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A Ciência Económica
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1.1. A ECONOMIA
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A História do Autocarro
O problema que será abordado é o de um autocarro, completamente cheio,
que chega ao término da carreira. Precisa de largar todos os passageiros
e, para isso, abre as duas portas que possui. Como podemos descrever o
comportamento do sistema? A compreensão do comportamento deste sis-
tema (o autocarro cheio de pessoas) é uma tarefa científica semelhante à
tarefa do economista que pretende entender o comportamento do sistema
económico. Não é um problema económico nem deixa de o ser. Mas é um
problema susceptível de tratamento económico.
Uma das hipóteses de abordagem possível ao problema consiste em
impor que os agentes que se encontram no autocarro são racionais. Trata-se
da aplicação do postulado da racionalidade. Neste caso, a racionalidade sig-
nifica que cada passageiro, no caso geral, vai procurar sair por aquela porta
que lhe está mais perto ou, em termos económicos, vai tentar minimizar o
espaço percorrido, o esforço e o tempo dispendido para obter o seu fim: sair
do autocarro. «Sair pela porta que está mais perto» é a regra de conduta
que cada um vai aplicar.
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Assim se viu como se constrói uma teoria económica. Mas este exem-
plo serve também para sublinhar alguns aspectos importantes da ciência
económica.
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«As leis da Economia devem ser comparadas com as leis das marés,
e não com com as leis simples e exactas da gravitação. Pois as acções
dos homens são tão variadas e incertas que a melhor afirmação de ten-
dências, que podemos fazer numa ciência da conduta humana, deve ser
inexacta e defeituosa», Marshall (1890), vol. , pág. 3.
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O nosso exemplo pode também ser usado para ilustrar uma outra ideia
que, além de importância teórica, tem também alto significado histó-
rico.
Repare-se que, embora cada um esteja dedicado apenas à resolução do
seu problema (o que, como vimos, nada tem a ver com egoísmo), consegue,
sem dar por isso, resolver o problema global da melhor maneira possível.
Não existe forma de esvaziar um autocarro com duas portas, naquela posi-
ção mais rápida, do que a que foi usada.
Este facto é surpreendente e tem muito mais consequências do que
parece. Numa sociedade, onde cada pessoa decide pela sua cabeça, o que
seria de esperar era o caos e a confusão permanente. E, no entanto, o que
vemos é uma ordenação quase natural. É verdade que observamos alguma
confusão na sociedade, mas isso seria de esperar. O que é surpreendente é
que haja tão pouca confusão. O que surpreende é a ordem.
O homem que, pela primeira vez, intuiu o potencial destas duas ideias
foi um professor de moral escocês, Adam Smith, que, por isso mesmo, se
tornou o «Pai da Economia». Ele observou que, do confronto de objectivos
diferentes e frequentemente antagónicos, saía a ordem social. Algumas das
observações de Smith tornaram-se célebres:
«Não é da bondade do homem do talho, do cervejeiro ou do padeiro
que podemos esperar o nosso jantar, mas da consideração em que eles
têm o seu próprio interesse», Smith (1776), vol. , pág. 95.
Smith expressou este resultado com a fórmula célebre de «teorema da
Mão Invisível». Ele afirmou:
«Cada indivíduo [...] não pretende, normalmente, promover o bem
público, nem sabe até que ponto o está a fazer. Ao preferir a indústria
interna em vez da externa só está a pensar na sua segurança; e, ao dirigir
essa indústria de modo que a sua produção adquira o máximo valor, só
está a pensar no seu próprio ganho, e neste, como em muitos outros casos,
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está a ser guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia
parte das suas intenções» (ibidem, , 757-8).
E patente o fascínio de Adam Smith por um sistema que, de forma
surpreendente, aparece ordenado naturalmente sem que ninguém directa-
mente se possa ocupar disso. Este fascínio fez nascer a Economia. Na verdade,
a «mão invisível», além de ser muito importante para os estudos económicos,
tem ainda o interesse de ser a motivação principal que deu origem à ciência
económica. O que os discípulos de Adam Smith procuram compreender é
como este fenómeno se verifica, e porquê. É esse o objectivo que deu origem
à ciência que Smith iniciou.
Tal como nos princípios citados atrás, esta ideia da «mão invisível»
refere-se apenas a preocupações com a eficiência na luta contra o princi-
pal inimigo da Economia, o desperdício. Também neste caso, o conceito
não apresenta qualquer conotação ética, e pode também ser ilustrado pelo
citado exemplo do autocarro.
Se na saída for respeitado o princípio da minimização do espaço
percorrido pelas pessoas, como impõe a hipótese do teorema, então
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Que fazer nestes casos em que os agentes livres (que adiante identificare-
mos com o mercado), deixados a si próprios, não resolvem por si a questão
de forma satisfatória? Esta questão nasce necessariamente da constatação
da existência de situações fora da alçada da «mão invisível», quer no sis-
tema económico quer no nosso autocarro. O nosso exemplo pode também
ajudar a perceber esta questão.
Se cada um dos agentes se preocupa apenas com a sua situação, não é
neles que poderemos encontrar a resposta para um problema que é global.
