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Rios como acontecimentos de memória

Carlos Henrique Rezende Falci


Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Av. Antônio Carlos, 6627,
Belo Horizonte, CEP: 31270-901/ R. Itacoatiara, 368/302, CEP: 31035-400, Telefone: 0055 31
34095273 – 005503192822998, E-mail: chfalci@gmail.com

Rivers as memory events

Carlos Henrique Rezende Falci


School of Fine Arts, Federal University of Minas Gerais (UFMG), Antônio Carlos Ave., 6627, Belo
Horizonte, CEP: 31270-901/ Itacoatiara St., 368/302, CEP: 31035-400, Fone:: 0055 31 34095273
– 005503192822998, E-mail: chfalci@gmail.com

Resumo

Os rios carregam e conectam memórias em seu leito, nas paisagens que produzem e nas comunidades que
agregam em torno do seu curso. Eles são capazes de criar memórias, mas são igualmente preenchidos por
acontecimentos de memória. Esse texto se apoia no conceito de memórias conectivas para caracterizar a memória
enquanto um acontecimento. Em seguida, tratamos da relação entre espaços e memória, no intuito de relacionar a
produção do espaço com a criação de memórias. Por fim, olhamos para o espaço atravessado por rios,
descrevendo alguns projetos que utilizam a memória para dar a ver os rios, e os rios como criadores de conexão
entre memórias. Entre estes destacamos ações realizadas pelo Projeto Manuelzão, da UFMG, na bacia do Rio das
Velhas, e o projeto “Os Chicos”, que traz as histórias das mulheres e dos homens nascidos com o nome de
Francisca ou Francisco e que habitam a beira do Rio São Francisco.

Palavras-chave: memórias conectivas; rios urbanos; espaço; acontecimentos de memória

Abstract

Rivers carry and link memories with their curses, with landscapes produced by them, and with communities living in
their banks. This is the hypothesis that guides our article. Rivers create memories, as well as they are equally build
by memory events. This text relies on the concept of connective memories to characterize memory as event. Then,
we discuss the relation between space and memory, in order to understand the links among the production of space
and memory creation. At last, we look to the space crossed by rivers, describing some projects that use memory to
create visibility to the rivers and consider rivers as producers of connective memories. We highlight Manuelzão
Project, by UFMG, in the watershed of Das Velhas’ river and “Os Chicos”’ project, which main purpose is to tell the
stories from women or men called Francisca or Francisco inhabiting the banks of São Francisco river.

Key-words: connective memories; urban rivers; spaçe; memory events.


Introdução

As perguntas que movem esse artigo dizem respeito ao papel que as memórias conectivas podem ter nas
relações que estabelecemos com os rios, principalmente quando eles cruzam ambientes urbanos. Afinal,
estaria a questão dos rios urbanos, e das águas em geral, sofrendo de um processo de “esquecimento”?
Se nos lembramos das águas somente quando elas se tornam violentas, ou quando já nos faltam, como
seremos capazes de compreender também a sua presença nos nossos atos cotidianos, na maneira como
produzimos uma história com elas e em função delas? Ou os rios urbanos estão condenados a existir
como um problema a ser resolvido através da canalização e da sua contenção para que não apareçam
no tecido urbano, para que sejam esquecidos enquanto parte da vida da cidade? Se esse não é um
problema exatamente novo, impressiona o fato de que as soluções padeçam sempre da ideia de
“esconder” os rios, de modo que a vida destes desapareça ao máximo. No entanto, o curso dos rios não
some facilmente, porque eles continuam a escoar suas águas, e a cruzar nossas vidas.

