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acusado foi, porém, o magistério do siciliano Cataldo Sículo, que a convite de D. João
II veio para Portugal por volta de 1485 e aqui morreu depois de 1516. Entre os seus
discípulos — nos quais se contaram D. Jorge, filho bastardo do rei, e o herdeiro, D.
Afonso — destacou-se, pela precocidade, o fidalgo D. Pedro de Meneses. A oração de
sapiência que este jovem de 17 anos recitou em 1504 perante o Estudo Geral
(Universidade) de Lisboa, e em cuja redação não teria sido alheia a mão do mestre
que em 1500 dera à estampa um volume de Epistolae et orationes, atesta um apuro
notável no cânone latino e um conhecimento aturado das fontes clássicas (Sículo,
1988). Tanto que Cataldo Sículo já tem sido apontado como «introdutor» do
humanismo em Portugal. Importa, todavia, não identificar latinidade com
humanismo. Se é certo que a oração em causa se vaza num latim elegante e
contrastante com o tradicional barbarismo e corrupção no uso do idioma clássico,
não é menos verdade que a forma eloquente reveste um pensamento que permanece
íntegro na moldura medieval e do qual estão ausentes a problemática e a metódica
humanísticas.
Na visão do orador, com efeito, não existe outra cultura senão a que se ordena
segundo os esquemas e objetivos da dogmática e da apologética religiosas. De acordo
com o sistema de saberes que explana, a ciência «rainha de todas as rainhas»
(Meneses, 1964, p. 77) era, evidentemente, a teologia, secundada, enquanto
«companheira e irmã», pela filosofia (ibid., p. 83). Após elas, um séquito de três
«damas de companhia e auxiliares» (ibid., p. 87): os dois direitos — cuja subtil
distinção reside em ser o civil «santíssimo» e o canónico «divino» (ibid., pp. 89-95) —
e a medicina. E mesmo esta preocupa-se menos com a condição terrena da existência
humana do que com as almas, que, quando deveriam estar mais aplicadas ao seu
criador, «não podem exercer as suas operações em corpos enfermos» (ibid., p. 95).
Quanto às artes, e depois de passar em revista as disciplinas do trívio e do quadrívio
escolásticos, refere-se em último lugar à gramática, «precisamente por entender que
ela é, na realidade e na prática, a primeira entre todas as artes» (ibid., p. 107). A
precedência, contudo, está nos antípodas da primazia humanística conferida à
gramática como um saber autónomo e formativo, base de uma metodologia crítica e
positiva de acesso aos textos; para D. Pedro de Meneses, ela é a primeira tão-somente
porque, na escala pedagógica, se comporta como meio de iniciação nos estudos: é
uma arte «que se aprende na infância» e que serve para não errar «falando ou
escrevendo» (ibid., pp. 107-109).
Era esta, aliás, a conceção que vigorava no Estudo Geral lisboeta e que os estatutos
manuelinos, outorgados pela mesma data da oração de Meneses, mantiveram
praticamente incólume. A gramática latina continuou funcionalmente enquadrada
num nível de ensino elementar ou «trivial», uma espécie de ciclo vestibular dos
preparatórios para o acesso às faculdades maiores, e ministrada por mestres que
nem faziam parte da corporação universitária, embora estivessem debaixo da sua
alçada pedagógica (Dias, 1969, pp. 424-444 e 852-853; Carvalho, 1986, pp. 135-142).
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Acresce que a didática do latim se regia pelo compêndio do espanhol Juan Pastrana, a
Gramatica Pastrane, saída pela primeira vez entre nós em 1497, sucessivamente
reeditada na quinzena seguinte, e mesmo para além dela divulgado por
comentadores como Pedro Rombo, cujo magistério pontificou ao longo dos três
primeiros decénios do século XVI.
