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LL.M.

EM DIREITO EMPRESARIAL

ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

SESSÃO II

DIREITO E ECONOMIA DOS CONTRATOS


EMPRESARIAIS. ANÁLISE ECONÔMICA DOS
LITÍGIOS EMPRESARIAIS. EQUILÍBRIO
EFICIENTE NOS MERCADOS PERFEITAMENTE
COMPETITIVOS. COMPETIÇÃO IMPERFEITA.
FALHAS DE MERCADO E MECANISMOS DE
INTEGRAÇÃO. QUEBRA EFICIENTE E HOLD UP
CONTRATUAL

FGV LAW PROGRAM


RIO DE JANEIRO, 2024
Todos os direitos reservados à Fundação Getulio Vargas.

Organizadores
Assistente de pesquisa: GOMES, Lucas
Thevenard.
Professores: NEGRI, Sérgio Marcos Carvalho de
Ávila; SCHREIBER, Anderson; VIOLA, Rafael.
FRANCO, Paulo Fernando.

Análise Econômica do Direito

Atualizada em: janeiro de 2024.

Verificação de plágio pelo sistema TURNITIN 

Bibliografia, Editora FGV, Rio de Janeiro.

A presente apostila tem por intuito orientar o


estudo individual acerca do tema de que trata,
antecipando-se à aula que lhe é correspondente,
com a estrita finalidade de oferecer diretrizes
doutrinárias e indicações bibliográficas
relacionadas aos temas em análise. Nesse sentido,
este trabalho não corresponde necessariamente à
abordagem conferida pelo professor em sala de
aula, tampouco tenciona esgotar a temática sobre
a qual versa, prestando-se exclusivamente à
função de base para estudo preliminar e
referência de consulta.

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Análise Econômica do Direito
SUMÁRIO

ROTEIRO DE ESTUDO....................................................................................... 5
1 Responsabilidade pré-contratual e proibição do comportamento
contraditório ........................................................................................................... 5
1.1 Introdução. Da boa-fé objetiva ....................................................................... 5
1.2 A função tríplice da boa-fé objetiva ............................................................... 5
1.2.1 Figuras parcelares da boa-fé objetiva ......................................................... 8
1.2.1.1 Venire contra factum proprium.................................................................. 9
1.2.1.1.1 Surrectio ................................................................................................. 11
1.2.1.1.2 Supressio ................................................................................................ 13
1.2.1.2 Tu Quoque................................................................................................. 15
1.2.1.3 Duty to mitigate the loss ............................................................................ 16
1.3 A fase pré-contratual ..................................................................................... 18
1.3.1 Delimitação do espaço das negociações: oferta e aceitação ..................... 18
1.3.2 Da oferta no direito brasileiro ................................................................... 18
1.4 Responsabilidade civil pré-contratual ......................................................... 19
1.4.1 Da responsabilidade civil............................................................................ 19
1.4.2 Da responsabilização civil na fase das tratativas ..................................... 20
1.4.3 Responsabilidade pré-contratual, inadimplemento do pré-contrato e
contrato compulsório ........................................................................................... 22
1.4.4 Responsabilidade pré-contratual e os deveres secundários .................... 22
1.5 A proibição de comportamento contraditório............................................. 25
1.5.1 A tutela da confiança .................................................................................. 27
1.5.2 Do venire contra factum proprium.............................................................. 28
1.5.3 A responsabilidade pré-contratual pela ruptura das tratativas: a
aplicação do “venire” na fase pré-contratual .................................................... 30
QUESTÕES DE AUTOMONITORAMENTO ................................................. 33
SUGESTÃO DE CASOS GERADORES .......................................................... 34
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 37
Bibliográficas ........................................................................................................ 37
1 Utilizadas ........................................................................................................... 37
Eletrônicas ............................................................................................................ 38
_______________________________________________________________ 3
Análise Econômica do Direito
Jurisprudenciais ................................................................................................... 38
Legislativas ........................................................................................................... 38

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Análise Econômica do Direito
ROTEIRO DE ESTUDO
1 Responsabilidade pré-contratual e proibição do comportamento
contraditório
1.1 Introdução. Da boa-fé objetiva
Com a socialização do Direito Civil e consequente evolução da teoria
contratual, passou-se a adotar, também nas relações obrigacionais, uma visão
voltada principalmente à dimensão humana e social dos particulares.
Em função desta nova perspectiva, concebe-se, hoje, o contrato como um
instrumento a serviço da coletividade e do ser humano, de modo a contribuir para
seu desenvolvimento e dignidade.
A partir, principalmente, do reconhecimento dessa influência social
(costumes, moralidade, harmonia, tradição...) no direito, interesses e preocupações
de ordem coletiva começaram a se integrar ordenamento, fazendo com que
valores como equidade, boa-fé e segurança passassem a configurar a sistemática
jurídica e a servir de parâmetros interpretativos na concreção das leis.
Atualmente, encontra-se inserido como cláusula geral em nosso
ordenamento jurídico (art. 422,1 CC/2002) o princípio da boa-fé em sua feição
objetiva. Impositivo de standard de comportamento, a boa-fé objetiva representa
verdadeira expressão da solidariedade social no campo das relações privadas. À
autonomia privada, antes reconhecida como um dogma no contexto em que
vigorava o brocardo pacta sunt servanda, são acrescidos deveres impostos às
partes que, em quaisquer relações jurídicas, devem pautar-se na honestidade,
probidade e lealdade.

1.2 A função tríplice da boa-fé objetiva


Sob um ponto de vista dogmático, atribui-se ao referido princípio uma
função tríplice dentro do sistema jurídico: (1) de cânone interpretativo dos
negócios jurídicos; (2) de criar deveres anexos e, finalmente; (3) de limitar o
exercício de direitos.
Atinente à primeira função destacada, havendo divergência entre as partes
de um contrato a respeito do alcance e do sentido das disposições nele previstas,

1
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé.
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Análise Econômica do Direito
sua interpretação será efetivada mediante as diretrizes estabelecidas pelo princípio
da boa-fé objetiva. Exige-se, pois, que as cláusulas contratuais sejam interpretadas
tendo em vista a lealdade, a probidade e a honestidade entre as partes. O Código
Civil Brasileiro consagra expressamente essa função da boa-fé em seu artigo 113,
que estabelece que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a
boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.
Regis Fichtner Pereira classifica essa aplicação do princípio da boa-fé na
interpretação das normas incidentes sobre o caso concreto como uma
interpretação secundum legem, já que o princípio nesses casos serve apenas como
mais um dos elementos interpretativos da norma legal ou contratual.2
No que diz respeito à segunda função, tem-se a boa-fé como fonte de
deveres anexos à prestação principal. Entende-se que a exigência de as partes
agirem conforme os ditames da boa-fé objetiva na formação e execução contratual
implica, necessariamente, a existência de deveres anexos – também chamados de
deveres secundários, acessórios, instrumentais ou tutelares – implícitos ao
contrato. Esses deveres se destinam a estabelecer, para ambos os polos da relação
jurídica, um determinado padrão de conduta baseado em fatores como a
cooperação, confiança e lealdade entre as partes. Os principais deveres
secundários decorrentes da boa-fé objetiva consistem em deveres de correção, de
cuidado e segurança, de informação, de cooperação e de sigilo.
Na verdade, estes deveres anexos “variam de acordo com a relação jurídica
concreta da qual decorram, e a precisa identificação do seu conteúdo é, em
abstrato, inviável.”3
Como afirmam Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber:

Com efeito, a boa-fé objetiva não pode ser aplicada da mesma forma
às relações de consumo e às relações mercantis ou societárias, pela
simples razão de que os standards de comportamento são distintos.
Assim, enquanto no exemplo da compra e venda de um automóvel
exige-se que o vendedor forneça ao comprador toda informação
relevante acerca do veículo e qualquer outro dado relacionado à
função social e econômica do contrato, a aquisição de controle de uma
determinada sociedade, por outro lado, envolve normalmente uma
avaliação dos custos, riscos e passivos da sociedade (due diligence)

2
PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade Civil Pré-Contratual – Teoria Geral e
Responsabilidade pela Ruptura das Negociações Contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
3
SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e
venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 82.
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Análise Econômica do Direito
pela própria empresa adquirente, o que, se não isenta o alienante do
seu dever de informação, reduz evidentemente a sua intensidade.4

A terceira função atribuída à boa-fé objetiva, como mencionado


anteriormente, é a de restringir o exercício de determinados direitos. Esta busca
impede o exercício daqueles direitos contrários à recíproca lealdade e confiança
que devem imperar nas relações contratuais. Vedam-se, portanto, os
comportamentos que, mesmo assegurados por lei ou pelas cláusulas estabelecidas
no contrato, não se conformam aos parâmetros de conduta exigidos pela boa-fé.
Aqui, a boa-fé entrelaça-se com a noção de abuso do direito,
especialmente por força do art. 187 do Código Civil5 que a elege como um dos
parâmetros para aferição de abusividade no exercício dos direitos. Assim, “é
possível falar em abuso do direito por violação à boa-fé, sem que aí se esgotem
todas as espécies de abuso, ou todas as funções da boa-fé.”6
Nesse amplo movimento de solidarização do direito, a relação contratual
passou a ser reconhecida como um feixe de obrigações múltiplas e recíprocas, um
verdadeiro processo sociojurídico, dotado de dinamicidade. Trata-se, portanto, de
uma série de deveres de conduta e deveres propriamente contratuais, vistos no
tempo, ordenados logicamente e unidos por uma finalidade comum: a efetivação
dos interesses legítimos das partes, a realização do objetivo do contrato e o
posterior desaparecimento da relação.
Com efeito, a partir das funções atribuídas atualmente à boa-fé objetiva
tem-se que, sob a luz desse princípio, o contrato implica o compromisso expresso
ou implícito de fidelidade e cooperação. Deve-se agir com vista, sempre, ao
parceiro contratual, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas
razoáveis e seus direitos.
Complementa esse entendimento Martins-Costa:

No âmbito do direito obrigacional, o mais paradigmático exemplo


desta mobilidade sistemática proporcionada pela técnica da cláusula
geral é oferecido pela cláusula da boa-fé. Afirma Rodotà que a sua

