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Aula 04 - O Substituto dos Pecadores

Leandro Lima

Objetivo: Entender o real sentido em que a morte de Jesus efetua a redenção como
substituição no lugar dos pecadores, para estabelecer até que ponto ele suportou o castigo
merecido dos pecadores.

Introdução

Agora que já entendemos a necessidade da morte de Jesus, precisamos entender um


pouco mais profundamente o modo como sua morte traz a salvação para o seu povo. É
impossível entendermos a necessidade e o significado da redenção sem entender o que o
pecado significa. As pessoas têm um conceito equivocado a respeito do pecado. Isto é
compreensível, pois o pecado é algo que faz parte de nós, é algo absolutamente comum em
nosso dia-a-dia. Ele está presente em praticamente todos os nossos momentos, e isto
significa que nos acostumamos com ele. As pessoas têm esta imensa capacidade de
adaptação. Nos acostumamos às coisas à nossa volta, e, então, elas deixam de ter o
significado que um dia tiveram. Se uma família se muda do interior para uma grande
cidade, nas primeiras noites não conseguirá dormir por causa do barulho, mas uma semana
depois estará perfeitamente adaptada, exceto por alguns sobressaltos de madrugada. Depois
de alguns meses, dormirá como se estivesse no sítio. Ao longo de uma vida de acomodação
ao pecado, ele não parece mais algo tão assustador. Para muitos é inconcebível que pecados
cometidos durante uma vida tão curta, causem uma eternidade de perdição, mas, como diz
Schaeffer, “o problema não está na quantidade de pecados que praticamos, mas em quem
ofendemos. Nós pecamos contra um Deus infinitamente santo” 1. A transgressão não
depende apenas do ato em si, mas de quem é o ofendido. Nossos pecados podem até
parecer insignificantes em certos momentos, mas o fato é que ofendem a santidade infinita
de Deus. Isto os torna terríveis. Por esta razão, a redenção se reveste de ainda maior
importância, ela é o caminho divino para nos tornar aceitáveis diante dele apesar de nossos
pecados.

Teorias de expiação

O conceito de expiação levou algum tempo para ser desenvolvido na teologia da


igreja cristã. A Doutrina da expiação surgiu da mesma forma que as outras doutrinas, pois,
como diz Benjamin Warfield, toda doutrina surge através de “um processo gradual e
ordenado”2. Os pais da igreja trataram da expiação, porém havia muitas discordâncias
entre eles. O conceito antigo mais difundido sobre a expiação entendia a morte de Cristo
como um resgate pago a Satanás 3. Essa teoria foi muito popular especialmente na igreja
antiga. Por mais de mil anos, foi a idéia mais aceita sobre a expiação. Como o próprio nome
indica, essa teoria sugere que Jesus pagou um resgate ao diabo para a libertação dos
pecadores. A partir do entendimento de que o pecador está sob o domínio de Satanás, sendo

1
Francis Schaeffer. A Obra Consumada de Cristo, p. 75.
2
Benjamim B. Warfield. La Persona y La Obra de Cristo, p. 324.
3
Benjamim B. Warfield. La Persona y La Obra de Cristo, p. 306-307.
este o deus deste século ou o príncipe deste mundo, Jesus precisou morrer para satisfazer as
exigências do diabo. Essa teoria aos poucos caiu em desuso pela falta de evidência bíblica.
A principal falha dessa teoria é colocar Satanás numa posição praticamente superior a de
Deus, como se Deus tivesse que prestar contas ao diabo.
Anselmo (1033-1109), um arcebispo da Cantuária, foi o primeiro a dar um tratado
mais amplo para a doutrina da expiação. Segundo Warfield, “Anselmo estabeleceu para
todos os tempos as linhas gerais sobre as quais há de ser concebida a expiação, quando se
pensa nela como uma obra de libertação do castigo do pecado” 4. Com base nas relações
comerciais de sua época entre senhores e servos, Anselmo argumentou que o pecado havia
ferido a honra de Deus. Essa honra precisava de reparo. A função de Cristo é obedecer a lei
e morrer para satisfazer a honra de Deus. Ele adquire para si um mérito muito grande, mas
o fato é que não precisa desse mérito, então, pede que o mérito seja derramado sobre o
povo5. O único problema com essa teoria é que ela deixa de lado a questão da justiça de
Deus, enfatizando apenas a honra de Deus que precisava ser satisfeita. A seu favor ela tem
o fato de que localiza a expiação em relação ao próprio Deus. Deus precisava ser satisfeito,
e não o diabo.
Muitas outras teorias sobre a expiação foram desenvolvidas ao longo da história. A
seguir veremos algumas:
Teoria da Influência Moral: Essa teoria foi formulada em resposta à teoria de
Anselmo e seu autor foi Abelardo. Segundo essa teoria Deus não tem qualquer dificuldade
em perdoar os homens, ele pode perdoá-los até mesmo sem a cruz. A cruz é apenas uma
demonstração do amor de Deus. Na cruz, Deus está dizendo que não importa o tamanho do
pecado, ele pode perdoar até mesmo o pecado de matar seu Filho. A morte de Jesus,
segundo essa teoria, é uma tentativa de amolecer o coração do homem, influenciando-o
moralmente, para que mude de atitude e receba o perdão. Essa é uma teoria muito popular
nos dias de hoje, mas é completamente anti-bíblica, pois, embora enfatize o amor de Deus,
falha em reconhecer sua justiça e a seriedade com que Deus considera sua lei.
Teoria do Exemplo: Segundo essa teoria, Deus pode perdoar a quem ele quiser sem
exigir qualquer satisfação. A vida e a morte de Cristo foram apenas exemplos, não há
qualquer poder objetivo de salvação em seu sacrifício. As pessoas podem ser salvas se
seguirem o exemplo de amor, fé e abnegação de Cristo. Não há qualquer idéia de perdão
incluída na morte de Jesus, é apenas um exemplo de fé a ser seguido. Essa teoria oculta
muitos erros, por exemplo, um grande equívoco a respeito da justiça do homem e de Deus.
Ela não vê o homem como perdido e não faz justiça ao caráter santo de Deus. Jesus seria
apenas um mártir, alguém que deu a vida por uma causa, e nada mais do que isso. Essa,
talvez, seja a idéia mais popular a respeito da morte de Jesus que se tem hoje.
Teoria do Governo Moral: Segundo essa teoria, Deus poderia perdoar os homens
independentemente das exigências da lei, às quais se ele quisesse poderia até mudar. Deus
resolveu aceitar o sacrifício de Jesus porque assim demonstra que não está contente com o