Ora, para desarreigar de toda a Espanha os «Pastranas e demais falsificadores»
(Quilis, 1989, p. 15), outro espanhol, Antonio de Nebrija, dera aos prelos de
Salamanca — ele que foi também o introdutor da imprensa neste centro intelectual
da Península —, no ano de 1481, as suas Introductiones latinae, que prontamente
trasladou para castelhano. Nesta obra, que marcou uma época na história do
humanismo ibérico, o «Nebrissensis», na esteira de Lorenzo Valia, denunciava o
jargão incompreensível e artificioso utilizado nas disquisições escolásticas. Assim se
chegou, acusava o gramática renascentista, a que faltasse «o conhecimento da língua
em que não somente está fundada a nossa religião e a república cristã, mas também o
direito civil e canónico, pelo qual os homens vivem igualmente neste grande
ajuntamento que chamamos cidade; a medicina, pela qual se mantém a nossa saúde e
vida; o conhecimento de todas as artes chamadas de “humanidades”, porque são
próprias do homem enquanto homem [...] as artes dignas de todo o homem livre» (ibid.,
p. 13). A degradação dos estudos bíblicos e teológicos, do direito, da medicina, das
artes liberais — as mais «próprias do homem enquanto homem» — era, pois, efeito
da ignorância do bom latim, pelo que a restituição deste à sua prístina pureza volvia-
se requisito iniludível para uma rigorosa depuração das restantes disciplinas.
Ao proclamar a gramática como chave para a reforma cultural e moral do
homem e, através dele, de toda uma sociedade submergida na barbárie, o programa
de Nebrija rompia com o classicismo medievalizado e incorporava no clássico o
ideário do humanismo. As letras profanas deixavam de valer apenas enquanto
fatores auxiliares e ornamentais das matérias religiosas, para se constituírem em
base de todo o saber. Ganhavam assim um estatuto autónomo em face da teologia
e um valor social correspondente aos interesses e tarefas do homem no Mundo.
Núcleo da reconversão humanística da ideia de cultura, a didática do latim
atravessou o período manuelino refratária ao influxo renovador de Nebrija. O
tentame de Estêvão Cavaleiro, que em 1516 produziu uma Nova gramatices ars
acorde com o método moderno, não logrou aceitação nas escolas menores, muito
menos desalojar delas o sistema arcaico de Pastrana. Existiam, contudo, partidários
de um e outro estilo; tanto que, em 1525, o conselho universitário deliberou dar
Nebrija a quem quisesse Nebrija e Pastrana a quem quisesse Pastrana, contanto que
sem mistura — ambos eram, de facto, inconciliáveis. A decisão salomónica, se revela
alguma abertura, manifesta, outrossim, que as humanidades ainda não tinham
conquistado, já nas primícias do reinado de D. João III, a dignidade e o prestígio de
disciplinas estruturantes do saber coevo. Foi assim que, «mesmo quando o compêndio
de Nebrija transpôs os umbrais da universidade, já na terceira década de Quinhentos,
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emblematicamente reiterado nos dois versos com que um vate do Cancioneiro Geral
(publicado em 1516) abre uma poesia dedicada a Vasco da Gama: o almirante «achou
novo mundo,/nova terra e novo clima» (Cancioneiro, 1910-1917, vol. III, p. 211).
Do que viu no novo mundo descoberto por Cabral deu Pêro Vaz de Caminha conta ao
rei D. Manuel na admirável carta que datou do primeiro dia de Maio de 1500. Simples
escrivão da armada, é pela singela «linguagem dos olhos», sem adereços verbais de
gabinete, que ele apreende e traduz as imagens insuspeitadas que o deslumbraram; o
verbo «ver», em catadupa anafórica, comanda a descrição, toda ela visualista e
animada de movimento e cor, da paisagem, da fauna e da flora exóticas — sobretudo
dos homens, que retrata num frémito de ecuménica fraternidade: «E dali houvemos
vista d’homens, que andavam pela praia [...] A feição deles é serem pardos, maneira
d’avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma
cobertura, nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão
acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto» (Caminha, 1974, pp.
34-38).
Melhor, pois, do que na oratória dos diplomatas ou nos panegíricos dos poetas
áulicos, o sentimento da novidade e da mudança assume uma vívida intensidade nas
relações manuscritas elaboradas pelos próprios protagonistas da aventura: os
roteiristas e pilotos, os homens do mar. Uma das mais plenas e puras imagens desse
novo tipo de homem que navega e escreve sobre mares e terras ignotos, depara-se
em Duarte Pacheco Pereira, um marinheiro nascido no terceiro quartel do século XV.
Desde 1508 até talvez 1520 (morreu em 1533), trabalhou na redação de um tratado
de marinharia e cosmografia a que deu o título (hoje algo enigmático) de Esmeraldo
de situ orbis e em que compendiou a sua experiência de navegante e técnico de
navegação. «Experiência», aliás, é palavra que amiúde lhe vem ao bico da pena. Mas
não se queira extrair da recorrência de máximas como «a experiência que é madre das
cousas, nos desengana e de toda a dúvida nos tira» (Pereira, 1988a, p. 20) qualquer
precocidade nos processos da metodologia experimentalista. O advento do moderno
espírito científico teria ainda de dobrar as tormentas de invalidação da epistemologia
escolástica, livresca e comentarística.