4
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Os Efeitos da Constituição em relação à
Cláusula da Boa-fé no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil. In: Revista da
EMERJ. Rio de Janeiro: 2003, v. VI, pp. 139-151.
5
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes.
6
SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e
venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 114.
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Análise Econômica do Direito
abertura normativa conduz à inserção, no conteúdo eficacial dos
negócios jurídicos, de valores, usos e padrões de condutas enraizados
na sociedade, na medida em que a boa-fé gera deveres não previstos
nos instrumentos negociais, mas fundados em sua função.7

O reconhecimento da necessidade da tutela da confiança modificou o foco


do ordenamento até então direcionado exclusivamente para a conduta das partes.
Hoje, já é concedida atenção especial também aos efeitos fáticos produzidos pela
adoção dessa conduta.
Justamente em virtude desse deslocamento da atenção do ordenamento,
entende-se que a aplicação da boa-fé objetiva como regra geral de conduta não se
restringe, necessariamente, ao momento do vínculo contratual. Embora o disposto
no art. 422 do Código Civil pareça supor a limitação da boa-fé a esse âmbito dos
contratos, a melhor interpretação é no sentido de estender tal regra também às
fases pré-contratual e pós-contratual. Assim, os deveres decorrentes da boa-fé
objetiva vinculam os interessados ainda na fase de negociações do contrato,
assegurando a tutela da confiança, na tentativa de buscar que as legítimas
expectativas dos contratantes - ou futuros contratantes, não sejam injustamente
frustradas.

1.2.1 Figuras parcelares da boa-fé objetiva


Existe a necessidade de que seja conferida concretude à boa-fé objetiva,
uma vez que esta se caracteriza como uma forma de conduta moral, que tem
efeitos na órbita jurídico-normativa. Destacam Cristiano Chaves de Farias e
Nelson Rosenvald: “o grande desafio relacionado ao princípio da boa-fé concerne
à sua mais exata concreção.8”
Para se analisar em um caso concreto o respeito ou não ao princípio da
boa-fé, é necessário o exame de toda a situação fática ocorrida, e foi justamente
para ajudar a solucionar os problemas decorrentes dessa análise que foram criadas
as figuras parcelares da boa-fé.
Na Alemanha, começou-se a analisar casos concretos juridicamente
semelhantes e que apresentavam alguma violação ao princípio da boa-fé objetiva.

7
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado - Sistema e Tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 342.
8
ROSENVALD, Cristiano Chaves de Farias e Nelson. Curso de Direito Civil. Direito dos
Contratos. V. 4. 9ª ed. Salvador: Editora Juspodium, 2013. p 167.
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Análise Econômica do Direito
Diante de tal exercício, foram sendo, gradativamente, destacadas situações típicas
para as quais se fazia como necessária a aplicação da boa-fé.
A vantagem de tal método é o reconhecimento de situações típicas que são
mais especializadas – individualizadas, diante do princípio geral, perfazendo-se
como espécies do gênero boa-fé objetiva, facilitando, assim, a sua aplicação aos
casos concretos, fornecendo, ao mesmo tempo, ao aplicador regras bem
delineadas e que conferem maior segurança jurídica.
Tais figuras são denominadas subprincípios ou figuras parcelares da boa-fé
objetiva, cuja finalidade é afastar o próprio abuso do direito.

1.2.1.1 Venire contra factum proprium


Fundado no princípio geral da boa-fé objetiva – que determina uma
responsabilidade mínima da parte por seus próprios atos –, consiste na vedação de
comportamentos contraditórios por uma das partes na relação jurídica. Tais
comportamentos, a priori¸ podem ser considerados lícitos.
A conduta inicial – factum proprium – a ser praticada gera uma legítima
expectativa para a outra parte, levando em consideração a confiança que permeia
as relações jurídicas. O comportamento contraditório quebra o iter
originariamente criado, restando ofendido o princípio da boa-fé a partir do
momento que a parte pratique o ato que vá de encontro com a expectativa por ela
mesmo criada, devendo, portanto, haver sua responsabilização. Aí se observa a
presença dos deveres anexos à função integrativa da boa-fé objetiva, bem como a
respectiva sanção pela a sua não observância.

O principal efeito será o da inibição do exercício de poderes jurídicos


ou direitos, em contradição com o comportamento anterior. Por outro
lado, a proibição de comportamento contraditório torna ilegítima a
conduta posterior, podendo assim, constituir o agente numa obrigação
de indenizar, designadamente por violação de uma obrigação (no caso,
por exemplo, de o comportamento posterior contraditório visar a
cessação dos efeitos de um contrato). Pode acontecer, contudo, que a
consequência seja a eventual constituição de uma obrigação ao
agente.9

9
MOTA PINTO, Paulo. Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum
proprium) no direito civil. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra –
Volume Comemorativo, 2003. p. 305.
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Análise Econômica do Direito
A vedação ao comportamento considerado como contraditório decorre do
controle ao exercício de direitos, função da boa-fé e assim explica Ruy Rosado de
Aguiar Júnior.10

A “teoria dos atos próprios”, ou a proibição de venire contra factum


proprium, protege uma parte contra aquela que pretende exercer uma
posição jurídica em contradição com o comportamento assumido
anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de
conduta seguramente indicativa de determinado comportamento
futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a
ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à
contraparte.

É preciso que existam dois comportamentos a serem praticados, quais


sejam: o factum proprium e o comportamento considerado contraditório, os quais
são, inicialmente, considerados lícitos, mas condenados pela boa-fé objetiva, já
que violam a tutela da confiança criada na outra parte, podendo lhe causar
prejuízos.
Diz o Enunciado 362 da IV Jornada de Direito Civil pelo Conselho da
Justiça Federal: “A vedação do comportamento contraditório (venire contra
factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos
artigos 187 e 422 do Código Civil”.
A aplicação desse subprincípio da boa-fé objetiva visa prevenir ou mesmo
reparar os danos da parte que confiou em algum comportamento praticado pela
parte contrária. Possui como subespécies a Surrectio e a Supressio e é tratada pela
jurisprudência da seguinte forma, in verbis:

RECURSO ESPECIAL. EMPRÉSTIMO. PESSOA JURÍDICA.


GARANTIA. HIPOTECA. BEM IMÓVEL. PROPRIEDADE.
OUTRA. PESSOA JURÍDICA. VALIDADE.
IMPENHORABILIDADE. BEM DE FAMÍLIA. ALEGAÇÃO.
POSTERIOR. SÓCIO. PESSOA FÍSICA. DESCABIMENTO. 1. É
válida a hipoteca prestada por empresa que livremente ofereceu bem
imóvel de sua propriedade para garantir empréstimo de outra pessoa
jurídica, ainda que o sócio seja o representante legal das duas
empresas. 2. Nessa hipótese, é descabida a alegação posterior
formulada pelas pessoas físicas integrantes do casal de sócios acerca
de eventual impenhorabilidade de bem de família, razão pela qual
inviável a construção interpretativa, na espécie, no sentido da
desconsideração da personalidade jurídica da empresa garante, sob
pena de violação do dever de boa-fé objetiva dos contratantes, em
especial na sua vertente do princípio da confiança (venire contra

10
JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de
Janeiro: AIDE, 2004. p. 251-252.
_______________________________________________________________ 10
Análise Econômica do Direito
factum proprium). 3. Recurso especial a que se nega provimento.
(STJ, Resp 1422466/DF, Relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira
Turma, julgado em 03/02/2015, DJe 13/03/2015).

1.2.1.1.1 Surrectio
O subprincípio ora em análise dá origem a direito que não existe
juridicamente, mas que a prática reiterada de determinados atos faz gerar a
expectativa e a confiança. Ou seja, a surrectio inibe o comportamento
contraditório, caracterizando-se pelo surgimento de um direito pela conduta
reiterada que vai de encontro à postura anteriormente firmada, o que, pelo decurso
do tempo, desperta a legítima expectativa de que tal conduta se mantenha.11
É figura que se correlaciona diretamente com a da supressio, já que as
duas visam à modificação de uma situação jurídica pela expectativa legítima que é
criada pelo decurso do tempo. Enquanto a surrectio visa à criação de nova
circunstância de direito, a supressio tem por finalidade acarretar a perda do direito
subjetivo que não é exercido.
Encontramos no art. 330 do Código Civil de 2002 a fonte da surrectio: “o
pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor
relativamente ao previsto no contrato”.
Cinco pressupostos são indicados por Marcelo Dickstein12 para a
configuração da surrectio, quais sejam: a) a conduta inicial reiterada – que deve
ser comissiva, indo de encontro à situação jurídica anteriormente combinada entre
as partes; b) a legítima confiança qualificada pelo decurso do tempo – havendo a
estabilização da relação jurídica e fazendo surgir o direito; c) um comportamento
contraditório que, posteriormente, irá frustrar as expectativas da outra parte, já que
vai de encontro com a conduta que é anteriormente adotada; d) o prejuízo
originado, já que a segunda conduta deve trazer algum tipo de diminuição da
situação da outra parte e; e) a identidade dos sujeitos – o sujeito ativo da conduta
inicial deve ser o mesmo que pratica a conduta posteriormente.
Os efeitos da surrectio são: a) a conduta reiterada e a confiança gerada
pelo decurso do tempo faz com que a relação jurídica existente se modifique,

11
DICKSTEIN, Marcelo. A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: surrectio e
suppressio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 118.
12
DICKSTEIN, Marcelo. A boa-fé objetiva na modificação tácita da relação jurídica: surrectio e
suppressio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 130.
_______________________________________________________________ 11
Análise Econômica do Direito
havendo a aquisição de novos direitos e; b) o desestímulo da prática de conduta
contraditória.
Dizem os Enunciados de n. 37 e 363, da I e IV Jornada de Direito Civil
pelo Conselho da Justiça Federal, que a responsabilidade da parte que atua de
maneira contraditória será independente de culpa:

Enunciado 37 – Art. 187: a responsabilidade civil decorrente do abuso


do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério
objetivo finalístico.