4
Benjamim B. Warfield. La Persona y La Obra de Cristo, p. 324.
5
Anselmo argumenta extensivamente sobre esse assunto em seu livro Cur Deo Homo? O livro de
Anselmo tem forma de diálogo entre ele mesmo e Boso, um de seus discípulos. Boso faz as
perguntas e Anselmo as responde. Na cosmologia de Anselmo, Deus criou o mundo para sua glória,
e quando o ser humano pecou, a honra de Deus foi ferida. Isso foi um insulto à sua honra e alguma
satisfação precisava ser tomada. Assim, Jesus Cristo realizou um sacrifício em prol da honra de
Deus. (Ver Bengt Hägglund. História da Teologia, p. 146-148).
pecado, e assegura o seu governo moral sobre o universo. Dessa forma o sacrifício de Jesus
é muito mais uma demonstração da vontade de Deus do que algum tipo de expiação pelo
pecado. Essa teoria falha em não considerar a lei como Deus a considera, fazendo dela algo
secundário e sem importância.
Teoria Mística: Segundo essa teoria a natureza humana de Jesus não era perfeita,
mas pecaminosa. Como Jesus obedeceu perfeitamente a lei de Deus, essa natureza foi
elevada ao nível da divina, especialmente por causa de sua morte que extirpou todas as
impurezas. Dessa forma a natureza humana é reunida a Deus. Quando essa obra de Cristo é
aplicada ao ser humano, a redenção acontece, pois produz mudança de vida na pessoa. Essa
teoria não faz justiça ao caráter santo de Jesus, nem à sua divindade.
Teoria do Arrependimento Vicário: Essa teoria afirma que a única coisa que o
homem precisa fazer para ser salvo é demonstrar um arrependimento autêntico. O problema
é que o homem não tem condições de oferecer esse arrependimento. A obra de Cristo
consistiu justamente no fato de ele oferecer esse arrependimento em lugar do homem. Essa
teoria falha ao desconsiderar o sacrifício de Jesus reduzindo tudo a questão de simples
arrependimento. 6
Todas essas teorias falham, pois minimizam a importância do sacrifício de Cristo,
tornando-o supérfluo e desnecessário. A razão disso é um falso entendimento do pecado do
homem, da lei e da justiça de Deus. Na concepção reformada, a expiação conforme a Bíblia
a revela é uma questão de substituição.

Expiação como substituição

Quando o homem pecou, ele se colocou debaixo da condenação da lei de Deus. Ele
ficou devendo uma reparação a Deus. Essa reparação é exigida pela justiça de Deus, que
estabeleceu uma lei para ser cumprida e uma punição para quem a descumprisse. Ao
contrário do que diz a maioria das teorias expostas acima, Deus não poderia ignorar sua lei,
pois se fizesse isso estaria negando um princípio que ele mesmo estabeleceu e,
conseqüentemente, estaria negando a si mesmo. O homem somente poderia fazer essa
reparação se sofresse eternamente a penalidade fixada pela transgressão. De fato, segundo a
Bíblia, muitos passarão a eternidade pagando por seus crimes, mas isso exclui a
possibilidade da redenção. Deus poderia exigir isso de todos os homens, mas em sua
misericórdia providenciou uma maneira de salvar o pecador. Deus designou um substituto
para tomar o lugar do homem no ato de receber a punição. Se alguém objetasse que um
homem só em lugar do mundo inteiro parece desproporcional, diríamos que de fato é, mas
para o lado de Jesus. Ele sendo Deus-Homem ofereceu um sacrifício mais valioso do que se
todos os homens fossem sacrificados ao mesmo tempo. Do mesmo modo que a intensidade
da transgressão depende da dignidade do ofendido, também o valor do sacrifício segue o
mesmo princípio. Não importa a quantidade de sacrifícios, mas o valor deles. O sacrifício
de Jesus, o perfeito Deus-Homem, é de valor infinito, e, portanto, amplamente suficiente
para salvar todos os homens em todos os tempos, ainda que, efetivamente não faça isso.

