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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

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PLAUTO E TERÊNCIO

A COMÉDIA LATINA
ANFITRIÃO • AULULÁRIA
OS CATIVOS • O GORGULHO
OS ADELFOS • O EUNUCO

Prefácio, seleção, tradução e notas de


AGOSTINHO DA SILVA

EDIÇÕES DE OURO

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Direitos Reservados

HISTÓRIA ou ESTÓRIA?

As Edições de Ouro e o Coquetel grafam a palavra história e não estória


por julgar a primeira forma mais correta, conforme dicionários mais categori-
zados, que julgam a segunda forma imitação do inglês story, sem correspon-
dente com raízes em nossa língua.

EDITORA TECNOPRINT LTDA.


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A COMÉDIA LATINA

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ÍNDICE

Agostinho da Silva — A Comédia Latina. 9


Nota Sobre a Tradução ............................. 31
Nota Bibliográfica ..................................... 33

PLAUTO

Nota Biográfica........................................... 35
Anfitrião........................................................ 37
Aululária....................................................... 121
Os Cativos ..................................................... 179
O Gorgulho.................................................... 245

TERÊNCIO

Nota Biográfica........................................... 301


Os Adelfos...................................................... 303
O Eunuco ...................................................... 375

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A COMÉDIA LATINA
Agostinho da Silva

Como se sabe, os gregos possuíam, com muitos


outros povos da Antigüidade, a tradição de que em

tempos remotos
de perfeita tinham
inocência os homens
e numa vivido
felicidade só num estado
comparável
à dos deuses; tratavam-se todos como irmãos, alimenta-
vam-se de frutos das árvores. Desconheciam as
disputas e a guerra; havia entre eles e a natureza uma
completa comunhão, a tal ponto que nem mesmo dis-
tinguiam entre si próprios e o mundo que os rodeava;
esepoderiam ter prosseguido
não se tivesse dado uma nesta existência
corrupção beatífica
dos costumes,
se da Idade de Ouro se não tivesse passado para a
Idade de Ferro, a atual, em que todas as aberrações se
tornaram normais na humanidade.
Acreditou-se durante muito tempo que essa idade
de bem-aventurança tinha sido uma pura invenção
dos
ma; gregos, semapenas
tudo seria que correspondesse a realidade
uma forma poética algu
de manifes-
tar o seu desgosto dos costumes do tempo presente e
as suas aspirações a uma vida de entendimento e de
paz.
À medida, porém, que se foi estudando a natureza
dos mitos e encontrando-os sempre relacionados quer
com fenômenos
históricos, surgiunaturais,
a suspeitaquer comtivesse
de que acontecimentos
realmente
existido uma idade perfeita, um estádio de humanida-
de livre de todas as misérias em que posteriormente
tinham caído os homens. A questão, no entanto, era
ainda de inclinação pessoal e de fé; os que propen-
diam a crer a natureza humana egoísta, batalhadora
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e agressiva arrumavam as suspeitas dos etnólogos,


juntamente com a poesia teogônica dos gregos, no
compartimento destinado às fantasias sem motivo e
sem base. Não houvera tal Idade de Ouro e os homens
tinhamna
cáveis sido sempre
defesa o que
da sua a vida ose dos
existência mostrara: impla
seus bens e só
capazes de se conter por um corpo de leis que, aten
dendo ao bem comum, reprimisse quanto possível os
apetites e os impulsos individuais.
Mas, pelos fins do século XIX, e confirmando-se
principalmente com os trabalhos dos etnógrafos e dos
viajantes dos princípios do século XX, surgiu a desco
berta de pequenas populações, na África, na Oceania,
na América e na Ásia, que viviam uma existência to
talmente diversa da que é habitual aos homens e cor
respondente ponto por ponto à descrição que tinham
feito os gregos da humanidade dos primeiros tempos.
Os mais primitivos destes povos, os que se apre
sentavam com mais puras características, sem interfe
rência alguma de povos em mais adiantado grau de
civilização, viviam dos frutos que colhiam nas flores
tas, às vezes de caça e pesca, eram extremamente ale
gres, fidelíssimos às instituições monogâmicas, dando
perfeita igualdade de tratamento às mulheres, incapa
zes de castigar as crianças, e sem nenhuma espécie de
propriedade, sem organização social e sem nenhum
vestígio de religião organizada.
Agora já não havia nem tradição de gregos nem
simples fantasia de poetas; existiam homens que vi
viam ainda em plena idade de ouro; e era fora de dú
vida que para se passar dessa idade de ouro, desse
paraíso, para o que o mundo fora depois, tinha sido
necessária uma revolução radical, uma quase trans
formação de natureza, uma queda, para usarmos de
uma terminologia que muitos julgam ainda não histó
rica.
Não se via, no entanto, como se tinha dado a mu
dança, nem existe ainda hoje nenhuma hipótese per
feitamente satisfatória; crê-se, porém, que deve entrar

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em linha de conta um fator biológico importantíssimo,


o da fome. A certa altura, tendo rareado os frutos da
floresta, o homem ter-se-ia voltado para a alimentação
animal fornecida pela caça e pela pesca, e para uma
forma primitiva
uma forma de agricultura,
primitiva a que
de pecuária. Emselugar
teria do
seguido
con
tato perfeito com a natureza, só possível com uma
alimentação frugívora, o homem entrava agora em
guerra com a natureza, no que respeita às atividades
de caça e pesca.
Por outro lado, a agricultura conduzia à escravi-
zação da mulher, a pecuária à escravização dos ani
mais. E édevemos
des, que então que aparecem as primeiras
cuidadosamente distinguir socieda
do sim
ples agrupamento humano, as primeiras religiões or
ganizadas, o sentido da posse; é então que aparece a
educação das crianças, a pedagogia de que tanto nos
orgulhamos, e que não é mais do que a submissão e
extinção gradual dos instintos e das espontaneidades
criadoras que não podem ter cabimento na vida so
cial; surge tudo o que depois se tomou por natureza
humana e que não é senão o resultado da pressão e
da deformação a que, por necessidade de defender a
vida, foi submetido o homem.
Não nos interessa neste momento saber se haverá
redenção para tal queda e se algum dia se poderá vol
tar à Idade de Ouro, com o fim da guerra à natureza
tem sido a existência histórica da humanidade,
com o fim da escravidão dos homens e da submissão
de mulheres e de crianças; o que importa fixar agora,
para que possamos compreender a essência do teatro,
tal como ele se nos apresenta surgindo na Grécia, é
que houve uma separação entre a natureza humana e
o comportamento humano, que se trocou a esponta-
neidade pela regra, a alegria pelo sacrifício, a natu-
reza pela sociedade; se não receássemos ir longe de-
mais, diríamos que se trocou o instinto pela razão or-
denadora; houve uma quebra entre os impulsos mais
ndos e a necessária vida social; foi-se obrigado a

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remar contra a corrente do rio e só em raras ocasiões


pôde o homem voltar a esse profundo, íntimo, identifi-
cante contato com o mundo natural.
Uma dessas ocasiões era a festa das colheitas, so
bretudo a da vindima; é o momento em que o homem
tem ante si os frutos prontos ao consumo e em que se
dá como que a renovação do milagre antigo de haver
sempre à disposição de todos os alimentos necessá
rios; tudo o que fora trabalho, disciplina, ciência e es
forço organizado, tudo desaparecia e se esquecia
diante da colheita que vinha garantir um ano mais de
existência. E espontaneamente surgiam os cantos e as
danças, os cortejos ruidosos; Dionísio, deus dos instin
tos e da natureza, quebrava a calma, a serenidade, e o
racional saber de Apolo; com a fabricação do vinho,
as festas foram um grau mais alto, porque a bebida
lhes dava a facilidade de esquecerem, não a vida, mas
a morte lenta e contínua em que andavam mergulha
dos; e era bebendo que eles reencontravam a vida
verdadeira, a outra, a da alegria sem limites, a da ir
responsável liberdade, a dos instintos sem grilhões.
Com o vinho, porém, não só se estava usando para
reentrar em contato com a natureza, dum meio não
natural, o que era contraditório, como também, com o
despertar da embriaguez, mais duramente se sentia a
estreiteza do mundo real, do mundo social, daquele em
que se tinha de viver. O conflito entre o apetite e o de
ver punha-se ainda duma forma mais aguda; o que
era a festa de Dionísio, o que era reatar dos laços que
se tinham
domínio, daquebrado, não
presença, da se conseguia
paradoxal sombraver
de livre
Apolo.do
Na realidade, dadas as condições de vida que
existiam, o homem nada mais conseguia fazer que não
fosse um conflito perpétuo entre a força do instinto e a
da inteligência previsora, entre a fusão completa com
a natureza e a distinção entre um sujeito que pensa e
um objeto que é pensado. Os gestos e as palavras das
festas daque
eram do colheita, vindima
a expressão destee conflito
vinho novo nada mais
que parecia in

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sanável ao homem e que provavelmente o é, neste sen


tido — de que só haverá paz para a consciência hu
mana quando não existir distinção alguma entre o
“eu” e o “outro”.
Por um lado, aludiam ao conflito, visto no seu as
pecto mais profundo, envolvendo a toda a humanida
de, mas essencial para a salvação, primeiro biológica,
depois até espiritual, da própria humanidade; fala
vam da disciplina contra a paixão, da honra contra o
amor, do dever contra a piedade. Por outro lado,
representavam-no em pequenos casos individuais, que
não envolviam o destino humano, mas que eram, atra
vés mesmo
do das extravagâncias dum temperamento,
conflito. Do primeiro enfocamento aspectos
do pro
blema vinha a tragédia, do segundo a comédia; basta
ria que o aspecto individual sobrelevasse ao coletivo
para a tragédia se tingir de comédia, e foi o que suce
deu mais tarde, com o drama satírico e com a tragédia
à maneira de Eurípides; e bastaria que a comédia
apontasse a aspectos coletivos para que o tom de tra
gédia se fizesse
Todo sentir.
o teatro grego vem da consciência do conflito
entre natureza humana e história humana; é, segundo
se põe em aspecto de predominância, uma outra das
faces da batalha que encontramos ou a tragédia de
Ésquilo ou a comédia de Aristófanes.
* **

Não há porventura ponto mais difícil de elucidar,


no campo da etnologia ou da história das religiões, do
que aquele que se refere às crenças religiosas dos po
vos primitivos: a princípio afirmou-se que possuíam
crenças religiosas e ritos de culto, mas é fora de dú
vida que a afirmação provinha não da realidade ob
servada tal qual era, mas dum quadro de imaginação
que se substituía ao fenômeno exato. Os estudos poste
riores, feitos com mais rigor científico, chegaram à
idéia contrária, à de que os povos primitivos, os ver

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dadeiramente primitivos, não teriam nenhuma espécie


de religião, isto é, não acreditavam na existência de
ser ou seres superiores a eles e não lhes prestavam
culto por meio de cerimônias rituais; a idéia de um
deus só aparecia com a evolução social, na mesma al
tura em que surgem a noção de propriedade e, embora
rudimentarmente, a noção de Estado. O fato da inegá
vel simultaneidade fez surgir a hipótese da relação de
causalidade, hipótese sempre perigosa: teria sido para
se estabelecer, ou por se estabelecer uma economia de
propriedade privada que a idéia de Deus e as religiões
positivas teriam surgido no mundo.
O problema, no entanto, não se pode resolver com
uma tal simplicidade; em primeiro lugar, a idéia dum
deus transcendente, ao qual, por conseqüência da sua
posição ante o universo e o homem, se prestará culto,
mesmo que seja o de “em espírito e verdade”, tem por
si bastantes argumentos filosóficos, bastantes bases na
estrutura do mundo para que se lhe atribuam origens
meramente econômicas e políticas; tudo quanto se po
deria dizer sobre este ponto é que, ao dar-se a trans
formação
útil ao fimsocial, se insiste
em vista, de preferência,
no aspecto por ser
transcendente mais
de Deus.
Em segundo lugar, a experiência mística de todos os
séculos, de todos os países e de todas as religiões de
monstra que o auge do sentimento religioso consiste
numa fusão entre objeto do culto e sujeito do culto,
num transformar-se o amador na coisa amada, num
aparecimento da unidade perfeita onde a dualidade
existia. Para um
trinsecamente observador
religioso, de fora,êxtase
em perpétuo um homem in-
religioso,
poderia dar a impressão de não estar prestando ne
nhum culto a nenhum deus; e, na vida prática, esse
homem comportar-se-ia com a alegria, a espontanei
dade, o desprendimento do selvagem, sem que também
fosse necessário, fatal, o aparecimento de qualquer es
pécie de rito: esse homem teria reconhecido a identi
dade fundamental de tudo quanto existe no universo,
teria reconhecido Deus em si e nos outros e viveria.

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naturalmente, sem tu e sem eu, de igual a igual, num


universo inteiramente divino.
Não queremos dizer de modo algum que seja isso o
que sucede com os primitivos: provavelmente não é,
provavelmente o que existe
giosa; o que desejamos que éfique
uma bem
inconsciência reli
claro é que se
não pode afirmar que não tenham vida religiosa; ela
pode ser bastante profunda para que escape aos nos
sos observadores civilizados só capazes de surpreen
der vidas religiosas imperfeitas.
O mais seguro, no entanto, é que a vida religiosa,
ou melhor, a religião, só tenha aparecido, consciente
mente,
de um com a primeira
ser além idéia dum
do humano, Deus
e que transcendente,
todo o progresso
neste assunto tenha consistido em apurar essa noção
de transcendente até ao ponto de ter sido possível o
aparecimento de uma noção imanente de Deus, sem
que, porém, seja necessário o opor-se uma à outra; e
que todo o progresso futuro, pela insistência, agora,
sob o aspecto imanente, leve a uma vida religiosa, que,
externamente, se não
têm, dos primitivos distinga
atuais, da vida religiosa,
realizando-se por aí osesoa
nho místico de um misticismo universal.
Seja como for, o que é inegável é que, desde que se
surpreendem manifestações religiosas incontestáveis,
elas têm sempre um caráter de totalidade; nos tempos
históricos mais longínquos todo o mundo é sagrado
aos olhos dos homens, sagrado para bem ou para mal;
nãoque
se importa
não háagora a distinção;
nenhuma ação dao que
vidaimporta
que nãoé tenha
fixar-
marca sobrenatural e que não seja ocasião de cerimô
nias rituais; tem-se freqüentemente a impressão de que
o único ser considerado natural num universo sagra
do, num universo que supera a natureza, é o homem
que está prestando culto; tudo se passa como se ape
nas ele se tivesse desprendido de uma vida inteira
mentemedida,
À sagrada.porém, que a civilização evolui, sempre
no sentido dum maior poderio técnico, a noção de sa

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grado vai atenuando-se; todos os atos da vida passam


a ser civis, desligando-se de qualquer idéia de sobre
natural; o mundo aparece, não como um conjunto de
sinais de Deus, que o homem venera, teme ou respeita,
e de que participa pelas formas sacramentais, mas um
domínio laico, como uma propriedade a seu inteiro
dispor e em que ele exerce todos os direitos de usar,
gozar e abusar, com que se define a noção clássica de
propriedade.
O homem vive, desde então, não para adorar o
que vê, como outrora, não para fazer de todos os seus
atos uma tentativa de reconquistar o paraíso perdido,
mas para se aproveitar do que existe, para dominar,
para se afastar cada vez mais da inocência da Idade
de Ouro, com o risco de nunca poder reencontrar o
caminho; o que seria bem trágico, porque já está na
posse dos meios materiais que lhe permitiriam viver a
vida do primitivo, sem os inconvenientes da incerteza
e da fome, sem correr os riscos de ter de novo que per
correr a longa, perigosa e dramática aventura da his
tória; cada vez mais o homem se tem posto e conside
rado mais no mundo como o dono do mundo, com o
direito de destruir os animais e as plantas, de escravi
zar os irmãos homens, de transformar a vida inteira
nalguma coisa que não tem outro fim senão o de sus
tentar a sua vida material.
A vida tornou-se laica e tornou-se feroz, implacá
vel e, o que é pior ainda, sem sentido nenhum que
eleve a vida além da vida. É uma série de momentos
em que se produz para se consumir e se consome para
se poder produzir de novo. As relações do finito com o
infinito, da parte com o todo parecem, em instantes
mais críticos, correr o risco de se perder por completo;
o ato gracioso da oferta aos seres fraternos ou aos se
res superiores, a gratuitidade de viver, desaparecem
rapidamente de um mundo que se dessacratiza.
Costuma-se dizer que o progresso técnico superou
o progressotécnico
progresso moral;se
mas
fezo àque há na
custa do realidade é queda
fundo moral o

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humanidade, do seu fundo divino; e as grandes épocas


de crise são exatamente aquelas em que o progresso
técnico é o mais elevado possível e a consciência mo
ral uma luz mínima que parece a cada momento ir
apagar-se de todo no fragor das tempestades econô
micas e políticas.
O que é certo, porém, é que a fome, na vida do
homem primitivo, pôs em risco a sua alma porque
não pode haver real sentido do divino com estômagos
vazios; a salvação da alma do homem implicava a
luta contra a fome, o que se fez e se está fazendo pelo
progresso técnico; os descobrimentos científicos vão
permitir viver com segurança, abater pela primeira
vez os espectros da fome e vão permitir que as almas
se salvem; vão permitir o regresso ao divino; mas os
riscos da viagem têm sido enormes e têm-se marcado,
como nos manômetros se marca a pressão, pelo lai-
cismo progressivo da vida; e todo o esforço dos gran
des pensadores, dos grandes artistas, dos grandes
cientistas, dos grandes chefes religiosos, tem sido exa
tamente o de impedir que a centelha do sentimento do
sagrado se apague de todo neste mundo.
* * *

Se o teatro nasceu da separação entre o homem e


a natureza, ou, mais profundamente, de uma distinção
entre sujeito e objeto, se aparece como parte de um

festival sagrado,
do na sua senão como
totalidade, e se, opor
próprio
outro festival
lado, o sagra
grupo
humano se foi progressivamente tornando menos sen
sível ao sagrado, é de esperar que o teatro tenha se
guido esta marcha de dessacratização da humanidade
e que, do plano sobrenatural do início, tenha resva
lado aos domínios naturais, realistas, digamos civis,
em que o homem se foi habituando a viver.

tivo Éhavia,
certo, no
porentanto, que jánatureza,
sua própria mesmo nodois
teatro primio
planos:
plano divino, sobrenatural, de eternidade, o do amor
absoluto, o da comunhão de todos os seres, o da re

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denção do humano pelo sacrifício, e o plano da ação


humana que não era oficial mais do que o desenrolar
no tempo da luta entre a natureza humana e as cir
cunstâncias históricas, luta porventura correspon
dente a uma realidade metafísica essencial na má
quina do mundo.
Destes dois elementos do teatro, só um poderia so
frer, sem que desaparecesse, o processo de dessacratiza
ção; e esse elemento era naturalmente o da ação
humana; o outro devia conservar-se tal qual e espe
cializar-se nessa representação de ação divina ante o
divino, transformando os homens pela sua própria
participação no ato, dando-lhes categoria de eterni
dade; foi este
mistérios último
e que, elemento
depois, o que
ao surgir se refugiou
como que um nos
se
gundo ciclo da humanidade ocidental, com o apareci
mento do cristianismo, se constituiria em liturgia, em
que do real só aparece quando muito uma estilização.
O elemento humano foi tendo ligações cada vez
mais remotas com o elemento sagrado até que de todo
se separa, sem que no entanto o teatro tenha perdido
o primitivo caráter mágico de fazer do ator e do espec
tador um participante na vida de outros seres; ou me
lhor, de o transformar num outro ser, fazendo-o enten
der assim a identidade de todos os aspectos da cria
ção.
O teatro foi-se tornando cada vez mais realista,
tanto na tragédia como na comédia, cada vez se afas
tando mais de fazer participar um grande número de
homens no que devia ser um sacramento; o que de
máximo se concedeu foi o poder transformá-los, por
uma hora ou duas, em outros seres puramente huma
nos, enredados num jogo de paixões puramente hu
manas; nunca mais foi possível transportá-los a um
país de fantasia, que era na verdade o país real, o das
idéias que são eternas, o dos sonhos que são eternos, o
das ações em que o tempo não conta; quem não mais
podia considerar um ato sagrado ver nascer o Sol,
comer pão, ou ajudar seus irmãos em circunstâncias

