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Sem Título, acrílica s/ tela 1,00 x 1,20 m, Tito de Alencastro.

A sala de aula sob o


olhar etnográfico:
um estudo de caso
EDEMAR AMARAL CAVALCANTE*
ADAIL SEBASTIÃO RODRIGUES JÚNIOR**

*Estagiário do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE) da FaE/UFMG. Graduando em Pedagogia pela FaE/UFMG
**Professor adjunto da Faculdade de Ciências Gerenciais Pe. Arnaldo Janssen. Doutorando em Lingüística Aplicada pela FALE/UFMG

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N
Etnografia da Escola:
Neste ensaio exploratório, tentamos alguns apontamentos
descrever a estrutura de uma sala de aula
Diário de campo, 16/06/2004. Às 06:50h chega-
a partir da perspectiva da Etnografia, mos ao portão principal da escola situada num bairro de
considerando a importância desse periferia de Belo Horizonte, próximo a um pequeno
centro comercial. O ritual de abertura dos portões sina-
ambiente escolar para a constituição de
liza a grande cena de entrada dos alunos, chamando a
significados e a formação de sujeitos atenção de algumas pessoas que passam rente à calçada.
Percebemos que, para aquela comunidade, como talvez
sociohistóricos. A metodologia usada foi a
para várias outras, a entrada dos alunos na escola simbo-
observação não-participativa, além de liza o abandono do mundo exterior, da rua, repleto de
entrevista com a professora-colaboradora construções discursivas multifacetadas, para se inserirem
em um outro mundo igualmente multifacetado e dinâ-
e notas de campo, que virão diluídas no
mico, em cujos limites territoriais novas outras formas
próprio texto. Através desses constitutivas de identidade emergem. Os alunos aden-
tram a escola, passam pelo olhar rotineiro das professo-
procedimentos, foi-nos possível registrar
ras e funcionários, posicionam-se em filas no pátio em
algumas práticas sociais e discursivas de frente à cantina, cantam, batem palmas, fazem coreogra-
uma docente e de discentes dentro do fias típicas de cantigas infantis e escolares, rezam e, em
seguida, marcham, céleres, para suas salas de aula, con-
contexto escolar e suas repercussões no
duzidos pelas professoras. Limitando ainda mais o seu
microcontexto de uma sala de aula de território, a sala de aula passa a ser o local em que reali-
dades culturais serão constituídas, identidades formadas,
primeiro ciclo de uma Escola Pública
práticas escolares executadas e, sobretudo, o local em que
Municipal de Belo Horizonte. Os resultados significados serão apreendidos, internalizados e multipli-
parciais desse estudo-piloto sinalizam cados no cerne da vida cotidiana dos alunos, dentro e
longe da escola.
para o papel fundamental que a estrutura
A formação do mundo escolar se inicia no ritual já
de uma sala de aula pode exercer no estabelecido de um posicionamento dos alunos em filas,
o que indica as regras de um universo permeado por dis-
processo de ensino e aprendizagem e
cursos, valores e ideais. As rezas, as cantigas infantis e as
apontam para a necessidade de pesquisas várias outras ações executadas pelos alunos, sob orienta-
mais profundas nesse campo de ção das professoras, demonstram que a escola manifesta
em seu interior as realidades do mundo e, conseqüente-
investigação e para a conscientização e
mente, suas formações discursivas. Ao adentrarmos a
atuação de docentes e educadores. escola e presenciarmos esse ritual, lembramo-nos de um