Substituição no Antigo Testamento


Para muitos estudiosos, os sacrifícios do Antigo Testamento possuíam apenas
caráter de “adoração ou culto” e não eram expiatórios. Como aponta Warfield, “a diferença

6
Para outras teorias sobre expiação ver: Robert Letham. The Work of Christ, p. 159-175.
fundamental é que em um caso o sacrifício descansa sobre a consciência do pecado e tem
sua referência à restauração por causa da iniqüidade do ser humano para o favor de um
Deus condenador: no outro permanece fora de toda relação com o pecado e tem sua
referência somente na expressão de uma atitude própria de deferência” 7. Nossa defesa é que
os sacrifícios do Antigo Testamento eram substitutivos, e, portanto, expiatórios. É certo que
havia sacrifícios de louvor ou gratidão, mas a ênfase central dos sacrifícios era a expiação.
A primeira instrução sobre sacrifícios dada em Levítico já deixa isso bem claro:
Chamou o SENHOR a Moisés e, da tenda da congregação, lhe disse: Fala aos
filhos de Israel e dize-lhes: Quando algum de vós trouxer oferta ao SENHOR,
trareis a vossa oferta de gado, de rebanho ou de gado miúdo. Se a sua oferta for
holocausto de gado, trará macho sem defeito; à porta da tenda da congregação o
trará, para que o homem seja aceito perante o SENHOR. E porá a mão sobre a
cabeça do holocausto, para que seja aceito a favor dele, para a sua expiação.
Depois, imolará o novilho perante o SENHOR; e os filhos de Arão, os
sacerdotes, apresentarão o sangue e o aspergirão ao redor sobre o altar que está
diante da porta da tenda da congregação (Lv 1.1-5).
Quando o pecador cometia uma transgressão, oferecia um animal que era
sacrificado em seu lugar. Por mais que escritores de inclinação liberal como Baillie 8 se
recusem a aceitar que os sacrifícios eram feitos pelos pecados a fim de trazer o perdão, a
evidência bíblica é imensa nesse sentido. Colocar as mãos sobre a vítima era um ato de
imputar o pecado. O ato mais solene do Antigo Testamento apontava claramente para isso:
No dia expiação, um bode deveria ser trazido diante do sacerdote, e a seguinte instrução
deveria ser seguida:
Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo e sobre ele confessará
todas as iniqüidades dos filhos de Israel, todas as suas transgressões e todos os
seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode e envia-lo-á ao deserto, pela mão
de um homem à disposição para isso. Assim, aquele bode levará sobre si todas
as iniqüidades deles para terra solitária; e o homem soltará o bode no deserto (Lv
16.21-22).
A “transferência” de pecados do povo para o bode está claramente especificada no
texto. O bode era o substituto do povo. Toda essa cerimônia apontava para Cristo, pois
como diz Hodge, “o sentido em que ele foi sacrifício é o mesmo que aquele em que eram
sacrifícios as ofertas pelo pecado do Velho Testamento” 9. Os sacrifícios pelo pecado no
Antigo Testamento eram substitutivos ou vicários, e isso demonstra que a substituição é o
método divino para expiação.
O messias anunciado em Isaías 53, que é uma profecia sobre Jesus de acordo com o
Novo Testamento, seria aquele que sofre e morre pelos pecados do povo. Em quase todos
os versos daquele capítulo a morte substitutiva do Messias é anunciada. O verso 4 diz:
“Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e
nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido”. As enfermidades e dores
destacadas no texto são espirituais e sinônimas do pecado, ele as carregou sobre si. O verso
7
B. B. Warfield. Biblical Foundations, p. 169-170.
8
Baillie diz que “o tema do sacrifício no antigo Israel é bastante complicado e controvertido”. Ele
não entende que os pecados graves eram absolvidos pelos sacrifícios. (Ver Donald M. Baillie. Deus
Estava em Cristo, p. 200-201).
9
Charles Hodge. Teologia Sistemática, p. 855.
5 continua: “Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas
iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos
sarados”. Talvez esse seja o verso mais claro da Bíblia que fala do sacrifício substitutivo do
Messias. Ele foi transpassado pelas iniqüidades do povo. O castigo que proporciona a paz
com Deus estava sobre ele. O verso 6 arremata: “Todos nós andávamos desgarrados como
ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele a iniqüidade
de nós todos”. Os homens são os verdadeiros pecadores, mas Deus fez cair sobre Jesus a
iniqüidade do povo. O verso 8 ainda diz que ele foi ferido pela transgressão do povo. O
verso 10 diz que ele deu a sua alma como oferta pelo pecado. O verso 11 que ele leva as
iniqüidades de seu povo sobre si. E o verso 12 que ele levou sobre si o pecado de muitos. A
obra expiatória substitutiva do Messias está bem demonstrada nessa passagem profética.

Substituição no Novo Testamento


Toda essa evidência do Antigo Testamento está em perfeita harmonia com o ensino
do Novo Testamento sobre a expiação. Pedro afirma que Jesus ao morrer na cruz estava
“carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós,
mortos para os pecados, vivamos para a justiça; por suas chagas, fostes sarados” (1Pe 2.24).
Claramente a referência às chagas de Cristo que saram os pecadores é uma referência à
profecia de Isaías 53. Pedro está aplicando a profecia de Isaías 53 que falava do sacrifício
substitutivo do Messias para Jesus. Pedro diz que Jesus carregou sobre o madeiro os nossos
pecados. A substituição está muito evidente nessa passagem, porém, não significa que Jesus
tenha carregado nossos pecados literalmente, como se tivesse carregado a nossa natureza
pecaminosa, pois não haveria modo de a nossa natureza pecaminosa ser arrancada de nós e
transferida para Cristo. As vezes as pessoas dizem que Jesus, na cruz, se tornou o pior dos
pecadores porque recebeu os pecados do mundo inteiro sobre si. Isso não é muito exato.
Não foram os pecados em si, mas a culpa pelos nossos pecados que ele carregou e por
causa do que foi condenado. E ele somente pôde carregar essa culpa porque não era algo
inerente a nós, mas uma conseqüência formal pela quebra da lei10.
São muitas as passagens do Novo Testamento que apontam para a Substituição.
João Batista relacionou Jesus com o sacrifício do Antigo Testamento ao apontar para ele e
dizer: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (Jo 1.29). O sacrifício de
Jesus é substitutivo porque consuma os sacrifícios substitutivos do Antigo Testamento. No
capítulo 5 de Romanos, Paulo também trabalhou bastante com essa idéia. Primeiro ele disse
“Porque Cristo, quando nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios” (Rm
5.6). Essa, de acordo com Paulo, é a prova do amor de Deus, o “fato de ter Cristo morrido
por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). Aos Gálatas Paulo falou a mesma coisa com
palavras diferentes: “O qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos
desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (Gl 1.4). Por
causa desta entrega, segundo Paulo, em Cristo “temos a redenção, pelo seu sangue, a
remissão dos pecados” (Ef 1.7). O sangue que faz remissão de pecados somente pode ser
um sangue substitutivo, nos mesmos moldes do sangue derramado no Antigo Testamento
(Lv 17.11; Hb 9.22). Dois versículos em Hebreus são bastante precisos sobre este assunto:
“Nessa vontade é que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo,
uma vez por todas” (Hb 10.10). E logo adiante ele complementa: “Jesus, porém, tendo
oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus”