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difíceis, quem passava a ter empregos, fazia repastos


apressados e emprestava a juros, não podia de modo
algum manter o teatro como cerimônia sagrada.
Do drama de Dionísio, preso nas redes de Apolo,
da realidadee da
o Universo, no vida plena na plena
seu renascimento participação
miraculoso com
na festa
das colheitas, passava-se a um drama realista do
mundo, à batalha em que cada um tem de ser ele, e só
ele, sob pena de perecer; passava-se ao mundo da fa
mília, sustentada pelas leis e não pelo amor; ao
mundo político em que se busca apenas o domínio; dos
predecessores de Ésquilo aos sucessores de Ibsen; de
um ato religioso
liturgia a um espetáculo
se conservou puramente
na sua pureza civil. Só
primitiva, masa
quase inútil, porque a mentalidade do tempo a tornou
incompreendida no seu sentido mais profundo; e às
vezes, mesmo incompreendida nos seus aspectos mais
fáceis.
Quanto à comédia, o processo de dessacratização
começou já na própria Grécia e, como era natural, foi
muito
mal osmais rápido que
antecessores de na tragédia.para
Aristófanes Conhecemos muito
nos podermos
pronunciar sobre o que teria sido nas origens a pro
dução cômica; parece, no entanto, que o fundo seria
constituído pelas manifestações de alegria tumultuosa
dos vinhateiros, pela comunhão com o mundo à volta,
o que se fazia de dois modos: pela transformação do
ator num ser natural, animal ou fenômeno, e pela hu-
manização
O cortejo dedoque
quederivaram
passara aasserrepresentações
estranho ao homem.
da co
média devia ser extremamente semelhante a tudo o
que se imaginou sobre o cortejo de Dionísio, mas dele
fazia parte a representação da natureza, num sentido
de animação cósmica, e de restabelecimento da uni
dade quebrada; e o elemento realista não devia pas
sar de alusões aos feitos e defeitos de alguns dos com
ponentes do cortejo ou daqueles que assistiam à sua
passagem.
Dum modo geral, pode dizer-se que a comédia de
Aristófanes ainda se conserva na linha primitiva. To

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das as suas peças dão, e duma forma extraordinária,


a impressão de marcha, de desfile impetuoso e turbi-
Ihonante, em que, num mundo de fantasia, irreal e li
vre, se incluem as críticas de indivíduos ou de costu
mes sociais. O coro das Rãs, o coro das Nuvens, o coro
das Vespas,
mação são, com etoda
imaginativa a sua pujança
de audácia de transfor
na transposição de
planos, o momento de auge da comunhão naturalista;
o regresso da Paz é ainda o tumulto, a vibração, o di
namismo do cortejo primitivo; mas o elemento realista
é já muito mais desenvolvido do que fora a princípio e
só raras vezes, como, por exemplo, nas Aves, se conse
gue elevar a um plano de sobrenaturalidade; apesar
depesar-lhe:
a toda a imaginação
e não há de que naso real
Aristófanes,
dúvida peçasprincipia
como A
Assembléia das Mulheres e Plutos o elemento sagrado
quase que desaparece e as comédias poderiam
transformar-se, com pequena modificação, em compo
sições de tipo laico.
No entanto, a sociedade grega era ainda, não obs
tante todo o aspecto civil que possa ter a nossos olhos,
uma sociedade de deuses, de sagrado e de sacramen
tal; as linhas coletivas das assembléias políticas e das
festas cívicas mantinham este sentido de unidade, e
tão fortemente, que contra ele se chocaram alguns dos
que estiveram nas origens do que seria mais tarde o
pensamento laico.
A transformação social, no sentido duma dessa-
cratização, só se dá mais tarde com o triunfo da Ma
cedônia; nas cidades, o Estado quase não existe e
quase não aparece nenhum dos elementos que o afir
mam, lhe dão prestígio e o mantêm; mas com Filipe,
tudo muda: o objetivo agora é o de agrupar todos os
homens, com o máximo de disciplina, para um traba
lho comum de domínio e de organização utilitária da
terra; tudo se modela mais ou menos segundo o tipo
ideal do exército; não do exército tido como escola
moral, à maneira de Esparta, mas do exército eficiente
como máquina de
aperfeiçoamento dosguerra,
assírios.num renascimento e num

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Então a comédia, num breve lapso de tempo, num


máximo de cinqüenta anos, perde todas as qualidades
de fantasia irresponsável que tinha em Aristófanes; o
seu plano passa a ser o da vida real, o da vida coti
diana, o da vida do indivíduo, dos casos individuais,
dos interesses individuais; em Menandro, Apolodoro,
Filêmon ou Dífilo, tanto quanto podemos julgar pelos
fragmentos que nos restam e pelas imitações romanas,
não há o mínimo sopro da liturgia primitiva, o mínimo
vestígio de vida coletiva, o mínimo interesse pelo que
possa ir além da existência social ou econômica do
homem considerado como um ser à parte da natureza.
* * *

Historicamente, a Idade Romana não é mais do


que a continuação dos esforços de Filipe e de Alexan
dre; mas ao passo que estes falharam na sua tentativa
de unificar o mundo, derrubando as barreiras dos par-
ticularismos gregos, de modo a que as descobertas he-
lênicas pudessem pela
nos conseguiram chegar
suaa aparelhagem
todos os homens, os roma
militar, jurí
dica e administrativa, uma construção política que
deu paz aos homens e tornou patrimônio de cultura
geral o que até aí fora reservado apenas a uma redu
zida minoria.
A síntese, porém, não foi ainda bastante ampla: os
defeitos de mentalidade dos romanos, que tinham sido,
por outro lado,
permitiram auxiliares
conceber uma da sua empresa,
noção não lhes
de personalidade
humana suficientemente vasta para que nela pudes
sem caber, por exemplo, os povos bárbaros; e a defi
ciência dos meios técnicos de produção não lhes per
mitiu também a libertação do escravo, o que tornou
fatal a abertura de novos capítulos na história da
aventura humana.

maisDeimportantes
qualquer modo, Roma constituiu
da evolução um dosno
da humanidade, pontos
sen
tido de domínio da natureza pelo desenvolvimento das
técnicas; sob este ponto de vista foi até muito mais

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importante do que os gregos; simplesmente, esta idade


técnica só foi possível pela organização dos romanos
como um povo de soldados e de juristas; tudo quanto é
espontaneidade, liberdade de criação, fantasia, impre-
vidência até, nos aparece extremamente reduzido,
inexistente quase, durante
que Roma exerceu os cinco
a sua ação ou seisRoma
primacial; séculos em
é um
grande exército ordenado a um grande fim, e um forte
corpo de leis, civis e religiosas, que estritamente tra
vam os movimentos do indivíduo. Cada um tem de fa
zer o que a disciplina lhe indica e ficam banidos todos
os arroubos de alma, toda as tentativas de comunica
ção direta com a divindade, todas as tentativas
mesmo
todo de comunicação
o tempo de Roma, osdireta
homensdemarcham
ser a ser; durante
lado a la
do, como nas fileiras de um regimento, atentos à har
monia e à eficiência do conjunto, de modo algum inte
ressados pelos sonhos, ou os desejos de uma vida livre.
A grandeza de Roma, que se confunde aí com a
quase vitória da humanidade sobre a fome, esmaga
tudo o que seja aspiração ou saudade das almas; há
um objetivo
alcançar, em vista que
quaisquer e é sejam
este objetivo que se tem
os sacrifícios, de
quais
quer que sejam as barreiras impostas aos sentimentos
que estariam mais de acordo com a verdadeira natu
reza humana. Foi o romano que deu ao mundo o mo
delo do soldado heróico: a sentinela sepultada no seu
posto pelas cinzas do Vesúvio é mais que uma figura
histórica e mais que um símbolo de Roma; é a própria
imagem da humanidade correndo o risco de se petrifi
car porque se recusa ao abandono das posições de
combate que lhe permitirão, se a batalha for ganha,
assegurar então para sempre, na liberdade e na vida
criadora, a paz que Roma só conseguiu por quatrocen
tos anos, na escravidão e no esmagamento do espírito.
A República, depois de assegurado o domínio do
Mediterrâneo, e o Império marcam um dos tempos em
que a humanidade, a troco da segurança, cedeu um
máximo de liberdade; e teria caído, se não houvesse
recursos humanos ou, pelo menos, mais humanos, com

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que contar; os bárbaros, dum lado, os escravos e as


mulheres do outro, salvaram o mundo: o cristianismo,
propagado pelos últimos e confirmado pelos primeiros
é, fundamentalmente, um processo de ressacratização
do mundo, pela afirmação da unidade do homem e da
unidade da criação no imenso amor de Deus. O obje
tivo essencial que se marca não é o da segurança, mas
o da liberdade, não é o da disciplina, mas o do afeto,
não é o da atenção a tudo quanto possa manter unido
e eficiente o corpo social, mas o da contemplação dos
vôos das aves pelo céu e do colorir das floradas pelos
prados; a “disciplina militar prestante” parece fe
char-se com Jesus; o reino de Deus que ele anuncia é o
da Idade de Ouro, mas ampliado pela alegria da re
denção. As realidades humanas, porém, ainda se não
prestavam à modelação do sonho e o modelo de Roma
havia de ser, ainda por muitos séculos, embora sob
vários aspectos, o modelo do mundo.
Ê muito difícil saber até que ponto vai a originali
dade de forma e de conteúdo da comédia latina, em
bora se elhe
gregos possa marcar
disposto um espirito
no sentido diferente
da evolução da dos
realista de
que se acaba de falar. Efetivamente, todos os testemu
nhos históricos, inclusive o dos próprios poetas inte
ressados, são concordes em afirmar que o teatro cô
mico romano não é mais do que uma adaptação às
exigências das platéias latinas, das obras dos come-
diógrafos gregos da comédia chamada “nova”, por
oposição à comédia
temporâneos. Dumasantiga
vezes, de
as Aristófanes e seus
peças são-nos con
apresen
tadas como sendo puras traduções dos originais gre
gos; doutras vezes como tendo sofrido o processo da
contaminatio, isto é, da fusão de duas ou mais peças,
geralmente duas, numa só; os testemunhos são irrefu
táveis, de modo que teremos de admirar, mesmo que
pretendêssemos salvaguardar o máximo de originali
dade dos romanos, que a invenção estaria quando
muito nos pormenores de caráter local; no entanto,
mesmo no que se chamaria de pormenor, pode romper
a originalidade de um autor, transformando quase por

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completo o original, não importando agora pôr a ques


tão de as modificações se fazerem para melhor ou
para pior; é o que sucede, por exemplo, com as tradu
ções de Molière realizadas por Castilho; e é muito
provável que tenha sido esse o caso dos comediógrafos
romanos e que
de intrigas, se trate
o que dum empréstimo
tem realmente de formas e
pouca importância;
no entanto, a carência dos textos gregos e a falta de
precisão dos eruditos e críticos da Antiguidade não
permitem chegar a qualquer conclusão segura.
Como noutros elementos da civilização romana,
deve ter-se realmente dado uma importação das idéias
fundamentais; o romano foi um inventor medíocre e foi
buscar aos povos
realizações, mesmovizinhos a base
a do direito, que de
nostodas as tan
aparece suas
tas vezes apontado como sua obra exclusiva; mas o
que deu a todos esses elementos, apoiando-os solida
mente nas suas características nacionais, foi uma so
lidez e uma força de expansão que, em geral, não ti
vera a obra dos outros povos das civilizações mediter
râneas. Pelo que respeita ao teatro, a característica
nacional
mas dum mais
cômicoimportante
de feição era a doindividual,
pessoal, gosto do cômico,
amigo
de se demorar nas troças dos defeitos de cada pessoa,
visando-os quase sempre com uma grosseria brutal, e
incapaz de compreender as situações gerais.
O que nas comédias de Plauto e de Terêncio foge
dessa linha, o que é, raramente, estudo de tipos ou si
tuações mais delicadamente tratadas vem, por um la
do, fato
de do fato
maisdeimportante
se tratar deainda
adaptações, por outro
e que muitas lado
vezes se
ignora, o de os dois autores serem estrangeiros. De
Pauto, o que veio da Úmbria, pouco podemos dizer,
porque só muito mais tarde a sua terra entrou na luz
da história; mas, no que se refere a Terêncio, não po
demos deixar de atribuir ao seu contato com a cultura
da Magna Grécia tudo quanto nele há de sensibilida
de, de ternura,
insiste nos seus de fina melancolia,
inventos, de graça
de recusa ante que não
as exigências

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duma platéia mais habituada aos saltimbancos do que


aos poetas comediógrafos.
Contudo o que neles aparece de mais notável, e é
comum aos dois, nem veio das suas pátrias nem da
cultura que tiveram nem da sensibilidade humana,
que
sião era sem dúvida omais
de mostrar-se; que profunda
há de maisdoimportante
que teve oca
em
Plauto e Terêncio, como em todo grande comediógrafo,
e basta para isso lembrarmo-nos do Misantropo de
Molière, é o tom de tragédia que tão facilmente, pela
palavra duma personagem ou pelo incidente do enre
do, tinge as suas composições cômicas; em Aristófanes
esta qualidade aparece menos nas personagens do que
nos discursos ao povo em determinadas situações ge
rais; mas nos comediógrafos romanos, como nos que
se lhes seguem dentro do mesmo espírito, é no indiví
duo que ela se encontra; decerto com muito menos
força, com muito menos entusiasmo poético do que nas
peças de Aristófanes, mas também, sem dúvida algu
ma, com mais pungente espírito trágico: fez-se de todo
odeu
divórcio
bem aentre
ser ao natureza e o homem;
lobo do homem; estequando
e de já apren
em
quando sente a saudade da sua verdadeira natureza e
sente a sua solidão perante os outros que o hão de de
vorar se os não abate.
Deus está longe e perto a luta pela vida. Num re
lance, o que é episódio individual atinge a grandeza
do coletivo; e do mercador de escravas, do servo mal
tratado, do pai
briado pela enganado
amada, pelo filho,
sobe como numadoonda
amante ludi
a amar
gura e a revolta perante o destino que se não compre
ende, perante o destino que parece ter para sempre
afastado os homens do paraíso onde o espírito divino
respirava, e longamente e perdidamente os fez atra
vessar os desertos onde as esperanças quase morrem.
E é talvez esta a nota que mais fica vibrando
fundo no espírito depois de se ter lido a comédia lati
na, porque é a nota que mais intimamente nos une aos
antecessores de há muitos séculos. Mas há outra que,

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por mais baixa, e mais difícil de ouvir, não é menos


dolorosa nem talvez menos duradoura: o que há pro
vavelmente de mais terrível nestas comédias é a tran
qüila mentalidade com que se aceita a existência, por
exemplo, do escravo, sem aparecer, como nos gregos,
a menor
que tal seexplicação, a menor
desse; decerto o fato tentativa de justificar
nos impressiona e nos
deixa, no fim da leitura de cada peça, a certeza de que
realmente o mundo antigo estava condenado a desa
parecer; mas podemos também pensar que dentro de
dois mil anos se lerão as nossas comédias e que por
ventura muitas das nossas instituições irão impressio
nar da mesma forma o espírito dos leitores, embora
possamos ter a esperança
a sua angústia. de que
A esperança, masjánão
nãoa seja a mesma
certeza. Pode
ser que durante muito tempo se ache muita coisa tão
natural como eles achavam os escravos e os parasitos
e que durante muito tempo a educação para servir
seja fundamentalmente a educação dos homens.
* * *

Como o mundo antigo não continha em si próprio


nenhum elemento de salvação, só era possível um
novo avanço da história pelo desabar de tudo quanto
tinham construído os homens e pela criação duma
existência nova. É como se a humanidade tivesse de
resolver de novo todos os seus problemas, como se se
tivesse voltado às idades primevas da história. Neste
sentido a formação
Renascimento da Idade
e o outro, o dos Média
séculosé XIV
o verdadeiro
e XVI, o
regresso da vida antiga que, depurada dos elementos
que lhe impediam a marcha, volta a tomar posse da
humanidade, a arregimentá-la de novo e a lançá-la
com gênio implacável no caminho que a poderá levar
um dia a libertar-se do fatalismo das necessidades fí
sicas.
E imediatamente
meira o teatro
natureza: durante toda aseIdade
afirma na sua
Média pri
a repre

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sentação é sagrada e litúrgica e tudo gira à volta da


separação do homem do mundo sobrenatural, ora
porque se representa a própria queda, ora porque se
abrem aos olhos dos espectadores os mistérios do que
existe
se nas para além
igrejas da outrora
como sua vidasepassageira.
representavaRepresenta-
junto aos
altares de Dionísio; a vida levou a humanidade ao
desterro e a cada possibilidade ela volta para con
templar o que devia ser a sua pátria verdadeira e to
das as fases do drama em que a envolveu a luta pelo
existir, por um existir pleno, sem o terror e a fome.
O teatro medieval, de fundamento não realista,
atento não à vida ativa mas à vida contemplativa, dá
bem a medida do que poderia ter sido a nova época
da história, se os romanos tivessem resolvido os pro
blemas técnicos da produção; o conjunto dos homens
medievais é um corpo místico governado por um espí
rito santo; todo o ato da sua vida é ou deve ser uma
comunhão em Deus; toda a graça de obra que se le-
vanta é uma obra coletiva; a idéia de irmandade entre
os homens passa além de todas as travas políticas e
econômicas; há a recusa ao nacionalismo e a recusa à
comunicação direta do indivíduo com Deus, desde que
para isso se tenha de abandonar os irmãos que não os
podem acompanhar.
Não é por acaso que a estatuária do melhor pe
ríodo medieval se parece estranhamente com a esta
tuária
mesma grega: é a expressão
fidelidade da mesma
à verdadeira plenitude,
natureza da
humana,
quaisquer que sejam ainda os obstáculos e as imper
feições. Mas na realidade todo o tempo medieval era
mais descanso que chegada; os homens tinham pa
rado a muito menos de meio caminho da economia, da
política e da técnica; tinha de se ir mais longe: então,
novamente se desfaz a grande irmandade dos homens.
O real supera o ideal; o profano sobreleva ao sa
grado; e o teatro reflete essa ressurreição da vida an
tiga que se julgava inteiramente morta. As representa
ções cada vez mais se afastam do âmago da igreja; as

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constituições dos bispados cada vez vão ser mais seve


ras ante a invasão do profano; ainda um momento se
representou na portaria dos templos; depois, já des
feito o encanto que as tomara, já plenamente na bata
lha da vida, as representações, quase sem lembrança
do sagrado, fazem-se fora da igreja. Pareceu durante
algum tempo que nem tudo se perdia e que, por um
milagre, seria possível conciliar os dois elementos pre
sentes, o da busca e o da unidade, o da religião e o da
ciência, o da mística individual e o da mística da cole
tividade. É este, provavelmente, o sentido profundo da
ação dos portugueses e dos espanhóis; tentou-se uma
ciência que vai certamente contra Aristóteles, mas que
é de linha franciscana, isto é, que nunca daria, como
deu a ciência protestante, o quase esmagamento da
natureza humana; tenta-se uma forma de vida reli
giosa que dando liberdade aos vôos do espírito indivi
dual, que, reconhecendo-lhe a presença de Deus, não
deixa de insistir no entanto na idéia do Corpo Místico
da Igreja e na idéia dum Deus transcendente que as
segure a inteligibilidade e continuidade do espírito
humano.
E é exatamente na península que o teatro, por
mais tempo, se conserva fiel às linhas gerais da Idade
Média e se recusa a submeter-se às concepções roma
nas que, naturalmente, dada a similitude dos tempos,
logo vieram e dominaram no direito, na economia, na
política, e nas manifestações artísticas, que, por serem
criação no tempo, tão fortemente lhe estão ligadas;
portugueses e espanhóis lutam, com os seus místicos,
os seus navegadores e exploradores, os seus artistas e
os seus autores de teatro, com um Gil Vicente, um
Calderón de la Barca ou um Lope de Vega, pela per
manência dos ideais cristãos da Idade Média, sem pre
juízo de tudo quanto era necessário para que se re
conquistasse o paraíso perdido.