O propósito desse trabalho é investigar como os rios podem ser atravessados por acontecimentos de
memória, e qual o papel desempenhado por tais eventos na resiliência das águas urbanas, olhando
prioritariamente para sua integração com o ambiente, com o espaço urbano. É fácil perceber, no caso de
Belo Horizonte e dos rios que a cortam, como a forma de lidar com os cursos d’água é majoritariamente
voltada para a negação da sua existência, ou para o seu confinamento como um problema a ser resolvido
para que a metrópole não pare o seu desenvolvimento. Vários estudos mostram que, tradicionalmente, as
águas urbanas no Brasil são artificializadas, escondidas, canalizadas. Usualmente, o que vemos é a
artificialização dos cursos d’água, o não investimento em parques lineares, o uso de encostas dos rios
como local de despejo de lixo, o que reforça o aspecto negativo, em termos de identificação, com tais
locais. (Magalhães & Marques, 2014). Somada a isso, há toda uma prática, no planejamento urbano, que
só enxerga tais cursos d’água a partir do seu aspecto negativo, desqualificando os mananciais enquanto
representação social. Por essa razão, o artigo se delineia em direção à memória, uma vez que este
conceito pode nos ser útil para compreender a produção social do espaço urbano com os rios e em torno
deles. A primeira parte do texto abordará o conceito de memória conectiva, apresentando os principais
aspectos dessa visada, e buscando caracterizar a memória enquanto acontecimento, enquanto ligação
entre momentos nodais, o que nos parece bastante pertinente para tratar, em seguida, do espaço como
uma coetaneidade de histórias. Utilizaremos aqui o modo como Henri Lefebvre (1991) e Doreen Massey
(2008) abordam o espaço como uma multiplicidade de histórias, como sendo algo em aberto, em
permanente construção. A abordagem dos autores nos convida a tomar a memória como um elemento
potente, tanto política quanto poeticamente, para pensar a construção do espaço. Na segunda parte do
artigo proporemos algumas relações entre espaço e memória que nos auxiliam a analisar projetos
voltados para a memória de rios urbanos, os quais aparecem na terceira parte do texto.
Nesse momento, descreveremos e analisaremos brevemente ações realizadas na bacia do Rio das
Velhas e no rio São Francisco, de modo a indicar como os rios são capazes de construir acontecimentos
de memória.

Por fim, faremos algumas observações a guisa de considerações para projetos cujo objetivo é similar aos
abordados, buscando não apontar conclusões, mas sim caminhos de pesquisa futuros que envolvam a
criação de memórias com rios urbanos.

Memórias conectivas e memória como acontecimento

Já há algum tempo me interessa a velocidade e transitoriedade dos registros de memória, nos mais
variados ambientes. Venho tentando compreender que tipo de memória podemos associar a objetos ou
registros “pouco” confiáveis como índices do que já se passou. Nessa direção, faz-se cada vez mais
presente uma lógica que aponta para o termo “memórias conectivas”. Andrew Hoskins (2011a) defende
que o momento de memória é um momento de conexão. Com esse enfoque, pode-se dizer que a
memória é algo da ordem de um movimento de contato, de conexão, sendo o seu registro apenas um
tensionamento de um processo dinâmico. É preciso, desse modo, compreender como as ações de
conectividade podem ensejar novas formas de ver a memória contemporânea. Utilizar nesse texto o
conceito de memória conectiva me permite não ficar preso a uma crítica, que me parece às vezes
paralisante, voltada para apontar ou os riscos do excesso de memória, ou a precariedade dos registros
contemporâneos utilizados para guardar experiências. De princípio, é bastante claro que o arquivo não é
somente um elemento fixo, pois mesmo em sua maleabilidade a lógica que o precede aponta para aquilo
que Derrida (2001) chama de “pulsão de morte”. O arquivo já destruiria o que é responsável por arquivar.
Penso que o arquivo não destrói exatamente a memória enquanto experiência, ou consegue armazená-
la, mas sim permite ir além e aquém do que se registra nele. O que os arquivos fazem é tensionar a
memória no ato do seu aparecimento material, já que através dela uma lembrança se encontra disponível
para entrar em redes muito diversas de memória. Defendo aqui a potência de instabilidade dos mesmos,
o seu poder de ficção, de apontar para o que uma memória pode vir a ser, de acordo com o que ela se
conecta. O que se propõe aqui é compreender como as ações de conectividade podem ensejar novas
formas de ver a memória contemporânea, e de que forma isso afeta a nossa relação com rios urbanos.