10
Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 378.
(Hb 10.12). O sacrifício de Jesus foi pelos pecados e foi único. A mesma idéia ecoa nos
escritos de Pedro que afirma: “Sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, como
prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos
legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue
de Cristo” (1Pe 1.18-19). O resgate dos cristãos acontece pelo pagamento de algo mais
precioso que o ouro ou a prata, o sangue de Cristo. Pedro diz ainda que “Cristo morreu,
uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus” (1Pe 3.18).
A expressão “o justo pelos injustos” significa “o justo no lugar dos injustos”. A morte
substitutiva de Jesus é que nos conduz a Deus. Ele foi nosso substituto na cruz.

O Castigo do Inferno

Isaías falou sobre a transferência do castigo pelas transgressões do povo para o


Messias. Ele disse: “Ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas
iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele” (Is 53.5). Se o castigo pela
quebra da lei é a morte em todos os sentidos: física (da carne), espiritual (separação de
Deus) e eterna (Inferno), como podemos dizer que Jesus recebeu todo o nosso castigo? A
princípio, parece que ele sofreu apenas a morte física. Normalmente as descrições da cena
da paixão, sejam em filmes ou em teatro, mostram apenas o sofrimento físico e a morte
física de Jesus. Porém, segundo a Bíblia, Jesus sofreu muito mais do que a morte física, ele
padeceu os horrores da separação de Deus e do próprio Inferno. Também deve ser
entendido que a cruz não foi o único lugar onde Jesus sofreu pelos pecadores, mas como
bem disse Calvino, “Com toda verdade se pode dizer que não somente passou toda sua vida
em perpétua cruz e aflição, senão que toda ela não foi senão uma espécie de cruz
contínua.”11, ou seja, “toda a sua vida foi uma cruz perpétua”.12 Isso ecoa na resposta à
pergunta 37 do Catecismo de Heidelberg: “Que entendes pela palavra ‘sofreu’?”. “Que
durante toda a sua vida na terra, e especialmente no fim dela, ele suportou no corpo e na
alma a ira de Deus contra os pecados de todo o gênero humano, de modo que, pelo seu
sofrimento, como o único sacrifício expiatório, ele redimisse o nosso corpo e a nossa alma
da maldição eterna, e para nós conseguisse de Deus a graça, a justiça e a vida eterna”.

Desceu ao Inferno?
Existe uma crença de que durante o período em que Jesus esteve morto, ou seja,
entre a sexta-feira e o primeiro dia da semana, ele desceu ao Inferno. Isso parece ser visto
no próprio Credo Apostólico que diz em certa altura: “Padeceu sob o poder de Pôncio
Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu ao Hades”. O Credo surgiu ainda no
início da igreja e refletia os ensinamentos dos Apóstolos 13. Mas a expressão “desceu ao
Hades (Inferno)” é bastante discutida. Primeiramente, é preciso que se entenda que essa

11
J. Calvino. Institución, III.8.1.
João Calvino. A Verdadeira Vida Cristã, p. 45. “Ele não somente padeceu constante
12