Mas
tismo e oacabariam vencidos;
protestantismo o capitalismo,
mais ou o cien-
menos laico dos po
vos nórdicos eram movimentos demasiadamente fortes

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e estavam demasiado dentro da lógica da história


para que as esperanças peninsulares pudessem ter
qualquer possibilidade de triunfo; por desgraça, tam
bém se não encontrou nenhuma doutrina bem estrutu
rada e bem sólida, capaz de resistir aos embates das
circunstâncias; houve
idéias erasmistas: masum
no vislumbre de vitória
fundo, faltava com as
a Erasmo a
noção do sagrado; e a vitória, quando veio, foi, sob
aspectos, cores e nomes diferentes, a vitória da secura,
da brutalidade e da eficiência dos romanos; o Renas
cimento é na realidade a volta a Roma do filho pródi
go.
Daí por diante a influência da comédia romana
não fez mais do que acentuar-se: é comédia romana a
de Maquiavel, a de Villalobos, a de Dryden, a de Mo-
lière, a de Beaumarchais, a do “Judeu”, a de Alencar;
é comédia romana a do nosso tempo e, provavelmente,
pelo seu realismo sem limites, pela completa solidarie
dade com “a vida tal como é” a mais romana de todas
as comédias.

todoAse serão
sementes remotas,
capazes porém, num
de germinar não terreno
morreram
que de
se
lhes apresente favorável; é quase certo que está muito
mais perto do que geralmente se julga o fim do tempo
do sacrifício e de batalha; temos hoje à nossa disposi
ção os meios técnicos de dominar a fome e a miséria e
de dar ao homem uma liberdade sem limites para ex
primir a sua verdadeira natureza; o que ainda trava o
nosso
quase caminho é a convicção
todos de que o homem éemumque nos encontramos
animal egoísta, ba-
talhador e feroz, convicção que adquirimos em toda a
longa experiência histórica e nos faz tomar por estru
tura, o que é simplesmente acidental; só a fé no ho
mem, nas possibilidades divinas do homem nos pode
levar de novo à Idade de Ouro, tal como a representa
ram os poetas: tempo de fraternidade e de amor, sem
angústia e sem dramas, tempo de contemplação e de
absorção em Deus, tempo de ação mental, a mais ver
dadeira e a mais eficaz de todas as ações. E o teatro

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será então por completo litúrgico e sagrado, sem ne


nhuma tragédia e sem nenhuma comédia, porque o
homem se integrará na natureza ou levará a natureza
ao nível do seu próprio espírito; será o teatro da fan
tasia do sopro lírico, da pura dança, do louvor a Deus
e da oferta a Deus, do esplendor que inundará as al
mas, depois do longo, do penoso, do quase desespe
rado caminhar.

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NOTA SOBRE A TRADUÇÃO

De todos os autores latinos, são provavelmente os


comediógrafos os mais difíceis de verter para uma lín
gua moderna. Por um lado, as formas arcaicas do la
tim, incompreendidas e adulteradas pelos copistas de
idades mais recentes, tornam o texto muitas vezes in
certo; por outro lado, o uso, como uma das fontes do
cômico, dos jogos de palavras e de frases de duplo
sentido,
e, numa as alusõesaa atmosfera
palavra, fatos e costumes que da
diferente eram atuais,
época re
publicana de Roma e da nossa época, fazem que em
muitos pontos a tradução, para se tornar inteligível,
tenha de ser, de certo modo, uma adaptação.
Não é também de somenos importância que se tra
duza em prosa um original em verso, e em versos que
são dos mais difíceis e dos mais complicados que po
demos encontrar na métrica latina; a variedade de
ritmos perde-se por completo na versão e é fora de
dúvida que, na maior parte das vezes, o sentido, ou a
impressão sobre o leitor não é exatamente a mesma;
de resto, até para um romano, a impressão sobre um
leitor seria diferente da que sofreria um espectador,
visto serem cantados alguns dos trechos, outros reci
tados
A com certaversão
presente entonação musical.
procurou seguir o mais possível
o original e em caso nenhum se sacrificou a fidelidade
à elegância de dicção ou à facilidade de inteligência;
teve-se igualmente em mira conservar quanto possível
o tom geral da linguagem, que era, como se sabe, não
o latim literário de Cícero ou de César, nem o latim
vulgar, que deu o acervo essencial das línguas româ-
nicas, mas, basilarmente, o latim familiar ou coloquial
de Roma, empregado na conversação das pessoas cul
tas.
A. S.

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NOTA BIBLIOGRÁFICA

Cartault — La poésie latine — Paris, s. d.


Conradt — Die metrische Composition der Comödien
des Terentius — Berlim, 1876.
Couat — Aristophane et la comédie attique — Paris,
1889.
Croiset — Aristophane et les partis politiques à Athè-
nes — Paris, 1904.
Dénis — La
Du Méril comédie de
— Histoire grecque — Paris,
la comédie 1886. s. d.
— Paris,
Deschanel — Études sur Aristophane — Paris, 1867.
Girard — Études sur la poésie grecque — Paris, 1880.
Guizot — Ménandre — Paris, 1885.
Horkel — Lebensweisheit des Komikers Menander —
Berlim, 1857.
Jachmann — Plautinisches und Attisches — Berlim,
1931.
Korte — Die grieschische Komödie — Berlim, 1930.
Knapp — Plaute and Terence — Londres, 1932.
Lejay — Plaute — Paris, 1925.
Meineke — Historia Critica Comicorum Graecorum —
Berlim, 1839.
Oppe — The new comedy — St. Andrews, 1894.
Plessis — La poésie latine — Paris, 1926.
Ribbeck Anfànge
— Attica
cultxis in und 1869.
— Kiel Entwicklung des Dionysius-
Sellar — Roman Poets of the Republic — Londres, s. d.
Süss — Aristophanes und die Nachwelt — Berlim, 1911.
Van Leeuwen — Prolegomena ad Aristophanem — Lei-
den, 1908.

indicações
A presente
dadasNota Laurand — Manuel
em: Bibliográfica des Étudescom
pode completar-se Grecques
as
et Latines; Schmidt und Stählin - Geschichte der Gnechis-
chen literatur; Schauz — Geschichte der Römischen literatur
(‘‘Handluch der Altertunswissenschat").

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PLAUTO
NOTA BIOGRÁFICA

Tito Mácio ou Maco Plauto, que nasceu na Úm-


bria, provavelmente por volta do ano 224 a.C., durante
a guerra com os Cartagineses, veio para Roma em
data incerta e aí se dedicou logo ao teatro, dizendo-se
que teria representado a primeira peça aos dezessete
anos de idade. Parece, no entanto, que os ganhos fi
nanceiros, dada a magnificência com que as peças
eram apresentadas, não corresponderam aos ganhos
de reputação, e que o poeta, por não ter pago as suas
dívidas, se teria visto reduzido à condição de escravo,
o que lhe deu certamente ótima oportunidade para
conhecer os costumes dos seus colegas e de todo o
mundo de parasitos, cortesãs, militares fanfarrões e
filhos-família aventureiros que tinham nas habilidades
dos escravos ponto de apoio para os seus perigosos
empreendimentos.
Durante o seu tempo de cativeiro, fazendo girar as
móspeças,
tro de umdemoinho, teria Plauto
que restam apenascomposto trêsmas
fragmentos, ou qua
que,
pelo êxito junto ao público, lhe garantiram a liberda
de. É então que verdadeiramente começa a sua car
reira de autor e ator; segundo os testemunhos antigos,
o número de comédias composto por Plauto subia a
cento e vinte; Varrão, no entanto, submetera o con
junto a um exame crítico e não pusera como autênti
cas mais dedevinte
em número e Anfitrião,
vinte: três peças; as queAululária
Asinária, nos restam são

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Comédia da Panela), As Baquis, O Cartaginês, Casina,


O Cesto, A Corda, Os Cativos, Epidico, O Fantasma, O
Gorgulho, O Mercador, Menecmos, O Prodígio, Pseu-
dolo, O Persa, O Rústico, O Soldado Fanfarrão, Stico.
tualOe êxito de Plauto
moralmente, aosfoi constante;
seus ouvintes,superior,
soube, nointelec
entan
to, satisfazê-los pela vivacidade da ação, o bem tra
vado da intriga, a insolência e a violência cômica dos
militares, dos parasitos e dos escravos, o realismo das
cortesãs, dos velhos que defendem o sossego da sua
casa, a segurança do seu dinheiro ou a tranqüilidade
dos seus prazeres, dos moços que se deixam vencer
por
mesmoencantos fáceis e quase
pela coloração quase romântica
sempre falsos; às vezes
e ingênua de
certos tipos de moça.
É certo que freqüentemente sacrificou à grosseria
do público; mas a sua tendência mais profunda era a
que, por exemplo, se surpreende nos Cativos: tendên
cia de moralista e de poeta lírico, um pouco melancó
lico, mas disposto sempre a agir quando preciso; acei
tava com realismo o mundo à sua volta mas lavrava,
no entanto, o seu protesto sempre que o julgava neces
sário contra as desigualdades da organização e da
sorte.
Embora os textos não sejam muito seguros, Plauto
teria tido uma vida bastante curta; o mais provável é
que tivesse falecido cerca de 182 a.C.
A. S.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

ANFITRIÃO

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

PERSONAGENS

ANFITRIÃO, comandante-em-chefe dos tebanos


ALCMENA, mulher de Anfitrião
JÚPITER, o rei dos deuses
MERCÚRIO, o mensageiro dos deuses
SÓSIA,1 escravo de Anfitrião
BLEFARÃO,2 general tebano, amigo de Anfitrião
BRÔMIA,3 criada de Alcmena
TESSALA, criada de Alcmena

A ação passa-se em Tebas

Muitas personagens da comédia latina têm geralmente


nomes gregos. Em notas daremos a significação da maioria
desses1)nomes
Sósia:em
“quegrego.
salva”.
2) Blefarão: “que vê” ou “que pestaneja”.
3) Brômia: “que vibra”.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

PRÓLOGO
MERCÚRIO
Se quereis que eu esteja bem disposto convosco e
que vos dê bons lucros nas vossas compras e nas vos
sas vendas e vos ajude em todas as coisas; se quereis
que os vossos negócios e os vossos empreendimentos
corram bem tanto no estrangeiro como na pátria e
aumentem os seus ganhos, justos, amplos e contínuos,
quer naquilo que já começastes, quer no que ireis
principiar; se quereis que eu vos traga boas notícias e
que tudo quanto vos comunico seja de proveito para
vós e para a vossa comunidade (bem sabeis que me foi
dado e concedido, pelos outros deuses, ter a meu cargo
as novas e os ganhos); se quereis que eu vos seja favo
rável, e me esforce por que sempre tenhais ganho; aco
lhei em silêncio esta peça e julgai-a com um critério
equânime e justo.
Agora vou eu dizer quem me deu ordem de vir e
por que razão venho; e, ao mesmo tempo, revelarei o
meu nome. Venho por mandado de Júpiter e o meu
nome é Mercúrio. Meu pai mandou-me aqui para vos
fazer um pedido, embora saiba que tomareis como or
dem aquilo que for dito; ele bem sabe que respeitais e
temeis Júpiter, exatamente como é justo. No entanto
ordenou-me que vos fizesse o pedido com delicadeza e
como se fosse um favor.
Efetivamente esse Júpiter a cujo mandado eu ve
nho nãodesagradável.
questão receia menosNasceu
de que um humana
de mãe de vós equalquer
de pai

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

humano e por isso não é de admirar que tenha certos


receios. E eu, que sou filho de Júpiter, também fiquei,
por contágio, com o medo de meu pai. Por isso venho
muito em paz e é a paz que vos trago.
O que eu vos quero pedir é uma coisa fácil e justa.
É a pessoas justas que um justo como eu deve pedir o
que é de justiça. Realmente não convém pedir o que é
injusto a quem é justo e é uma loucura rogar aos injus
tos o que é justo; de fato, os iníquos ignoram e despre
zam a justiça. E agora prestai atenção àquilo que te
nho para vos dizer.
Deveis querer aquilo que nós queremos; eu e meu
pai, bem merecemos de vós e da república. Não me
lembro
tuno, o deValor,
ter visto nas tragédias
a Vitória, Marte, os outros relembrar
Belona, deuses, Ne
os
favores que vos prestaram? Ora foi meu pai, rei dos
deuses, o arquiteto de todos esses benefícios. Mas
nunca foi costume de meu pai lançar em cara aos bons
qualquer bem que lhes tenha feito. Ele acha que vós
lhe sois gratos e que é muito merecidamente que ele
vos faz os favores que vos faz.
Primeiro vou dizer aquilo que vos vim pedir; de
pois vou revelar o argumento desta tragédia Por que é
que franziste o sobrolho? Por ter dito que seria uma
tragédia? Sou deus, de modo que, se quereis, mudo já
isto; farei que de tragédia passe a comédia, e exata
mente com os mesmos versos. Quereis que sim ou que
não? Mas que bobagem, eu que sou deus, estar sem
saber o que vós quereis; conheço perfeitamente a
vossa opinião sobre o assunto. O que eu vou fazer é
que seja uma peça mista, uma tragicomédia, porque
me não parece adequado que tenha um tom contínuo
de comédia e peça em que aparecem reis e deuses. E
então, como também entra nela um escravo, farei que
seja, como já disse, uma tragicomédia.
Ora Júpiter mandou-me que vos pedisse que em
todo o teatro vão cada um por seu banco certos fiscais
que, se encontrarem gente alugada para aplaudir, lhes
segurem como
punidos os quegarantia a toga.
procurarem Deseja aele palma
conquistar que sejam
para

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

os comediantes, ou para algum artífice, quer por car


tas, quer por mensageiros. E que sejam igualmente
punidos os próprios comediantes, se tal fizerem; e que
sejam até punidos os edis que derem os prêmios com
má fé. E que sejam todos punidos pela mesma lei que
castiga para
tratura quem,
si oupor
paramaus processos, conseguiu magis
outrem.
Disse ele que as vossas vitórias vieram do valor,
não da intriga e da má fé. Por que razão não deverá a
lei para os comediantes ser a mesma que existe para
os cidadãos mais importantes? É pelo valor e não pe
los favores que se devem conquistar os cargos; aquele
que procede bem, terá sempre bastantes sequazes, se
houver boa fé nas ele
Mandou-me pessoas de quem
também quea coisa depende.
houvesse fiscais para
os comediantes que tivessem por costume mandar
pessoas de propósito para os aplaudir ou que o fizes
sem para desprestigiar a outrem. Tirar-lhes-iam os ves
tuários e dar-lhes-iam chicotadas.
Não vos deveis admirar de que Júpiter tanto se
importe com os comediantes: o próprio Júpiter vai re
presentar nesta comédia. De que é que vos espantais?
Será uma coisa nova vir Júpiter fazer de ator? Quando
os comediantes, o ano passado, o invocaram em cena,
ele lá veio e lá os auxiliou. E o que é certo é que mui
tas vezes tem aparecido nas tragédias. Dizia eu então
que Júpiter representará hoje, nesta peça, e eu junta
mente com ele. Agora prestai atenção enquanto eu re
velo o argumento da comédia.
Aqui é a cidade de Tebas, e nesta casa mora Anfi
trião que nasceu em Argo, dum pai argivo, e com o
qual se casou Alcmena, filha de Electro. Neste mo
mento está ele à frente das suas legiões, porquanto os
teléboas estão em guerra com o povo tebano. Antes de
ter partido para a guerra engravidou sua mulher Alc
mena.
meuOra
pai, eucomo
achodáquerédea
vós solta
conheceis de que
às suas espécie eé
inclinações
como está pronto a apaixonar-se pelo que lhe agradou
alguma vez. Começou a gostar de Alcmena sem que o

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

marido soubesse, usufruiu do corpo dela, e empre-


nhou-a com seus abraços. E agora, para que saibais
perfeitamente como é tudo isto, dir-vos-ei que ela
está grávida dos dois, de seu marido e do supremo Jú
piter. Meu pai está agora lá dentro deitado com ela e é
exatamente por isso que hoje a noite é maior, para que
ele possa ter todos os prazeres que lhe apeteçam. E
tudo isto ele o faz sob o disfarce de Anfitrião. Agora
para que vos não admireis de eu ter vindo assim vesti
do, com este aspecto de escravo, vou expor-vos, como
coisa nova, o que é já velho e antigo; é exatamente por
isso que eu apareço vestido duma nova forma.
Meu pai, Júpiter, que está lá dentro, tomou a fisio
nomia de Anfitrião e todos os escravos que o vêem jul
gam que efetivamente é ele, tão facilmente muda de
pele quando quer. Eu tomei para mim o rosto de Sósia,
que foi para o exército com Anfitrião para poder assim
servir a meu querido pai e para que a gente de casa
não perguntasse quem eu sou ao verem-me andar por
ela. Como julgam que eu sou um escravo, um camara
da, ninguém me pergunta quem sou ou a que vim. Meu
pai está agora
abraçando-a, que élácomo
dentro e à mais.
ele gosta sua vontade, deitado e
Meu pai está contando a Alcmena os seus feitos de
guerra, e ela, que está efetivamente com o amante,
julga que está com o marido. Agora lá está meu pai a
contar de que maneira pôs em fuga as legiões do ini
migo e de que modo recebeu numerosos presentes. Es
ses presentes são os que na verdade deram a Anfitrião,
equanto
que quer.
nós lhe tiramos. A meu pai torna-se fácil tudo
Ora hoje chega Anfitrião da guerra com o escravo
cuja figura eu tomei para mim. Para que possais
distinguir-nos mais facilmente pus eu no chapéu, aqui,
estas peninhas, e meu pai terá no seu, uma correntezi-
nha de ouro, sinal este que não terá Anfitrião. Nin
guém, da gente de casa, poderá ver estes distintivos
que vós vereis.
Anfitrião, Mas aqui
que chega está com
do porto o taluma
Sósia, escravoVou
lanterna. de

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

já embora para o afastar de casa. Aí vem ele, já lá está


batendo à porta. E quanto a vós, acho que valerá a
pena verdes como Júpiter e Mercúrio fazem de come
diantes.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

ATO I

SÓSIA, MERCÚRIO
Sósia: Quem haverá mais audaz e mais confiante do
que eu, que bem sei dos costumes da juventude e
que ando sozinho noite fora? Que vou eu fazer se os
triúnviros me meterem na cadeia?
Amanhã
cotadas semtiram-me
mesmo da cela e levam-me
deixarem para as chi
que me defenda; ne
nhum socorro tenho a esperar de meu dono e não
haverá ninguém que não ache que mereço o castigo.
Oito homens fortes malhariam em mim como se eu
fosse uma bigorna. E era com esta hospitalidade que
eu seria recebido ao regressar. Mas a tudo isto me
obrigou
sair do aporto,
impaciência
sem eu de meu ainda
querer, amo que me levou
de noite. Não aé
verdade que ele me poderia ter mandado de dia?
Mas é duro servir um homem rico. O escravo do opu
lento é o mais infeliz de todos. De noite e de dia tem
sempre alguma coisa que se faça, alguma coisa que
se tem de realizar ou de dizer, só para que se não
esteja quieto. Um amo rico e que não tem experiên
cia nem de trabalho, nem de fadigas, julga que se
pode fazer tudo o que lhe vem à cabeça; pensa que
tudo está certo e não se importa com o trabalho que
possa dar. E nem vai sequer refletir se é justo ou in
justo aquilo que mandou. É por isso que quem serve
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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio (a parte): O mais acertado era ser eu a


queixar-me deste modo da servidão sempre fui livre,
exceto hoje. Mas a ele já o pai o fez escravo; nasceu
servindo, e ainda se queixa. Mas realmente só sou
escravo de nome.
Sósia. O que eu pensava ao chegar era dar graças aos
deuses, era mostrar-lhes alguma gratidão pelos favo
res que me fizeram. Por Pólux! Se eles tencionassem
recompensar-me pelos meus méritos com certeza ar
ranjariam alguém para me partir a cara à chegada:
de fato, sempre fui ingrato, nunca dei importância ao
bem que me fizeram.