Enunciado 363 – Art. 422: Os princípios da probidade e da confiança


são de ordem pública, sendo obrigação da parte lesada apenas
demonstrar a existência da violação.

O decurso do tempo revela-se fundamental para o surgimento da


surrectio, mas se exige a ocorrência de outros fatores a justificar o
nascimento do direito subjetivo pretendido. Canaris elege alguns
requisitos essenciais para se operar a surrectio, são eles: 1) a
existência de uma previsão de confiança; 2) a imputação da ocorrência
da surrectio ao prejudicado a título de culpa ou risco; 3) a boa-fé
subjetiva do beneficiário, no sentido de reputar regular uma dada
situação fática; 4) a inexistência de obrigação de indenizar ou restituir
enriquecimentos.13

Abaixo, um exemplo de como a jurisprudência pátria trata da figura


parcelar em análise, relacionando-a intimamente com a supressio.

EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO – AÇÃO DE COBRANÇA –


PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE – TRÂMITE
PARA O RECEBIMENTO DOS VALORES – SITUAÇÃO
JURÍDICA CONTINUADA – FENÔMENO DA
SUPRESSIO/SURRECTIO – BOA-FÉ OBJETIVA E SEGURANÇA
JURÍDICA. Deixando a Administração Pública de comprovar que os
serviços contratados não foram efetivamente prestados, a nota de
subempenho correlata configura prova suficiente para o
reconhecimento do direito de receber pelos serviços prestados ao
Município. Quando já existe histórico de sua efetivação mesmo sem a
apresentação de alguns documentos estabelecidos em contrato, a
suspensão do pagamento não se mostra razoável, nos termos da teoria
da supressio/surrectio. O patrocínio profissional deve ser remunerado
de forma condizente com atividade exercida pelo advogado, devendo
o Juiz arbitrar valores de acordo com a complexidade da causa, com o
conteúdo do trabalho jurídico apresentado e com a maior ou menor
atuação no processo. (TJMG, Ap. Cível/Reexame Necessário
1.0019.13.000702-4/001, Relator: Desembargador Wilson Benevides,
Sétima Câmara Cível, Julgamento em 03/11/2015, DJe 11/11/2015).

13
SOUZA, Wagner Mota Gomes de. A teoria dos atos próprios: esboço de uma teoria do
comportamento contraditório aplicada ao direito. Salvador, UFBA, 2006. P.74.
_______________________________________________________________ 12
Análise Econômica do Direito
Por fim, importante é o ressalte que ambas as figuras, tanto a supressio -
Verwiekung, como a surrectio - Erwirkung são derivadas do sistema alemão e
possuem suas denominações do direito português.14

1.2.1.1.2 Supressio
Ocorre da seguinte forma, a parte faz surgir a expectativa legítima de que
não exercerá mais algum de seus direitos, exercendo-o, no entanto, logo depois, o
que vai de encontro à confiança uma vez criada.
Tal conduta lesiona a boa-fé objetiva porque se caracteriza como
comportamento contraditório, baseado em uma omissão da parte que detém o
direito. “É a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias,
exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo, de outra
forma, se contrariar a boa-fé.”15 Trata-se da espécie de venire contra factum
proprium omissiva, enquanto a surrectio é sua modalidade comissiva, conforme já
foi pincelado.
Traz consigo os mesmos pressupostos da surrectio, quais sejam, a) a
conduta inicial reiterada, agora em sua modalidade omissiva; b) a legítima
confiança justificada pelo decurso do tempo – aqui, a parte não exerce algum dos
seus direitos durante o decurso do tempo, gerando na outra parte a expectativa
legítima de que o mesmo não será mais exercido; c) um comportamento
contraditório que frustrará as expectativas da outra parte; d) existência de algum
prejuízo e; por fim, e) a identidade de sujeitos - as partes devem ser as mesmas
quando da prática da conduta inicial e da conduta contraditória.
Os efeitos da supressio, por sua vez, também são os mesmos mencionados
quando do tratamento da surrectio: a) a modificação da relação jurídica pela
prática de um comportamento reiterado - omissivo, gerando a perda de um direito
não mais praticado e; b) o desestímulo de prática de conduta contraditória,
levando à reparação do dano, bem como seu desfazimento, se possível for.

RECURSO ESPECIAL. CONTRATO. PROMESSA DE COMPRA E


VENDA DE COMBUSTÍVEIS E DERIVADOS. APELAÇÃO.

14
ROSENVALD, Cristiano Chaves de Farias e Nelson. Curso de direito civil – volume
1.Salvador: Editora Juspodivm, 2013. p. 713.
15
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra:
Almedina, 2007. p. 797.
_______________________________________________________________ 13
Análise Econômica do Direito
REGRA DO ART. 514 DO CPC. ATENDIMENTO. AQUISIÇÃO
DE QUANTIDADE MÍNIMA DE PRODUTOS. INOBSERVÂNCIA
NO CURSO DA RELAÇÃO CONTRATUAL. TOLERÂNCIA DO
CREDOR. CLÁUSULA PENAL. INAPLICABILIDADE.
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. INSTITUTO DA
SUPPRESSIO. INCIDÊNCIA. HONORÁRIO ADVOCATÍCIOS.
SÚMULA N° 7/STJ. 1. Trata-se de ação de cobrança de multa
prevista em contrato de promessa de compra e venda de combustíveis
e produtos derivados sob a alegação de que o posto de gasolina não
adquiriu a quantidade mínima prevista. (...) 3. Segundo o instituto da
suppressio, o não exercício de direito por seu titular, no curso da
relação contratual, gera para a outra parte, em virtude do princípio da
boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais se mostrava
sujeito ao cumprimento da obrigação, presente a possível deslealdade
no seu exercício posterior. 4. Hipótese em que a recorrente permitiu,
por quase toda a vigência do contrato, que a aquisição de produtos
pelo posto de gasolina ocorresse em patamar inferior ao pactuado,
apresentando-se desleal a exigência, ao fim da relação contratual, do
valor correspondente ao que não foi adquirido, com incidência de
multa. Assim, por força do instituto da suppressio, não há ofensa ao
art. 921 do Código Civil de 1916. (...) 6. Recurso especial não
provido. (STJ, REsp 1374830/SP, Relator Ministro Ricardo Villas
Bôas Cueva, Terceira Turma, Julgado em 23/06/2015, DJe
03/08/2015).

O mesmo entendimento podemos observar do julgado abaixo, do Supremo


Tribunal de Justiça de Portugal,16 in verbis:

11-01-2011
Revista n° 2621/07.ITBPNF.P1.S1 – 6ª Secção
Azevedo Ramos (Relator)
Silva Salazar
Nuno Cameira
MARCAS. SINAL DISTINTIVO. IMITAÇÃO. CONFUSÃO.
CONCORRÊNCIA DESLEAL. BOA-FÉ. ABUSO DO DIREITO.
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. PRINCÍPIO DA
CONFIANÇA. I – A marca é um sinal distintivo de produtos ou
serviços, visando individualizá-los, não só para assegurar clientela,
como para proteger o consumidor do risco de confusão ou associação
com marcas concorrentes. (...) III – A ré, sem oposição da autora, vem
explorando na cidade de Amarante, desde 1992, o seu estabelecimento
comercial de sapataria, sob a denominação “Sapataria C.......”, na
mesma rua em que a autora explora o seu, sob a denominação
“Sapataria C........” vendendo, igualmente, produtos de sapataria. IV –
A omissão, a inércia, fomentam a confiança na situação induzida pelo
comportamento omissivo, pelo que o exercício de direitos em
contradição é abusivo por violador do princípio da boa-fé suposto na
proibição do abuso do direito. V – A passividade da autora, não
reagindo ao uso de marca confundível com a sua, por uma empresa
concorrente, durante pelo menos onze anos, constitui tolerância de uso
de marca por esse concorrente, pelo que sendo tão dilatado o período
de violação do direito, depreende-se, razoavelmente, que pelo seu
silêncio contemporizou com uma situação a que agora, sem invocar

16
Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, Disponível em: <http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-
sumarios/civel/sumarios-civel-2011.pdf >. Acesso em: 15 jan. 2017.
_______________________________________________________________ 14
Análise Econômica do Direito
quaisquer circunstâncias relevantes supervenientes pretende obstar,
em desconsideração pela expectativa e confiança adquiridas pela ré
em que tal direito não seria exercido. VI – A atuação da autora, atento
o objetivo que visa a ação, ao fim de largos anos de inércia, aparece à
luz da boa-fé e do fim social e econômico do direito que pretende
exercer, como violadora do princípio da segurança, pelo não deve ser
atendida, não na modalidade de venire contra factum proprium, mas
na modalidade da supressio do direito da autora que assim deverá ser
penalizada pela sua injustificada passividade, durante pelo menos
onze anos. (grifo nosso)

1.2.1.2 Tu Quoque
A expressão tu quoque faz referência ao famoso ditado de Júlio César a
Brutus, “tu quoque, Brutus, fili mili”, que tem por significado: Até tu Brutus, filho
meu!
É verificado o subprincípio quando uma das partes adota um
comportamento que viola norma jurídica e, posteriormente, tenta obter alguma
vantagem ou benefício da situação.17 Impede que alguma das partes exija
comportamento, o qual ela mesma tenha violado, buscando se beneficiar de
alguma maneira.
É incluído por alguns autores como subespécie do venire contra factum
proprium, pela identidade apresentada com o instituto – incoerência e contradição
de comportamentos.
Um dos exemplos do tu quoque é a exceptio non adimplenti contractus –
exceção do contrato não cumprido, quando não se permite ao contratante
inadimplente de suas obrigações exigir o cumprimento das prestações da outra
parte, conforme o art. 476, do Código Civil de 2002.18
Seu fim é manter o sinalagma contratual, repelindo o desequilíbrio de
direitos e deveres anexos entre as partes de uma mesma relação contratual.