aflição, mas também que toda a sua vida foi uma espécie de cruz perpétua” (João Calvino,
As Institutas, (1541), IV.17).
13
O Credo dos Apóstolos tem a sua origem no Credo Romano Antigo, elaborado no segundo
século, tendo algumas declarações doutrinárias acrescentadas no decorrer dos primeiros séculos,
chegando à sua forma como temos hoje, por volta do sétimo século. Ver J.N.D. Kelly, Primitivos
Credos Cristianos, p. 125ss.; P. Schaff, The Creeds of Christendom, Vol. I, p. 19-22; II. 45-55.
expressão não fazia parte do Credo em suas primeiras versões. A frase “desceu ao Inferno”
não se encontrava em nenhuma das versões primitivas (nas versões usadas em Roma, no
resto da Itália e na África) até que ela apareceu em uma das duas versões de Rufino em 390
d.C14. O próprio Rufino não entendia que a frase significasse que Jesus desceu ao Inferno
literalmente, mas à sepultura. De qualquer forma, é somente a partir de 650 d.C. que outros
começaram a usar a expressão. Considerando isto, será que essa frase pode ser realmente
considerada “apostólica”, uma vez que o Credo é considerado tão antigo quanto os
apóstolos?
A igreja Católica Romana entende que Jesus após sua morte foi para o Limbus
Patrum (Limbo dos Pais). Nesse lugar estavam os santos do Antigo Testamento, na espera
de que Jesus completasse sua obra redentora, para que eles pudessem ir para o céu. No
entendimento católico, os santos do Antigo Testamento não estavam no Inferno, mas
também não estavam no céu, porque Jesus não havia consumado a obra da salvação. Assim,
após sua morte, Jesus foi até aquele lugar, anunciou a vitória do Evangelho para aquelas
almas e as conduziu ao céu. A igreja Luterana, por sua vez, defende que Cristo após a
morte e talvez até após a ressurreição, foi ao Inferno e proclamou sua vitória sobre Satanás
e sobre todos os poderes das trevas, e pronunciou a sentença de condenação daquelas forças
malignas. A igreja da Inglaterra, por outro lado, defende que Jesus desceu apenas com seu
espírito até o submundo, enquanto seu corpo permanecia na sepultura. Nesse estado, ele foi
até o lugar da habitação dos justos, e lhes proclamou a vitória e o plano de Deus através do
Evangelho15. Percebe-se, portanto, que há muitas opiniões diferentes sobre a questão de
Jesus ter descido ao Inferno. Precisaremos analisar a Bíblia para entender esse assunto.
Há algumas passagens bíblicas que parecem dar apoio à idéia de que Jesus desceu
ao Inferno após sua morte na cruz. Deveremos estudá-las uma a uma.
O primeiro texto a ser analisado é o da pregação de Pedro logo após o Pentecostes.
Pedro está defendendo que Jesus não permaneceu na morte, antes ressuscitou para se
cumprir a Escritura. Pedro cita o Salmo 16 composto por Davi: “Porque não deixarás a
minha alma na morte, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção” (At 2.27). A palavra
“morte” usada nesses versos é a palavra Hades na língua grega. A partir desse texto, muitos
têm argumentado que Jesus de fato foi até o Hades após sua morte, mas saiu de lá na
ressurreição. O fato é que Pedro está usando o Salmo 16 para provar que Jesus ressuscitou e
não para dizer que Jesus foi fazer uma visita ao Inferno. A palavra Hades nesse texto
significa simplesmente morte, e quer dizer que Jesus não permaneceu morto, antes obteve
vitória sobre a morte através de sua ressurreição. Aqui, Hades é apenas sinônimo de morte
ou sepultura.
O próximo texto que devemos considerar é Efésios 4.8-9: “Por isso, diz: Quando ele
subiu às alturas, levou cativo o cativeiro e concedeu dons aos homens. Ora, que quer dizer
subiu, senão que também havia descido às regiões inferiores da terra?”. Nesse texto, há um
contraste entre a ascensão de Jesus e sua descida. Muitos interpretam isso como o ato de
Jesus ir até o Hades, descrito aqui como as “regiões inferiores da terra”, e depois disso ter
levado os cativos de lá para o paraíso, por causa da expressão “levou cativo o cativeiro”. O
fato é que nesse texto a palavra Hades nem se quer aparece e “regiões inferiores da terra” é
uma expressão de contraste com “às alturas” para onde Cristo subiu. Devemos entender o
texto, portanto, como demonstrando a humilhação e a exaltação de Cristo (Fp 2.8-9).

14
Wayne Grudem. Teologia Sistemática, p. 489.
15
Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 342-343.
Quanto aos cativos libertados do texto, deve ser uma referência aos salvos por sua obra
redentora. Mas o texto não pretende dizer que eles estavam no Inferno e foram levados para
o céu. Esse texto fala da vinda de Jesus a esse mundo e de sua volta para a glória.
A passagem mais usada para defender a descida de Jesus ao Inferno é 1Pedro 3.18-
20: “Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para
conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi
e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a
longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca, na qual
poucos, a saber, oito pessoas, foram salvos, através da água”. Entendendo o texto como
uma seqüência literal, alguns argumentam que Jesus morreu, foi sepultado, e então, no
espírito foi até o Inferno e pregou aos espíritos aprisionados desde os tempos de Noé, ou
seja, às almas dos homens maus que morreram no dilúvio. Essa pregação poderia ter sido
uma proclamação de vitória sobre os espíritos malignos que agiram no tempo do dilúvio, ou
um anúncio às almas dos justos que ainda não tinham ido para o céu. O fato é que Pedro
não cita o Hades nesse texto. Apesar de reconhecermos a dificuldade da passagem, a
melhor interpretação é a que vê Jesus como pregando na própria pessoa de Noé, através do
Espírito Santo, aos contemporâneos do próprio Noé. É assim que devemos entender a
pregação de Cristo “no espírito” (v. 18), aos homens desobedientes dos dias de Noé (v. 20).
Os homens dos tempos de Noé eram considerados, na tradição judaica, como os piores de
todos os tempos. De fato a Bíblia enfatiza a extrema corrupção daqueles dias (Gn 6.1-13).
O argumento de Pedro seria que mesmo aqueles homens não ficaram sem pregação, pois
Noé, também chamado pelo próprio Pedro de “pregador da justiça” (2Pe 2.5) foi usado pelo
Espírito de Cristo para anunciar a salvação àqueles homens. Se Jesus fosse anunciar o
Evangelho aos mortos estaria sugestionando uma possível salvação após a morte, o que é
totalmente repudiado pelas Escrituras (Hb 9.27). O texto nada fala sobre o Inferno. Além
disso, no Inferno só estariam os homens do tempo de Noé? Isso não faz sentido.
Resta-nos apenas analisar uma última passagem também na carta de Pedro, é 1Pedro
4.6: “Pois, para este fim, foi o Evangelho pregado também a mortos, para que, mesmo
julgados na carne segundo os homens, vivam no espírito segundo Deus”. Normalmente os
defensores da descida de Jesus ao Inferno ligam esse texto com o anterior, e dizem que
Jesus pregou às almas dos mortos após sua morte. Novamente precisa ser dito que se isso é
verdade, então, a Bíblia estaria sugerindo que a salvação após a morte é possível. Devemos,
no entanto, buscar outra interpretação para a passagem. O contexto nos ajuda a entender o
que Pedro está querendo dizer. Pedro está dizendo, a partir do verso primeiro, que os
crentes não deveriam mais viver em luxúrias como os demais homens, ainda que com isso
ofendessem seus contemporâneos que vivem dessa forma, e fossem ultrajados por eles (v.
2-4). Os ultrajadores teriam que prestar contas diante de Deus que é competente para julgar
os vivos e os mortos (v. 5). Por essa razão, o Evangelho foi pregado aos mortos, para que
mesmo tendo sido condenados na carne diante dos homens, fossem vivificados no espírito
por Deus. O texto não está dizendo que Jesus foi até o Inferno e pregou aos mortos para
salvá-los, mas que os cristãos que estavam mortos, no momento em que Pedro escrevia
aquela carta, ouviram a palavra enquanto estavam vivos. E que embora tivessem sofrido e
até sido mortos na carne, agora viviam segundo Deus. A expressão “foi o Evangelho
pregado” está no passado, ao passo que “mortos” está no presente. Eles estavam mortos no
momento em que Pedro estava escrevendo, mas quando a palavra lhes foi pregada, estavam
vivos. Até porque somente poderiam estar vivos para poderem “ser julgados na carne”.
Como poderiam ser julgados na carne se já estavam mortos antes? Apesar dessa ser uma
passagem bastante difícil e obscura, não é necessário pensar que ela ensine a salvação após
a morte.