Iniciamos o trajeto até o termo ora indicado passando, primeiramente, pelas “memórias mediadas” (Van
Dijck, 2007) para caracterizar aquelas que aparecem em ambientes digitais. Ainda que o artigo em
questão não se debruce especificamente sobre esses ambientes, e a discussão de Andrew Hoskins se dê
muito voltada para as memórias digitais, entendemos que a noção de mediação não pode ser descartada
numa análise das memórias contemporâneas e sua forma de circulação. Trata-se de uma qualidade
relacionada ao modo de existência dos objetos de memória, e ao modo de acessar tais objetos. Ainda
que esse conceito seja mais amplo e anterior ao de memórias conectivas, ele nos auxilia a entender
conexões entre memória e acontecimento.

Van Dijck introduz a questão a partir da percepção de que alguns itens seriam capazes de realizar a
mediação entre indivíduos e grupos de pessoas, itens esses que funcionariam não apenas como
lembranças de coisas passadas. É importante ter em mente que esses elementos são produzidos pelas
tecnologias de mídia, mas a mediação se dá também através de arquivos escritos, fotografias, registros
históricos, narrativas pessoais etc.. Pensar os objetos de memória como objetos dialógicos (que
estabelecem relações entre) é entendê-los como móveis, como pontos que tensionam camadas
temporais e espaciais invisíveis e não definidas como passado, presente ou futuro por si só. Essas
mediações podem ser compreendidas como eventos que se cruzam e fazem aparecer uma parte dessas
camadas. A memória seria, então, nesse sentido, um fenômeno que dura pouco tempo num só formato,
porque ela é uma relação entre coisas. Ela é um acontecimento. Nesse sentido, tal memória encontra-se
marcada pelos discursos e narrativas que produzem sua visibilidade, ressaltando-se o fato de que não se
pode reduzir o acontecimento somente à sua aparição inicial. As narrativas e discursos são parte da
produção do espaço, da maneira como utilizamos o conceito nesse artigo, qual seja, tendo como base a
discussão de Doreen Massey sobre esse conceito.

A mirada de Van Dijck abre caminho para nos determos na maneira como os discursos se tornam
visíveis. Em relação a este ponto, tomaremos de empréstimo a exploração e os estudos relativos à virada
conectiva e às trajetórias interacionais (Hoskins, 2011a, 2011b).

Na visão de Hoskins (2011a), a noção de memórias conectivas está primariamente associada ao que ele
denomina de “virada conectiva”, ou “ponto de virada em direção à conectividade”. Segundo o autor, esse
fato indica que os agentes humanos e não humanos estariam perpetuamente “em movimento”, quando
sujeitos à virada conectiva, e isso afetaria a maneira como devemos pensar a noção de memória, que
seria cada vez mais visível quando surgissem situações de conectividade. Essas situações podem ser
derivadas de momentos “nodais”, cuja relevância para uma comunidade de pessoas teria origem na sua
presença estendida em discursos midiáticos. Outrossim, seriam as conexões que tais discursos criam, e
que os mantém presentes numa temporalidade estendida, as responsáveis, em parte, por autorizá-los
como importantes para a construção da memória sobre determinados eventos, em meio a um conjunto
sempre crescente de informações sobre um dado assunto.

