatório ao
empregador em virtude do acidente com o empregado, apurando-se a
responsabilidade neste caso com base na culpa, nos termos do artigo 7º, inciso
XXVIII, da Constituição Federal.

Ainda muitas outras atividades foram oferecidas pela doutrina e pela imaginação
para exame, como os parques aquáticos e de diversões em geral, a locação de
veículos, o sistema de cobrança de crédito das lojas de departamentos e os eventos
destinados às multidões, sem que se pudesse, mais uma vez, concluir
decisivamente se todas elas seriam ou não influenciadas pela doutrina do risco,
tratando-se de temas por demais intrincados para posicionamento firme em um
simples item de dissertação de mestrado.

A seguir, hipóteses foram tratadas como aptas ou não a excluir a responsabilidade


daquele que faz de sua rotina uma atividade arriscada para os direitos de outrem,
como o estado de necessidade, a legítima defesa e o exercício regular de um direito,
estes com menos relevância para o estudo. Já o caso fortuito e de força maior foram
examinados à luz da moderna teoria do fortuito interno e do fortuito externo, o
primeiro não excluindo o dever indenizatório e o segundo sim, no que toca à teoria
objetiva. O fato de terceiro foi trazido sob as mesmas bases da análise do fortuito
interno e do externo, com a proclamação dos mesmos resultados do item anterior. A
culpa exclusiva da vítima, em regra quase que absoluta, exonera o suposto
causador do dano do dever reparatório, à vista da quebra do nexo causal. Concluiu-
se que haverá a obrigação de indenizar mesmo que o agente tenha tomado as
devidas precauções para que sua atividade não implicasse prejuízo para os direitos
de outrem. Por fim, verificou-se que a licitude da conduta em nada aproveita ao
agente causador do dano que se conduziu de forma arriscada, devendo responder
pelo prejuízo.
219

Após o exame de tantas e tantas atividades humanas perigosas, pôde-se verificar,


então, que, a cada dia, aumenta o leque de situações que dão ensejo à
responsabilização civil objetiva genérica pela atividade de risco, na mesma medida
em que o viver se torna mais arriscado.

Ao que tudo indica, o fim da evolução da responsabilidade civil parece não estar
próximo, bastando notar, como já referido, que a reparação civil decorrente da
atividade nuclear ultrapassa os limites da própria responsabilidade objetiva
decorrente da atividade arriscada, vislumbrando-se já a imposição do dever
indenizatório sem cogitação sequer dos elementos conduta e nexo causal, bastando
a demonstração do dano causado para a vítima.

Até onde vai essa evolução não se sabe, sendo causa única dessa ignorância o fato
de não se poder imaginar a respeito dos rumos que tomarão as atividades humanas
no milênio que se inicia.

O que se sabe, sim, é que a ciência jurídica estará sempre em eterna renovação,
adaptando-se às necessidades da vida em sociedade, constituindo-se num dos
instrumentos mais eficazes que o homem produziu para promover a boa convivência
das pessoas, podendo cada um dos juristas de todo o mundo se orgulhar de sua
contribuição para o bom caminhar da humanidade.
220

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