O Inferno veio à cruz


Duas expressões de Jesus não deixam dúvidas de que ele não foi ao Inferno após sua
morte. As duas estão relatadas no Evangelho de Lucas no capítulo 23. Ao ladrão que estava
ao seu lado na cruz e que se arrependeu naquele momento ele disse: “Hoje estarás comigo
no Paraíso” (Lc 23.43). E sua última palavra na cruz foi: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu
espírito” (Lc 23.46). Esses textos parecem sugerir que, se a alma de Jesus ficou separada de
seu corpo enquanto estava no sepulcro, certamente ela não foi até o Inferno, antes pelo
contrário foi até o Paraíso, até Deus16. Quanto ao que Jesus disse a Maria Madalena, após
sua ressurreição, que ainda não havia subido ao Pai (Jo 20.17), devemos entender como
uma referência à sua subida física. Com o corpo ressuscitado, naquela manhã da Páscoa, ele
ainda não tinha subido ao céu. Mas nada impede que seu espírito já tivesse ido até Deus
para recepcionar o ladrão convertido.
Desde João Calvino, os protestantes reformados têm defendido que Jesus de fato
sofreu as angústias do Inferno, mas não foi ele quem desceu ao Inferno, e sim o Inferno
quem veio até ele na cruz e no jardim do Getsêmani. Ele sofreu os terrores do Inferno no
momento de sua condenação. A punição do Inferno deve ser entendida como um estado de
separação de Deus, e abandono sob sua Ira. De fato os condenados no Inferno estão
separados de Deus e abandonados sob sua Ira eterna. Os reformados defendem que Jesus
sofreu isso na cruz. É importante entender que Jesus tinha que sofrer as angústias do
Inferno, pois ele substituiu o homem em todo o processo de condenação que o pecado
acarreta. Num sentido, Jesus experimentou um estado de punição pelos pecados durante
toda a sua vida17. O simples fato dele ter que deixar seu estado de glória para assumir um
corpo de homem já era em si uma punição. Mas o momento mais crucial disso tudo
aconteceu no Gólgota. É somente assim que podemos entender o real sofrimento de Cristo
ainda no Jardim de Getsêmani quando sua alma “começou a entristecer-se e a angustiar-se”
(Mt 26.37). Naquela ocasião ele disse: “A minha alma está profundamente triste até à
morte” (Mt 26.38). Em profundo estado de angústia ele, prostrado sobre seu rosto, orava ao
Pai: “Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice!” (Mt 26.39). Lucas diz que “estando
em agonia, orava mais intensamente. E aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de
sangue caindo sobre a terra” (Lc 22.44). Jesus estava naquele estado de agonia porque
antecipava o sofrimento do Inferno, o qual se consumaria na cruz. Muito mais do que medo
pelo sofrimento físico, Cristo naquele momento passava por um conflito íntimo, pois havia
o “temor muito maior de se tornar tudo o que mais odiava no mais profundo do seu ser” 18,
ou seja, o temor de se tornar um maldito, um condenado do Inferno. Calvino, falando sobre
a necessidade desse sofrimento de Cristo, diz: “Nada teria acontecido se Jesus sofresse
apenas a morte temporal. Pois era necessário que sentisse em sua alma o rigor do castigo de
Deus, para se por sob a sua ira e satisfazer a seu justo juízo. Pelo qual convinha também