Mercúrio (à parte): Este faz o que não é costume:


sabe o que merece.

Sósia: Aconteceu aquilo que eu não esperava, nem es


perou nenhum dos nossos patrícios: voltar são e
salvo à nossa terra. O exército regressa vitorioso, de
pois de derrotado o inimigo, depois de terminada
esta enorme guerra e de destruir os adversários, que
tinham causado tantos desastres ao povo tebano. A
cidade foi vencida e tomada de assalto pelo ímpeto,
pelo valor dos nossos soldados sob o comando e a
guia de meu amo, Anfitrião. Distribuiu aos seus con
cidadãos os despojos, as terras, e o cereal. E garantiu
o seu trono a Creonte, rei de Tebas. Mesmo do porto
mandou-me a casa, à sua frente, para anunciar tudo
isso à mulher, a forma por que ele salvou o Estado
com o seu comando, as suas ordens, a sua guia. E eu
agora estou a pensar de que maneira lho hei de dizer
quando chegar lá. Se eu disser mentiras, não proce
derei senão segundo o meu costume. Quando eles
combatiam com toda a coragem, fugia eu o mais que
podia e no entanto tenho de fingir que estive lá e
contar-lhe o que ouvi. Mas o que eu desejo meditar a
sós comigo é de que modo e com que palavras me
convém mentir; o que eu vou fazer é falar assim.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Primeiro, logo que lá chegamos, e mal se desem


barcou, escolheu Anfitrião os chefes principais e
nomeou-os seus delegados, dando-lhes ordem de co
municar aos teléboas as suas determinações: se eles
quisessem, sem violência e sem guerra, entregar os
raptores e o raptado, se restituíssem o que tinham
levado, imediatamente ele faria regressar o exército,
os argivos abandonariam o campo e ele lhes daria
sossego e paz. Mas que se outra fosse a sua intenção,
que se não dessem aquilo que ele pedia, ele então
tomaria de assalto com toda a violência e todo o seu
exército a sua cidade.
Quando
ram estas aqueles quesua
coisas por Anfitrião
ordem tinha enviado logo
aos teléboas, disse
os
outros, homens corajosos, confiados nas suas forças e
no seu valor, e altivos, insultam os nossos delegados
com toda a violência; respondem que podiam muito
bem guardar-se pelas armas, a si e aos seus e que,
portanto, tratassem de retirar o exército dos seus
territórios, o mais depressa possível.
Quando
trião os delegados
mandou vieram comunicar
sair imediatamente isto, Anfi
do acampamento
todo o seu exército; por seu lado os teléboas formam
as suas legiões fora da cidade, todas equipadas de
armas esplêndidas. Depois que duma banda e doutra
saiu uma grande quantidade de gente, ficaram dis
postos os homens e ficaram dispostas as formações:
nós dispusemos as tropas segundo a nossa maneira,
o nosso costume, e por seu turno fazem o mesmo os
inimigos com as legiões que lhes pertencem. Depois
ambos os comandantes se dirigem ao meio para além
das linhas e falam um com o outro; concordam em
que os vencidos nesta batalha entreguem a cidade, o
campo, os altares, os lares, e a si próprios se entre
gam. Depois de feito isto, soam as trombetas de um e
de outro
um clamorlado
de eambos
em resposta
os ladosa eterra
de ecoa; levanta-se
ambos os lados
faz o general seus votos a Júpiter e exorta o seu
exército.
Então cada um mostra aquilo que pode o seu va

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

lor, e fere com o ferro; passam os dardos, reboa o céu


com o clamor dos homens; forma-se uma nuvem com
o seu fôlego, o seu bafo; caem prostrados pela violên
cia das feridas e dos encontros. Finalmente, como
era nossa vontade, o nosso exército sai vencedor; os
inimigos ao
lançam caem em grande
ataque. número,
Vencemos pela e nossa
os nossos se
coragem
terrível. Todavia, ninguém se põe em fuga, ninguém
recua do seu lugar, mas ali combate; prefere morrer a
recuar um passo; cada um fica jazendo no lugar em
que estivera e morre no seu posto. Logo que Anfi
trião, meu amo, viu tudo isto, imediatamente man
dou a cavalaria atacar pela direita. Os cavaleiros
obedecemvoam
ímpeto, logo pela
e com grande
direita clamor, destroem
e derrotam, com violento
com
toda a justiça as injustas tropas inimigas.
Mercúrio (à parte): Até agora ainda ele não disse
mentira nenhuma: eu e meu pai estávamos lá, en
quanto se combatia.

Sósia: Oso ardor


menta inimigos
dospõem-se
nossos; então em fuga,
os teléboas que ofugiam
que au
fi
cam com os corpos cobertos de dardos e o próprio
Anfitrião matou com suas mãos el-rei Ptérela.
Combateu-se desde manhã até à noite, coisa que me
lembro perfeitamente porque nesse dia não jantei.
Por fim, a noite chegou e com sua intervenção deci
diu o combate. No dia seguinte, vieram os chefes
inimigos, da cidade
conosco; vinham para oe, acampamento
chorando para falar
erguendo as mãos, pe
diam que lhes perdoássemos os seus erros. E todos
eles se entregam, com os seus bens, com os seus deu
ses, com a cidade e com os filhos, ao arbítrio e à von
tade do povo tebano. Depois foi entregue a meu amo,
Anfitrião, por causa de sua coragem, uma taça de
ouro por onde o rei Ptérela costumava beber. É isto o

que as
prir euordens
vou dizer à amo
de meu senhora. E agora
e de entrar tenho de cum
em casa.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio (à parte): Que é lá isso? Entrar em casa?


Vou-lhe já ao encontro. Hoje não vou deixar que este
homem entre em casa e como tenho o seu aspecto
acho que vou brincar um bocado com ele. E, assim
como lhe tomei a forma e as ocupações, também te
nho que praticar os mesmos feitos e mostrar os
mesmos costumes. Tenho de ser ruim, esperto, as
tuto e de afastá-lo da porta com a malícia, que é a
sua arma especial. Mas que é isso? Está a olhar para
o céu! Vou ver o que é que ele está a fazer.
Sósia: O que eu sei, ao certo, por Pólux, se há alguma
coisa que eu realmente saiba ao certo, ou creia saber,
é que me parece que esta noite Vésper se embriagou
e se deixou dormir. Efetivamente nem as estrelas da
Ursa se mexem no céu, nem a lua se move do lugar
onde nasceu. Nem Orionte, nem Vênus, nem as
Plêiades vão para o poente. Todas as estrelas estão
paradas e a noite não cede o lugar ao dia.

Mercúrio (à parte): Vamos, noite, continua como co-


meçaste,
uma coisafaze a vontade
ótima a uma aótima
meu pessoa.
Pai; fazes
Vaisotimamente
ver como
ganhas!

Sósia: Eu acho que nunca vi noite maior do que esta,


a não ser quando estive pendurado a apanhar chico
tadas. No entanto, por Pólux! esta noite ainda me
parece por
mindo maior.
ter Por Pólux!
bebido acho que
em excesso o sol me
e muito estáadmi
dor
raria se ele não tivesse ceado hoje um bocadinho a
mais.

Mercúrio (à parte): Ah é isso o que tu dizes, meu pati


fe! Julgas que os deuses são iguais a ti? Por Pólux!
hoje
ditos é e que eu te vou
malefícios, dar o malandro!
grande que mereces peloscá,teus
Anda se
queres ver o que te acontece.

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Sósia: Onde estão esses pândegos que ficam deitados


sozinhos e de má vontade? Isto é que é noite para se
passar com mocas e lhes fazer ganhar dinheiro!

Mercúrio (à parte): Então meu Pai está a proceder


muito bem segundo a opinião deste homem, visto
que está deitado com Alcmena, abraçando-a e
amando-a, segundo sua vontade.

Sósia: Pois lá vou, segundo as ordens de meu amo, a


dar a notícia a Alcmena. (Percebendo Mercúrio.) Mas
que homem é esse que eu vejo, assim de noite, diante
da porta? Não me agrada nada.

Mercúrio (à parte): Nunca vi ninguém com tanto me


do.

Sósia (à parte): Quem será? Vem-me agora à idéia que


ele é capaz de julgar que tem algum conserto a
fazer-me no manto.

Mercúrio (à parte): O homem está com medo; vou


brincar com ele.

Sósia (à parte): Estou perdido! Até tenho comichão


nos dentes! Acho que ele me vai mesmo receber a
soco! Naturalmente por bondade: como o amo me
deu ordem de ficar acordado, ele me fará dormir com
os
Por punhos.
Hércules! Ai
Queque estou Como
tamanho! mesmo morto! Por favor!
é forte!

Mercúrio (à parte): Agora vou falar alto para ele ou


vir o que digo, o que o fará ter um medo ainda muito
maior. (Alto.) Vamos, punhos! Já há muito tempo
que vós não dais comida para a barriga; e já me pa
rece que foi há muito tempo, quando foi ontem, que
vós pusestes a dormir, e nus, aqueles quatro homens.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia (à parte): Do que eu estou com medo é de ter


que mudar de nome e passar de Sósia a Quinto.1 Ele
gaba-se de ter feito adormecer quatro homens! Estou
com muito receio de ir aumentar o número!

Mercúrio (na atitude de quem se prepara para bater):


Olá! Vamos embora! Toca a recebê-lo!
Sósia (à parte): Já está a arregaçar-se, já está a
preparar-se!
Mercúrio <à parte): Quem apanhar, não agüenta!

Sósia (à parte): Mas quem?


Mercúrio: Quem vier, seja quem for, há de comer-me
os socos!
Sósia (à parte): O quê? Agora assim de noite? Não!
Acabei de cear, o melhor é tu ires oferecer essa ceia a
quem esteja com fome!
Mercúrio (à parte): O peso deste punho não é nada
mau.

Sósia (à parte): Estou perdido! Está pesando os pu


nhos!
Mercúrio: E se eu lhe tocar um bocadinho, a ver se ele
dorme?
Sósia (à parte): Isso é que era favor! Há três noites
seguidas que estou acordado.

Mercúrio: Mas isto é uma coisa horrível! Esta mão


não sabe senão bater à bruta; será que tem sempre
que ficar doutro feitio tudo aquilo em que tocas?

1) Quinto era efetivamente um nome próprio romano e de


signava primitivamente o quinto filho.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia (à parte): Então este homem não se vai pôr a


trabalhar em mim? Quer fazer-me outra cara...!
Mercúrio (à parte): Cara em que tu bateres a jeito,
tem de ficar logo sem ossos!
Sósia (à parte): Olha agora! Está pensando em tirar-
me os ossos, como se eu fosse uma moréia! Oxalá es
tivesse bem longe quem assim desossa gente! Se ele
me vê, estou perdido!
Mercúrio (à parte): Sinto o cheiro dum desgraçado!

Sósia (à parte): Será que eu deitei algum fedor?

Mameaçadora:)
ercúrio: AchoE jáque nãolonge...
esteve deve estar longe. (Com ironia
Sósia (à parte): Mas este homem adivinha!

Mercúrio (à parte): Até as mãos já mexem!


Sósia (à parte): Pois se as vais exercitar em mim, o
melhor era amansá-las primeiro na parede.

Mercúrio (à parte): Houve uma voz que voou até aos


meus ouvidos.
Sósia (à parte): Ai que pena que foi não lhe ter cor
tado as asas; tenho voz de pássaro!
Mercúrio (à parte): Parece que este homem veio pro
curar carga para o burro.
Sósia (à parte): Mas eu não tenho burro nenhum!
Mercúrio lá parte): Pois vai levar uma carga de so
cos!
Sósia (à parte): Estou cansado do navio que me
trouxe aqui; ainda sinto o enjôo. Mal posso andar.
Como é possível que ainda me queiram carregar.

54

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio (à parte): Não sei quem anda a falar por


aqui.

Sósia (à parte): Estou salvo. Ele não me vê. Julga que


anda a falar o Não-sei-quem. Ora, eu chamo-me Só
sia.
Mercúrio (à parte): Parece que a voz me chegou
agora da direita.
Sósia (á parte): Se a voz lhe chegou da direita, lá me
vai ele chegar a mim em vez de à voz.

Mercúrio: Ora muito bem, aqui vem ele.


Sósia (à parte): Estou cheio de medo, estou entorpe
cido de todo. Se alguém me perguntasse eu nem po
deria dizer em que lugar estou da terra; e ai de mim,
é tanto o medo que nem me posso mexer! Lá morrem
juntos Sósia e os recados do amo! Mas o que tenho
de fazer é de lhe replicar com coragem; talvez eu lhe
pareça bastante forte para não me pôr as mãos.
Mercúrio: Para onde vais tu, que assim levas Vulca-
no2 metido num chifre?

Sósia: Que queres tu que andas aos socos a tirar ossos


da cara das pessoas?

Mercúrio: Tu és escravo ou homem livre?


Sósia: Sou aquilo que me apetece.
Mercúrio: Isso é mesmo assim?
Sósia: É mesmo assim.

Mercúrio: Então, apanhas.

2) Vulcano: deus do fogo e dos trabalhos de forja.

55
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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Não é verdade.


Mercúrio: Ah, sim? então já vais ver que é verdade!

Sósia: Mas para que é preciso isso?

Mercúrio: Pode-se saber quando é que vais, a quem


pertences, e por que vieste?
Sósia: Venho aqui; sou escravo de meu amo, sabes
mais alguma coisa?

Mercúrio: Pois hoje hei de espremer-te essa língua


danada!

Sósia: Não podes, é uma língua discreta e de boa qua


lidade.
Mercúrio: Continuas com as graças? Que tens tu que
fazer nesta casa?
Sósia: E tu? Que tens tu que fazer?

Mercúrio: El-rei Creonte sempre lhe põe sentinelas de


noite.
Sósia: E faz muito bem; guardava a casa enquanto es-
távamos ausentes. Mas agora podes-te ir embora e
dizer-lhe que já chegou a gente de Anfitrião.

ercúrio: Não sei


Mimediatamente que gente
embora, acho ésque
tu. tenho
E se tede não vais
receber
gente de forma nada gentil.
Sósia: Mas eu já disse que moro aqui e que sou es
cravo da casa.
Mercúrio: Pois olha: se te não vais embora, vou dar-te
hoje uma grande honra.
Sósia: Como é isso?

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio: É que se eu pego num pau, não irás por teu


pé. Vão ter que te levar.
Sósia: Mas se eu digo que pertenço à gente desta casa!

Mmelhor
ercúrioé: ires-te
Olha,já se não queres apanhar pancada, o
embora.
Sósia: Mas tu não me queres deixar entrar em casa,
quando eu venho assim de tão longe?
Mercúrio: Será que esta é a tua casa?

Sósia: Claro que é.


Mercúrio: Então quem é teu amo?

Sósia: É Anfitrião, que está comandando as legiões te-


banas e que é marido de Alcmena.
Mercúrio: O que é que tu dizes? E tu? Que nome
tens?
Sósia: Os tebanos chamam-me Sósia e meu pai
chamava-se Davo.
Mercúrio: Pois tu hoje vens ao encontro da desgraça,
com essas tuas mentiras audaciosas e essas falsida
des mal alinhavadas.
Sósia: Com o que eu venho alinhavado não é com as
mentiras. É com as túnicas.
Mercúrio: Vês como estás a mentir. Tu não vens com
as túnicas. Vens com os pés.
Sósia: Lá isso é verdade.
Mercúrio: Então agora vais apanhar pancada por
causa dessa mentira.
Sósia: Mas eu não quero, por Pólux!
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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio: Pois, por Pólux, apanhas mesmo sem que


rer! E não é uma pura suposição, é a verdade mesmo.
(Bate-lhe.)
Sósia: Mas por favor!

ercúrio: Então tu tens a audácia de vires dizer que


Més Sósia, quando sou eu que sou Sósia?
Sósia: Estou perdido!
Mercúrio: E olha que é pouco, em comparação com o
que vai vir! A quem pertences tu?
Sósia: Agora sou teu; fizeste-me teu a soco. Socorro,
patrícios tebanos!
Mercúrio: Ainda gritas, assassino! Dize lá a que é que
vieste?
Sósia: Vim para haver alguém que tu abatestes a soco.
Mercúrio: A quem pertences tu?
Sósia: A Anfitrião, já disse. Sou Sósia.
Mercúrio: Então vais apanhar mais, por estares a di
zer bobagens. Eu é que sou Sósia, não és tu!
Sósia: (à parte); Queiram os deuses que tu o sejas! E
que eu me transforme em quem te chega!

Mercúrio: Ainda rosnas?!


Sósia: Já me calo.
Mercúrio: Quem é teu dono?
Sósia: Quem tu quiseres.
Mercúrio: E agora, como é que tu te chamas?
Sósia: Eu não sou ninguém a não ser quem tu manda-
res.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio: Mas tu dizias que eras Sósia e que perten-


cias a Anfitrião.
Sósia: Foi engano. O que eu queria dizer é que era um
sócio de Anfitrião.

Mercúrio: Eu bem sabia que não tínhamos nenhum


escravo chamado Sósia a não ser eu. Tu não estavas
em teu perfeito juízo.
Sósia (à parte): Oxalá não o estivessem também as
tuas mãos.
Mercúrio: Eu sou o Sósia que tu há bocado dizias ser
tu.
Sósia: Por favor, deixa-me falar em paz e não me ba
tas.
Mercúrio: Então, se queres falar, vamos fazer umas
tréguas.

Sósia: Eu só falo depois de concluída a paz, porque tu


tens mais força do que eu.
Mercúrio: Então dize lá o que queres. Eu não te faço
mal.
Sósia: Posso confiar na tua lealdade?

Mercúrio: Podes.
Sósia: E se me enganas?
Mercúrio: Então oxalá Mercúrio fique irritado com
Sósia!
Sósia: Então toma cuidado. Olha que eu agora posso
falar
trião. do que quiser. Eu sou Sósia, escravo de Anfi
Mercúrio: O quê, outra vez?