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CAMBIÁRIO. AÇÃO


DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE TÍTULO DE CRÉDITO.
NOTA PROMISSÓRIA. ASSINATURA ESCANEADA.
DESCABIMENTO. INVOCAÇÃO DO VÍCIO POR QUEM O DEU
CAUSA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.
APLICAÇÃO DA TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS SINTETIZADA

17
“(...) aquele que venha a adquirir uma posição jurídica indevidamente obtida, pois oriunda de
violação de uma norma, não poderia exercê-la”(SOUZA, Wagner Mota Alves de. A teoria dos
atos próprios – da proibição de venire contra factum proprium. Salvador: Jus Podium, 2008. P.
89).
18
Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação,
pode exigir o implemento da do outro.
_______________________________________________________________ 15
Análise Econômica do Direito
NOS BROCARDOS LATINOS ‘TU QUOQUE’ E ‘VENIRE
CONTRA FACTUM PROPRIUM’. 1. A assinatura de próprio punho
do emitente é requisito de existência e validade de nota promissória.
[...] 3. Inexistência de lei dispondo sobre a validade da assinatura
escaneada no Direito brasileiro. 4. Caso concreto, porém, em que a
assinatura irregular escaneada foi aposta pelo próprio emitente. 5.
Vício que não pode ser invocado por quem lhe deu causa. 6.
Aplicação da ‘teoria dos atos próprios’, como concreção do princípio
da boa-fé objetiva, sintetizada nos brocardos latinos ‘tu quoque’ e
‘venire contra factum proprium’, segundo a qual ninguém é lícito
fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior ou
posterior interpretada objetivamente, segundo a lei, os bons costumes
e a boa-fé. 7. Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 8. RECURSO
ESPECIAL DESPROVIDO. (STJ, REsp 1192678/PR, Relator
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, Julgado em
13/11/2012, DJe 26/11/2012).

Abaixo, interessante jurisprudência que invoca as figuras parcelares tu


quoque, bem como venire contra factum proprium, do Supremo Tribunal de
Justiça de Portugal,19 tratando de um contrato promessa, no qual cônjuges pactuam
o repúdio da herança do outro quando vierem a falecer:

10.01.2008
Revista n°. 4322/07 – 7ª Secção
Ferreira de Sousa (relator)
Armindo Luís
Pires da Rosa
CONTRATO PROMESSA. CÔNJUGE. SUCESSÃO MORTIS
CAUSA. ABUSO DO DIREITO. TU QUOQUE. VENIRE CONTRA
FACTUM PROPRIUM. I – O contrato-promessa pode ter como objeto
a efetivação de um ou mais atos jurídicos unilaterais. II – O contrato
celebrado entre os cônjuges, não levado a cabo em convenção
antenupcial, em que cada um renuncia à herança do outro é nulo. III –
Sendo igualmente nulo o contrato-promessa, não inserto em tal
convenção, em que cada um deles promete vir a repudiar, quando o
outro morrer, a herança deste. IV – Aquele que outorga com o
cônjuge, em contrato-promessa, no sentido de cada um deles,
reciprocamente, se obrigar a repudiar a herança do outro quando ele
morrer, coloca-se em terreno ilícito, não podendo a sua sucessora
legitimamente – atenta a figura do tu quoque – invocar o abuso do
direito contra o cônjuge sobrevivo que se recusa a levar a cabo o
prometido repúdio. V – Em qualquer caso, esta recusa, sem prova de
outros fatos interessantes, não integra a figura do venire contra factum
proprium. (grifo nosso)

1.2.1.3 Duty to mitigate the loss


A boa-fé objetiva deve ser observada por todas as partes que estejam
envolvidas em uma relação jurídica, por isso, obviamente, o credor deve pautar

19
Supremo Tribunal de Justiça de Portugal. Disponível em: <http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-
sumarios/civel/sumarios-civel-2008.pdf >. Acesso em: 15 jan. 2017.
_______________________________________________________________ 16
Análise Econômica do Direito
sua conduta pelos valores de probidade e lealdade. A duty to mitigate the loss é
nomeada pelo direito anglo-americano e tem como significado o dever de mitigar
o próprio prejuízo.
O credor deve mitigar a própria perda, ou seja, é obrigado pelo princípio
da boa-fé a buscar a satisfação do próprio direito em um intervalo de tempo que
seja razoável. Sua omissão acaba por gerar ao devedor uma onerosidade
excessiva. Podemos entender, então, que a faculdade que dispõe o credor de ir em
busca de seus próprios direitos não permite que o mesmo aja de maneira a agravar
a prestação a ser suportada pelo devedor.
Isso o que veicula o Enunciado n° 169, da III Jornada de Direito Civil pelo
Conselho de Justiça Federal: “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a
evitar o agravamento do próprio prejuízo.”
A duty to mitigate the loss – que não atinge o núcleo da obrigação
principal, mas sim aos deveres de lealdade e cooperação, também encontra lugar
na Convenção de Viena, em seu art. 77, que afirma:

a parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas


razoáveis, levando em consideração as circunstâncias, para limitar a
perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ela
negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a
redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda
que poderia ter sido diminuída.

DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA.


STANDARD ÉTICO-JURÍDICO. OBSERVÂNCIA PELAS
PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TO
MITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO
PREJUÍZO. INÉRCIA DO CREDOR. AGRAVAMENTO DO
DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSO
IMPROVIDO. 1. Boa-fé objetiva. Standard ético-jurídico.
Observância pelos contratantes em todas as fases. Condutas pautadas
pela probidade, cooperação e lealdade. 2. Relações obrigacionais.
Atuação das partes. Preservação dos direitos dos contratantes na
consecução dos fins. Impossibilidade de violação aos preceitos éticos
insertos no ordenamento jurídico. 3. Preceito decorrente da boa-fé
objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o próprio
prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e
possíveis para que o dano não seja agravado. A parte a que a perda
aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano.
Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do credor. Infringência
aos deveres de cooperação e lealdade. 4. Lição da doutrinadora Vera
Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o prejuízo
sofrido. O fato de ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase
7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu dever contratual
(pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda),
evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o
_______________________________________________________________ 17
Análise Econômica do Direito
consequente agravamento significativo das perdas, uma vez que a
realização mais célere dos atos de defesa possessória diminuiria a
extensão do dano. 5. Violação ao princípio da boa-fé objetiva.
Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade
imposta pela Corte originária, (exclusão de um ano de ressarcimento).
6. Recurso improvido. (STJ, REsp 758518/PR, Relator Ministro
Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJRS), Terceira
Turma, Julgado em 17/06/2010, DJe 28/06/2010).

1.3 A fase pré-contratual


A maioria dos negócios jurídicos é precedida de negociações chamadas
tratativas, nas quais, geralmente, discute-se a melhor forma de contratar. Nessa
fase preliminar, ainda não há contrato, já que não formado o vínculo jurídico que
obrigará uma das partes, ou ambas, a realizar uma prestação.

1.3.1 Delimitação do espaço das negociações: oferta e aceitação


Para a delimitação desse espaço do “ainda não contrato”, faz-se necessário
destacar as figuras jurídicas da proposta e da aceitação, já que, via de regra, a
celebração do contrato se dá mediante a soldagem dessas duas categorias tidas
como espécies de negócios jurídicos unilaterais.
A oferta é a manifestação unilateral de vontade que uma das partes dirige a
outra visando à celebração do contrato. Caracteriza-se por ser uma declaração
receptícia de vontade, uma vez que é dirigida a outra parte para que a aceite.
Segundo Marcelo Leal de Lima Oliveira: “a oferta deve ser certa, segura,
demonstrando o proponente o firme propósito de contratar”.20
Já a aceitação é a manifestação de vontade por meio da qual o destinatário
da oferta declara sua aceitação aos termos da proposta, aperfeiçoando o contrato
entre as partes.
Justamente nessa fase é que estão situados os fatores indutores da
responsabilidade pré-contratual.

1.3.2 Da oferta no direito brasileiro


O direito brasileiro filiou-se ao sistema alemão no que diz respeito às
peculiaridades da oferta. Nosso ordenamento prevê expressamente (art. 427,

20
OLIVEIRA, Marcelo Leal de Lima. A aurora na formação dos contratos: a oferta e a aceitação
do clássico ao pós-moderno. In: Revista de Direito Privado, n. 15, jul./set. 2003. p. 247.
_______________________________________________________________ 18
Análise Econômica do Direito
CC/2002) que “a proposta do contrato obriga o proponente, se o contrário não
resultar dos termos dela, da natureza do negócio ou das circunstâncias do caso”.
À vista deste dispositivo, observa Martins-Costa que a responsabilidade
pré-contratual poderia ser dividida em duas seções: a “fase da oferta” e a “fase das
negociações”.21
Na fase das negociações preliminares, os deveres que poderão incidir
sobre os interessados decorrem da boa-fé, que traçará os lindes do vínculo
obrigacional entre as partes aferido no caso concreto.
O Código de Defesa do Consumidor ampliou ainda mais os efeitos da
oferta no âmbito das relações de consumo. Estabelece o art. 35 do referido
diploma legal que o fornecedor de produtos ou serviços não pode deixar de
cumprir o que tiver sido estabelecido na oferta, seja formal, seja por mera
publicidade ou apresentação do produto. Apenas o fato de existir a oferta confere
ao consumidor o direito de escolher entre as seguintes opções: (1) exigir o
cumprimento forçado da obrigação, nos termos como foi ofertado; (2) aceitar
outro produto ou prestação de serviço equivalente; (3) rescindir o contrato, com
direito à restituição da quantia eventualmente antecipada, monetariamente
atualizada, e a perdas e danos.22

1.4 Responsabilidade civil pré-contratual


1.4.1 Da responsabilidade civil
Todas as vezes que alguém sofre um dano em virtude de fato de outrem,
surge a possibilidade de responsabilização civil daquele que causou o prejuízo. Há
algum tempo, a doutrina divide a responsabilidade civil em dois grandes grupos: a
extracontratual, relativa aos casos em que não há relação jurídica de natureza
contratual entre causador do dano e a vítima; e a contratual, concernente àquelas
hipóteses em que o dano é causado no âmbito de uma relação contratual
preexistente.
As pessoas envolvidas numa relação contratual passam a ter um contato
social qualificado, e, em virtude disso, os tratamentos jurídicos desses dois tipos

21
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado - Sistema e Tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 510.
22
PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade Civil Pré-Contratual – Teoria Geral e
Responsabilidade pela Ruptura das Negociações Contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.
49.
_______________________________________________________________ 19
Análise Econômica do Direito
de responsabilidade civil diferem entre si. As diferenças, portanto, decorrem do
fato de se definir se o contato que gerou a produção do dano se deu na esfera de
uma prévia relação contratual, ou seja, se uma das partes havia se obrigado
voluntariamente a prestar em favor da outra, ou se o dano foi decorrente da
simples conduta do agente em sociedade, sem que houvesse vínculo jurídico entre
causador e vítima. No caso da responsabilidade civil contratual, as consequências
jurídicas não se limitam à hipótese de não cumprimento das obrigações
expressamente estabelecidas nas cláusulas do contrato, mas abrangem, ainda, os
deveres anexos decorrentes do princípio da boa-fé.