16
Berkhof prefere falar que a alma de Jesus ficou num estado passivo e não ativo (Ver Louis
Berkhof. Teologia Sistemática, p. 343).
17
O Catecismo de Heidelberg na resposta da pergunta 37 diz: “Que Cristo, em corpo e alma,
durante toda a sua vida na terra, mas principalmente no final, suportou a ira de Deus contra o
pecado de todo o gênero humano”.
18
Michael Horton. Creio, p. 99.
que combatesse com as forças do Inferno e que lutasse com o horror da morte eterna” 19. A
explicação de Calvino para o fato de a declaração “desceu ao Hades” do Credo Apostólico
ter sido posta após a expressão “foi sepultado” é porque está falando da realidade espiritual
da morte de Cristo. Foi posta após a descrição da morte física “para que saibamos que não
somente o corpo de Jesus Cristo foi entregue como preço por nossa redenção, como que
também pagou outro preço muito maior e mais excelente, que foi padecer e sentir em sua
alma os horrendos tormentos que estão reservados para os condenados e réprobos.” 20
É importante que fique bem claro que na visão reformada Cristo em momento algum foi ao
Inferno, nem para sofrer, nem para fazer algum tipo de proclamação. Ele sofreu os
tormentos do Inferno que precisava sentir para substituir seu povo enquanto esteve
crucificado. Por isso dizermos: “O Inferno veio até a cruz”. Mas é claro que essa é apenas
uma força de expressão. Bavinck diz “de fato, não em um sentido espacial, mas em um
sentido espiritual, ele desceu ao Inferno” 21. Ou seja, ele não precisou sair da cruz para ir até
o Inferno. Sua ida ao Inferno não foi física, mas espiritual.
A passagem bíblica que mais demonstra a razoabilidade dessa idéia é a que relata as
palavras de Jesus quando estava pendurado na cruz. Mateus diz que “desde a hora sexta até
à hora nona, houve trevas sobre toda a terra. Por volta da hora nona, clamou Jesus em alta
voz, dizendo: Eli, Eli, lamá sabactâni? O que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Mt 27.45-46). A Bíblia não diz o que aconteceu durante aquelas três horas
de escuridão que antecederam o grito desesperado do Senhor. Mas certamente ele sofria
angústias indescritíveis. As trevas do Inferno envolveram o Calvário, enquanto Deus fazia
cair sobre Jesus “as nossas iniqüidades” (Is 53.6). Era o momento que ele “estava sendo
feito pecado por nós” (2Co 5.21) e recebia em nosso lugar o pleno “salário do pecado” (Rm
6.23). Como conseqüência, e como real sofrimento do Inferno, Jesus se viu abandonado por
Deus, igual ao Bode Expiatório que recebia sobre si o pecado do povo e então era expulso e
enviado solitário ao deserto (Lv 16.21-22). Contudo não podemos pensar que houve alguma
espécie de separação entre a Primeira e a Segunda Pessoa da Trindade no momento em que
Jesus foi crucificado. Não devemos pensar numa separação definitiva, devemos pensar
numa separação mais em termos de um abandono, ou melhor, um abandono da graça. O
homem Jesus se viu responsabilizado pelos pecados da raça humana, e se sentiu
abandonado por Deus. Naquele momento o filho já não podia ver o olhar terno do pai. Tudo
o que ele via era o olhar de Ira 22. Essa foi a maior punição que o Filho de Deus recebeu.
Essa punição se igualou aos tormentos do Inferno. Pois o Inferno significa separação da
graça de Deus, e abandono perante a ira dele. Nas três horas de trevas daquela sexta-feira, o
Inferno veio até a cruz23. O substituto do homem recebeu sobre si todo o peso da

19
João Calvino. Institutas, (II,16,10).
20
João Calvino. Institutas, (II,16,10).
21
Herman Bavinck. Teologia Sistemática, p. 401.
22
Berkhof enfatiza que ainda assim, o amor do Pai não se retirou do Filho, o que por certo é
verdade (Ver Louis Berkhof. Teologia Sistemática, p. 340).
23
Cabe ainda uma explicação à questão do Credo Apostólico. Ainda que a expressão não se
encontre nas versões mais antigas, ela se encaixa na seqüência das expressões. O Credo faz uma
espécie de seqüência em “V” para demonstrar a trajetória de Cristo. A primeira declaração sobre
Jesus é: “Creio em Jesus Cristo seu único filho, nosso Senhor”. Esta afirmação aponta para a
divindade de Jesus. A próxima para a encarnação, que representa um ponto abaixo: “Que foi
concebido pelo poder do Espírito Santo”. A próxima mais um ponto abaixo: “Nasceu da virgem
Maria”. E continua a descida: “Padeceu sob Pôncio Pilatos”. Desce ainda mais: “Foi crucificado,
condenação divina pelo pecado.

Os Efeitos da expiação

Os efeitos da expiação são imensos, eles não alcançam apenas o povo de Deus, mas
toda a criação. Todas as coisas existentes, de um modo ou de outro, se viram afetadas pela
expiação de Cristo. Ela é sem dúvida, a obra divina mais abrangente.

Em relação a Deus
Podemos dizer que a redenção foi feita totalmente em relação a Deus. Cristo não
pagou resgate a Satanás ou a qualquer outro. Ele estava satisfazendo uma exigência do
próprio Deus. Isso não quer dizer que algo da imutabilidade de Deus foi afetada pela
expiação. Deus simplesmente dirige, sobre a base do sacrifício, seu amor e bondade ao
homem, ao passo que sem o sacrifício, somente a ira seria dirigida ao homem. A expiação
não produz o amor de Deus, como muitos imaginam, a expiação é fruto do amor de Deus.
Porque Deus ama as pessoas é que enviou seu Filho a fim de redimi-las (Jo 3.16). Com
relação a Deus, explicitamente a Escritura diz que a expiação garante que ele seja “justo e
justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26). Somente por causa da morte de
Cristo, Deus pode justificar o pecador e continuar sendo totalmente justo, ou seja, pode usar
seu amor sem ferir sua justiça. A expiação vicária (substitutiva) de Cristo satisfaz
inteiramente o caráter de Deus.

Em relação ao homem
O homem, sem sombra de dúvida, foi o grande beneficiado com a expiação. O
homem que por natureza está “morto em delitos e pecados” (Ef 2.1), que “carece da glória
de Deus” (Rm 3.23), a partir da expiação pode se tornar filho de Deus. Nas palavras de
Pedro: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade
exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas
para a sua maravilhosa luz; vós, sim, que, antes, não éreis povo, mas, agora, sois povo de
Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia” (1Pe
2.9-10). Esse é o status que a expiação de Cristo garante ao povo salvo. Os pecadores,
outrora privados da presença de Deus, agora têm “intrepidez para entrar no Santo dos
Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu,
isto é, pela sua carne” (Hb 10.19-20). Para resumir, a expiação garante aos remidos toda
sorte de bênção espiritual (Ef 1.3). Para aqueles que pensam que a expiação deve garantir a
todos os homens a salvação, a Bíblia é bastante clara ao afirmar que Jesus morreu apenas
pelo seu povo.