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Eu fiz a paz, eu fiz um tratado, estou a dizer a


verdade.
Mercúrio: Olha que apanhas!
Sósia: Podes fazer o que quiseres, visto que tens mais
força. Mas seja o que for que tu faças, por Hércules,
já não me calo.
Mercúrio: Tu, enquanto estiveres vivo, não consegues
que eu não seja Sósia.
Sósia: E tu, por Pólux, também nunca me impedirás
que eu pertença à minha casa. Não há nenhum outro
escravo a não ser eu que se chame Sósia e que tenha
ido para a guerra, juntamente com Anfitrião.
Mercúrio: Este homem não está bom da cabeça.
Sósia: O defeito que me atribuis a mim és tu quem o
tens. — Ora esta, então eu não sou Sósia, o escravo
de Anfitrião? Não foi esta noite que chegou do porto
Pérsico o navio que me trouxe? Não foi meu amo
quem me enviou para aqui? Não estou eu diante de
nossa casa? Não tenho eu uma lanterna na mão?
Não sou eu quem está a falar? Não estou acordado?
Não foi a mim que este homem deu socos? Por Hér
cules, foi o que ele fez, que ainda me doem os quei
xos. — Mas para que estou eu a hesitar? Por que não
entro já em nossa casa?
Mercúrio: O quê? Em vossa casa?
Sósia: Pois claro.
Mercúrio: Tudo aquilo que disseste é mentira: sou eu
que sou Sósia, escravo de Anfitrião. Foi esta noite
que saiu do porto Pérsico o nosso navio; tomamos de
assalto a cidade em que reinou el-rei Ptérela, vence
mos em batalha as legiões dos teléboas e foi o pró
prio Anfitrião quem matou no combate el-rei Ptérela.
Sósia: Eu não creio em mim quando o ouço dizer estas
coisas! É que ele realmente sabe tudo o que se pas

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

sou como se lá tivesse estado. Mas ouve lá, que foi


dado pelos teléboas a Anfitrião?
Mercúrio: Uma taça de ouro por onde costumava be
ber el-rei Ptérela.
Sósia: Aí está! E onde está essa taça?
Mercúrio: Num cofrezinho selado com o sinete de An
fitrião.
Sósia: E dize lá, que sinete é esse?
Mercúrio: O sol nascente com a sua quadriga. Julgas
que me apanhas, assassino?
Sósia (à parte): Venceu na discussão. O que eu tenho é
que procurar outro nome. Não sei onde é que ele viu
tudo isto. Mas agora é que eu o vou atrapalhar. Por
que com certeza ele não vai poder dizer o que eu fiz
quando estava sozinho, metido na tenda, sem mais
ninguém. (Alto.) Se tu és Sósia, dize lá o que é que
fizeste na tenda, quando as legiões combatiam com
toda a violência? Se disseres, dou-me por vencido.
Mercúrio: Havia uma bilha de vinho e eu enchi uma
garrafa.
Sósia: Deu logo certo.
Mercúrio: E eu bebi-o puro, tal como o deu a cepa.
Sósia: Já não é nada de espantar se ele não estava es
condido na garrafa. Aconteceu mesmo isso. Que eu
bebi o vinho e o bebi puro.
Mercúrio: Então, não é verdade que já te convenci
que não és Sósia?

Sósia: Então tu queres dizer que eu não sou eu?


Mercúrio: Que hei de eu fazer? Terei por acaso de ne
gar que eu sou eu?

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Juro por Júpiter que sou eu e que estou a dizer


a verdade!
Mercúrio: E eu juro por Mercúrio que Júpiter não
acredita em ti! Mais acredita ele em mim, sem eu ju
rar, do que em ti, jurando tu.
Sósia: Então quem sou eu se não sou Sósia? Não farás
favor de me dizer?
Mercúrio: Quando eu não quiser ser Sósia, podes tu
ser Sósia, mas enquanto eu o sou, olha que apanhas
se não te vais sem pio.
Sósia: Por Pólux! Realmente quando me ponho a
olhar para ele,
semelhante vejo pelo
a mim, que tem
que otenho
meu visto
aspecto;
no éespelho.
muito
Tem o mesmo chapéu, o mesmo vestuário: é exata
mente como eu: as pernas, os pés, a estatura, o corte
do cabelo, os olhos, o nariz, a boca, a cara, o queixo,
a barba, o pescoço. Tudinho! Que hei de eu dizer?!
Se ele tem as costas com cicatrizes, não há nada
mais parecido comigo. Mas também quando me po
nho a pensar, eu devo ser aquele que sempre fui. Eu
conheço o meu amo, conheço a nossa casa, estou
com juízo, tenho os sentidos a funcionar. Eu o que
vou é não querer saber do que ele diz. Toca a bater à
porta.
Mercúrio: Para onde é que vais?
Sósia: Para casa.
Mercúrio: Mesmo que subisses agora ao carro de Jú
piter e te pusesses a fugir, dificilmente escaparias a
uma desgraça.
Sósia: Então não me é permitido ir comunicar à se
nhora aquilo de que me encarregou meu amo?
Mercúrio: Podes ir anunciar o que quiseres, mas à
tua. Aqui à minha não tens licença. E olha que se tu
me irritas vais sair daqui com o lombo em pedaços.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Então prefiro ir-me embora. Ó deuses imortais,


não quereis ajudar-me? Onde é que eu morri?
Quando é que eu me transformei? Onde é que eu
perdi a minha cara? Será que eu me deixei aqui por
esquecimento? Efetivamente este tem a fisionomia
que nunca
que eu possuía
ninguémdantes. Fazem-me
me fará depois enquanto
de morto.vivo
3 Vouo
ao porto, vou contar a meu amo o que sucedeu por
aqui. A não ser que ele também me desconheça, o
que Júpiter queira. Vou já hoje rapar a cabeça para
usar o boné da liberdade.4 (Sai.)

MERCÚRIO
Hoje tudo me correu bem e com felicidade. Afastei
da porta o incômodo que podia ser maior, de modo
que pode meu Pai abraçá-la com toda a segurança. E
o outro, quando chegar agora junto de Anfitrião seu
amo, contará que o afastou da porta um escravo
chamado Sósia. Anfitrião julgará que ele lhe mente e
vai supor que ele não veio até aqui como lhe fora or
denado. Vou enchê-los a eles, e a toda a família de
Anfitrião, de confusões e de enganos, até que meu
Pai se farte daquela de quem gosta. Por fim, todos
hão de saber de que se trata e Júpiter levará Alc
mena à antiga boa união com seu esposo. Ao princí
pio Anfitrião levantará as turbas contra sua esposa e
acusá-la-á
todo esse de traição,Alcmena,
tumulto. mas meu Pai há
o que de vos
ainda acalmar
não
disse, terá dois filhos gêmeos; um dos meninos nas
cerá dez meses depois de ter sido gerado, e outro, no
seu sétimo mês. Um deles é de Anfitrião, o outro de

3) Era costume, nas exéquias antigas, exibir as efígies dos


antepassados do morto, quando este era personagem de certa
situação social. Sósia, evidentemente, não podia esperar tal
distinção depois de morto.
4) O boné da liberdade: o barrete feígio que usavam os es
cravos libertos.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Júpiter.5 O Pai do menino menor é o maior, o do


maior o menor. Percebeis agora o que há? Mas meu
Pai tratou de que Alcmena, para que não haja de
sonra alguma, tenha apenas um parto e que com um
só trabalho se livre das duas dores, de maneira a não
ficar com suspeita
qualquer suspeitasclandestina.
de infidelidade e a nãocomo
No entanto, haver

disse há bocado, Anfitrião ficará sabendo tudo. E de
pois? Depois, ninguém fará nenhuma censura a Alc
mena, visto que não é justo que um deus deixe cair
sobre um mortal o seu delírio, a sua culpa. Mas vou
parar de falar: a porta fez barulho, aqui vem o falso
Anfitrião com Alcmena, sua mulher de empréstimo.

JÚPITER, ALCMENA, MERCÚRIO

Júpiter: Então adeus, Alcmena. Trata bem das nossas


coisas como tens feito. Mas poupa-te, por favor; bem
vês que já estás quase no fim. Eu tenho de me ir em
bora; mas tu trata bem do menino quando ele nas
cer.
Alcmena: Então que negócio urgente te obriga assim,
meu querido, a ires-te embora tão depressa?
Júpiter: Por Pólux, não é porque esteja aborrecido
contigo ou com a casa; mas quando o comandante
supremo não está com o seu exército mais depressa
se faz aquilo que não devia ser feito do que aquilo
que tinha de se fazer.
Mercúrio (à parte): Não há dúvida de que meu Pai é
um refinado manhoso. Vede só como ele sabe ami
mar a mulher!
Alcmena: Por Castor! Bem vejo o caso que fazes de tua
mulher!

5) O filho de Júpiter será Hércules, o herói que destruirá


os monstros do mundo.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Júpiter: E não consideras bastante não haver ne


nhuma outra mulher de quem eu goste tanto como
de ti?
Mercúrio (à parte): Por Pólux!, se a outra soubesse
em queAnfitrião
rias ser tu andas ocupado,
a seres eu te garanto que prefe-
Júpiter!
Alcmena: Tudo isso gostaria eu mais de ter na reali
dade do que na lembrança. Vais-te embora ainda an
tes de ter ficado quente o teu lugar na cama. Vieste
ontem a meio da noite e agora vais-te embora. Achas
bem uma coisa destas?
Mercúrio (à parte): Eu vou lá ter com eles para aju
dar meu pai. (Alto.) Por Pólux! eu acho que nunca
houve nenhum mortal que amasse sua esposa tão
ardentemente como ele te ama a ti.
Júpiter: Ah! bandido, julgas que não te conheço?
Sai-me já da vista! Que tens tu que ver com isto?
Meu pateta! Olha que eu pego neste pau...
Alcmena (segurando-o): Ah, isso não!

Júpiter: Eu que te ouça!...


Mercúrio (à parte): Fui fazer de parasito e não me saí
nada bem.
Júpiter: Quanto ao que estavas dizendo, minha mu
lher, acho que não está bem zangares-te comigo. Eu
vim às escondidas do exército; faltei por ti ao meu
dever para que fosses a primeira a saber de mim de
que maneira eu defendi o Estado. Tudo isso te con
tei; ora, não o faria se não gostasse imenso de ti.

MOlhai
ercúrio (a parte): Não é verdade? É o que eu disse?
os carinhos com que ele está!
Júpiter: Ora, para que o exército não dê por nada, te-

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

nho de voltar às escondidas. Não quero que digam


que eu preferi minha esposa ao Estado.
Alcmena: Mas deixas tua mulher lavada em lágrimas.
Júpiter: Cala-te. Não estragues os olhos. Eu volto logo.
Alcmena: Ora, esse logo vai ser muito tempo.
Júpiter: Não é por gosto que eu te deixo e me vou
embora.
Alcmena: Bem sei. É por isso que te vais embora na
mesma noite em que vieste.
Júpiter: Por que é que me reténs? Já são horas, quero
sair da cidade antes que venha o dia. (Apre
sentando-lhe um cofrezinho.) Mas agora, Alcmena,
quero dar-te esta taça que recebi de presente pela
minha coragem e por onde bebia el-rei Ptérela que
eu matei com minha própria mão.
Alcmena: Tu procedes como sempre. Por Castor! É um
presente digno daquele que mo dá!
Mercúrio: Muito mais digno da pessoa a quem é da
do!
Júpiter: Ainda continuas?! Será que eu não te posso
fazer desaparecer, meu velhaco?

Alcmena : Por
por minha favor, Anfitrião, não te irrites com Sósia
causa!
Júpiter: Será como quiseres.
Mercúrio (à parte): Olha como ele fica bravo com o
amor!
Júpiter: Que queres mais ainda?
Alcmena: Que tu gostes de mim, mesmo ausente, e
mesmo de longe te lembres que sou tua.

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Mercúrio: Vamos, Anfitrião. Já vem luzindo o dia.

Júpiter: Vai tu à frente, Sósia. Eu vou já. (A Alcmena.)


Queres mais alguma coisa?
Alcmena: Quero: que venhas depressa.

Júpiter: Muito bem. Virei antes do que tu esperas.


Podes ficar sossegada. (Alcmena sai.) E agora, ó noi
te, que tanto demorei, dou-te licença para que cedas
ao dia, e para que deixes vir aos mortais a clara luz
resplandecente; e como esta noite foi mais longa que
a anterior, tanto mais curto farei que seja o dia, para
que haja
agora, vou aseguir
mesma diferença
Mercúrio. (Sai.)e o dia ceda à noite. E

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ATO II

ANFITRIÃO, SÓSIA
Anfitrião: Vamos, vem atrás de mim.

Sósia: Cá vou e mesmo atrás.

Anfitrião: Acho que o que tu és é um grande patife.

Sósia: Mas por quê?

Anfitrião: Porque me vens contar coisas que não


existem, nunca existiram, nem hão de existir.

Sósia: Por Ceres! Sempre arranjas as coisas de ma


neira que não acreditas em ninguém.
Anfitrião: O quê? Como é isso? O que eu vou fazer-te,
por Hércules, meu safado, é cortar-te essa língua sa
fada.

Sósia: Como
muito te pertenço,Agora,
bem entenderes. podeso fazer-me aquilo
que tu não podesqueé
obrigar-me a dizer que não aconteceu o que real
mente aconteceu.

Anfitrião: Ah! meu grandíssimo patife! Ainda ousas


dizer-me o mesmo? Que estás em casa quando afinal
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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Verdade pura.

Anfitrião: Vais ver o que os deuses te darão hoje, e o


que te darei eu também.

Sósia: É uma coisa que está na tua mão. Bem sabes


que te pertenço.
Anfitrião: O que, meu canalha, tu ousas brincar com
teu senhor, tu ousas dizer uma coisa dessas? Como é
que pode suceder uma coisa que nunca ninguém viu,
estar o mesmo homem ao mesmo tempo em dois lu
gares?

Sósia: No entanto, é tudo exatamente como eu digo.


Anfitrião: Júpiter te confunda!

Sósia: Mas, realmente, meu amo, que mal é que eu te


fiz?

Anfitrião: Ainda o perguntas, meu sem-vergonha? Tu,


que te pões a brincar comigo?
Sósia: Realmente, se assim fosse, terias razão em estar
contra mim. Mas não estou a mentir, digo apenas o
que sucedeu.
Anfitrião: O que eu acho é que este homem está bêbado.
Sósia: Oxalá assim fosse!

Anfitrião: Isso é desejar o que já tens.

Sósia: Eu?
Anfitrião: Tu, claro! Onde é que foste beber?

Sósia: Eu não bebi em parte nenhuma!

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Anfitrião: Mas que homem este!

Sósia: Já disse mais de dez vezes que estou em casa!


Estás a ouvir? E quem está junto de ti é o mesmo
Sósia. E agora, meu amo, achas que te falei com bas
tante clareza e com bastante eloqüência?
Anfitrião: Vai já para longe de mim!

Sósia: Mas então que é isso?

Anfitrião: Tu não estás bom!

Sósia: Por que é que dizes isso? Estou de excelente


saúde, estou mesmo bem, Anfitrião.

Anfitrião: Pois eu hoje vou dar-te o tratamento que


tu mereces: hás de ficar com menos saúde, mesmo de
fazer pena, se chegar à casa são e salvo. E agora
trata de seguir teu amo de quem tu zombas com di
tos delirantes. Lá porque não estiveste para cumprir
o que teu amo te mandou, vens agora rir-te dele. Isso
não pode ser. Vens contar coisas que nunca ninguém
ouviu, meu patife. Hoje todas estas mentiras te hão
de sair do lombo.

Sósia: Ai, Anfitrião, o pior que pode suceder a um bom


escravo é ver por terra todas as verdades que diz a
seu amo.

Anfitrião: Mas como é que pode ser, malandro (vamos


lá discutir com ele) que tu estejas aqui e em casa?
Isso é que eu quero que tu digas.

Sósia: Pois é fora de dúvida que estou aqui e lá. Claro


que todos se admiram, mas realmente ninguém se
admira
jam comomais do que eu.
a principio Assimacreditava
eu nem os deusesemme prote
mim, em
Sósia, até que eu mesmo Sósia mo fizesse acreditar.
Contou-me tintim por tintim tudo o que aconteceu

T1

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

enquanto estivemos na guerra; tirou-me a cara jun


tamente com o nome: leite não é mais igual a leite
do que ele é igual a mim. Quando me mandaste à
casa, do porto, antes de nascer o dia...

nfitrião
A : E então?
Sósia: Já eu lá estava, diante de casa, muito antes de
chegar.
Anfitrião : Qual história, meu safado! Será que tu es
tás bom da cabeça?

Sósia: Pois não vês que estou?

Anfitrião: Não sei que passe de mãos lhe fizeram de


pois que se afastou de mim.

Sósia: É isso mesmo. Foi um passe de mãos à grande!

Anfitrião: Quem é que te bateu?

Sósia: Quem me bateu? Fui eu que estou lá em casa!

Anfitrião: Vê lá se não me respondes senão ao que eu


te perguntar! O que eu quero que tu me digas antes
de mais nada, é quem é esse Sósia.
Sósia: É este teu escravo.

Anfitrião: Olha: com um, até eu tenho já mais do que


quero! E depois que nasci nunca tive outro escravo
Sósia a não seres tu.
Sósia: Pois eu, Anfitrião, o que te digo é o seguinte:
verás como encontras em casa um outro escravo teu,
chamado Sósia, além de mim, e filho de Davo. Tem o
mesmo pai que eu, a mesma fisionomia, a mesma
idade. E não há mais nada a dizer: o teu Sósia
tornou-se duplo.

72

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Anfitrião: Contas-me coisas que são de espantar. Mas


ouve lá: viste minha mulher?

Sósia: Não me foi possível entrar em casa.

Anfitrião: Quem é que te impediu?


Sósia: Foi Sósia. Aquele de que já falei, aquele que me
bateu.

Anfitrião: Mas quem é esse Sósia?

Sósia: Sou eu, já disse! Quantas vezes terei que o repe


tir?!
Anfitrião: Mas que é que tu dizes? Não terás adorme
cido, por acaso?
Sósia: De modo algum!
Anfitrião: É que podia ser que em sonhos tivesses
visto esse Sósia.

Sósia: Não costumo cumprir dormindo as ordens de


meu amo. Foi acordado que o vi, é acordado que te
vejo agora, é acordado que falo e foi acordado que
ele me encheu de socos, a mim que estava acordado.

Anfitrião: Mas que homem?


Sósia: Sósia, já disse! Eu, e ele! Por favor, não compre
endes?

Anfitrião: Mas, grande malandro, como é possível al


guém compreender alguma coisa? Só dizes bobagens.

Sósla: Agora é que tu vais ver!


Anfitrião: Ver o quê?

73

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Vê-lo, a ele, ao teu escravo Sósia.


Anfitrião: Vem comigo. O que eu tenho é que investi
gar já isto. E trata de que desembarquem já do navio
tudo quanto ordenei.
Sósia: Bem me lembro. E serei diligente em cumprir
todas as tuas ordens: não engoli nem vinho, nem o
que tu mandaste.
Anfitrião: Queiram os deuses que não haja realidade
nenhuma em tudo aquilo de que falaste.

ALCMENA, ANFITRIÃO, SÓSIA, TESSALA

Alcmena (sem ver Anfitrião nem Sósia): Realmente há


poucos prazeres na vida e no passar do tempo em
comparação com tudo o que é molesto. Mas é este o
destino dos homens e foi esta a vontade dos deuses,
que a tristeza venha sempre como companheira do
prazer; e se alguém recebeu alguma coisa de bom,
logo lhe vem maior incômodo e maior mal. É isto
exatamente o que eu experimento agora, é isto o que
eu sei de mim; tive algum prazer enquanto me foi
possível estar com meu esposo; e foi só uma noite, lá
se foi ele de repente, antes que rompesse o dia. E
agora vejo-me aqui sozinha porque ele está ausente,
o único homem de quem eu gosto. Afinal mais me
custou a sua partida do que me deu prazer a sua
chegada. Mas o que no entanto me dá gosto é ele ter
vencido na guerra e voltar para casa coberto de gló
ria; sempre é uma consolação. Pode estar ausente:
mas que volte cheio de honras; sofrerei, suportarei a
sua ausência com ânimo forte e corajoso, se me for
concedido como recompensa que meu esposo volte
da guerra glorioso e vencedor; acharei que isso me
basta. O valor é a melhor das qualidades; o valor

74

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

está acima de todas as coisas; é por ele que se con


servam e se guardam a liberdade, a salvação, a vida,
os bens, os pais, a pátria e os filhos; o valor tudo
contém em si: quem tem valor consigo tem tudo o
que é bom.

Anfitrião (sem perceber Alcmena): Por Pólux! creio


que minha mulher deseja bem que eu volte à casa;
ela gosta de mim, eu gosto dela. E voltar com a
guerra ganha e tendo vencido os inimigos que nin
guém julgava que fosse possível derrotar! E nós os
vencemos logo ao primeiro ataque por minha inspi
ração e sob o meu comando. Tenho a certeza de que
ela deseja imenso que eu regresse.
Sósia: E não achas que a minha amiga também deseja
muito o meu regresso?