É esse giro de mentalidade, signo da passagem da conceção estática para a conceção
dinâmica da inteligência humana, que palpita no apelo de Duarte Pacheco a uma
experiência que, além de empírica, é sobretudo pessoal. «E assim seguiremos nosso
propósito nesta tão trabalhosa jornada da qual a experiência nos ensinou a verdade de
tudo o que adiante dissermos» (ibid., p. 205), enuncia ele. Não estava
desacompanhado no recurso ao «ver» e ao «praticar» como formas de captação da
realidade. Um seu contemporâneo, Tomé Pires, boticário enviado para a Índia como
«feitor das drogarias», de lá remeteu ao rei uma Suma Oriental, escrita pelos anos de
1512 a 1515, que é uma minuciosa e precisa descrição das terras e gentes asiáticas.
Logo no prólogo do manuscrito atesta a fonte em que recolheu os informes
históricos, geográficos, etnográficos e económicos que preenchem o seu relatório:
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feitor nas ilhas de Maluco, que Barros considera que «nenhuma linguagem podia
convir mais a vós e a mim que a que tratasse de mercadoria, feita em colóquios, por ser
tempo deles» (ibid., p. 5).
Com efeito, o cariz francamente inovador da obra ressalta desde logo da correlação
da mentalidade mercantilista que impregnara as relações humanas e que leva um
interlocutor a sustentar que «coisa alguma há no mundo fora da mercadoria [...] todas
as qualidades de homens, quer sejam eclesiásticos, quer seculares, com quantas
dignidades, estados e ofícios houver entre eles, nenhum vive sem comprar e vender»
(ibid., p. 45); e da estrutura dialógica, registando uma amena conversação, que, ao
invés do que sucedia nas disputas escolásticas, não se processa por diatribes em
forma de silogismos nem conclui pelo triunfo explícito de qualquer dos postulantes.
João de Barros, ao jeito do simbolismo medieval de ressaibos vicentinos, coloca em
cena quatro entidades alegóricas que define assim: «A Vontade e o Entendimento, que
são as principais partes da alma, deixando a Razão, sua superior, ajuntaram-se com o
Tempo e fizeram-se mercadores de espirituais mercadorias, que são os vícios que estas
duas potências aceitam e compram quando desobedecem à Razão [...] Vão as três
pessoas que disse seu caminho enquanto dura a vida e, à hora da morte (que é a ponte
por onde todos os mortais passam do reino deste mundo para o outro), acham a Razão
[...] pelo juízo da qual são, nesta vida, julgadas todas as mercadorias e empregos que
cada um nela fez» (ibid., pp. 7-8). Não é, bem entendido, a razão natural ou
secularizada (muito menos, claro, a posterior razão cartesiana) aquela que tem por
missão examinar os vícios mundanos «segundo as leis e preceitos que lhe foram dados
pelo Senhor» (ibid., p. 12): trata-se da razão católica — que, ainda assim, não deixa de
ser razão e de argumentar «racionalmente», se por este termo entendermos
disposição para convencer pela persuasão e não para impor juízos dogmáticos
(também não é, portanto, a razão abstrata e dialética da escolástica).
Mais do que atacar, a Razão defende-se. E é aqui, quando se entrega à apologia dos
valores éticos e espirituais da mensagem evangélica, que a marca da influência
erasmiana mais sobressai. Longe de fulminar com anátemas os heréticos
contrabandistas, a Razão dispõe-se tolerantemente a ouvi-los, estabelece com eles
uma relação de reciprocidade e assina-lhes mesmo os respetivos papéis: como «a
maior parte deste negócio é da Vontade, ela apresente suas mercadorias, diga as
bondades que lhe acha e eu responderei. O Entendimento nas coisas em que tiver dúvida
pode perguntar e algumas mover segundo o que disso sente. Tu [Tempo], como padre
em quem está a experiência do passado e do presente, peço-te que aproves o justo, e
reproves o contrário» (ibid., p. 19).