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trabalho de Owens (2003) no qual o antropólogo mostra uma rede complexa de relações sociais vividas durante
que a construção da personalidade do indivíduo não se seu trabalho de campo, registrando fatos e aconteci-
origina apenas de sua subjetividade humana, mas, princi- mentos que ganham forma textual. Como bem subli-
palmente, de uma produção cultural de significados esta- nha Geertz (1989),
belecidos a partir de práticas sociais colaborativas. Nesse
sentido, a essência da prática etnográfica está justamente fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de
no entendimento das ações compartilhadas pelos inte- ‘construir uma leitura de’) um manuscrito estranho,
grantes de uma determinada cultura, suas formas de desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
socialização e constituição de significados culturais. Para suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com
Spradley (1979), o etnógrafo tem como papel central os sinais convencionais do som, mas com exemplos
desvelar crenças, opiniões e ações sociais constituintes da transitórios de comportamento modelado (p.7).
prática cotidiana dos integrantes da comunidade investi-
gada, suas formas de pensar e agir e, sobretudo, suas rela- Em outras palavras, fazer etnografia é lidar com
ções sociais em ambientes historicamente constituídos e sujeitos sociohistoricamente constituídos que, na verda-
compartilhados entre eles. No caso da escola investigada, de, se modificam à medida que participam do processo
os alunos constroem suas realidades dentro de um de socialização com outros membros da sociedade ou
ambiente de socialização que expressa relações de poder comunidade à qual pertencem. Essa complexa realidade
através dos discursos que ali circulam, fixando, conforme se registra através da escrita etnográfica, numa tentativa
Foucault (1971), papéis sociais para “os” sujeitos que de representação do mundo real nos limites que a escrita
falam [professoras] e “os” que ouvem [alunos]. consegue fixar (ANDRÉ, 2003; EMERSON, FRETZ e
Nesse universo de construção de vários discursos, SHAW, 1995; SPERBER, 1992).
o etnógrafo dilui, em suas observações e registros, reali- No que tange à escola investigada, a prática etno-
dades que, embora típicas daquela comunidade, gráfica e suas ferramentas de coleta de dados refletiram
ganham novos matizes, quando em contato com outras nosso objetivo ou plano previamente estabelecido.
realidades. A Etnografia, portanto, muito mais que Nosso olhar buscou vivências e práticas escolares que
registrar a cultura de um povo, um grupo social ou uma suscitassem possíveis caminhos para o entendimento da
instituição, igualmente revela, em suas notas de campo estrutura da sala de aula sob análise e seu papel na cons-
e observações, saberes culturalmente estabelecidos e his- tituição de significados para os professores e alunos
toricamente sedimentados (HAMMERSLEY e (ERICKSON, 1984), visto que a escola, conforme
ATKINSON, 1995). O etnógrafo adentra um universo Dayrell (1996, p.137), é “um espaço social próprio (...),
heterogêneo com o qual perceberá o seu próprio, atra- com um conjunto de normas e regras (...) que buscam
vés de relações de alteridade com seus informantes. Os unificar e delimitar a ação dos sujeitos sociais” ali pre-
rituais com os quais nos defrontamos na escola observa- sentes. Com efeito, poderíamos igualmente pensar a
da se nos apresentaram, em princípio, como verdadeiros escola analisada como uma comunidade com várias
textos, em cujas informações foi-nos possível perceber repartições responsáveis por tarefas diversas. Dentre
representações da realidade de mundo daquela comuni- esses vários núcleos de atuação, como diretoria, supervi-
dade educacional. A partir desse olhar, o etnógrafo tece são, grupo de docentes, encarregados das tarefas gerais,

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e outros mais, a sala de aula se nos revela o ambiente