Alcmena (percebendo Anfitrião): Mas este é meu ma


rido!

Anfitrião
por aqui. (a Sósia, sem ver Alcmena): Vem comigo

Alcmena: Mas por que é que ele volta? Dizia que tinha
tanta pressa de ir embora! Ou será que ele vem
experimentar-me? Mas se ele quer saber se eu real
mente estou saudosa por ele ter partido, por Castor,
verá bem que é com toda a alegria que eu o recebo
em casa.
Sósia (observando Alcmena): Anfitrião, o melhor é vol
tarmos para o navio.

Anfitrião: Mas por quê?

Sósia: Porque em casa não há ninguém que nos dê de


jantar, quando entrarmos.
Anfitrião: Mas por que é que isso te veio à idéia?

75

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Porque chegamos tarde.

Anfitrião: Como é isso?


Sósia (mostrando Alcmena grávida): Bem vejo que
Alcmena está diante de casa e bem cheia.
anfitrião: É que eu deixei-a grávida quando fui em
bora.
sósia: Ai, pobre de mim, que estou perdido.

anfitrião: Que é que tens?

sósia: Pelo que tu dizes parece que vim mesmo de


propósito
necessária.no décimo mês 6 para tirar a água que for

anfitrião: Deixa-te estar sossegado.

sósia: Sabes que sossego vou ter? Por Pólux! O que eu


digo é que se pego uma vez no balde, podes ter a
certeza de que não o largo sem ter tirado a esse poço
tudo quanto ele tiver lá dentro: hei de dar cabo dele.
anfitrião: Agora vem comigo; não tenhas medo, que
eu darei a outro esse trabalho.

Alcmena (à parte): Eu acho que cumprirei melhor a


minha obrigação se for ao seu encontro.
anfitrião: Anfitrião saúda alegremente sua querida
esposa que ele acha a melhor de Tebas e cuja hones
tidade admiram todos os cidadãos tebanos. Tem
passado bem? Estavas com vontade que eu viesse?

sósia (à parte): Com vontade mesmo! Nunca vi tanta!


Saúda-o exatamente como se fosse a um cão!

6) No décimo mês — Trata-se de meses lunares; assim os


dez meses de Alcmena correspondem aos nove meses dos mo
dernos.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)
anfitrião: E tenho muito gosto em ver que a gravidez
vai bem e que estás perfeitamente cheia.

Alcmena: Por Castor! Queres dizer-me por que me


saúdas assim com essas graças e por que te diriges a
mim como se me não tivesses visto há pouco, como
se agora
é que voltassesa mim
te diriges à casa, depois
como se meda não
guerra? Por visto
tivesses que
há muito tempo?

anfitrião: Mas é que realmente eu não te vejo senão


agora.

Alcmena: Mas por que é que tu negas?

anfitrião: Porque aprendi a dizer a verdade.

Alcmena: E de fato não se deve desaprender aquilo


que se aprendeu. Mas tu estás a experimentar-me
sobre o que eu sinto? Por que é que voltaste tão de
pressa? Foi algum mau agouro que te deteve? Mu
dou o tempo?
exército Porháque
como dizias é que não foste ter com o
bocado?

anfitrião: Há bocado? Mas há bocado o quê?

Alcmena: Estás a experimentar-me... Há bocado, há


pouco.

anfitrião: O que eu peço, por favor, é que me digas o


que houve há bocado.

Alcmena: Mas que é que tu pensas? Julgas que estou a


enganar quem me engana, quem me diz que chegou
agora mesmo quando há bocado se foi embora?
anfitrião: Esta mulher só diz loucuras.

sósia: Espera um bocadinho a ver se ela acaba de


dormir.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)
anfitrião: Ela sonha acordada.

Alcmena: Por Castor! Eu estou acordada e é acordada


que falo daquilo que sucedeu. Há bocado, antes de
romper o dia, vi a vós ambos: tu e ele.

Anfitrião: Em que lugar?


Alcmena: Aqui. Na casa em que tu moras.

Anfitrião: Isso nunca sucedeu!

sósia (ironicamente): Por que é que não te calas? Por


que é que nós não teríamos vindo a dormir do porto?

Anfitrião: Então tu estás de acordo com ela?

sósia: Que queres tu que se faça? Não sabes que se


quiseres opor-te a uma bacante furiosa ainda a tor
nas mais louca e apanhas muito mais pancada? As
sim se concordares logo, liquidas tudo com uma
pancada.

anfitrião: Mas, por Pólux! Eu hei de censurá-la por


não ter querido saudar-me hoje como devia, quando
eu voltava à casa.

sósia: Isso é espertar o lume

Anfitrião (a Sósia): Cala-te. (Voltando-se para a es


posa.) Alcmena, só quero perguntar-te uma coisa.
Alcmena: O que é que tu queres perguntar-me? Per
gunta lá.

Anfitrião: O que tu tens é um ataque de loucura ou


um ataque de soberba?

Alcmena: Mas como é que tu pudeste imaginar uma


coisa dessas?

78

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

anfitrião: Porque tu costumavas dantes cumpri


mentar-me quando eu chegava e vir ao meu encontro
como fazem com seus maridos todas as mulheres que
têm bons costumes. Mas hoje, ao chegar, verifiquei
que tinhas perdido o hábito.

Alcmena: Por Castor! Mas eu saudei-te quando tu che-


gaste ontem e perguntei se estavas de saúde,
peguei-te na mão e dei-te um beijo.
sósia: Tu saudaste-o ontem a ele?

Alcmena: E a ti também, Sósia.

sósia: Anfitrião, eu tinha esperança de que ela te pari


ria um filho. Mas do que ela está grávida não é dum
menino.
anfitrião: Então de que é?

sósia: É duma carga de loucura.

Alcmena: Mas eu estou boa. E o que peço aos deuses é


que dê à luz meu filho com felicidade. O que ele de
via fazer era castigar-te bem para que tu, meu agou-
reiro, recebesses o que mereces pelos teus agouros.
sósia: O quê? A quem está grávida é que se tem de
dar castanha para ir roendo se por acaso começar a
sentir-se mal.

Anfitrião: Tu ontem viste-me aqui?

Alcmena: Vi, já disse. Queres que repita dez vezes?

Anfitrião: Talvez em sonhos.

Alcmena: Nada disso; eu estava acordada e tu estavas


acordado.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

anfitrião: Ai! pobre de mim!

sósia: Que tens tu?

anfitrião : Minha mulher está doida.

sósia: O que lhe deu foi bílis negra. Não há nada que
enlouqueça gente tão depressa.

anfitrião : Ouve lá, mulher, desde quando é que sen-


tiste essas perturbações?
Alcmena: Mas eu estou de perfeita saúde, por Castor!

anfitrião : Então por que é que dizes que me viste on


tem quando nós chegamos esta noite ao porto? Foi
lá que eu jantei e lá passei toda a noite no barco. E
nunca pus o pé em casa, desde que parti para a
guerra contra os teléboas e os venci.
Alcmena: Mas tu jantaste comigo, e deitaste-te comi

go.
anfitrião: Como é isso?

Alcmena: Digo a verdade pura.


anfitrião: Sobre isto, não. Lá quanto ao resto não sei.

Alcmena: E quando principiava a luzir o dia foste ter


com as legiões.

anfitrião : Como é possível?

sósia: Está ótimo. O que ela está a contar é o sonho


que teve. (A Alcmena.) Mas com certeza depois que
acordaste lá foste fazer a tua prece ao Júpiter dos

prodígios, com bolo salgado ou com incenso.


Alcmena: Ai de ti!

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Ai! de ti! que é o que tens a dizer, se pensas


direitinho.

Alcmena: É já a segunda vez que me falas sem consi


deração nenhuma. Como é que tu o deixas?

anfitrião: (a Sósia): Vê lá se te calas. (A Alcmena.)


Mas dize-me uma coisa: eu fui hoje embora ao rom
per da manhã?

Alcmena: Quem me havia de ter contado a não seres


tu o que se passou na batalha?

anfitrião: Também sabes disso?

Alcmena: Pois se foi a ti que eu ouvi... Que tomaste de


assalto uma cidade enorme, que mataste tu próprio o
rei Ptérela.

anfitrião: Eu disse isso?

Alcmena: Tu mesmo, e diante aqui de Sósia.

Anfitrião la Sósia): Tu ouviste-me contar isto hoje?

sósia: Como é que eu havia de ter ouvido?

anfitrião: Pergunta-lhe a ela!

sósia: Na minha presença, não; pelo menos que eu


saiba.

Alcmena: É realmente muito de admirar que ele te não


contradiga...

anfitrião: Olha, Sósia, olha cá para mim.

sósia: Estou olhando.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

anfitrião: Eu quero que tu digas a verdade. Não


quero que digas só mesmo que eu. Tu ouviste-me
contar-lhe hoje o que ela afirma?
sósia: Por Pólux! Será que tu também estás doido
para me vires perguntar uma coisa dessas? É a pri
meira vez que eu a vejo, e contigo.
anfitrião: E então agora, mulher, ouves o que ele diz?

Alcmena: Ouço perfeitamente: está mentindo.


anfitrião: Tu então não acreditas nele nem em teu
marido.
Alcmena: O que acontece é que acredito muito mais
em mim e sei que o que sucedeu foi exatamente
como eu digo.

anfitrião: Então tu dizes que eu ontem cheguei aqui?

Alcmena: E tu negas teres ido hoje embora?

anfitrião: Nego mesmo e digo que é agora a primeira


vez que eu venho a casa.

Alcmena: Por favor! Também negarás que me deste


hoje de presente uma taça de ouro e me disseste que
ta deram por lá?

anfitrião: Por Pólux! Não sei nada e não disse nada;


o que eu tinha e ainda tenho era idéia de ta oferecer.
Mas quem é que te disse isso?

Alcmena: Ouvi de tua própria boca; e foi de tua pró


pria mão que eu recebi a taça.
anfitrião: Está bom, está bom... Muito me admira,
Sósia,
taça deque elaO saiba
ouro. que ter
que deve fui havido
presenteado
é que com essa
tu vieste
por cá e lhe contaste tudo.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

sósia: Eu não lhe disse nada. E não a vi, a não ser


agora contigo.
anfitrião: Mas que gente esta!

Alcmena: Queres que te tragam a traça?


anfitrião: Quero.

Alcmena: Muito bem. Tessala, vai lá dentro e traz a


taça que hoje meu marido me deu de presente.
anfitrião: Vem cá, Sósia. O que haverá de mais es
tranho nisto tudo é trazer-me ela agora a tal taça.
sósia: Mas crês isso possível? Uma taça que vem num
cofre, fechado com teu selo?
anfitrião: O sinete está intacto?

sósia: Vê tu.

anfitrião: Está exatamente como eu o marquei.

sósia: O que eu gostava de saber é por que razão não


a consideras louca.
anfitrião: Por Pólux! Acho que vai ser assim mesmo!
Por Pólux! Tem a cabeça cheia de fantasmas!

Alcmena (tomando a taça que Tessala lhe traz): Para


que havemos de estar a gastar palavras? Aqui está a
taça. Olha.
anfitrião (tomando a taça das mãos de Alcmena):
Dá-ma cá.

Alcmena: Vamos, examina-a agora mesmo, tu que ne


gas
dadeo àque fazes.
frente Hei deNão
doutros. obrigar-te
é esta aa confessar
tal taça aquever
te
ofereceram?

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

anfitrião: Ó supremo Júpiter! Que vejo eu! É exata


mente a taça! Estou perdido! Sósia!

sósia: Por Pólux! Ou esta mulher é uma grande feiti


ceira ou então a taça tem que estar aí dentro. ( Mos

trando o cofre.)
anfitrião: Vamos, abre o cofre.

Sósia: Para que é que hei de abrir? O selo está perfei


to. Sim senhor, bonita coisa! Tu pariste um Anfitrião
e eu pari outro Sósia! E agora se a taça pariu uma
taça, ficamos todos a dobrar!

anfitrião: O melhor é abrir e ver.

sósia: Faze favor de ver como está o sinete, para que


depois não me venhas lançar as culpas.

anfitrião: Abre lá. O que ela quer é pôr-nos doidos a


todos com as suas palavras.

Alcmena: Mas donde teria vindo a taça senão de ti que


ma deste de presente?
anfitrião: Tenho que averiguar isto.

Sósia (abrindo o cofre): Ó Júpiter! Ó Júpiter!

anfitrião: O que é que tu tens?!

sósia: No cofre não há taça nenhuma!

anfitrião: Que ouço eu?

sósia: O que é verdade.

anfitrião: Pois se ela não aparece, vais já para os


tormentos.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Alcmena: Mas se ela está aqui!

anfitrião (a Alcmena): Quem é que ta deu?

Alcmena: Aquele que mo pergunta.

sósia (a Anfitrião): O que tu queres é apanhar-me;


vieste às escondidas do navio e por outro caminho.
Tiraste dai a taça, deste-lha e tornaste a pôr o sinete.

anfitrião: Ai! de mim! Tu queres ajudá-la a ficar doi


da? (A Alcmena.) Dizes que viemos cá ontem?

Alcmena: Digo que vieste e que me saudaste e eu a ti e


que te dei um beijo.

anfitrião: Já não me agrada nada essa história de se


principiar com um beijo; mas vamos lá, continua.

Alcmena: Tomaste banho.

anfitrião: E então? Depois de tomar banho?

Alcmena: Deitaste-te à mesa.

sósia: Bravo! Ótimo! Agora pergunta mais.

Anfitrião: Não interrompas. (A Alcmena.) Continua o


que ias contando.

Alcmena: Foi posta a ceia na mesa e tu comeste comi


go, e eu deitei-me contigo.

anfitrião: No mesmo leito?

Alcmena: No mesmo leito.


Sósia: Hum! Não lhe agrada a festa!

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

anfitrião: Mas deixa-a explicar-se. Bom; e depois de


comermos?
Alcmena: Tu disseste que estavas com sono, le
vantou-se a mesa e fomos deitar-nos.

anfitrião: Onde é que tu te deitaste?


Alcmena: No quarto, na mesma cama em que tu esta
vas.
anfitrião: Ai que deste cabo de mim!

sósia: O que é que tu tens?

anfitrião: Ela matou-me.

Alcmena: Mas, por favor, que é isso?

anfitrião: Nem fales comigo!

sósia: Mas que é que tu tens?

anfitrião: Ai de mim! que estou perdido! Alguém a


desonrou durante a minha ausência!

Alcmena: Mas o quê? Por Castor! Por que é que tu di


zes uma coisa dessas, meu esposo?
anfitrião: Eu, esposo? Não venhas, cheia de falsidade,
dar-me um falso nome.
sósia (à parte): Então naturalmente é isso: ele passa
de esposo a esposa.
Alcmena: Mas que fiz eu para que me digam coisas
destas!

anfitrião: Então vens contar-me o que fazes e ainda


me perguntas qual é o teu crime?

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Alcmena: Mas qual foi o meu crime? Foi estar contigo,


quando sou tua mulher?

anfitrião: Tu estiveste comigo? Mas quem haverá


mais impudente e audacioso do que ela? Se não tens
vergonha, deves pelo menos fingir!
Alcmena: Esse crime de que tu me acusas é indigno da
minha família; pode acusar-me de falta de honesti
dade, mas nunca poderás prová-lo.

anfitrião: Pelos deuses imortais! Será que ao menos


tu, Sósia, não me conheces?

sósia: Eu, mais ou menos!

anfitrião: Não foi verdade que eu ceei ontem contigo


no porto Pérsico?
Alcmena: E eu também tenho testemunhas para com
provarem aquilo que digo.
anfitrião: O quê? Testemunhas.

Alcmena: Testemunhas.

anfitrião: Testemunhas de quê?

Alcmena : E até
cou ninguém uma
senão basta. Realmente, conosco não fi
Sósia.

sósia: Eu realmente não sei que hei de dizer desta


questão, a não ser que haja outro Anfitrião que por
acaso na tua ausência ande por aqui cuidando do
que te pertence e na tua ausência cumpra os deveres
que te cabem a ti. Já havia bastante o que admirar
no
vir tal Sósia
agora falarpostiço. MasAnfitrião.
de outro é muitoEumais
creioestranho
que foi ou
al
gum feiticeiro que veio enganar tua mulher.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Alcmena: Juro pelo reino do Supremo Rei e pela Mãe


de Famílias que é Juno,7 a qual devo respeitar e ve
nerar acima de tudo, que nunca houve nenhum
mortal além de ti que me tivesse tocado no corpo e
com o qual eu tivesse cometido qualquer ação ver
gonhosa.
anfitrião: Oxalá isso fosse verdade.

Alcmena: O que eu digo é verdade. Mas é tudo inútil


porque tu não queres acreditar.
anfitrião: És mulher, tens audácia nas juras.

Alcmena: Quem não cometeu nenhum crime deve ser


audaz, deve defender-se com confiança e com
veemência.
anfitrião: Bastante audaz.

Alcmena: Como convém a quem tem vergonha.

anfitrião: As tuas provas são só palavras.


Alcmena: Eu acho que o meu dote não foi aquilo a que
se chama dote. Foi a honestidade, foi o pudor, foi a
paixão refreada, o respeito pelos deuses, o amor dos
pais, as boas relações com os parentes. Foi o ter-te
sido obediente, e generosa para os bons, e prestável
às pessoas honestas.
Sósia (à parte): Realmente, por Pólux, se o que ela diz
é verdade, tem que se dizer que é a melhor de todas
as mulheres.
anfitrião: Ela põe-se num tal estado de sentimentos
que eu realmente já nem sei quem sou.

7) Juno: a rainha das deusas, esposa de Júpiter.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: És Anfitrião, sem dúvida nenhuma; toma cui


dado, não te vás perder a ti próprio, porque já tem
havido bastantes transformações de gente desde que
por aqui chegamos.

anfitrião: Mulher, estou resolvido a não abandonar as


minhas investigações.
Alcmena: Por Pólux! Terei muito prazer nisso.
anfitrião: Que dizes? Bem, então responde ao seguin
te: se eu trouxer aqui, lá do navio, o teu parente
Naucrates e se ele negar que houve aquilo que tu di
zes que houve, que achas que se te deve fazer? Não
te parece que há motivo para eu te repudiar?
Alcmena: Se eu cometi um crime, há.
anfitrião: Ela concorda. E tu, Sósia, leva-os para den
tro. Eu, vou ao navio buscar Naucrates. (Sai.)

Sósia: Agora aqui não há ninguém senão nós dois.


Dize-me lá a verdade, muito a sério: está lá dentro
algum Sósia que seja igual a mim?
Alcmena: Livra-te de estar ao pé de mim: és um digno
servo do teu senhor.
sósia: Então, já que assim o mandas, vou-me livrar.
(Sai.)
Alcmena (só): Por Castor! é uma coisa espantosa que
meu marido tenha tido a idéia de me acusar de um
crime tão horrível. Seja o que for, vou saber toda a
verdade por meu parente Naucrates. (Sai.)

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

ATO III

JÚPITER

Eu sou aquele Anfitrião que tem um escravo Sósia


que Mercúrio imita quando é necessário e que lá em
cima, onde eu habito, aparece de quando em quando
como Júpiter, sempre que tal me apetece. No entan
to, quando chego a estas paragens, logo me trans
formo em Anfitrião e troco o vestuário. Agora venho
por vossa causa, para terminar a comédia que come
çou e ao mesmo tempo para prestar auxílio a Alc
mena que Anfitrião acusa do crime, sendo ela ino
cente. Seria culpa minha, deixar que Alcmena, sem
razão, sofresse por uma coisa que eu armei. Agora
vou fazer de Anfitrião, como no princípio, e lançar
nesta família a maior das confusões; depois, farei que
tudo se esclareça e em devido tempo farei que Alc
mena com um só parto dê à luz, sem dores, o filho de
que está grávida pelo marido e aquele de que está
grávida por mim. Ordenei a Mercúrio que viesse co
migo para o caso de eu querer dar alguma ordem.
Agora, vou falar com ela.
ALCMENA, JÚPITER

Alcmena (pensando estar só): Não posso permanecer


em casa. Ter sido acusada por meu marido dum tal
crime, numa tal vergonha, duma tal desonra! Declara
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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

dessas? Por Hércules, não o farei, não deixarei que


me acusem falsamente de um crime. Vou abandoná-
lo, até que me dê satisfações e jure ainda por cima
que não queria dizer aquilo de que me acusou
quando eu estou inocente.