1.4.2 Da responsabilização civil na fase das tratativas


Na fase das tratativas, deparamo-nos com uma situação peculiar: não há
vínculo jurídico contratual entre as partes, que, todavia, estão de certa forma
obrigadas a conservar a reciprocidade da relação estabelecida.
Esta situação impede que tal responsabilização civil se enquadre em uma
daquelas duas espécies de responsabilidade civil (contratual ou extracontratual).
Fala-se, pois, em responsabilidade pré-contratual, conhecida também como culpa
in contrahendo ou responsabilidade pré-negocial.
De uma forma geral, não se pode negar que, configurada uma interação
entre os indivíduos com vistas à formação de uma relação contratual, os
interessados firmam entre si um contrato tido como qualificado: modifica-se
substancialmente a natureza da relação entre eles.
Já nesta etapa de formação do contrato, existe algo que vincula as pessoas
interessadas: surge o dever de o indivíduo não fraudar as expectativas
legitimamente criadas pelos seus próprios atos. Portanto, antes mesmo de se ter
efetivado o acordo de vontades voltado à produção de determinado efeito jurídico,
tem-se que os interessados possuem algumas obrigações a cumprir.
Embora as manifestações de vontade enunciadas no período de tratativas
careçam, a priori, de força vinculante, impera o princípio da boa-fé objetiva, isto
é, também neste momento, o dever de atuação conforme os parâmetros de
honestidade, lealdade e cooperação, devem ser observados.

_______________________________________________________________ 20
Análise Econômica do Direito
Procura-se, assim, como forma de tutela da confiança, que as expectativas
legítimas criadas não só quanto à eficácia e à validade do negócio jurídico a ser
estabelecido, mas como também à sua efetiva celebração, não sejam frustradas.
A tutela da confiança, sob a modalidade de proibição ao comportamento
contraditório (nemo potest venire contra factum proprium), é o fundamento da
responsabilidade pré-contratual. Como afirma Anderson Schreiber,

[...] o que se verifica nos casos de responsabilização por rompimento


de negociações preliminares é o comportamento contraditório de uma
das partes, que, embora agindo de forma aparentemente dirigida à
conclusão do contrato, acaba por abruptamente inverter o sentido do
seu comportamento, abandonando as negociações ou expressamente
lhes pondo termo.23

De acordo com Regis Fichtner Pereira, a responsabilidade civil pré-


contratual possui quatro hipóteses típicas:24 (a) quando ocorre a ruptura
injustificada das tratativas; (b) quando, no desenvolvimento das negociações, um
dos interessados cause dano à pessoa ou ao patrimônio do outro; (c) quando tenha
ocorrido o estabelecimento de contrato nulo ou anulável e um dos interessados
conhecia, ou deveria conhecer, o vício no negócio jurídico; (d) quando, mesmo
instaurada a relação jurídica contratual, das negociações preliminares tenham
surgido eventuais danos a serem indenizados.
Há que se aferir para a configuração da responsabilidade pré-contratual,
além da existência das negociações da violação à boa-fé objetiva, os elementos
gerais constitutivos da responsabilidade civil, tais como: a ocorrência de dano e o
nexo de causalidade entre o dano e o ato (ou omissão) imputável a um dos sujeitos
da relação.

23
SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e
venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 240.
24
PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade Civil Pré-Contratual – Teoria Geral e
Responsabilidade pela Ruptura das Negociações Contratuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.
102.
_______________________________________________________________ 21
Análise Econômica do Direito
1.4.3 Responsabilidade pré-contratual, inadimplemento do pré-contrato e
contrato compulsório
Cabe destacar que a figura da responsabilidade pré-contratual não se
confunde com a consequência do inadimplemento do pré-contrato, contrato
preliminar ou promessa de contrato. Desta, resulta a própria responsabilidade
contratual, tendo em vista o não cumprimento de uma obrigação principal, qual
seja, via de regra, o dever de contrair o contrato principal. Tal figura contratual é
tida como um acordo de vontades que visa à conclusão de um segundo contrato,
chamado contrato principal ou definitivo, o qual, por si só, já é um contrato. Não
dá margem, portanto, à culpa in contrahendo, pois esta opera numa situação de
inexistência do vínculo contratual, no espaço das “tratativas”.
Outra figura presente no ordenamento que cabe ser ressaltada é o contrato
compulsório. Previsto, de maneira especial no Código de Defesa do Consumidor,
em seu art. 39, II, instituto que proíbe o fornecedor de produtos ou serviços a
“recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas
disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e bons
costumes”. Nesse sentido, também o contrato compulsório não se confunde com a
responsabilidade pré-contratual, pois enquanto esta cuida das hipóteses em que
das negociações surjam danos, aquele trata das situações em que a determinadas
pessoas, dadas algumas circunstâncias, não é facultado o direito de recusar a
realização do contrato.

1.4.4 Responsabilidade pré-contratual e os deveres secundários


Conforme já destacado, encontram-se delineados, em nosso ordenamento
jurídico, alguns dos deveres decorrentes da regra geral de lealdade e confiança
entre as partes. Prevalecentes já na fase pré-contratual, tais deveres ultrapassam o
âmbito do dever genérico de não causar dano injusto a terceiros e possuem
algumas características semelhantes às daqueles típicos das relações jurídicas
contratuais. Assim, a violação, ainda na fase anterior ao contrato, de quaisquer
desses deveres poderá acarretar a responsabilidade pré-contratual.
Destacam-se como os principais deveres acessórios: (1) dever de
informação e esclarecimento; (2) dever de cooperação e lealdade; (3) dever de
proteção e cuidado; (4) dever de segredo ou sigilo.

_______________________________________________________________ 22
Análise Econômica do Direito
O dever de informação e esclarecimento visa à necessidade de se prestar
esclarecimentos satisfatórios para que a outra parte manifeste o seu consentimento
sem incorrer em erro. Tal dever apareceu em nosso ordenamento disciplinado,
primeiramente, pelo Código de Defesa do Consumidor e, nos informa que a
celebração de um contrato na base de falsas indicações ou de informação
deficiente, independentemente da aplicação do regime próprio dos vícios da
vontade, implica o dever de indenizar, por culpa na fase anterior à formação dos
contratos (culpa in contrahendo).
O segundo dever anexo mencionado é o dever de cooperação e lealdade
entre as futuras partes do contrato. Este dever exige que as partes somente iniciem
e deem continuidade às negociações para a formação do contrato, quando tenham
um interesse legítimo no objeto deste contrato e possuam, ainda, condições legais
e econômicas para estabelecê-lo. Caracterizam-se como hipóteses de deslealdade
pré-contratual, e, por conseguinte, geradoras do dever de indenizar, aquelas em
que o indivíduo, de modo injustificado, abandona as negociações em curso, ou
quando de forma condenável, a parte faça desembocar o processo em contrato
nulo.
Segundo Antonio Manoel da Rocha e Menezes Cordeiro:

[...] a sua distinção (dever de lealdade) de um dever de


esclarecimento, nem sempre clara, deriva de que, na lealdade, a
censura in contrahendo não assenta tanto num âmbito informativo,
mas antes no próprio comportamento assumido pelas pessoas.25

Quanto ao dever de proteção e cuidado, tem-se a exigência de que as


partes que estão negociando a realização de um contrato tomem todas as
precauções e medidas de segurança e cuidado para que a parte contrária não sofra
qualquer tipo de dano. Assim, tendo em vista já existir o contato entre as partes e,
por conseguinte, uma finalidade determinada (a realização do contrato), sobre a
parte que cause dano a outra, seja à pessoa ou ao patrimônio desta, em virtude de
negligência, quanto às medidas de segurança ou cuidado que deveria ter tomado,
incidirá o dever de indenização.

25
CORDEIRO, Antonio Manoel da Rocha e Menezes. Da Boa-Fé no Direito Civil. Coimbra:
Livraria Almedina, 2001. pp. 551-552.
_______________________________________________________________ 23
Análise Econômica do Direito
Como último dever anexo mencionado, tem-se o dever de segredo ou
sigilo. Este visa a assegurar que as informações obtidas pelas partes durante as
negociações se mantenham protegidas. Age, pois, contra as diretrizes traçadas
pela boa-fé aquele que se utiliza das informações a que teve acesso durante a fase
das tratativas para outras finalidades, obtendo proveito indevidamente. Configura-
se, nesses casos, a violação ao princípio da boa-fé, pois age abusivamente a parte
que faz uso de informações que lhe foram confiadas tão somente pelo fato de a
outra parte confiar que o contrato seria realizado.
Como já mencionado, os deveres violados não são deveres principais, que
só se concretizam com o contrato formado, mas deveres instrumentais,
decorrentes da boa-fé objetiva como mandamento de atenção à legítima confiança
despertada no futuro contratante e de tutela aos seus interesses. Assim, o seu não
cumprimento caracterizará a violação ao princípio geral da boa-fé, que além
desses deveres específicos, dita regras gerais de conduta, baseadas na lealdade e
confiança entre as partes, que também devem ser observadas, sob pena de
responsabilização.
Observa Judith Martins-Costa:

Recorre-se à boa-fé objetiva, meio hábil para atender às ‘exigências


pragmáticas do tráfego jurídico e uma legítima aspiração a um direito
objetivamente justo’, os quais postulam ‘não se atenda apenas à
intenção ou vontade do declarante, mas também à sua conduta e à
confiança do destinatário’.26