Decorre desta abertura à explanação de diversos pontos de vista uma ambiguidade
que não cessa de se acentuar ao longo do debate e convida, por isso à sugestão de
múltiplas leituras. Recorrendo a uma ironia que por vezes raia a sátira, segundo o
processo erasmiano de condenar através do elogio — «louvando eles a si mesmos,
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repreendem por ela [pela Razão]» (ibid., p. 9) —, as três personificações dos vícios
mundanos vão trazendo à cotação a inanidade do saber escolástico e seus cultores
(geógrafos, astrólogos, médicos, legistas, etc.) (ibid., pp. 41-48), a teologia disputativa
e a arenga ininteligível dos pregadores (ibid., pp. 49-50), a hipocrisia cortesã e a
corrupção clerical (ibid., pp. 51 e segs.), a adulteração monástica da doutrina cristã e
a falsa devoção santeira (ibid., pp. 94-96), o belicismo e a prosápia linhagística da
nobreza (ibid., pp. 141-142)...
O carácter não sistematizado das críticas — para muitas das quais a Razão não
encontra resposta, tacitamente as aprovando, e chega a confessar ao Tempo:
«verdade é que entre tuas palavras, vão muitas proveitosas e justas» (ibid., p. 130) —,
bem como a linguagem figurada em que se cifram, não favorecem a sua ilustração
com enunciados do texto. Sirva aqui de amostragem esta eloquente fala que a
Vontade dirige à Razão: «E quero-te descobrir alguns segredos desta nossa negociação,
por saberes quanto mais proveitosos são os meus que os teus preceitos, e tão estimados
de todos que a maior parte dos príncipes eclesiásticos e seculares mais se governa por
eles que por os artigos da fé que têm. E sabes a causa? Por verem que o estado está no
poder, e o poder no dinheiro, e o dinheiro no trato, e o trato na cobiça, que é uma
perenal fonte donde todos os bens manam» (ibid., p. 68).
Finalmente, antes de o colóquio se suspender por intervenção do Tempo e para
permitir aos seus dois companheiros uma mais ponderada meditação dos conselhos
da Razão (o que dá à Ropicapnefma um imprevisto carácter de «Obra aberta»), esta
última exorta os interlocutores a renovarem-se em espírito, a confiarem na imensa
misericórdia de Deus e a fazerem da mensagem evangélica um ideal de vida; e,
entremeando no seu discurso edificante citações tanto dos Santos Padres como dos
moralistas pagãos, remata enfatizando a conceção espiritualista, personalista e
laicista do cristianismo: «Porque a deleitação da boa e pura consciência é um terreal
paraíso, semelhança do celestial que esperamos» (ibid., p. 150).
A filiação erasmiana deste e de outros tópicos (cf. a análise exaustiva de Dias, 1969,
pp. 257-279) não impediu que o livro saísse em 1532 dos prelos do impressor
francês Germão Galharde. Bem advertira, in limine, o autor, para se precaver de
interpretações malévolas, que «a maior parte desta obra que vai em metáfora, e que as
coisas que a Vontade, Entendimento e Tempo arguem contra a Razão são as que
qualquer infiel e pecador pode arguir, e, com esta condição, sem lhe dar outro crédito,
as receba [o leitor]. Esta é a principal coisa que encomendo e peço àqueles que tanto
não alcançam» (Barros, vol. n, 1983, p. 7). Tanto, de facto, não alcançaram os
censores que em 1581 (João de Barros morrera em 1570), quando a ordem
ideológica contra-reformista dominava cultural e politicamente e não deixava já
margem sequer para as expressões moderadas do erasmismo, puseram a
Ropicapnefma no Index.
Texto de vincada originalidade no domínio ermo da reflexão ético-filosófica em
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Portugal, para além do valor intrínseco da obra merece que se gaste nela quem
pretenda inteligir as linhas de força mentais do reinado joanino. O valimento de
Barros junto de D. João III, de quem foi amigo, panegirista e historiador oficial, e os
altos cargos que continuou a desempenhar até muito depois de publicada a Ropica,
nomeadamente os de feitor das Casas de Guiné e da Índia, inculcam a permeabilidade
da corte, no raiar do decénio de 30, ao humanismo cristão.