Memórias conectivas estariam relacionadas a fluxos de contato entre pessoas, tecnologias digitais e
mídias variadas. Os fluxos são chamados de trajetórias interacionais, por Hoskins (2011b), como uma
forma de caracterizar os momentos de conexão e desconexão que as pessoas experimentam dentro do
conjunto de redes de memória das quais participam, através das ligações que procuram estabelecer com
conteúdos, objetos, pessoas etc. Além disso, os movimentos empreendidos nas trajetórias teriam relação
direta com deslocamentos temporais entre passado e presente, o que nos permite pensar também em
temporalidades específicas associadas aos espaços dos rios que são objeto de trabalho nesse artigo.
Tanto no caso da bacia do rio das Velhas quanto no rio São Francisco, os projetos sobre os quais nos
debruçamos tem como foco justamente pensar de que forma o espaço de cada um dos rios agrupa
momentos temporais distintos, e os faz coexistirem. O que enfatizamos é precisamente a existência de
mais de uma forma de configurar a percepção temporal sobre fatos ligados à memória de um
determinado evento, ou de um determinado espaço. É como se o modo de ligar os acontecimentos,
dentro do evento de memória, trouxesse a esse evento sua própria temporalidade, que se desenvolve na
medida em que novas conexões são realizadas.

As memórias conectivas, na proposta de Hoskins, seriam conectadas ou apareceriam através de um


conjunto continuado de trajetórias interacionais de lembranças, que são amplificadas, reduzidas,
interseccionadas através de elementos materiais, testemunhos, registros fotográficos, audiovisuais etc.
No entanto, os cruzamentos assim realizados seriam capazes de produzir um novo olhar sobre essas
memórias? Para Hoskins, cada objeto, testemunho ou mesmo interface é capaz de criar novas
configurações para memórias que pareciam já estabilizadas e institucionalizadas. Dessa maneira, abrem-
se novos ciclos de memória, em função das novas conexões propostas. Em se tratando do espaço, as
novas redes de memória dariam visibilidade às várias camadas que o produzem, num mesmo momento.
A definição de memória conectiva nos permite abordar o espaço como estando em construção, o que
será tratado de forma mais detalhada na próxima parte do artigo.

Espaço, memória e rios

Considerando a imbricação entre tempo e espaço defendida por Massey, a construção do espaço se faz
como narrativa, mas não no sentido de uma linearidade histórica. Antes, este é produzido na confluência
de histórias que o contam, e que podemos associar com a elaboração e ligação entre notícias sobre o
espaço, com o espaço, do espaço.

O espaço, na visão em que trabalhamos aqui, é o que faz vibrar a temporalidade, é o que nos permite
enxergá-la enquanto passagem. Dito de outra maneira, o espaço é uma configuração momentânea do
tempo, é a possibilidade de visualizarmos várias camadas temporais sobrepostas. A sobreposição a que
aludimos é similar à simultaneidade indicada por Massey (2008) quando trata do espaço como uma
coetaneidade de estórias. É importante salientar que o que chamamos de configuração momentânea não
deve ser encarado como uma estabilização temporal, o que nos conduziria na direção oposta da
argumentação de Massey. Adotamos o entendimento do espaço como instabilidade, como fricção entre
várias histórias coexistindo e sendo tornadas visíveis num instante específico. O espaço pode ser
compreendido de maneira fenomenológica, conforme Henri Lefebvre (1991).
Lefebvre delimita três desdobramentos para pensar o espaço – o espaço concebido, o espaço vivido e o
espaço percebido. A tríade criada pelo autor é tanto uma produção individual quanto social. E é na prática
cotidiana do espaço, no espaço vivido, que pode se inserir o ato de criação, o ato artístico. Destacamos
aqui essa ligação por entendermos que a produção de memórias conectivas tem a potência para se
configurar como esse ato em que o espaço se mostra como múltiplo, como o que escapa a uma
concepção prévia à sua existência. Lefebvre volta sua atenção, no que diz respeito à sociedade, para os
corpos e para sua sensibilidade e imaginação; e para as relações que os seres humanos criam através
de suas atividades e práticas. A sociedade não é, então, uma totalidade a que se refere o espaço. Antes,
há tanto a construção social do espaço quanto a própria construção da sociedade. No entanto, não
devemos tomar as delimitações do autor como categorias para definir o espaço. Uma abordagem mais
prudente nos levaria a enxergar as três dimensões de Lefebvre como aproximações para falar do espaço.
Nesse movimento, o ato poético, o ato criativo se destaca como aquele que permitirá a abertura do
espaço, e não sua delimitação dentro da tríade aludida no início desse parágrafo.