central da instituição escolar, uma vez que todos os dis-
cursos que permeiam a escola para ela convergem. Mais
“O espaço da escola, por assim dizer,
precisamente, o microambiente da sala de aula materia-
liza os discursos que “são ditos”, isto é, reconhecida- reproduzia-se no espaço da sala de
mente válidos pela instituição que os corrobora e legiti-
aula, através de um processo de
ma, como muito bem afirmou Foucault (1971).
Consideramos, portanto, a sala de aula como o núcleo “diluição” dos discursos produzidos no
que se encontra no cerne da instituição escolar em ter- mundo exterior, com regras e “regimes
mos de representação do discurso da escola em sua prá-
tica mais efetiva: o processo educacional através de de verdade” (FOUCAULT, 1971) que se
construção de significados. Nesse sentido, a avaliação da multiplicavam no ambiente escolar e,
sala de aula como espaço que reflete os “outros espaços”
da escola e do mundo cotidiano dos alunos pode confe- conseqüentemente, na sala de aula”
rir aos professores um tipo de “passaporte” para sua
inclusão no mundo da sala de aula como co-constitui-
dores de realidades sociais e culturais junto de seus alu-
nos (FRANK, 1999).
Orientados pela professora, todos se aconchegam,
O que o olhar etnográfico observou, aos poucos, em suas carteiras, dispõem o caderno, lápis,
o que sua escrita fixou borracha e lápis de cor sobre a carteira, prontificando-se
para o início de suas tarefas escolares. A professora, no
Às 07:15h, os alunos já estão em sala de aula. A dia de nossa coleta de dados, após o “Bom dia!” tradicio-
turma é do 1º ciclo do Ensino Fundamental e é compos- nal, escreve no quadro “verde” um texto que trabalha a
ta de 20 alunos de sete anos e dois de oito anos. Dois recuperação de fatos históricos e folclóricos na memória
alunos, um menino e uma menina, da sala de aula obser- de seus alunos. É época de festa junina e, conseqüente-
vada são alunos da inclusão. A política de inclusão, den- mente, muitas atividades relativas ao tema serão desen-
tro da experiência escolar, busca inserir alunos especiais volvidas na escola. Com isso, ela parece abrir espaço para
(muitas vezes oriundos da população economicamente a constituição de narrativas, prática discursiva que,
desfavorecida, estigmatizada, além de portadores de defi- segundo Jaworski e Coupland (2000), tem a função de
ciências físicas e mentais) nas relações entre indivíduos e entreter, de fortalecer laços interativos e de trabalhar a
coletividades, combinando diversas lógicas de ação que formação seqüencial de construção de memória através
edificam o mundo escolar. Com efeito, essa política pro- da ficção ou narração de fatos verídicos. O texto “Bom
porciona a todos os alunos um processo de socialização, dia, sinhazinhas e sinhozinhos! Ontem choveu, mas hoje o
bem como a construção de identidades socialmente dia está lindo, lindo! 16 de junho.”, escrito no quadro
reconhecidas no âmbito da experiência escolar (DUBET verde, recupera a memória dos alunos, fazendo-os relem-
e MARTUCCELLI, 1996). brar fatos naturais que ocorreram no dia anterior através

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A sala de aula sob o olhar etnográfico: um estudo de caso

de analogias ou comparações. Em seguida, a professora local de constituição de cultura e socialização, a partir dos
propõe uma atividade de fortalecimento dessa prática de discursos ali formados. São elas: (i) ambiente não-estrutu-
narrativas através de um exercício mimeografado com rado/estruturado, (ii) ambiente aberto/fechado, (iii)
gravuras. Kress e van Leeuwen (1996) acreditam que as ambiente simples/complexo, (iv) ambiente inclusi-
crianças têm mais facilidade de construir relações meta- vo/exclusivo e (v) ambiente móvel/estático. Um ambiente
fóricas através de símbolos, devido ao fato de elas não se não-estruturado apresenta mobília confortável, materiais
verem ainda restritas pela realidade de vida a que os de educação artística disponíveis, caixas de brinquedos,
adultos comumente estão sujeitos. Para os dois teóricos, entre outros. Um ambiente estruturado apresenta alunos
esse recurso facilita o processo educativo e desperta nas em fila, proibições variadas por parte da professora, ativi-
crianças o senso de criatividade e, sobretudo, de agência, dades restritas ou direcionadas, entre outras. Um ambien-
isto é, de participação, como agentes sociais, na produ- te aberto seria a sala de aula centrada no aluno; já o opos-
ção de significados que se materializam através dos dis- to, ou ambiente fechado, voltaria a atenção para a profes-
cursos da sala de aula. Em outras palavras, ao criar reali- sora. Um ambiente simples ou complexo, por sua vez, apre-
dades metafóricas, os alunos constituem um sentido coe- senta tarefas disponíveis para os alunos em graus crescen-
rente de si mesmos, de sua identidade, consistente com tes de facilidade e dificuldade. Um ambiente inclusivo ou
as práticas sociais em seu entorno, embora utilizem o exclusivo embasa-se na constituição de grupos de alunos
imaginário para essa construção. para a execução de tarefas e a possibilidade de os alunos
Nossa observação, no entanto, demonstrou que a trabalharem sozinhos, sem intervenção notória da profes-
estrutura da sala de aula parece não ter propiciado con- sora. Por fim, um ambiente móvel ou estático apresenta
dições espaciais e interativas necessárias para o total características de modificação da disposição das carteiras
aproveitamento da atividade sugerida pela professora. dos alunos em sala de aula, ora em círculos, ora agrupados
Seguindo o mesmo estilo ritualístico da chegada para a em filas, ou até mesmo os alunos assentados ao chão para
entrada dos alunos em suas salas de aula, ou seja, posi- a execução de tarefas, em sua maioria, artísticas, de relaxa-
cionados em filas e direcionados pelas professoras, o mento, de contar estórias, entre outras.
microambiente educacional da sala de aula observada A configuração da sala de aula no dia de nossa
onde os alunos exerciam práticas sociais apenas sob observação, representada na figura 1, permitiu-nos per-
orientação da professora, se nos revelava bastante estru- ceber uma tendência a um ambiente estruturado, dentro
turado. O espaço da escola, por assim dizer, reproduzia- de um grau de complexidade das atividades e tarefas
se no espaço da sala de aula, através de um processo de apropriadas ao nível de alfabetização dos alunos, e um
“diluição” dos discursos produzidos no mundo exterior, ambiente que ora promove a execução de tarefas de
com regras e “regimes de verdade” (FOUCAULT, 1971) forma independente, por parte dos alunos, ora monito-
que se multiplicavam no ambiente escolar e, conseqüen- rada pela professora. Na maioria das vezes, a professora
temente, na sala de aula. adotava uma estratégia de, primeiramente, explicar as
Frank (1999), ao aplicar alguns instrumentos de etapas das tarefas, em seguida disponibilizar um tempo
descrição do ambiente da sala de aula em pesquisas etno- suficiente para que os alunos as executassem, enquanto
gráficas feitas por seus alunos, apresenta, segundo Jones e ela caminhava por entre as carteiras auxiliando, dirigin-
Prescott (1978), cinco dimensões para a sala de aula como do e comandando os alunos.