Conforme foi analisado, a boa-fé objetiva, além de criar deveres


acessórios, tem o condão de impor limites ao exercício de direitos individuais. Tal
função, como destaca Teresa Negreiros, remete-nos à teoria dos atos próprios,
segundo a qual as partes devem adotar comportamentos compatíveis com seus
atos anteriores. Eis as palavras da autora:

De uma forma geral, a teoria dos atos próprios importa reconhecer a


existência de um dever por parte dos contratantes de adotar uma linha
de conduta uniforme, prescrevendo a duplicidade de comportamento,
seja na hipótese em que o comportamento posterior se mostra
incompatível com atitudes indevidamente tomadas anteriormente (tu
quoque), seja na hipótese em que, embora ambos os comportamentos
considerados isoladamente não apresentem qualquer irregularidade,

26
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado - Sistema e Tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 504.
_______________________________________________________________ 24
Análise Econômica do Direito
consubstanciando quebra de confiança, se tomados em conjunto
(venire contra factum proprium).27

Nesse mesmo sentido:

Assim sendo, no plano eficacial a boa-fé (superposta à “confiança


legítima”), atuando como “baliza da licitude” indicará as variadas
possibilidades técnicas de coibição do exercício de direitos e poderes
formativos (dimensão negativa) quando violadores de uma confiança
legitimamente suscitada. Essa violação importará em ilicitude por
exercício inadmissível (abuso) como ocorre, por exemplo, nas
situações em que é vedado venire contra factum proprium; ou nos
casos de paralisação do exercício de direito subjetivo em formas
atípicas, aproximativas da preclusão ou decaimento que podem levar à
supressão e à ressurreição de direitos (supressio e surrectio); e ainda,
na coibição dos casos de contraditoriedade de condutas agrupados sob
a rubrica tu quoque para além dos casos em que a boa-fé veda a
alegação de nulidades formais, quando as nulidades não atingem a
substância do ato, sendo conhecidas pela contraparte, que as tolera.28

Com efeito, não resta dúvida que a teoria da proibição do venire contra
factum proprium possui grande relevância para o estudo da responsabilidade pré-
contratual pelo rompimento das tratativas, conforme será visto a seguir.

1.5 A proibição de comportamento contraditório


No contexto atual, a valorização dos princípios e das cláusulas gerais vem
permitindo que se observe a aplicação do princípio de proibição ao
comportamento contraditório, mesmo não havendo previsão legal específica para
tanto.
A locução venire contra factum proprium nulli concideturou nemo potest
venire contra factum proprium, tem origem canônica e nos remete à ideia de que a
ninguém é permitido agir contra seu próprio ato. Representa, portanto, a
reprovação social e moral ante aquele que assuma comportamentos contraditórios.

27
NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
p. 142.
28
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do Abuso do direito e o rumo indicado pela Boa-Fé.
Disponível em:
<http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/CostaJudith.pdf>. Acesso em: 29
jul. 2010.
_______________________________________________________________ 25
Análise Econômica do Direito
Quanto à sua redução dogmática, Antonio Manoel da Rocha Cordeiro
esclarece que a proibição do comportamento contraditório dispõe de duas teorias
principais: a teoria da confiança e a teoria negocial.29
De acordo com a teoria da confiança, o venire contra factum proprium
reforça, antes de tudo, a confiança nas relações jurídicas. Assente na boa-fé, tal
teoria estabelece que o princípio não se confunde com uma proibição de dolo, pois
existem, no ordenamento, outros comandos que tratam desta proibição.
Já a teoria negocial não considera o ato contraditório propriamente como o
fator relevante do princípio. Vê o factum proprium, isto é, a primeira conduta
adotada pelo indivíduo como o que, de fato, fundamenta a proibição do venire.
Segundo essa teoria não há a necessidade de recorrer à boa-fé ou à confiança para
se estabelecerem as bases do instituto, pois “(o comportamento inicial) é, antes do
mais, uma actuação do agente, ao qual, depois, se pede a este que se atenha. Trata-
se dum evidente acto jurídico”.30
Diante destas duas vertentes, coloca o autor que nas hipóteses em que é
criada uma situação de confiança, e o Direito não forneça dogmaticamente uma
solução, o apelo à boa-fé e à tutela da confiança se mostrará de tamanha
necessidade.
Atualmente tem-se que o princípio segundo o qual nemo potest venire
contra factum proprium encontra seu fundamento na cláusula geral da boa-fé,
mais especificamente como expressão da tutela da confiança.
Tido como um abuso de direito por violação à boa-fé, o princípio da
proibição ao comportamento contraditório estabelece uma regra geral de conduta,
segundo a qual o agente fica adstrito a não contradizer o que primeiro fez e disse.
O comportamento contraditório configura-se abusivo, no sentido em que, embora
aparentemente amparado pela lei, torna-se ilícito quando analisado conjuntamente
com o comportamento anterior. A incoerência da conduta rompe a confiança
despertada em outrem, ferindo, assim, os preceitos derivados da boa-fé objetiva.31

29
CORDEIRO, Antonio Manoel da Rocha e Menezes. Tratado de Direito Civil Português – Parte
Geral. V. I. Coimbra: Livraria Almedina, 2000.
30
CORDEIRO, Antonio Manoel da Rocha e Menezes. Tratado de Direito Civil Português – Parte
Geral. V. I. Coimbra: Livraria Almedina, 2000. p. 252.
31
Em julgado recente, o TJRJ reconheceu a existência de venire contra factum proprium na
condura de plano de saúde que, a despeito de ter fornecido no passado certo medicamento para
tratamento de câncer a paciente, recusou-se, anos depois, a fazê-lo, alegando em seu favor
ausência de previsão legal a respeito e o própiro contrato de prestação de serviços celebrado.
_______________________________________________________________ 26
Análise Econômica do Direito
A falta de regulamentação positiva do nemo potest venire contra factum
proprium permite sua adequação casuística, deixando a cargo do julgador a
melhor aplicação possível. Todavia, não obstante a inexistência de tal previsão
legal específica, este princípio encontra fundamentado na Constituição Federal
Brasileira, notadamente no art. 3º, inciso I,32 que consagra a solidariedade social.33

1.5.1 A tutela da confiança


A confiança é elemento imprescindível à preservação da sociedade.
Atualmente, inserida num contexto de socialização e solidarização do
ordenamento jurídico, possui papel fundamental na concretização dos valores
humanos.
Presente, geralmente, em todas as relações jurídicas, a confiança instalada
vulnera os sujeitos da relação que, por sua vez, abrandam suas defesas, ficando à
mercê uns dos outros. A pessoa lesada na sua confiança seria, “desde logo,
violentada na sua sensibilidade moral”.34
Frente a isto, sob a referência à boa-fé, a complexidade das relações
jurídicas estabelece um conjunto de deveres de proteção, lealdade, cooperação e
informação que asseguram, nesse nível, a tutela da confiança das partes.
Assim, impõe-se a todos os indivíduos sociais o dever de não fraudar os
interesses e as expectativas legítimas alheias, e, como decorrência, proíbe-se que o
agente atue de forma incoerente às suas ações anteriores.
Como afirma Cordeiro, o venire “é uma aplicação das proposições da
confiança no tráfego jurídico”.35 Estabelece, como já mencionado, que ninguém
pode exercer um direito ou tomar uma posição jurídica, contrariando a confiança
despertada no outro decorrente de sua conduta anterior. Expressa, pois, o
comando de que ninguém pode se colocar em contradição com seu

BRASIL. (TJRJ. 2ª Câmara Cível. Apelação Cível n.. 0013844-97.2009.8.19.0001. Relator:


Desembargador Alexandre Câmara. Julgado em 16 de junho de 2010).
32
Art. 3.° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – Construir uma sociedade livre, justa e solidária;
(...)
33
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da Confiança e
Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 101.
34
CORDEIRO, Antonio Manoel da Rocha e Menezes. Tratado de Direito Civil Português – Parte
Geral. V. I. Coimbra: Livraria Almedina, 2000. p. 237.
35
CORDEIRO, Antonio Manoel da Rocha e Menezes. Da Boa-Fé no Direito Civil. Coimbra:
Livraria Almedina, 2001. p. 754.
_______________________________________________________________ 27
Análise Econômica do Direito
comportamento anterior, atuando como instrumento da tutela da confiança,
mediado pela concretização da cláusula da boa-fé objetiva.

1.5.2 Do venire contra factum proprium


A proibição do comportamento contraditório trata de dois comportamentos
do mesmo indivíduo, lícitos em si e procrastinados no tempo.
Os pressupostos da aplicação do nemo potest venire contra factum
proprium devem ser informados pela finalidade precípua deste princípio: a tutela
da confiança. De acordo com Anderson Schreiber, podem-se indicar quatro
pressupostos para a aplicação do instituto: (1) um factum proprium; (2) a criação
em outrem da confiança legítima no sentido de manutenção da conduta inicial; (3)
um comportamento contraditório violador desta confiança; (4) um dano ou, ao
menos, uma ameaça concreta de dano a partir da contradição.36
O primeiro pressuposto concerne à conduta inicial adotada pelo indivíduo.
O factum proprium refere-se à ideia propriamente de uma atuação humana e trata-
se de uma conduta não vinculante. Não consiste, pois, no que tradicionalmente
classifica-se como ato jurídico. Torna-se vinculante na medida em que ao
despertar a confiança de outrem atrai a incidência do princípio da proibição ao
comportamento contraditório. Se tal atuação inicial, por si só, possuísse caráter
legalmente vinculante, não haveria necessidade de se recorrer à tutela da
confiança, por meio da boa-fé objetiva.
Quanto ao segundo pressuposto, tem-se a necessidade de que este factum
proprium desperte uma legítima confiança no outro, no sentido de que a conduta
inicial será mantida.
A demonstração dessa confiança não é absolutamente rigorosa: a própria
existência de um prejuízo sugere que o prejudicado teria acreditado e aderido à
conduta inicial. Em verdade, somente no caso concreto seria possível aferir a
incidência ou não desse pressuposto. Todavia, existem alguns indícios que
facilitam a averiguação da confiança legítima da parte, tais como: as despesas
motivadas pela conduta inicial da contraparte; a divulgação pública das