Valemo-nos da produção de memórias como um ato poético, em que o espaço é inacabado, estando
constantemente em elaboração. Ao adotar tal visada, o que pretendemos é trabalhar a formação do
espaço com memórias conectivas, uma vez que estas também se mostram como construção incessante
de acontecimentos, e não somente como registros do que já teria se passado no tempo. O espaço, na
visão elaborada por Doreen Massey se revestiria de um forte caráter relacional, um lugar onde deve se
produzir e viver a diferença, no que ela chama de encruzilhada de trajetórias. Mais especificamente,
Massey defende um tempo-espaço constantemente em renegociação, em mudança. Ao propor uma
relação entre memória e espaço não é pretensão desse artigo temporalizar o espaço, e sim destacar uma
ambiguidade que nos parece habitar todo e qualquer registro externo da memória, como os arquivos.
Afinal, estes elementos carregam consigo a instabilidade de serem conjunções específicas de vivências,
de encontros, de acontecimentos. Se tomarmos os arquivos como o espaço da memória, podemos
perceber o quanto eles estão prenhes da mudança, solicitando à imaginação aquilo do qual não dão
conta de falar, mas que os faz existir. Um relato do espaço, por exemplo, é tanto uma tentativa de
ordenação de algo quanto a criação desse espaço, e do que não está nele naquele determinado instante.
Os espaços são, assim, estruturas em permanente modificação, sendo os relatos uma captura instável
desses movimentos. E é tal mutabilidade dos relatos que demonstra como os espaços são elementos
vivos, orgânicos, não podendo simplesmente ser planejados à parte dos materiais que nele estão, ou
daqueles que escolhem aí estar e, portanto, escolhem elaborá-lo. Por essa razão, quando olhamos para
os rios urbanos, salta aos olhos a maneira como são negligenciados como espaços de vivência e de
convivência.

O cenário atual de cidades como Belo Horizonte aponta fortemente para a necessidade de se
repensar a relação desses espaços urbanos com os rios que os atravessam e os constituem,
que estão hoje, quase que em sua totalidade, canalizados ou tamponados. Vladimir Bartalini
(2004) já destacava, a opção por um planejamento urbano que se comprometia com a abertura
de avenidas e o desaparecimento dos córregos e rios urbanos. Quando vemos os constantes
problemas de enchentes nas vias principais de grandes cidades; quando se olha para a maneira
como as regiões periféricas de Belo Horizonte são desprezadas no que tange a preservar os
córregos que ali estão não canalizados, podemos ver a negação desses espaços. E isso se
reflete no modo como as memórias dos rios urbanos também vão desaparecendo ou sendo
negadas, e na maneira como as populações passam a construir sua relação com tais espaços,
marcadamente pelo abandono e pelo uso sem cuidado ambiental. Afinal, se o espaço é uma
construção incessante, o não incentivo ao uso dos rios de maneira responsável, a não
preservação das memórias dos cursos d’água na vida das cidades termina por fazer com que
esses locais desapareçam, tamponados pelo esquecimento construído em torno deles.

Consideramos fundamental identificar, portanto, as memórias e histórias produzidas pelas


pessoas sobre os rios urbanos, de modo a compreender como se dá essa integração, e como
tais rios ajudam a compor a paisagem cultural desses lugares. Nesse sentido, apresentamos
dois ações/projetos desenvolvidos na bacia do rio das Velhas e no rio São Francisco,
respectivamente.