Mas na maioria dos casos (de certeza nos que nos interessa) existe um, mas
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A História do Casaco
«... Por exemplo, o casaco de lã que cobre um jornaleiro, por mais gros-
seiro e tosco que possa parecer, é o produto do labor combinado de grande
número de trabalhadores. O pastor, o classificador da lã, o cardador, o
tintureiro, o fiandeiro, o tecelão, o pisoeiro, o curtidor, e muitos outros,
têm de reunir as diferentes artes para que seja possível obter-se mesmo
este produto comezinho. E quantos mercadores e carreteiros hão-de,
além disso, ter sido empregados no transporte dos materiais de uns des-
ses trabalhadores para os outros, que, muitas vezes, vivem em regiões
do país muito distantes! Quanto comércio e quanta navegação especial-
mente, quantos construtores navais, marinheiros, fabricantes de velas
e de cordas terão sido precisos para reunir as diferentes drogas usadas
pelo tintureiro, que muitas vezes provêm dos mais remotos cantos do
mundo! E que variedade de trabalho é ainda necessária para produzir
as ferramentas do mais ínfimo desses trabalhadores! Para já não falar
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Esta história mostra bem o poder e o significado das forças com que
estamos a lidar na ciência económica. Foi a compreensão do facto de que
esta realidade, tão complexa e intrincada na aparência, funcionava de
forma tão regular e coordenada, sem que ninguém dela cuidasse, que deu
origem ao estudo da Economia.
Smith sublinhava não só que a complexidade do sistema não impedia
uma eficiência nos resultados, como também levava a que as suas diferen-
ças internas, embora importantes, fossem muito pequenas em comparação
com as diferenças que o separavam dos outros sistemas (a distância de nível
de vida entre o príncipe e o jornaleiro é muito menor que a que separa o
jornaleiro do rei indígena, na expressão datada de Smith). A harmonia do
sistema económico moderno não residia só na eficiência do seu funciona-
mento, mas também na redução das diferenças entre as pessoas, embora
ainda grandes.
Esta maravilha fascinou Adam Smith, e justificou um estudo que ele
iniciou: a Teoria Económica.
Assim vimos o significado dos princípios da racionalidade e do equilí-
brio, que a ciência económica usa para analisar a realidade. Essa realidade é
bem complexa e fascinante, uma vez que as pessoas no dia-a-dia se combi-
nam, pela «mão invisível», para conseguirem formar o sistema económico,
que é tão importante à nossa vida.
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A História do Táxi
A questão económica fundamental que se levanta a quem conhece os dois
postulados fundamentais da Economia e ande de táxi é a seguinte: dado que
o cliente do táxi é racional, por que razão, uma vez chegado ao seu destino,
deve pagar a corrida? Se ele já foi servido, porque deve pagar?
Esta questão aparece naturalmente após o que vimos. Dissemos que a
racionalidade nada tinha a ver com a moral. Se o cliente procurar apenas o
seu bem-estar e não levar em conta os escrúpulos morais, a conduta mais
racional poderá ser para muitos, uma vez no destino, sair sem pagar a cor-
rida. É claro que se o cliente é uma pessoa bem formada, por razões morais,
paga o que deve. Mas haverá razões estritamente económicas?
Há sim. Em primeiro lugar, o cliente sabe que, se não pagar, aquele
taxista não o tornará a servir, e dirá aos amigos que não sirvam um calo-
teiro. Ou seja, o mercado tem autodefesas, para se proteger deste tipo de
pessoas.
Mas é claro que estas defesas são frágeis. Se o táxi trabalhasse numa
pequena cidade em que todos se conhecem, estas defesas funcionariam.
Mas se o caso se passasse numa grande cidade, numa zona onde o cliente
seja desconhecido, e onde não espere voltar tão cedo, a situação era bem
diferente. Por que razão nesse caso um agente racional deve pagar a via-
gem?
A resposta, neste caso, seria certamente que o taxista poderia chamar a
polícia e forçar o cliente a pagar. O cliente, com medo dessa ameaça, paga-
ria. Este é uma realização do papel do Estado no mercado. As autodefesas
do mercado são fracas, e o Estado é chamado a intervir. A forma de solução
do problema continua a ser o mercado, mas para o mercado funcionar é
necessária a presença do Estado.
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Mas se for à noite, num sítio ermo, onde não há polícia? Se o cliente
procurar apenas o seu bem-estar, a conduta mais racional será, uma vez
no destino, sair sem pagar a corrida? Sendo desconhecido do motorista e
não havendo presença de testemunhas, sem a possibilidade portanto de
vir a sofrer consequências futuras, e uma vez obtido o serviço contratado,
pagá-lo será racional?
Pode ainda haver uma razão racional para pagar. Isso passa-se no caso
em que o condutor possa exercer sevícias, de forma aliás algo justificada,
sobre o passageiro pouco cumpridor, de forma a obrigá-lo a pagar. Este
seria um custo directo do mau funcionamento do mercado. O taxista teria
de andar armado, para impor que lhe pagassem o que devem.
Mas nesse caso, e invertendo o problema, que impede o referido moto-
rista de, depois do pagamento, exercer ainda as referidas sevícias, para ser
pago de novo? Este último ponto põe finalmente em destaque a questão
central: trata-se de uma falha de mercado. Devido ao facto de a transacção
não se verificar num mesmo momento do tempo, mas desenrolar-se ao
longo de um período, o mercado funciona mal.
Em qualquer caso, a realização normal e correcta do contrato parece
não ter, neste caso, qualquer carácter racional. Seria de esperar que, neste
como em muitos outros tipos de transacções comuns (barbeiros, restauran-
tes, bancos, etc.) logicamente se multiplicassem os casos de rompimento do
contrato. Assim a própria racionalidade causaria a destruição do mercado,
impedindo-lhe o funcionamento normal, com as evidentes consequências
caóticas para a vida social.
No entanto, nas sociedades civilizadas estes casos são raros, o que faz
com que taxistas, barbeiros, restaurantes exerçam a sua actividade sem
perigo de serem constantemente confrontados com caloteiros racionais.
Embora se encontre por vezes agentes completamente «racionais» neste
sentido, existe corrente respeito pelas regras da civilidade, e por isso o
mercado e os outros mecanismos económicos funcionam normalmente.
Qual a razão? O motivo é, simplesmente, o papel da tradição no mercado.
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1.2. O MERCADO
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