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A sala de aula sob observação expressou certa rigi-


10 dez na disposição espacial das carteiras, configurando-se
1
num ambiente mais estruturado que não-estruturado.
12
Parece-nos que a professora assim faz para manter o con-
trole da turma e visualizar os alunos de maneira mais
2
9
global, podendo monitorar seu desempenho, comporta-
5 mento e a execução das tarefas propostas.
3 Um outro aspecto importante em nossa observa-
13
ção refere-se aos alunos da inclusão. A aluna, que se
4 enquadra na política inclusiva por ter síndrome de
Down, socializava-se com mais facilidade e interagia mais
espontaneamente com seus colegas. O aluno, por apre-
sentar problemas físicos de locomoção, recebia monitora-
mento constante da estagiária, a fim de conseguir, dentro
7
de suas limitações, um grau de socialização e desempenho
mínimos, com tarefas bem definidas e apropriadas às suas
6
condições naturais de executá-las. Esse tipo de monitora-
8
mento, observável claramente na estrutura da sala de
aula, parece revelar, ao mesmo tempo, uma necessidade
11 de apoio e orientação ao aluno inclusivo e uma abertura
para que esse aluno se socialize e construa, paulatinamen-
Figura 1: Desenho da sala de aula observada feito no te, seu papel social dentro daquela comunidade educacio-
dia da observação. nal. Nesse sentido, compartilhamos a visão de Dauster
(1996) acerca do papel do professor na formação do
LEGENDA aluno. Para esta teórica,
1 Mesa da professora
2 Estagiária da Prefeitura de Belo Horizonte [o] problema que se coloca ao professor é pensar o
3 Aluno da inclusão aluno dotado de uma identidade construída histó-
4 Alunos rica e socialmente. Daí a importância não só de tra-
5 Alunas zer o seu cotidiano para o interior da escola, mas
6 Carteiras vazias também a História e o desafio de conhecer e respei-
7-8 Pesquisadores tar a diferença cultural e a heterogeneidade de expe-
9 Aluna da inclusão riências sociais. A escola é uma instituição privile-
10 Quadro “verde” giada, na medida em que possibilita o contato entre
11 Quadro branco para pincel atores com diferentes visões de mundo, podendo pro-
12 Porta da sala de aula mover o seu encontro e a troca de significados e
13 Janelas da sala de aula vivências (p.70).