O projeto Água Nossa

A primeira ação acontece dentro de um projeto mais amplo, o Projeto Manuelzão, cujo principal objetivo é
a recuperação da qualidade das águas do rio das Velhas em toda a sua calha. O projeto surgiu dentro da
Faculdade de Medicina da UFMG, a partir das disciplinas de saúde coletiva em áreas rurais. Os
professores constataram que uma boa parte das doenças das populações tinha estreita relação com a
qualidade ambiental das regiões que habitavam, e principalmente com a qualidade das águas dos rios.
Assim, teve início o projeto, focado na recuperação ambiental da Bacia do Rio das Velhas, que
compreende a região metropolitana de Belo Horizonte, Ouro Preto, Sabará (entre outras cidades) e está
intimamente relacionado a um histórico de exploração mineral e industrial severo e marcada pelo descaso
com a qualidade das águas do rio. Entre diversas ações realizadas pela equipe do projeto, abordamos o
sub-projeto “Água nossa”, iniciado no ano de 2016. O projeto Água Nossa conhecendo e adotando
microbacias urbanas vem sendo realizado em microbacias da RMBH, envolve 11 destas microbacias e
15 escolas. A ação compreende atividades com alunos e professores, que vão desde cursos sobre
geoprocessamento e saúde ambiental até questões como empoderamento e mobilização comunitária. Os
alunos participam de oficinas de reconhecimento da bacia hidrográfica em que a escola está inserida;
produzem maquetes com indicações sobre a saúde ambiental de cada ponto da bacia, e fazem um tour
virtual pelo Google para visualizarem como a bacia é vista por plataformas de conteúdo e busca na web.
Essas oficinas são feitas ainda na escola. A partir desse momento, eles vão a campo com a equipe do
projeto Manuelzão para fazer um mapeamento participativo da bacia. Nesse momento aparece uma
primeira relação com a ideia de produção de espaço que adotamos nesse texto. Os estudantes
caminham pela microbacia e são estimulados a relacionar elementos físicos com um mapa físico (um
croqui) que carregam na caminhada. Nesse ponto, podemos talvez dizer que a produção do espaço ainda
obedeceria, em grande parte, à ideia de um espaço concebido, uma vez que os alunos usam símbolos já
delimitados pela equipe do Manuelzão. No entanto, é visível a oportunidade de cada um relacionar esse
espaço concebido com sua própria experiência particular do mesmo, ao caminharem pela microbacia.
Entendemos o mapeamento participativo como um momento de memória, em que os envolvidos são
convocados a se apropriarem do espaço por conta de uma situação específica. E, além disso, a
produzirem arquivos derivados dessa experiência. O que Andrew Hoskins denomina como momento
nodal é explicitamente provocado pela equipe do Manuelzão, pois a proposta é aproximar a vida da
microbacia da comunidade que ali reside, habita e faz uso daquele espaço.