36
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da Confiança e
Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 124.
_______________________________________________________________ 28
Análise Econômica do Direito
expectativas depositadas na celebração do contrato; a adoção de determinadas
condutas tendo em vista o factum proprium; etc.
A confiança deve, ainda, ser legítima, no sentido de derivar-se tão-somente
da conduta inicial adotada por outrem.
Nesse sentido, destaca Anderson Schreiber que

[...] não se deve confundir a presença da legítima confiança com um


estado romântico de crença absoluta e incontestável na atuação
incoerente de outrem. Sobretudo em relações de caráter patrimonial,
há sempre um natural resguardo quanto à efetiva correção do
comportamento da contraparte, mas isto não impede a objetiva adesão
a este comportamento e a formação, diante das circunstâncias
concretas, de uma legítima expectativa de não contradição.37

O terceiro pressuposto de aplicação da proibição ao comportamento


contraditório é o exercício de um comportamento, aparentemente lícito, contrário
aquele inicial. As intenções do agente, nesse caso, são irrelevantes para a
aplicação do princípio. É exigida apenas a contradição objetivamente considerada,
prescindindo de um propósito íntimo de contrariar. Considera-se, portanto, a
contradição entre o sentido objetivo da conduta inicial, e o comportamento
posterior, à luz da confiança despertada.
Como último pressuposto, tem-se o dano efetivo ou potencial. Tal
condição é inerente à própria finalidade do nemo potest venire contra factum
proprium, que visa a impedir que uma pessoa, que confiou legitimamente na
preservação do sentido objetivo de um comportamento inicial, sofra qualquer
prejuízo em virtude da ruptura dessa confiança mediante a adoção de um
comportamento contraditório. Busca-se, pois, prevenir ou reparar danos,
concretizando, assim, a tutela da confiança. Não é exigido um dano efetivo,
apenas a simples configuração de um potencial lesivo.
Como consequência precípua da aplicação da teoria da proibição do venire
contra factum proprium, tem-se a inadmissão do exercício do comportamento
contraditório. Busca-se, portanto, mediante a atribuição de um efeito impeditivo
ao venire, obstar a conduta contrária a fim de tornar efetiva a tutela da confiança.
Todavia, essa não é a única consequência que se pode aferir da aplicação
da referida teoria ao caso concreto. Constata-se, também, um efeito reparatório.

37
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da Confiança e
Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 137.
_______________________________________________________________ 29
Análise Econômica do Direito
Nos casos em que, excepcionalmente, a conduta contraditória não puder ser
impedida, o dano resultante de sua configuração ensejará o direito à indenização
por parte do prejudicado.
Cumpre ressaltar que, diferentemente do que ocorre na hipótese de ato
ilícito em sentido estrito, sobre o prejudicado pelo comportamento contraditório
não recairá o ônus de demonstrar a culpa ou o dolo do agente. A simples
configuração de um venire contra factum proprium basta como prova da
abusividade e, por conseguinte, enseja a reparação do dano causado. Como
ressalta Anderson Schreiber:

É certo que, na linguagem adotada pelo legislador brasileiro, o próprio


ato abusivo configura também um ilícito lato sensu (antijurídico), que
dispensa de prova de culpa, requisito essencial ao ato ilícito stricto
sensu (art. 186). Não se precisará demonstrar, portanto, a negligência,
imperícia ou imprudência, ou qualquer estado subjetivo daquele que
praticou o venire contra factum proprium. [...] Para ressaltar este papel
do princípio de proibição do comportamento contraditório, é que se
fala em um efeito reparatório do nemo potest venire contra factum
proprium, ainda que o título de reparação seja, tecnicamente, a própria
abusividade.38

1.5.3 A responsabilidade pré-contratual pela ruptura das tratativas: a


aplicação do “venire” na fase pré-contratual
A fase das tratativas, pela sua própria natureza, envolve uma incerteza
quanto ao resultado das ações exercidas pelas partes. Todo indivíduo que inicia
negociações com outrem assume o risco de despender tempo e dinheiro sem obter
necessariamente a realização do negócio jurídico.
Não se pode afirmar, nessa fase pré-contratual, a existência de uma
obrigação de contratar, pois, de fato, não seria concebível a exigência, como pré-
requisito das tratativas, da certeza da realização do contrato. Tal condição
afastaria por completo o princípio da liberdade negocial e, certamente, constituiria
um entrave à circulação de riquezas e ao próprio desenvolvimento das relações
econômicas.
Contudo, num contexto de dinamização das relações sociais e de busca
pela concretização de valores tais como a solidariedade e dignidade, deve o
Direito tutelar a confiança das partes também no âmbito da relação pré-contratual.

38
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da Confiança e
Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 158.
_______________________________________________________________ 30
Análise Econômica do Direito
O fundamento de que somente se pode responsabilizar alguém quando há,
propriamente, um vínculo formalmente estabelecido não se coaduna com os
parâmetros axiológicos atuais e, por conseguinte, apresenta-se extremamente
dogmático e superficial, dissente da realidade. Nesse sentido, cabe destacar as
palavras de Judith Martins-Costa:

O período de formação dos contratos ‘não oferece sinal homogêneo’ e


a sua tutela encontra-se polarizada por interesses por vezes em
conflito. De um lado, o interesse da liberdade negocial, ou seja, ‘a
vantagem que pode haver em que os negociadores conservem intacta a
sua autonomia deliberativa até a formação do contrato, portanto ainda
depois da emissão da oferta’. De outro, o interesse do fomento da boa-
fé e da proteção da confiança as quais se manifestam em face das
expectativas criadas durante a fase pré-contratual, crescendo, via de
regra, decerto, à medida que o iter contractus progride.39

A ponderação dos princípios e o exame do caso concreto são


particularmente relevantes nesta hipótese específica da responsabilidade derivada
da ruptura das tratativas. Não se pode responsabilizar todo contraente que rompe
as negociações contratuais e, ao mesmo tempo, há que se proteger aquele que
criou expectativas ante a conduta de outrem no ato das negociações contratuais.
Em verdade, não é possível a definição da existência ou não de
responsabilidade nessa hipótese fora do caso concreto, todavia, a teoria da
proibição do venire contra factum proprium, aplicada aos casos de
responsabilidade pré-contratual pelo rompimento das negociações, oferece
algumas diretrizes, segundo as quais deve o intérprete se pautar.
Como já mencionado, a responsabilidade pré-contratual pelo rompimento
das tratativas funda-se na tutela da confiança, mais especificamente no princípio
da proibição ao comportamento contraditório.
Assim, a ruptura injustificada das negociações e a confiança legítima
fraudada por tal ruptura geram a responsabilização civil na fase pré-contratual.
Entende-se por ruptura injustificada aquela que compõe o quadro do
comportamento desleal, marcada, portanto, de arbitrariedade e destituída de causa
legítima. Confiança legítima, por sua vez, refere-se à expectativa de que a relação

39
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado – Sistema e Tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 483.
_______________________________________________________________ 31
Análise Econômica do Direito
se pautará nos parâmetros da probidade. Segundo Martins-Costa, para que se
produza a confiança

[...] é evidentemente necessário que as negociações existam, que


esteja em desenvolvimento uma atividade comum das partes,
destinada à concretização do negócio. [...] A confiança, para poder ser
qualificada como legítima, deve, pois, fundar-se em dados concretos,
inequívocos, avaliáveis segundo critérios objetivos e racionais. 40

O factum proprium, ou seja, a conduta inicial é representada pelo


engajamento das negociações, pela postura inicialmente adotada pelo agente que
fez despertar no outro legítimas expectativas. A contradição, por sua vez,
caracteriza-se pela ruptura dessas negociações.
Pune-se, portanto, o comportamento contraditório da parte que, embora
agindo aparentemente em direção à celebração do contrato, acaba por inverter o
sentido de seu comportamento, abandonando as negociações ou expressamente
lhe pondo termo.
Este juízo de reprovação decorre não do fato de a tratativa ter sido rompida
e o contrato não ter sido concluído, mas, principalmente, do fato de uma das
partes ter criado na outra a legítima expectativa de que o contrato se realizaria.
Veda-se, pois, a ruptura à confiança por meio da incoerência, protegendo-
se a legítima confiança depositada pela parte (ou futura parte), de acordo com a
boa-fé na manutenção do comportamento inicial.
Feitas estas considerações, segundo Judith Martins-Costa, poderíamos
arrolar os seguintes pressupostos para a verificação da responsabilidade pré-
contratual pelo rompimento das tratativas: (1) a existência de negociações,
qualquer que seja sua forma, precedendo o negócio jurídico; (2) a prática de atos
tendentes a gerar, na outra parte, a legítima confiança de que o contrato será
realmente celebrado; (3) a ocorrência de dano, ou a verificação de potencial
lesivo, em virtude do não cumprimento dos deveres jurídicos que tutelam a
confiança entre as partes; (4) e a ruptura injustificada – ou injusta – das referidas
negociações.
Mais que contra a mera coerência, o que chamamos de proibição do venire
contra factum proprium leva em conta a “confiança despertada na outra parte, ou

40
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado – Sistema e Tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 484.
_______________________________________________________________ 32
Análise Econômica do Direito
em terceiros, de que o sentido objetivo daquele comportamento inicial seria
mantido, e não contrariado”.41
Ocorre, assim, a responsabilização civil daquele que pratica
comportamento contraditório, rompendo intempestivamente com as negociações
preliminares.
Por fim, é necessário destacar que a aplicação do venire, nesses casos, não
deve funcionar como um instrumento de coação, obrigando aquele que frustrou as
expectativas alheias a contratar. Desse modo, excepcionalmente nessas hipóteses,
atribui-se ao princípio tão-somente o efeito reparatório, gerando, mediante a
responsabilização pré-contratual daquele que rompeu com as tratativas, o dever de
indenizar.42

QUESTÕES DE AUTOMONITORAMENTO
1. Após ler a apostila, você é capaz de resumir os casos geradores, identificando
as partes envolvidas, os problemas atinentes e as possíveis soluções cabíveis?
2. Como se caracteriza a fase que antecede a celebração do contrato?
3. Qual a natureza da responsabilidade civil na fase das tratativas e sob qual(is)
fundamento(s) se dá sua aplicação?
4. Quais são os requisitos básicos para que se configure a responsabilidade pré-
contratual e qual a importância destes requisitos?
5. Em que diferem a responsabilidade pré-contratual, o inadimplemento do pré-
contrato e o contrato compulsório?
6. Quais são os deveres implícitos ao contrato que vinculam as partes na fase das
negociações preliminares?
7. Em que consiste o princípio da proibição ao comportamento contraditório e
como é possível sua aplicação no Direito brasileiro?
8. Quais são os pressupostos para a aplicação desse princípio (nemo potest venire
contra factum proprium)?
9. Sob qual fundamento se dá a responsabilização pela ruptura das tratativas?
10. Quais são seus pressupostos de aplicação?