Em relação ao diabo
Satanás foi o grande prejudicado com a obra de Cristo. A expiação de Cristo não
pagou um resgate a Satanás, antes o despojou de tudo o que ele tinha. Uma das coisas que
ele perdeu com o sacrifício de Jesus foi seu posto de acusador. Jesus disse de Satanás: “Eu

morto e sepultado”. A próxima expressão representa o ponto mais inferior de todos: “Desceu ao
Hades”. Daí começa a subida: “Ressuscitou ao terceiro dia. Subiu aos céus. Está assentado à direita
de Deus Pai Todo-Poderoso. Donde há de vir para julgar os vivos e os mortos...”. Portanto, a
expressão “Desceu ao Hades” quer indicar o ponto máximo da humilhação de Cristo antes de sua
exaltação. Significa simplesmente: Esteve sob o poder da morte em todos os sentidos.
via Satanás caindo do céu como um relâmpago” (Lc 10.18). Na batalha descrita no
Apocalipse, que simboliza a vitória de Jesus sobre Satanás, é dito dele: “E foi expulso o
grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo,
sim, foi atirado para a terra, e, com ele, os seus anjos. Pois foi expulso o acusador de nossos
irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus” (Ap 12.9-10). Ele
perdeu o lugar de acusador diante de Deus. É sobre isso que o autor aos Hebreus por certo
está falando, quando diz que Jesus derrotou o diabo que detinha o poder da morte (Hb
2.14). Evidentemente que o poder da morte, que é atribuído a Satanás, não é o poder de
tirar a vida de alguém fisicamente, pois somente Deus dispõe deste poder. Somente Deus
estabelece os limites da vida de alguém. O poder da morte que Satanás dispunha era o
poder de exigir a morte diante de Deus para os transgressores da lei. Ao morrer pelos
pecados, Cristo satisfez a justiça de Deus, e Satanás não tem mais o que exigir, e nem o que
acusar. Ninguém pode intentar “acusação contra os eleitos de Deus”, pois, “é Deus quem os
justifica” (Rm 8.33). Eles não podem ser mais condenados, pois Cristo Jesus morreu e
ressuscitou por eles, e estando a direita de Deus, intercede por seu povo (Rm 8.34). O
acusador perdeu o direito de acusar. A expiação não apenas tirou os direitos de Satanás
sobre o homem, como garantiu a própria destruição de Satanás. Na cruz, Jesus esmagou a
cabeça da serpente (Gn 3.15).

Em relação à criação
Todo o universo se beneficia da redenção. A terra que foi posta sob maldição a
partir da entrada do pecado no mundo (Gn 3.17), tem em Cristo a garantia de sua
restauração. Por isso Paulo diz:
A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus. Pois a
criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a
sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da
corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que
toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora (Rm 8.19-22).
A morte de Cristo não foi somente para salvar as pessoas, mas para renovar a
própria terra e tirá-la da maldição do pecado. Literalmente, para fazer uma nova terra,
afinal, ele é o cordeiro que tira o pecado do mundo (cosmos - Jo 1.29).
Por mais estranho que possa parecer a princípio, de alguma maneira, o próprio céu
também se beneficia da redenção. Estamos falando aqui de algumas coisas que não
entendemos ao todo. Mas o autor aos Hebreus diz: “Era necessário, portanto, que as figuras
das coisas que se acham nos céus se purificassem com tais sacrifícios, mas as próprias
coisas celestiais, com sacrifícios a eles superiores. Porque Cristo não entrou em santuário
feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para comparecer, agora, por
nós, diante de Deus” (Hb 9.23-24). De alguma forma o pecado que entrou no mundo, e que
se originou primeiramente no Diabo e depois em Adão, tornou necessária a purificação do
tabernáculo celestial (Ex 25.40). Esse lugar celestial precisava ser purificado e Jesus fez
isso com seu sangue. Não sabemos exatamente que tipo de impureza adentrou o céu, mas
sabemos que Satanás estava lá, e foi expulso por causa da morte, ressurreição e ascensão de
Jesus. Pode ser que Paulo tenha isso em mente quando diz: “E que, havendo feito a paz
pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer
sobre a terra, quer nos céus” (Cl 1.20). O texto está dizendo que Cristo através de seu
sangue reconciliou não somente coisas na terra, mas também no céu. Talvez seja essa uma
das razões porque a Bíblia diz que haverá não só uma nova terra, mas também “novos
céus” (Is 66.22; 2Pe 3.13; Ap 21.1). Tudo o que o pecado influenciou terá que ser
renovado.

Conclusão

O fato de os homens estarem acostumados com o pecado não o torna menos trágico.
Diante de Deus, o pecado é inaceitável porque fere sua santidade infinita. Por esta razão,
Cristo teve que ser nosso substituto. Há muita pregação do Evangelho nos nossos dias que
não enfatiza o caráter substitutivo da morte de Jesus. Isso é um grave erro. As pessoas
precisam entender a realidade e a gravidade de seu pecado, bem como o custo da redenção
que foi a morte substitutiva de Cristo. Uma coisa precisa ficar bem clara: “Onde não há
expiação não há Evangelho” 24. O Evangelho sem cruz pode ser agradável aos homens, mas
em hipótese alguma agrada a Deus.

24
James Denney. The Death of Christ, p. 157.

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