Os próceres europeus deste movimento de ideias merecem-lhe, aliás, um interesse
que excedeu a mera amabilidade: o chefe espiritual de todos eles, Erasmo, chegou a
dedicar a D. João III as suas Chrysostomi lucubrationes, de 1527, e o monarca
português, a crer no testemunho de Damião de Góis, cogitou convidá-lo para a
Universidade de Coimbra; e Luis Vives, o erudito espanhol que gozava da estima de
João de Barros, também ofereceu ao rei o seu De disciplinis, impresso em Antuérpia
em 1531, livro que «é, ao mesmo tempo, a crítica mais sistemática da cultura
universitária preexistente e o manifesto mais completo do humanismo no campo
pedagógico, até ali publicado» (Dias, 1969, p. 582; Cf. também p. 866) — e a cuja
influência não teria sido estranha a mudança da Universidade para Coimbra.
Outro forte motivo justifica ainda a atenção dedicada a João de Barros. Consiste em
o futuro historiógrafo da Ásia, nascido cerca de 1496, ser o «decano» da geração de
Quinhentos, geração decisiva, que marca na cultura portuguesa um ponto de
inflexão e o começo de uma etapa nova.
Com efeito, com o século (mais exatamente no triénio 1500-1502), vêm ao mundo
André de Resende, D. João de Castro, Garcia de Orta, Pedro Nunes, Damião de Góis,
André de Gouveia (este em data incerta, mas chegada) — e o próprio D. João III. Estes
homens, todos coetâneos, irromperam (afora o rei, que sucedeu no trono em 1521)
na história pelos anos 30, depois de uma fase de gestação mental determinada pelas
transformações oriundas dos descobrimentos marítimos e do humanismo europeu. A
Ropicapnefma assinala, precisamente, o advento do período efetivo e produtivo
dessa plêiade de humanistas. As trajetórias díspares que cada um deles seguiu e a
desigual fortuna do seu labor não invalidam a objetiva unidade de propósitos que
conferiu afinidade aos integrantes do compósito grupo. Foram eles que
(excetuando o caso específico de Garcia de Orta, que se expatriou exatamente quando
os restantes se afirmavam), na «idade ativa» da geração, que decorre até aos meados
do século, agenciaram a modernização da cultura portuguesa.
Damião de Gois
Não foi decerto por acaso que, corria o ano de 1533, D. João III tributou um generoso
acolhimento a André de Resende e a Damião de Góis, então regressados de longas
digressões no estrangeiro. O segundo pouco se demorou; havia uma década que,
secretário da feitoria da Flandres, no desempenho de missões comerciais e
diplomáticas viajava por Inglaterra, França e Países Bálticos; numa dessas
deslocações, a curiosidade de conhecer Lutero e Melanchton levou-o a Wittenberg, e
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pessoalmente o mestre, mas, após ter sido iniciado na gramática latina pelo
malogrado propugnador da «arte nova», Estêvão Cavaleiro (Resende, 1956, p. 55),
ouvira Nebrija nas Universidades de Alcalá de Henares e de Salamanca; depois tomou
o caminho dos Países Baixos, entremeando a frequência de Lovaina com surtidas a
Paris. Das amizades que aí travou nos círculos do humanismo cristão resultou a
primeira incumbência que o rei lhe cometeu: deslocou-se a Salamanca e trouxe o
flamengo Nicolau Clenardo para preceptor do infante D. Henrique, futuro cardeal e
então, à idade de 21 anos, arcebispo de Braga.
Sucedeu isto nos finais de 1533, e a Oratio pro rostris foi pronunciada no dia 1 de
Outubro de 1534. Trinta anos exatos separam a oração de sapiência de André de
Resende daquela sua congénere de D. Pedro de Meneses, atrás referida. De uma à
outra vai a distância do classicismo, ainda metido na moldura do medievalismo, ao
humanismo doutrinário e polémico, em declarada rutura com o passado medieval —
o remoto e o recente. Não sofrem dúvidas os termos em que o orador increpa o
primeiro: «Para quê lamentarmos mais que a ruína mortal da elegância grega e latina,
que remonta há mais de mil anos, à invasão dos Godos, da qual se seguiu uma
desmedida ignorância, até nas outras artes? Oh! Tenebrosos tempos, que não
recordamos sem ofensa dos nossos maiores, e dor dos nossos corações; que não
esquecemos sem suma vergonha; de que não nos enojamos e lamentamos sem vergonha
ainda maior!» (ibid., p. 37); e o segundo; «A vossa fé, doutíssimos senhores, sobre quem
impende o cuidado de instruir a juventude, a vossa fé, digo, peço e imploro, para que
não sofrais que engenhos, aliás bons, continuem mais tempo envoltos em mísero e
nebuloso erro, mormente agora que, por onde quer que se estende, quase toda a Europa
renasce, agora que todas as terras, até as outrora mais bárbaras, aspiram à antiga
felicidade do século mais culto |...] No entanto, estas nações [cultas da Europa] vencem-
nos, não pelo engenho, não pela felicidade de um clima mais favorável, mas somente, e
com vantagens, pelo cuidado e paciência dos estudos. Por isso, nelas, todos os dias
aparecem homens doutos, que com os monumentos do seu engenho alcançam renome
para si, e imortalidade para a pátria. Quando lemos os seus escritos, em boa verdade
devíamos envergonhar-nos da nossa barbárie e do nosso desleixo» (ibid., pp. 37-39).