Júpiter (à parte): Tenho que fazer aquilo que ela re


clama, se na verdade quero que me torne a receber e
a gostar de mim. O que é certo é que tudo o que eu
tenho feito tem sido desagradável a Anfitrião e que o
meu amor sempre lhe deu que fazer, sem que ele ti
vesse culpa alguma. Agora tenho eu que as pagar. É
o resultado da cólera dele e das injúrias contra a mu
lher.
Alcmena: Cá está ele, aquele que me acusou, pobre de
mim, dum crime vergonhoso, duma desonra.
Júpiter: Eu quero falar contigo, mulher. Por que me
foges?
Alcmena: O meu gênio é assim: sempre fui adversa a
estar junto dos meus inimigos.
Júpiter: Dos teus inimigos?
Alcmena: Assim é. Só digo a verdade, a não ser que
ainda digas que isto é apenas uma falsidade.
Júpiter (fazendo um gesto para atrair a si Alcmena,
que se desvia): És muito sensível.
Alcmena: Não poderás estar quieto com as mãos? De
pois de me teres acusado de não ter vergonha, depois
de o teres dito, não deves ter nenhuma conversa co
migo, nem a brincar nem a sério, se tiveres algum
juízo, se não perdeste a cabeça de todo, se não és o
mais tolo de todos os homens.
Júpiter: Se eu disse alguma coisa, não é por isso que
vales menos e acho que não tinha razão. Voltei aqui
para pedir desculpa. Nunca houve nada que me cau

92

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

sasse tanto desgosto como saber que estavas zan


gada contra mim. Então por que é que o disseste,
perguntarás tu? Vou explicar-te. Não é, por Pólux,
que eu te julgasse pouco honesta; o que eu quis foi
experimentar-te e ver o que fazias e de que maneira
tomavas
lei, assimuma
de coisa dessas. eFoisó por
brincadeira porisso que eu
graça. Orateper
fa
gunta a Sósia.
Alcmena: Mas por que é que não trazes aqui o meu
parente Naucrates, que disseste que ias trazer como
testemunha de que não tinhas vindo cá?

Júpiter : O que
certo tomá-lo eu adisse
agora sério.foi de brincadeira e não está
Alcmena: O que eu sei é que isso tudo me feriu no
mais íntimo do peito.
Júpiter: Pela tua mão direita te peço, Alcmena, te ro
go, Alcmena, que me faças esse favor: perdoa-me:
não estejas zangada comigo.
Alcmena: A minha virtude tornava inúteis todas as
tuas palavras, e visto que te absténs agora dos maus
feitos, quero eu pôr-me a salvo das más palavras.
Fica de saúde, guarda as tuas coisas e entrega as
minhas. E dá ordem às minhas criadas para que me
acompanhem.

Júpiter (tomando-a pela mão): Será que estás boa da


cabeça?
Alcmena: Se não deres essa ordem, eu vou sozinha e só
levo o pudor por companhia.

Júpiter
de que : Fica. Eu farei
considero os mulher
minha juramentos que tu quiseres
honestíssima! E se
faltar a isto, eu te rogo, Supremo Júpiter, que sempre
estejas contra Anfitrião!

93
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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Alcmena: Oxalá esteja antes sempre a seu favor.


Júpiter: Podes crer que há de estar, porque o jura
mento que prestei é verdadeiro. E agora, já não estás
zangada?

Alcmena: Já não estou.


Júpiter: Muito bem. Na vida dos homens passam-se
muitas coisas deste gênero. Vêm os prazeres e vêm
as desgraças; aparecem as cóleras e volta de novo a
amizade. E se por acaso houve algum desentendi
mento deste gênero e se tudo se conciliou de novo,
ficam duas vezes mais amigos do que dantes.
Alcmena: Devias ter tido cuidado em não falar assim;
mas, já que pedes desculpa, tenho mesmo de per
doar.
Júpiter: Então, manda-me preparar já vasos purifica
dos para cumprir todos os votos que fiz na guerra se
voltasse a casa são e salvo.

Alcmena: Vou tratar disso.


Júpiter: E manda cá Sósia. Quero que venha jantar
conosco Blefarão, que foi piloto do meu navio. (À
parte.) O outro vai ficar sem jantar e ainda vamos
brincar com ele. Quanto a Anfitrião, vou pô-lo daqui
para fora pelo gasnete.

Alcmena
assim à: parte.
Não Mas
sei oestão
quea abrir
ele está ali Ah!
a porta. a tratar
é Sósia.sozinho

SÓSIA, JÚPITER, ALCMENA

sósia: Anfitrião, aqui estou. Se precisas de alguma


coisa é só mandar. Eu cumprirei as ordens.

Júpiter: Vens mesmo a tempo.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Então? Já estais ambos de bem? Quando vos


vejo sossegados fico todo contente. É mesmo um
gosto. O escravo que é bom tem que arranjar ma
neira de estar sempre como estão seus amos, de mo
delar a sua fisionomia pela fisionomia deles. Se os
amos estão tristes, triste, se estão contentes, alegre.
Mas, vamos, dize-me cá: já vos pusestes de bem?

Júpiter: Tu estás a brincar; bem sabes que eu disse


tudo isso só por graça.
sósia: Só por graça? Pois estava convencido que era a
sério e de verdade.
Júpiter: Já fui perdoado. E fez-se a paz.

sósia: Está ótimo.

Júpiter: Eu agora vou lá para dentro cumprir os votos


que fiz aos deuses.
sósia: Está bom.

Júpiter: E tu, vais levar recado da minha parte a Ble


farão, o nosso piloto, para que, depois de feito o sa
crifício, venha do navio jantar comigo.

sósia: Ainda me hás de julgar lá e já eu estarei aqui.

Júpiter: Volta depressa. (Sósia sai.)

Alcmena: Queres que eu entre agora, para se preparar


o que é preciso?

Júpiter: Vai depressa e prepara tudo rapidamente.

Alcmena: Tu vens quando quiseres. Vou fazer que não


haja demora nenhuma.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Júpiter: Boas palavras. Exatamente o que convém a


uma mulher diligente. (Alcmena sai.) E há aqui dois
que estão enganados, o escravo e a senhora: julgam
que eu sou Anfitrião; grande erro. E agora, divino
Sósia, vem ter comigo; tu ouves o que eu estou a di
zer, embora
afastar nãode estejas
de casa, qualquerpresente. Arranja-tequando
forma, Anfitrião, para
ele chegar. Faze o que puderes. Quero que se brinque
um pouco com ele enquanto eu me divirto com a mi
nha esposa de empréstimo. Trata bem disto tudo que
eu quero. E vem me ajudar, enquanto sacrifico a
mim próprio. (Sai.)

MERCÚRIO

Vá, afastai-vos, retirai-vos para trás, toca a sair do


caminho; que ninguém tenha a audácia de me impedir
a marcha. Por que é que a mim, que sou um deus, não
havia de ser permitido ameaçar o povo; ou não me fi
caria isso bem, quando o fazem os escravos das comé
dias? É
navio ou assim
a dumque elesfurioso.
velho vêm anunciar a chegada
Eu cá venho dum
obedecendo
a Júpiter e é por mandado dele que me transporto a
esses lugares. É por isso que ainda mais vos deveis
afastar do caminho, vos deveis retirar. Meu Pai me
chama, e eu lá vou, todo obediente às suas ordens; eu
comporto-me com meu Pai como um bom filho deve
comportar-se com o seu. Ajudo-o nos seus amores,
aconselho-o,
alegro-me comficoele. deSe sentinela, passo-lhe
meu Pai está avisos,
contente, eu ficoe
mais contente ainda. Tem lá os seus amores; pois está
muito bem, faz o que deve, seguindo assim as suas in
clinações; é o que todos os homens deviam fazer, con
tanto que o fizessem com boas maneiras. Agora meu
Pai quer que se brinque com Anfitrião; vou fazê-lo di
reitinho. Vós vereis, espectadores, como se vai brincar
àquevossa
estouvista. VouSubo
bêbado. pôr láuma coroa
acima e é na
de cabeça
lá que evoufingir
pôr

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

fora o homem. De lá de cima, quando ele se aproximar,


arranjarei as coisas para que se vier enxuto fique mo
lhado. Depois quem vai pagá-las é o escravo, o Sósia;
vai acusá-lo de ter feito o que eu fiz. Ora, que tenho eu
com isso? o que eu tenho a fazer é obedecer a meu Pai
eAí servi-lo nas Esuas
chega ele. agorapretensões. Mas cávereis
é só escutardes: está como
anfitrião.
nos
vamos divertir. Eu vou lá dentro buscar um vestuário
próprio para o que quero. Depois subo ao telhado e
não o deixo entrar em casa. (Sai.)

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ATO IV

ANFITRIÃO

Queria falar com Naucrates e ele não estava no


navio. Não encontrei nem em casa nem na cidade nin
guém que o tivesse visto. Andei a procurar por todas
as praças, por todos os ginásios, por todas as lojas de
perfumes; estive na feira, estive no mercado, estive na
palestra, estive no tribunal, fui aos médicos, aos bar
beiros, e a todos os templos. Estou cansado de andar à
procura e não encontro Naucrates. Agora vou para
casa e vou continuar a inquirir de minha mulher quem
foi que a desonrou. Preferiria morrer a deixar este as
sunto sem o tratar a fundo. Mas fecharam as portas!
Muito bem! Fazem exatamente o que está de acordo
com o resto. Vou bater à porta. Abram! Não há por aí
ninguém?! Não há ninguém que abra essa porta?

MERCÚRIO, ANFITRIÃO

Mercúrio: Quem está aí?

Anfitrião: Sou eu.

Mercúrio: Eu, quem?

Anfitrião: Eu! Já disse!


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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio: Com certeza que Júpiter e todos os deuses


estão furiosos contigo, para assim vires partir essa
porta.

Anfitrião: O quê?

Mercúrio: Oxalá passes toda a vida desgraçado.

Anfitrião: Sósia!

Mercúrio: Sósia, pois claro. Ou julgas que me esque


ci? O que é que tu queres?

Anfitrião: Ah! Meu patife! Vens perguntar-me o que é


que eu quero?
Mercúrio: Evidentemente. Quase que arrancaste a
porta dos gonzos. Idiota! Julgas tu que o Estado nos
oferece outra? Que estás a olhar para mim, meu
animal? O que é que tu queres? Quem és tu?

Anfitrião : Ah ladrão!
Meu Aqueronte Então nãoPor
de bordoada! sabes quemVou-te
Pólux! eu sou?!
pôr
hoje a arder por isso que tu dizes!

Mercúrio: Com certeza foste um mãos-largas quando


eras novo.
Anfitrião: Mas por quê?

Mercúrio: Porque ao chegares a velho até tens que


andar a pedir pancada pelas portas.

Anfitrião: Já vais ver, meu safado, que tormentos


tudo isso te vai render hoje.

Mercúrio: Vou dedicar-te um sacrifício.

Anfitrião: Como é isso?

100

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio: Vou sacrificar-te cá de cima.8


Anfitrião: Sacrificar-me, bandido? Se os deuses me
não tirarem hoje a vida, eu é que te hei de sacrificar
a Saturno; hei de te carregar de correadas. E hei de
sacrificar-te na cruz. Vem cá para fora, meu canalha!
Mercúrio: Ouve lá, fantasma! Tu julgas que me ater
rorizas com as tuas ameaças? Olha que se não foges
imediatamente, se tornas a bater a essa porta, se
houver um barulhinho assim, olha que te parto a ca
beça com esta telha e até cospes fora a língua e os
dentes!
Anfitrião: Ah meu assassino! Tu queres impedir-me
de entrar em casa? Tu queres impedir-me de eu ba
ter à minha porta? Pois vou arrancá-la já do gonzo!
Mercúrio: Ah, tu continuas?!

Anfitrião: Continuo!
Mercúrio (atirando-lhe uma telha): Então toma!
Anfitrião: Ah, miserável! Contra o teu dono? Ah! se
hoje te apanho! O que eu te vou fazer! Vais ficar des
graçado para sempre!
Mercúrio: Com certeza que andaste na farra, velhote!

Anfitrião: O quê?
Mercúrio: Pois se estás a julgar que eu sou teu escra
vo.
Anfitrião: Mas que hei de eu julgar?

falta8) quase
Nestetodo
ponto há IV.
o ato umaUmgrande lacunado nos
gramático séculomanuscritos:
XV, Her-
molau Bárbaro, baseado no argumento e nalguns fragmentos,
preencheu a lacuna para que se pudesse representar a peça. É
esse o texto que traduzimos.

101

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio: Vai para o inferno! Eu não tenho outro


dono senão Anfitrião!
Anfitrião: Ter-me-ei eu transformado? Que coisa ex
traordinária, que Sósia não me reconheça! Vamos in
vestigar isto. Dize-me lá quem te pareço? Não sou
Anfitrião?
Mercúrio: Anfitrião? Estás doido! Não te disse eu já
que deves ter andado na farra? Vires agora per
guntar-me quem és a outra pessoa? O que eu te
aconselho é ires-te embora, para que não estejas aqui
a incomodar enquanto Anfitrião, que voltou há
pouco da guerra, tem lá os seus prazeres com a mu
lher.
Anfitrião: Que mulher?
Mercúrio: Alcmena!
Anfitrião: E que homem?
Mercúrio: Quantas vezes queres tu que te diga a
mesma coisa?! Anfitrião, meu amo. Olha, não me in
comodes!
Anfitrião: Com quem é que ele está deitado?
Mercúrio: Toma cuidado, não apanhes por aí alguma
por quereres brincar comigo.

Anfitrião: Por favor, dize-me lá, meu Sósia.


Mercúrio: Agora vens com delicadezas? Com Alcme
na.

Anfitrião: No mesmo quarto?


Mercúrio: Corpo deitado sobre corpo, ao que eu pen
so!
Anfitrião: Ai! Pobre de mim!

102

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Mercúrio (à parte): Mas ele está a achar que é uma


desgraça uma coisa que é uma vantagem! É apenas
dar a esposa de empréstimo e alugar para a lavoura
um campo estéril.

Anfitrião: Sósia!
Mercúrio: Sósia quê, malandro?

Anfitrião: Tu não me conheces, miserável?

Mercúrio: Conheço: és um aborrecido e o que tu que


res é armar questões.

Anfitrião: Ouve lá ainda. Não sou eu o teu amo, Anfi


trião?

Mercúrio: Tu és Baco, não és Anfitrião. Quantas vezes


queres que to diga? Outra ainda? O meu Anfitrião
está abraçando Alcmena e no mesmo quarto. Se con
tinuas, eu vou chamá-lo e tu depois sofres-lhe as con
seqüências.

Anfitrião: O que eu quero é que ele venha. (À parte.)


Oxalá eu não perca hoje, em paga dos benefícios fei
tos à pátria, a casa, a mulher, e os meus escravos,
tudo juntamente com a minha pessoa.

Mercúrio: Então vou chamá-lo. Mas afasta-te entre


tanto da porta. E, se incomodares, já não te vais em
bora, porque dou cabo de ti. (Volta para o interior
da casa.)

ANFITRIÃO, BLEFARÃO, SÓSIA

Anfitrião (a princípio só): Ó deuses! Protegei-me,


deuses! Que tempestades agitam a nossa família!
Que coisas espantosas estas que eu vejo depois de
ter regressado! Realmente depois disto pode-se bem

103

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

acreditar nas lendas dos atenienses transformados


na Arcádia, mudados em feras terríveis e nem reco
nhecidos por seus próprios pais.
Blefarão (sem ver Anfitrião): Mas que é isso, Sósia?
O queé que
dizes tu me dizes é em
encontraste realmente
casa umde espantar.
Sósia O que tu
igual a ti.

Sósia: É o que eu digo. Mas talvez tu, como eu dei um


Sósia e como Anfitrião deu outro Anfitrião, talvez tu,
quem sabe? venhas a dar outro Blefarão. Queiram os
deuses que também tu sejas tratado a soco e que te
partam os dentes e que venhas a acreditar tudo de
pois de não
que aqui estou,termaltratou-me
jantado. Pois eu... aquele outro Sósia,
à grande.

Blefarão: Coisa realmente extraordinária! Mas o que


devemos é apressar o passo. Pelo que vejo, Anfitrião
está à nossa espera e tenho a barriga tão vazia que
até range.

Anfitrião
estou eu (continuando a falar
a falar de coisas sozinho):
alheias? Há E paraainda
coisas que
mais admiráveis que sucederam outrora na nossa
família tebana: o que procurava Europa atacou uma
fera terrível e da sementeira do dragão viu ele nasce
rem inimigos que, travado o combate, se matavam
irmãos contra irmãos, à lança e espada.9 E a terra do
Epiro viu o progenitor do nosso povo raptar com a
filha
denou,deláVênus, sobo aalto
do alto, forma de serpente.
Júpiter, e assim Assim
foi seu odes
or
tino. Os melhores dos nossos, em recompensa dos
seus feitos ilustres, sofreram terríveis males. E são os
destinos que assim me oprimem levando-me a sofrer
uma tão grande violência, uma tal desgraça, uma tão
intolerável dor.

9) Referência a Cadmo, o ascendente mítico dos tebanos.


Quem raptou Europa foi Júpiter.

104

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Blefarão!

Blefarão: Que há?


Sósia: Suspeito não sei de que desgraça.

Blefarão: O quê?

Sósia: Ora vê! Meu amo passeia diante da porta fe


chada como se viesse para cumprimentar.

Blefarão: Nada disso. Anda a passear à espera de


apetite.

Sósia: Mas foi curioso: fechou a porta para ele não vir.

Blefarão: Que é que tu rosnas?

Sósia: Não rosno nem ladro. Se me escutares, verás


Eu acho que ele anda lá a remoer consigo não sei

que pensamentos. Vou saber do que se trata. Não


avances.
Anfitrião (sempre falando só): Do que eu tenho receio
é de que os deuses queiram apagar a glória de ter
vencido os inimigos. Vejo a minha casa perturbada
por coisas tão extraordinárias! E então o que me
despedaça é ver minha mulher desonrada por um ato
criminoso.
E o sineteAgora
estavaaquilo da taça éintacto.
perfeitamente que é de espantar.
E mais: ela
contou-me os combates que eu travei, a vitória sobre
Ptérela, que foi morto, valentemente, pelas minhas
próprias mãos. Ah! Agora é que eu percebo! Isto é
uma graça de Sósia que ainda hoje teve a audácia de
me não deixar entrar em casa.

Sósia: Fala de mim e duma forma que não me agrada


nada. Não nos aproximemos deste homem antes dele
ter esvaziado o estômago.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Blefarão: Como quiseres.

Anfitrião: Ah! se eu apanho hoje esse miserável, eu


lhe vou mostrar o que é enganar seu amo e vir com
ameaças e com artimanhas.

Sósia: Tu não o ouves?

Blefarão: Ouço.
Sósia: Tudo isto me há de vir a cair nos lombos! Va
mos lá ter com ele. Tu não sabes aquilo que se diz?...

Blefarão
adivinho: oLá
queovais
quesofrer.
vais dizer, não sei; mas quase que

Sósia: Pois o provérbio diz assim: fome e demora tra


zem a bílis ao nariz.

Blefarão: Bem verdade. Mas vamos lá chamá-lo. E já.