41
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da Confiança e
Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 90.
42
SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório – Tutela da Confiança e
Venire Contra Factum Proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
_______________________________________________________________ 33
Análise Econômica do Direito
11. Pense e descreva, mentalmente, alternativas para a solução dos casos
geradores.

SUGESTÃO DE CASOS GERADORES


CASO 1
Severino José dos Santos Neves, agricultor do Município de Várzea
Grande, Mato Grosso, possuía plantações de batata, milho e tomate em sua
modesta propriedade. Plantava os alimentos com a ajuda de sua família e, na
época da colheita, contratava alguns empregados.
No início do ano de 1998, a empresa CEIA – Catchups e Extratos Indústria
Alimentícia Ltda. procurou Severino e forneceu-lhe sementes de tomate,
manifestando sua intenção de, posteriormente, firmar, com ele, contrato de
compra e venda.
Alguns meses depois, a sociedade empresária celebrou o contrato com
Severino e adquiriu a safra de tomates de 1998/1999.
Assim se deu também com relação às safras de 1999/2000 e 2000/2001.
Em 2001, novamente a CEIA entrou em contato com o agricultor e
distribuiu-lhe as sementes. Severino, animado com o novo negócio, deixou de
lado as plantações de batatas e milho e passou a se dedicar exclusivamente ao
cultivo de tomates.
Implantou a mais nova tecnologia de cultura em sua plantação e contratou
empregados para o plantio e a colheita da safra de 2001/2002.
Contudo, para sua surpresa, a CEIA, naquele ano, resolveu não
industrializar os tomates e, por conseguinte, não comprar a safra.
Severino, ao receber a notícia, ficou muito chateado com a situação e foi
até a sede da empresa em São Paulo para obter alguns esclarecimentos com o
encarregado da compra dos produtos. Foi então informado de que a última
distribuição de sementes fora, na verdade, uma doação. O funcionário esclareceu,
ainda, que infelizmente não poderia fazer nada, mesmo porque não havia
assumido nenhum compromisso de, naquele ano, comprar a produção de
Severino.
Com base no caso descrito, analise as seguintes questões:

_______________________________________________________________ 34
Análise Econômica do Direito
a) Poderia a sociedade empresária, após a distribuição de sementes, deixar de
celebrar o contrato com Severino?
b) A distribuição de sementes pela empresa e a aceitação do agricultor
configurariam algum tipo de contrato?
c) Haveria, entre Severino e a CEIA, algo que os vinculasse? Em caso positivo,
qual seria a natureza desse vínculo e o fundamento que legitima essa vinculação?
d) O fato de Severino ter efetuado algumas despesas por acreditar que a CEIA iria
adquirir a safra de tomates teria alguma relevância?
e) Imagine agora que, assim como no caso descrito, desde 1998, a empresa vinha
distribuindo sementes de tomate e, em seguida, celebrado o contrato de compra e
venda do produto. Todavia, no ano de 2001, a CEIA não efetuou tal distribuição.
Mesmo assim, Severino, pensando que, também nesse ano, venderia tomates à
empresa, fez, por conta própria, a compra das sementes e o plantio do produto.
Essa circunstância altera sua linha de raciocínio referente ao caso?

CASO 2
Carlos Frederico, proprietário de um posto de gasolina, decidiu mudar de
ramo e vender seu posto. Assim, após anunciar sua intenção de venda em jornal
de grande circulação, foi procurado por Pedro Eduardo, com quem iniciou
algumas negociações pertinentes à realização de um contrato de compra e venda.
Carlos mostrou seu estabelecimento, bem como os rendimentos que
poderiam ser alcançados frente a uma boa condução do negócio. Pedro ficou
muito animado e parecia realmente interessado em fechar o acordo. O
proprietário, então, esclareceu que o pagamento poderia ser feito em 10 vezes,
com o adiantamento apenas de um sinal de R$ 150.000,00. Pedro achou o valor
bastante condizente com suas possibilidades e pediu que Carlos tomasse as
providências necessárias à celebração de um contrato. Combinou de ligar na
semana seguinte para marcar um novo encontro.
Confiando de que o contrato seria celebrado, Carlos Frederico, então,
contratou um advogado para encarregar-se das formalidades necessárias para a
transferência do bem. Queria que tudo fosse feito dentro da lei. Antes de firmar a
avença, porém, Pedro Eduardo comunicou sua desistência em realizar o negócio.

_______________________________________________________________ 35
Análise Econômica do Direito
Inconformado, Carlos Frederico ajuizou uma ação de indenização contra
Pedro, pretendendo o ressarcimento das despesas que teve ao contratar o
advogado para confeccionar o contrato.
Pedro Eduardo, por sua vez, sustentou que a ação era totalmente
desarrazoada. Havia descoberto que Carlos não era o único proprietário do posto
de gasolina, o que modificava toda a situação em torno do negócio. Assim,
existindo outros titulares das cotas sociais da sociedade, Pedro não mais possuía o
interesse de adquirir o bem.
Considerando os fatos narrados, analise as perguntas abaixo:
a) Já existia vínculo contratual entre Carlos Frederico e Pedro Eduardo? Em caso
positivo, poderia Carlos pleitear o adimplemento do contrato? Em caso negativo,
haveria qualquer tipo de vinculação entre eles?
b) Teria razão Carlos Frederico em cobrar judicialmente as despesas que teve em
virtude de sua confiança no fato de que o contrato seria realizado? Se sim, sob
qual(is) fundamento(s)?
c) A omissão de Carlos Frederico em relação à existência de outros sócios
modifica a situação inicial? Em que sentido?
d) Imagine agora que Carlos Frederico é realmente o único proprietário do posto.
A desistência de Pedro teria repercussões diversas? Quais?

CASO 3
Determinada sociedade empresária brasileira do ramo de hotéis, com sede
no Rio de Janeiro, explora o Hotel X' que é o único empreendimento empresarial
de sua propriedade. Esta sociedade empresária está em negociação para vender o
Hotel X' a Hotéis Incríveis S/A. Todavia, a adquirente condiciona a celebração do
negócio jurídico ao cumprimento da seguinte exigência contratual:

"Desde já fica ciente a alienante que estará impedida de explorar, seja como
proprietária, seja a qualquer outro título, hotéis na cidade do Rio de Janeiro, pelo
prazo de 10 (dez) anos".

Analise a juridicidade da avença.

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Análise Econômica do Direito
REFERÊNCIAS
Bibliográficas
1 Utilizadas
CORDEIRO, Antonio Manoel da Rocha e Menezes. Da Boa-Fé no direito civil.
Coimbra: Livraria Almedina, 2001.
___________. Tratado de Direito Civil Português – Parte Geral. V. I. Coimbra:
Livraria Almedina, 2000.
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jurídica: surrectio e suppressio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 118–130.
JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Extinção dos contratos por incumprimento do
devedor. Rio de Janeiro: AIDE, 2004. p. 251-252.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado - Sistema e Tópica no
processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
MOTA PINTO, Paulo. Sobre a proibição do comportamento contraditório
(venire contra factum proprium) no direito civil. In: Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra – Volume Comemorativo, 2003. p. 305.
NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002.
OLIVEIRA, Marcelo Leal de Lima. A aurora na formação dos contratos: a oferta
e a aceitação do clássico ao pós-moderno. In: Revista de Direito Privado, n. 15,
jul./set. 2003, p. 247.
PEREIRA, Regis Fichtner. A Responsabilidade Civil Pré-Contratual – Teoria
geral e responsabilidade pela ruptura das negociações contratuais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001.
ROSENVALD, Cristiano Chaves de Farias e Nelson. Curso de direito civil –
volume 1.Salvador: Editora Juspodivm, 2013. p. 713.
ROSENVALD, Cristiano Chaves de Farias e Nelson. Curso de Direito Civil.
Direito dos Contratos. V. 4. 9ª ed. Salvador: Editora Juspodium, 2013. p. 167.
SCHREIBER, Anderson. A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela
da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
SOUZA, Wagner Mota Alves de. A teoria dos atos próprios – da proibição de
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Eletrônicas
MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do Abuso do direito e o rumo indicado
pela Boa-Fé. Disponível em:
<http://www.fd.ul.pt/Portals/0/Docs/Institutos/ICJ/LusCommune/CostaJudith.pd>
Acesso em: 29 jul. 2010.
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PORTUGAL. Disponível em:
<http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/sumarios-civel-2011.pdf>.
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Jurisprudenciais
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do rio de Janeiro. Segunda Câmara Cível.
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Alexandre Câmara. Julgado em 16 de junho de 2010.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Sétima Câmara Cível.
Apelação Cível n. 1.0019.13.000702-4/001. Relator: Desembargador Wilson
Benevides. Julgado em 03 de novembro de 2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial n.
1422466/DF.Relator: Ministro Moura Ribeiro. Julgado em 03 de fevereiro de
2015.
BRASIL Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial n.
1374830/SP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgado em 23 de
junho de 2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial n.
1192678/PR. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgamento em 13 de
novembro de 2012.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial n.
758518/PR. Relator: Vasco Della Giustina. Julgamento: 17 de junho de 2010.

Legislativas
BRASIL. Código Civil de 2002.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei n. 8.078, de 11/9/1990.

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Análise Econômica do Direito

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