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A sala de aula sob o olhar etnográfico: um estudo de caso

Após a observação e o término do primeiro turno, transformarem a sala de aula, comum a eles, em locais
entrevistamos a professora no horário do intervalo. estranhos, conseguem se distanciar do cotidiano daquele
Apresentamos a ela o croqui de sua sala de aula, desenha- ambiente para observá-lo mais criticamente. Com isso,
do durante nossas observações (figura 1), questionando- novas formas de reflexão emergem, fazendo com que os
a se na estrutura espacial daquela sala de aula ela reco- próprios professores repensem suas práticas pedagógicas.
nhecia ou poderia apontar aspectos que caracterizassem O fazer pedagógico, portanto, ganha novo matiz, recons-
sua filosofia de ensino e aprendizagem. Nesse momento, truindo-se à medida que novas maneiras de entendê-lo e
uma nova construção discursiva da realidade da observa- revisitá-lo são proporcionadas, sobretudo através de prá-
ção etnográfica se descortinou para nós. A professora, ticas etnográficas que retratam, com certa clareza, o fazer
ciente das limitações de ensino e aprendizagem típicas de social da escola, imersa numa rede de discursos que se
sua sala de aula, do tipo indisciplina, heterogeneidade, intercambiam entre vivência escolar e realidade urbana.
sala com mais de vinte alunos, tempo reduzido para
dedicação mais exclusiva a cada aluno, entre outras, Considerações finais
expôs seus comentários, que gravamos em fita cassete:
Ao analisarmos os resultados parciais desse estudo-
Professora: sei que tem algumas falhas (...) é fazer a piloto, reconhecemos que a Etnografia é um método de
melhor disposição também para poder atender o proble- abordagem de campo que oferece ferramentas para um
ma da disciplina que é sério na minha sala; eu gosto melhor entendimento da realidade da escola e suas formas
muito de trabalhar em dupla realmente, ou grupos (...); de constituição de significados já existentes e suas transfor-
gosto, às vezes, de chegar as carteiras para trás, fazer mações, originárias de reflexões e discussões por parte dos
rodinhas, contar estórias, cantar, dançar na sala, porque sujeitos participantes do contexto educacional. Como bem
eu acho que essa disposição também, fixa assim, não leva sublinha Erickson (1984), a escola não se limita apenas à
a nada, tem que realmente haver mudanças, mas nesses região intramuros, em cujo local a prática pedagógica se esta-
dias não houve. (...) Eu tento variar, mas realmente belece. A escola, sobretudo, é um ambiente que recebe
aqui não está: eles estão separados, é uma carteira pesa- incontáveis sujeitos-alunos, com origens diversificadas, his-
díssima, então isso tudo também afeta a disponibilida- tórias variadas, crenças multifacetadas e opiniões diversas,
de e a vontade da gente fazer, de mudar muito (...). que trazem, para dentro do ambiente escolar, e principal-
mente para a sala de aula, discursos que colaboram para sua
Ao ver o croqui da sala de aula, a professora con- constituição e efetivação. Essa construção de identidades e
seguiu perceber que a disposição espacial alguns proble- de significações, por sua vez, é diretamente influenciada pela
mas que ela bem conhecia. No entanto, aspectos como estruturação do espaço escolar e do ambiente de sala de aula.
“disciplina”, “carteira pesadíssima”, e outros suscitavam Fixar, na escrita etnográfica, essas características requer do
reflexões da parte da professora que a faziam vislumbrar etnógrafo reflexão e, ao mesmo tempo, imparcialidade, uma
o ambiente de sala de aula de uma outra posição, de um vez que, através dessa escrita, realidades serão registradas e,
outro local, para, com olhar crítico, avaliá-lo e interpre- portanto, redes discursivas acessíveis ao olhar de inúmeros e
tá-lo como observadora. Nesse sentido, compartilhamos diferentes leitores serão estabelecidas. Há nesse processo um
com Frank (1999) a ponderação de que os professores, ao aspecto tripartite, em cuja estrutura encontramos o etnógra-