Anfitrião!

Anfitrião: É Blefarão que eu ouço! (À parte.) É estra


nho que venha a ter comigo. Mas chega muito a pro
pósito para eu pôr a claro as torpezas de minha mu
lher. (A Blefarão.) Por que é que tu vens cá, Blefa
rão?

Blefarão: Então esqueceste tão depressa que logo de


manhã mandaste Sósia ao navio para vir hoje comer
contigo?

Anfitrião: Não mandei nada. Mas onde é que está


esse patife?

Blefarão: Quem?

Anfitrião: Sósia.
Blefarão: Está aqui.

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Anfitrião: Onde?

Blefarão: Não o vês diante dos olhos?

Anfitrião: Mal o vejo, com a raiva. Ele hoje, quase


que me pôs doido. (A Sósia.) Não escapas sem eu te
matar. Larga-me, Blefarão.

Blefarão: Por favor, escuta.

Anfitrião: Dize lá, eu escuto. (A Sósia.) Mas tu apa


nhas.

Sósia: Mas por quê? Não fui depressa? Eu não podia ir


mais rápido, mesmo que tivesse as asas de Dédalo. 10

Blefarão: Por favor, deixa-te disso. Nós não podíamos


aumentar mais os passos.

Anfitrião: Tanto me faz que tenhas vindo como andas


ou
vou com
dar passo
cabo de tartaruga.
dele. (BatendoO em
que Sósia.)
é certo Toma
é quepelo
eu
telhado! Toma pelas telhas! Toma por me teres fe
chado a porta! Toma por te teres rido do teu dono!
Toma pelos insultos.

Blefarão: Mas que mal é que ele te fez?

Anfitrião
telhado, : deAinda perguntas?
portas fechadas,Pôs-se de lá dedecima
a impedir-me do
entrar
em casa!

Sósia: Eu?

Anfitrião: Tu! Que ameaçavas tu de me fazer se eu


arrombasse a porta? Tu negas, miserável?

10) Dédalo: escultor e inventor de que falava a fábula grega


e que fugira, voando, dos labirintos de Creta.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia: Por que não hei de negar? Essa testemunha que


aí vem comigo é mais que bastante. Fui mandado de
propósito a levar-lhe o teu convite.
Anfitrião: Quem te enviou meu bandido?

Sósia: Aquele que mo pergunta!

Anfitrião: Mas quando?

Sósia: Foi há pouco, mesmo há bocado, há bocadinho,


quando fizeste as pazes com tua mulher.

Anfitrião: Baco pôs-te doido!


Sósia: Pois nem a Baco nem a Ceres saudei hoje ain
da. Tu mandaste purificar os vasos para fazer sacrifí
cios e deste-me ordem de que fosse buscar este ho
mem para jantar contigo.

Anfitrião
dentro, :ouBlefarão, que eu(Amorra,
se to mandei! Sósia.)seDize
estive
lá: hoje
onde láé
que tu me deixaste?

Sósia: Em casa, com tua mulher Alcmena. Eu deixei-


te, voei logo ao porto e dei-lhe o teu recado. Depois
viemos e não te vejo senão agora.

Anfitrião: Mas que miserável! Com minha mulher? Já


não vais embora sem apanhares pancada.

Sósia: Blefarão!

Blefarão: Anfitrião, peço-te eu que o deixes e que me


ouças.

Anfitrião (largando Sósia): Bem, eu deixo. Dize lá o


que queres.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Blefarão: Este homem já me contou uma porção de


coisas extraordinárias. Talvez algum feiticeiro, algum
mágico, esteja encantando tua familia. Procura por
outro lado, vê se sabes de que se trata. Náo tortures
este desgraçado, sem perceberes o caso.
Anfitrião: O teu conselho é bom. Vamos. Quero tam
bém que me sirvas de testemunha contra minha mu
lher.

JÚPITER, ANFITRIÃO, SÓSIA, BLEFARÃO

Júpiter (fingindo não ver os outros personagens):


Quem bate à porta com tanta força que quase a ar
rancou dos gonzos? Quem traz tanta gente para
diante desta casa? Se eu o apanho, sacrifico-o aos
manes dos teléboas! Hoje, como se costuma dizer,
não há nada que me saia bem. Deixei Blefarão e Só
sia para ir ter com meu parente Naucrates: não o en
contrei e perdi-os a eles. Mas cá estão! Vou falar-lhes
para saber o que há.
Sósia: Blefarão! Blefarão! o que saiu de casa é o meu
amo e este é realmente o feiticeiro!

Blefarão: Por Júpiter! Que vejo eu?! Este não é Anfi


trião; aquele é que é Anfitrião! Se fosse este (mos
trando Anfitrião) não era aquele (mostrando Júpi
ter), a menos que seja duplo.
Júpiter: Cá está Sósia com Blefarão. Vou chamá-los
primeiro. Sósia! Então, quando vens? Estou cheio de
fome!
Sósia (mostrando Anfitrião): Então, não te disse eu
que este era o feiticeiro?
Anfitrião (mostrando Júpiter): Foi este, cidadãos te
banos, o que desonrou minha mulher, o que me
trouxe um monte de vergonha!
109

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Sósia (a Júpiter): Pois meu amo, se tens fome, eu volto


a ti cheio de socos.

Anfitrião: Continuas, malandro?

Sósia: Vai para o inferno, feiticeiro!


Anfitrião: Eu, feiticeiro?! Vais apanhar. (Bate-lhe.)

Júpiter: Mas que audácia é essa, de vires tu, um es


tranho, bater no meu escravo?
Anfitrião: Teu?

Júpiter: Meu!

Anfitrião: Mentes!

Júpiter: Sósia, vai lá para dentro. Prepara a comida,


enquanto eu dou cabo dele.

Sósia Vou já. (À


ber : Anfitrião tãoparte.) Acho quecomo
amavelmente Anfitrião vai rece
há pouco eu,
Sósia, me recebi a mim, segundo Sósia. Enquanto
eles vão combater, eu vou dar uma volta pela cozi
nha, para limpar todos os pratos e esvaziar todas as
taças. ( Sai.)
Júpiter: Tu dizes que eu minto?

Anfitrião: Mentes, já disse, e és o corruptor da minha


casa!
Júpiter: Pois por essa insolência que disseste vou-te
pôr daqui para fora com o pescoço quebrado!
(Agarra-o.)

Anfitrião: Ai, pobre de mim!


Júpiter: Devias ter tomado cuidado antes.

110

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Anfitrião: Blefarão, socorro!


Blefarão: Eles são tão iguais que eu nem sei qual hei
de ajudar. Mas vou ver se posso apartar este barulho.
(A Júpiter) Anfitrião, por favor, não mates Anfitrião!
Peço-te que lhe largues o pescoço!
Júpiter: Tu dizes que ele é que é Anfitrião?
Blefarão: Por que não? Dantes era só um. Mas agora
desdobrou-se; lá porque tu queres ser Anfitrião, não
se segue que o outro tenha deixado de ter o mesmo
aspecto. Mas, seja como for, larga-lhe o pescoço.
Júpiter: Já largo. Mas dize-me lá. Parece-te que este
seja Anfitrião?
Blefarão: Um e outro.

Anfitrião: Pelo Supremo Júpiter! Tu hoje queres


tirar-me o ser eu? (Dirigindo-se ao falso Anfitrião.)
Mas quero saber o seguinte: tu és Anfitrião?
Júpiter: Tu negas?

Anfitrião: Nego e renego! Em Tebas, além de mim,


não há nenhum outro Anfitrião.
Júpiter: Pois além de mim é que não há ninguém!
Olha lá, Blefarão, tu vais servir de juiz.
Blefarão: Vou esclarecer isto, se é possível. (A Anfi
trião.) Responde tu primeiro.
Anfitrião: Com todo o gosto.
Blefarão: Que ordem me deste tu antes de começar o
combate com os Táfios?
Anfitrião: A de teres o navio preparado e te manteres
ao leme.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Júpiter: Para que se os nossos tivessem de fugir hou


vesse para mim um refúgio seguro.

Blefarão: E depois?

Anfitrião: A de me guardares a bolsa do dinheiro.


Júpiter: Quanto dinheiro?

Blefarão: Vê lá se te calas. As perguntas são comigo.


Sabes a quantia?
Júpiter: Cinqüenta talentos áticos.

Blefarão: O que ele diz é tudo certo. (A Anfitrião.) E


agora tu, quantos filipes?
Anfitrião: Dois mil.
Júpiter: E óbolos outro tanto.

Blefarão : Um
certeza que um edeles
outro conhecem
estava fechado bem
dentroo da
assunto.
bolsa. Com
Júpiter: Ouve lá; como sabes, matei o rei Ptérela com
esta mão, tirei-lhe os despojos e trouxe num cofre a
taça por onde ele costumava beber. Dei-a de pre
sente a minha esposa e foi com ela que hoje, já em
casa, tomei banho, fiz o sacrifício e dormi.

Anfitrião: Ai de mim! Que estou eu a ouvir. Mal


agüento. Isto é dormir acordado, isto é sonhar acor
dado. E bem vivo e bem são. Eu sou realmente Anfi
trião, neto de Gorgofone, general dos tebanos, o
único general de Creonte, na guerra dos teléboas. Fui
eu quem venceu os Arcanânios e os Táfios e lhes dei
como rei, pelo seu grande valor guerreiro, Céfalo, o
filho do grande Dioneu.
Júpiter: E eu sou aquele que venceu na guerra pela
minha coragem esses bandidos dos nossos inimigos

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

que tinham matado Electrião e os irmãos de minha


mulher e que, espalhando-se pela Acaia, pela Etólia,
pela Fócida, e pelos mares da Jônia, do Egeu e de
Creta, a tudo devastavam com sua violência de pira
tas.
Anfitrião: Ó deuses imortais! Nem acredito em mim!
Ele conhece tudo o que aconteceu! Vamos a ver, Ble
farão.
Blefarão: Ainda falta uma coisa. E se ela existir en
tão vocês são um Anfitrião a dobrar.
Júpiter: Já sei do que falas: é a cicatriz no braço di
reito daquela ferida que me fez Ptérela.
Blefarão: É isso mesmo.
Anfitrião: Muito bem.
Júpiter: Ora vês: olha para ela!
Blefarão: Ponde o braço nu para eu ver.
Júpiter: Já pusemos. Olha!
Blefarão: Ó Supremo Júpiter! Que vejo eu?! Têm
ambos no braço direito e no mesmo lugar um sinal
que é exatamente o mesmo, uma cicatriz averme
lhada e donde a onde um pouco escura. Já não é
possível raciocinar mais, tem de se calar o juiz. Não
sei que hei de fazer.

BLEFARÃO, ANFITRIÃO, JÚPITER11

Blefarão: Resolvei isso lá entre vós. Eu vou-me em


bora porque tenho que fazer. Acho que nunca vi coi
sas tão extraordinárias.

11) Aqui acaba o texto de Hermolau Bárbaro e recomeça o


de Plauto.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Anfitrião: Blefarão, por favor! Serve-me de testemu


nha, não te vás embora!

Blefarão: Passa bem. Que necessidade há de teste


munhas? Eu não sei a qual hei de servir de testemu
nha. (Sai.)

Júpiter (à parte): Eu agora vou entrar. Alcmena está


de parto.

Anfitrião: Ai de mim! Que desgraçado eu sou!


Abandonam-me as testemunhas e os amigos. Por Pó
lux! Quem quer que ele seja não há de brincar co
migo impunemente! Vou já ter com o rei e vou dizer-
lhe como tudo se passou. Por Pólux! Hei de castigar
ainda hoje esse feiticeiro da Tessália que perturbou,
o malvado, o espírito de toda a minha gente. Mas
onde é que ele está? Por Pólux! Acho que foi lá para
dentro ter com minha mulher. Quem haverá em Te
bas mais desgraçado do que eu? Que hei de eu fazer
agora? Ninguém faz caso de mim, todos se divertem
comigo, à sua vontade. Não há dúvida: vou entrar
em casa,
da, mesmo
escravo, à força.
mulher, E pessoa
amante, pai, que
avô, eu
douveja,
cabocria
de
tudo lá dentro. Nem Júpiter, nem deus algum será
capaz de me impedir mesmo que queira! Vou fazer o
que resolvi! Vou entrar já! (Ouve-se o estrondo de
trovões; Anfitrião cai desfalecido.)

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

ATO V

BRÔMIA, ANFITRIÃO

Brômia: Todas as minhas esperanças, todas as forças


da minha vida me ficaram sepultadas no peito; já
não há nenhuma confiança no meu coração; perdi
tudo! Parece-me que tudo, mar, terra e céu, se con-
jura para me oprimir, para me matar. Ai pobre de
mim! Não sei que hei de fazer. Aconteceram em casa
tantas coisas extraordinárias. Ai, pobre de mim!
Estou-me estou
perdida, a sentir mal. Dói-me
a morrer. Precisava de água.
a cabeça, não Estou
ouço
nada e tenho a vista toda turva. Não há mulher mais
infeliz do que eu; pelo menos acho que não há. Aqui
está o que hoje aconteceu com a minha ama: quando
estava parindo, invocou os deuses, houve logo um
barulho, um ruído, um estampido, um estrondo...!
Que depressa, em que instante e com que força não
trovejou! Com oE estampido
em que estava. cada uma
então ouviu-se um voz
caiu formidável,
no lugar
não sei de quem, a clamar: “Alcmena, não tenhas
medo que aí vem socorro! Aqui vem propício a ti e
aos teus um habitante do céu. E vós, vós que por
medo de mim caistes aterrorizados, levantai-vos to
dos.” Eu levantei-me donde estava deitada. Parecia
que toda a casa estava a arder, tal era o brilho! En
tão Alcmena chamou por mim; eu estava mesmo
cheia de medo, mas o respeito por minha ama foi
mais forte. Fui a correr para saber do que ela queria

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

e vejo que ela tinha dado à luz dois filhos gêmeos.


Nenhuma de nós deu pelo momento do parto ou o
viu. (Percebendo Anfitrião.) Mas que é isso? Quem é
este velho que está deitado diante de nossa casa?
Por Pólux! Será que... Por Júpiter! Está deitado
como se estivesse morto! Vou lá ver quem é! Mas é
Anfitrião, o meu amo! Anfitrião!

Anfitrião: Estou perdido!

Brômia: Levanta-te!

Anfitrião: Ai que estou morto!

Brômia: Dá cá a mão!

Anfitrião: Quem é que me toca?

Brômia: É Brômia, a tua criada.

Anfitrião: Estou todo cheio de medo. Júpiter trovejou


sobre mim. É exatamente como se eu regressasse do
Aqueronte! E tu? Por que é que estás cá fora?

Brômia: Apanhamos exatamente o mesmo susto, e o


terror nos atirou de casa. Vi prodígios extraordiná
rios lá onde nós moramos. Ai de mim! Ai, Anfitrião!
Ainda não estou sossegada!

Anfitrião: Dize lá depressa. Sabes que eu sou Anfi


trião, teu amo?

Brômia: Sei.

Anfitrião: Estás a ver bem?

Brômia: Estou.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Anfitrião: De toda a minha gente é esta a única que


tem juízo.
Brômia: Mas todos estão perfeitamente bem.

Anfitrião
com o seu: indigno
Então procedimento.
é minha mulher que me põe doido

Brômia: Pois eu vou fazer que tu digas já outra coisa,


e que declares, Anfitrião, que tua mulher é honesta e
pudica. Os argumentos e as provas cabem em poucas
palavras. Primeiro, vou dizer que Alcmena teve gê
meos.

Anfitrião: O que é que tu dizes? Gêmeos?


Brômia: Gêmeos.

Anfitrião: Que os deuses me protejam!

Brômia: Deixa-me falar; é preciso que saibas que os


deuses vos são propícios, a ti e a tua mulher.
anfitrião: Então fala.

Brômia: Quando hoje tua mulher começou a sentir as


dores, fez o que fazem todas as parturientes: invocou
os deuses imortais para que a socorressem, com as
mãos purificadas e a cabeça coberta. Houve logo um
trovão com um estampido formidável. Primeiro jul
gamos que a sua casa ia cair; toda ela brilhava como
se fosse de ouro.

anfitrião: Peço-te que me digas logo tudo, sem te po


res com histórias. Que aconteceu depois?

Brômia: Enquanto
tua mulher gemersucedia isto Com
ou chorar. nenhum de deu
certeza nós àouviu
luz
sem dor.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

anfitrião: Estou muito contente com isso, qualquer


que seja a maneira por que ela se tenha portado co
migo.
Brômia: Deixa-te lá dessas coisas e ouve o que eu te
nho
nos aquedizer.
lhes Depois que banho.
déssemos teve osComeçamos,
meninos, mandou-
mas o
menino que eu lavei, como é enorme e forte! Nin
guém conseguiu pôr-lhe fraldas!

anfitrião: Tu contas-me coisas extraordinárias. Se


isso é verdade, com certeza que os deuses deram al
guma ajuda a minha mulher.
Brômia: Mas o mais extraordinário ainda está por vir;
depois de o meterem no berço vieram voando lá de
cima, para o implúvio, duas serpentes enormes com
umas cristas; as duas levantaram logo a cabeça...

anfitrião: Ai de mim!

Brômia: Não tenhas medo. Pois as serpentes começa


ram a correr tudo com os olhos e, quando viram os
meninos, foram correndo para os berços. Eu, re
ceando pelas crianças e com medo por mim própria,
comecei a puxar para trás os berços. As serpentes
vieram ainda mais depressa. Mas esse tal menino
quando viu as serpentes saltou num instante do
berço e atacou-as. Segurou-as corajosamente, a cada
uma com sua mão.
anfitrião: Tu contas coisas incríveis. O que tu dizes é
realmente extraordinário. Só de te ouvir todo eu
tremo de medo. E depois, que aconteceu? Continua,
anda!

Brômia: O menino matou as duas cobras! Enquanto

isto sucedia uma voz chamou claramente por tua


mulher.

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

Anfitrião: Uma voz de quem?


Brômia: Era o Chefe Supremo dos deuses e dos ho
mens, era Júpiter. Disse que às escondidas tinha tido
relações com Alcmena e que o menino que tinha

ovencido
teu. as serpentes era seu filho; e que o outro era

Anfitrião: Por Pólux! Realmente não me importo de


ter feito sociedade com Júpiter. Vai para casa e
manda já preparar os vasos sagrados para eu conse
guir, com muitos sacrifícios, que o supremo Júpiter
faça pazes. Vou chamar Tirésias, o adivinho, para o
consultarcontar
vou-lhe sobre o oque
queaconteceu.
devo fazer.
MasAoquemesmo
é isto?tempo
Que
trovão tão forte! Ó deuses, protegei-me!

JÚPITER (nas nuvens)

Deixa-te estar sossegado, Anfitrião. Venho ajudar-


te a ti e aos teus. Não tens que ter medo. Deixa-te de
adivinhos e de arúspices. Como sou Júpiter, posso
dizer-te muito melhor do que eles o que sucedeu e o
que vai acontecer. Primeiro, fui eu quem teve rela
ções com Alcmena a quem, por se ter deitado com
ela, a fez parir de um filho. Tu também a puseste
grávida quando partiste para o exército. Ela agora
teve
aqueledois
que meninos
saiu da ao mesmo
minha tempohá e deumtrazer-te
semente, deles,
uma glória imortal. E tu tens que voltar à tua antiga
amizade por Alcmena. Ela não merece que a tenhas
em pouco apreço. Foi obrigada pela minha força que
procedeu assim. Eu volto para o céu.

ANFITRIÃO
Farei o que tu mandas e peço-te que te não esque
ças das tuas promessas. Vou lá dentro ter com minha

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7/18/2019 A Comedia Latina 01 - Plauto - Anfitriao (1)

mulher e já não mando vir o velho Tirésias.12 E ago


ra, espectadores, é aplaudir com toda a força em
honra do Supremo Júpiter!

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