Os alunos foram também estimulados a fazer um resgate histórico das microbacias, através de
entrevistas com moradores mais velhos dos locais. Como os estudantes tem entre 10 e 15 anos, a equipe
do Manuelzão entendeu a importância de colocar alunas e alunos em contato com outro espaço, que
coexiste com o espaço que eles conhecem, e que pode ser visibilizado pelas histórias de pessoas mais
velhas. Assim, os alunos foram entrevistar essas moradoras e moradores para saber como o rio era num
outro momento. Nesse aspecto, cabe perceber ainda uma perspectiva histórica distinta da forma como
Massey pensa o espaço. Uma maneira mais próxima do espaço sugerido por Massey seria fazer as
entrevistas e produzir numa mesma maquete ou croqui os vários espaços que se encontram dentro da
bacia, ao mesmo tempo. Afinal, os habitantes mais velhos continuam a produzir tal espaço, a
encontrarem a fricção entre esses momentos, que não precisam ser distanciados temporalmente. O
trabalho com o conceito de memórias conectivas pode ser bem interessante, nesse ponto, para explicitar
as várias camadas temporais coexistindo no mesmo espaço. O projeto “Água Nossa” tem ainda outras
atividades que demonstram como a equipe do Manuelzão se aproxima da visada acima, ainda que isso
pareça ser feito de maneira intuitiva. Os alunos farão outra oficina (o projeto está em andamento) em que
são levados a confrontar a bacia que conheceram com uma bacia idealizada como aquela que respeitaria
a saúde ambiental da região, com todos os seus equipamentos públicos e condições naturais, bem como
a presença dos moradores. Aqui aparece uma perspectiva importante do projeto: as lideranças
comunitárias são chamadas a integrar a oficina, para discutirem coletivamente possibilidades para um
planejamento urbano da microbacia. Dessa maneira, o espaço vivido pelos alunos se dobraria por cima
de um espaço a ser concebido e apresentado como possibilidade planejamento. A memória produzida
pelos alunos, a partir do seu contato com o rio e sua expressão urbana (canais, bueiros, córregos a céu
aberto, margens degradadas, parques urbanos etc) se torna um espaço a ser construído. O rio provoca
memórias, e estas adentram o espaço do rio, abrindo-o para novas relações com as comunidades que
vivem com ele.

Os Chicos

Idealizado por Gustavo Nolasco e realizado em conjunto com o fotógrafo Leo Drumond, o projeto “Os
Chicos” foi criado para relatar a história do Rio São Francisco. A partir das memórias contadas pelos
seus personagens, por aquelas e aqueles que vivem o rio no seu dia a dia, no cotidiano de suas águas,
os jornalistas produziram dois livros – um com as histórias e outro com as fotografias da expedição ao
longo do rio. Entre 2008 a 2011, a dupla percorreu os 2700 quilômetros do rio em busca das memórias
dos seus habitantes. Na proposta do trabalho encontra-se um aspecto que permite relacioná-lo
intimamente às discussões desse artigo: os criadores foram atrás exclusivamente de pessoas que se
chamam Francisca ou Francisco, para delas e deles colher as histórias do rio. Nesse ato se configura
uma conexão entre memórias por vir, ou o que Hoskins denominaria de memórias conectivas. Tomamos
a liberdade de fazer a associação, não obstante o fato de o pesquisador britânico caracterizar as
memórias conectivas como ligadas a um acontecimento que, por si só, seria importante o suficiente para
suscitar um conjunto de memórias em torno de si. Entendemos que o projeto criado pela dupla de
jornalistas fez surgir um momento nodal (de fato, eles produzem esse momento, ainda que um pouco
distinto da forma como Hoskins o caracteriza) e, a partir daí, se colocaram em campo para apreender o
que se interligava a esse momento. Por que tomo o projeto como um momento nodal? Porque entendo
que tais momentos, na acepção de Hoskins, não são mediatizados somente pela sua importância, mas
são também construídos pelos meios de comunicação. Voltando a discussão para a ideia de produção do
espaço, é fácil perceber como alguns espaços ao redor do mundo são escolhidos para serem narrados,
enquanto outros permanecem escondidos, apagados ou mesmo negados. O mesmo se pode dizer de
acontecimentos que são objeto dos media. Quando o conjunto de atores midiáticos nos entrega
narrativas sobre um local, não está reagindo a acontecimentos, pura e simplesmente, mas os produzindo.
A ação de Nolasco e Drumond não me parece distinta à escolha de outros atores midiáticos. Obviamente,
nos chama a atenção nela o foco da narrativa, o tipo de acontecimento e o que dele deriva. O que se
coloca em conexão aqui são pessoas que fazem parte de uma comunidade, e elementos que forma o
espaço do rio São Francisco. Estes atuam como que a nos dizer que tal espaço não está já pronto, e
mesmo é completamente anterior à presença dos que nele habitam. Há, nas histórias dos Chicos, uma
imbricação entre o modo de cada uma dessas pessoas viver o rio, seu entorno, as representações que
dele são feitas e a própria paisagem física em que se encontram. Vemos aí a multiplicidade de que nos
fala Massey, bem como a tríade fenomenológica de Lefebvre quando discute o espaço.