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fo como escritor, a academia e outras comunidades discursi-


vas (cf. Swales, 1990) como leitores e, principalmente, nos-
sos informantes como ‘o outro’, aquele que é representado na Referências
escrita (GOFFMAN, 1989; HAMMERSLEY e ATKIN- Sugestões de leituras
SON, 1995). Por conseguinte, representar o discurso da ANDRÉ, Marli D. A. de. Etnografia da prática escolar. 10ª ed.
Campinas, São Paulo: Papirus, 2003.
escola é dar-lhe vida através de registros escritos oriundos de
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37ª ed.
trabalho de campo e, sobretudo, originários de realidades rev. ampl. Rio de Janeiro: Lucerna, 2000.
DAUSTER, Tânia. Construindo Pontes: a prática etnográfica e
com as quais convivemos e partilhamos dilemas e preocu- o campo da educação. IN: DAYRELL, Juarez (org.). Múltiplos
pações. A prática etnográfica é, pois, teoria e método viáveis olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 1996, p.65-72.
que lançam luz em ambas as instâncias do processo de pes- DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. IN:
quisa: os professores-colaboradores como agentes de cons- DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos olhares sobre educação e
cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996, p.137-161.
trução e reconstrução da realidade da escola e os pesquisa- DUBET, François, MARTUCCELLI, Danilo. En la scuela:
sociología de la experiencia escolar. Madri: Editorial Losada, 1996.
dores como agentes de mudança e instrumentos de melho-
EMERSON, Robert M., FRETZ, Rachel I., SHAW, Linda L.
ramento do saber fazer em educação. Writing ethnographic fieldnotes. Chicago e London: The
University of Chicago Press, 1995.
Além disso, neste ensaio exploratório apresentamos a ERICKSON, Frederik. What makes school ethnography
importância da investigação da estrutura da sala de aula ‘ethnographic’? Anthropology e Education Quarterly, v. 15,
p.51-66, 1984.
como elemento fundamental no processo de socialização e FOUCAULT, Michel. L’ordre du discours. Paris: Éditions
aprendizagem dos alunos ali presentes. As discussões aqui Gallimard, 1971.
FRANK, Carolyn. Ethnographic eyes: a teacher’s guide to
levantadas, por seu caráter parcial, apontam para a necessi- classroom observation. Portsmouth, NH: Heinemann, 1999.
dade de investigações mais profundas de como a estrutura de GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
LTC, 1989.
uma sala de aula pode facilitar um melhor desempenho da GOFFMAN, Erving. On Fieldwork. Journal of Contemporary
Ethnography, London/Thousand Oaks/New Delhi, v.18, n.2,
prática pedagógica e de como o olhar distanciado do docen- p.123-132, jul. 1989.
te pode ajudá-lo a ressignificar sua atuação educativa. HAMMERSLEY, Martyn, ATKINSON, Paul. Ethnography:
principles in practice. 2nd ed. London e New York: Routledge, 1995.
Questões relacionadas à socialização dos alunos, através da JACOB, Evelyn. Qualitative Research Traditions: a review.
interação entre vida social e vivência escolar, e suas manifes- Review of Educational Research, v. 8, n. 1, p. 1-50, 1987.
JAWORSKI, Adam, COUPLAND, Nikolas. Introduction:
tações no contexto da escola estão diretamente ligadas ao perspectives on discourse analysis. IN: JAWORSKI, Adam,
microcontexto da sala de aula e à forma como esse ambien- COUPLAND, Nikolas (eds.). The discourse reader. 2nd imp.
London e New York: Routledge, 2000. p. 1-44.
te é construído por professores e alunos. O que pudemos JONES, E., PRESCOTT, E. Dimmensions of teaching-learning
environments. Pasadena, CA: Pacific Oaks College, 1978.
perceber nesse estudo-piloto foi o papel que a sala de aula KRESS, Gunther, van LEEUWEN, Theo. Reading images: the
parece exercer no processo educacional, sobretudo no pro- grammar of visual design. London e New York: Routledge, 1996.
OWENS, Geoffrey Ross. What! Me a spy? Intrigue and
cesso de alfabetização. Uma vez que a estrutura da sala de reflexivity in Zanzibar. Ethnography, London/Thousand
aula desvela práticas sociais peculiares a esse micro-contexto, Oaks/New Delhi, v.4, n.1, p.122-144, 2003.
SPERBER, Dan. O saber dos antropólogos. Lisboa: Edições 70, 1992.
procurar entender suas facetas e importância para a facilita- SPRADLEY, James P. The ethnographic interview. Australia:
ção da aprendizagem pode conduzir os professores a uma Wadsworth Thomson Learning, 1979.
SWALES, John M. Genre Analysis: english in academic and
postura de maior reflexão acerca de suas práticas docentes, research settings. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
suas formas de conceber a realidade educacional e, conse-
qüentemente, sua própria formação como educador.

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