Nas histórias contadas pelos Chicos aparece justamente o rio múltiplo, espaço em aberto e criado por
atravessamentos muito distintos. O rio planejado se encontra com o rio vivido pelos matutos, caboclos,
índios. Os barcos que o cruzam, ou mesmo as canoas, carregam essa materialidade diversa que surge
nas histórias de cada uma das pessoas entrevistadas. Aqui vemos a potência poética das memórias
conectivas. O acontecimento de memória não é uma grande narrativa a dar conta de abarcar e dar um
sentido majoritário às multiplicidades. Ele é, ao contrário, engendrado pela fricção de muitos olhares, de
materialidades diversas, de experiências particulares. Estas, ao se encontrarem, fazem o espaço do rio,
junto com as águas, e com a paisagem física do entorno do rio. Assumir este como um acontecimento de
memória e trabalhar para que essa dimensão não seja subsumida nas próprias águas dos rios. É
considerar o rio como um agente de memória. Se estas são capazes de falar como o espaço é percebido,
não podem então ser tomadas apenas como registros a posteriori sobre a paisagem. Devem ser
trabalhadas na sua potência de abrir o futuro dos espaços com os quais nascem e crescem.

Rios como acontecimentos de memória

Como observações para projetos ou pesquisas futurass, teço aqui breves considerações a partir dos
projetos abordados. O primeiro ponto é que as duas ações criam momentos nodais. Tomando o rio como
elemento central na paisagem urbana ou rural, cada projeto enfatiza elementos distintos para estimular
conexão entre memórias que se encontram muitas vezes dentro do espaço, só que espalhadas ou quase
desaparecidas. Compreendo que momentos nodais devem ser criados para que memórias
aparentemente pouco relevantes possam vir à tona, quando tratamos de rios urbanos, córregos
canalizados, cursos d’água que são “retirados” do planejamento urbano.

O segundo aspecto correlaciona-se com o primeiro, pois ao trazerem as histórias à tona, as ações
produzem novos rios, que então se voltam sobre as memórias dos seus habitantes, como que a convidá-
los a não deixarem de produzir os rios que virão. Os rios se mostram, portanto, como acontecimentos de
memória; como organismos que carregam histórias coetâneas. Vemos, assim, como os rios se constroem
como espaço-tempo, sendo passagem e sobreposição de memórias que não cessam de povoar e
provocar as águas em que correm.

REFERÊNCIAS

BARTALINI, Vladimir. Os córregos ocultos e a rede de espaços públicos urbanos. In: Revista do Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e urbanismo da FAU-USP. São Paulo, v. 1, n. 16, p. 82-96, 2004.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

HOSKINS, Andrew. 7/7 and connective memory: interactional trajectories of remembering in post-scarcity culture. In:
Memory Studies, 4(3), 269-280, 2011a.

HOSKINS, Andrew. Media, memory, metaphor: remembering and the connective turn. In: Parallax, 17(4), 19-31,
2011b.
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Oxford: Basil Blackwell, 1991.

MASSEY, Doreen. Pelo espaço; uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

MAGALHES, A.; MARQUES, C.. (2014) Artificialização de cursos d’água urbanos e transferência de passivos
ambientais entre territórios municipais – reflexões a partir do caso do Ribeirão Arrudas, região metropolitana
de Belo Horizonte – MG. In: Anais do III Seminário Nacional sobre o Tratamento de Áreas de Preservação
Permanente em Meio Urbano e Restrições Ambientais ao Parcelamento do Solo. Disponível em
http://www.appurbana2014.com/anais/html/gt1.html. Acesso em 13/11/2016.

VAN DIJCK, José. Mediated memories in the digital age. Stanford: Stanford University Press, 2007.

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