Há a consciência histórica de viver uma nova idade e uma valoração positiva do
presente; a Europa emerge do caliginoso e ominoso milénio gótico, a Europa
«renasce» — resipiscit, no latim original (ibid., p. 38). E esta visão das diferenças
qualitativas entre tempos históricos distintos, mas referidos ao mesmo espaço
unitário europeu, dobra-se de uma comparação sincrónica operada sobre a bitola dos
valores humanistas. Quem, como André de Resende, estanciara longos anos no
estrangeiro, em contacto — e, logo, em necessário confronto — com outras
realidades culturais, podia medir com objetividade o diferencial de níveis entre a
restante Europa — «não já da própria Itália, da Alemanha, que no presente disputa a
palma das letras à Itália, e finalmente, da Sarmácia, outrora a mais bárbara das
terras» (ibid., p. 39) — e Portugal. Julgamos que ninguém, antes de Resende,
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formulou com tamanha pertinência crítica um juízo relativo sobre o atraso da cultura
portuguesa e equacionou a sua superação pela integração no ritmo europeu do
movimento humanista.
O programa pedagógico de André de Resende desenvolve-se a partir do tópico, que se
depara num trecho de Nebrija, do elogio do estudo das letras, «que, por ser o mais
digno de um homem livre, já outrora, com propriedade reivindicava o título de liberal»
(ibid., p. 33). A promoção das letras é também a de um tipo social novo, o homem
educado, que, mesmo sendo plebeu, se nobilita pelo saber, ao passo que a ignorância
degrada o tipo social arcaico, o homem de armas, «embora glorioso pela linhagem,
pelos costumes e pelos feitos» (ibid., p. 33).
A formação intelectual prevalece, pois, sobre o privilégio de nascimento, a
humanitas sobre a nobilitas. Comparando a dignidade dos estudos com as outras
ocupações humanas, o orador invoca «o pai da filosofia e da eloquência latinas»,
Cícero, que «considerou o fazer guerras mais próximo das feras que dos homens»; ao
invés, «o estudo das letras tem labores dulcíssimos, frutos mais doces, cuidados de alma
recreativos, e, devido à indagação da verdade ou perspiciência, uma propriedade muito
semelhante à divindade» (ibid., p. 35). E começa, invertendo a ordem dos fatores
elencados na oração de D. Pedro de Meneses, por falar da gramática — entendida,
explica ele, no sentido moderno de filologia; dedica uns estirados períodos a verberar
o menosprezo a que era votada nas escolas, após o que adverte: «Não deve, pois, ser
tratada superficialmente esta arte, raiz de todas as mais, que vagueia engenhosamente
por entre todas as outras, à semelhança da graciosa abelha do Himeto, que, errando
pelos agros verdejantes, pasce ora estas, ora aquelas flores» (ibid., p. 37) — imagem
retirada de Erasmo, que queria que os escritores fossem coMo abelhas que fabricam
o seu mel com os néctares de variadas flores.
Nenhuma das disciplinas do currículo sai indemne do articulado exercício crítico a
que André de Resende se aplica. À dialética e retórica disputativa e sofística opõe a
busca da verdade e o efeito da persuasão (ibid., pp. 41-43): na medicina, postula,
contra a incúria e inaptidão dos médicos, a incindível unidade das partes dietética,
farmacêutica e cirúrgica (ibid., pp. 45-47); para o cabal conhecimento das leis civis e
pontifícias, exige a prévia assimilação da ética natural e divina, coisa que, ao
contrário do que era norma, não se aprende em poucos meses (ibid., pp. 47-49); de
propósito, deixa para o final a teologia. Ouçamo-lo neste ponto: «A tal nível chegámos,
que, abandonado o extensíssimo campo das Escrituras, abandonado o brilho e a
elegância da expressão, que os Antigos sempre juntaram à piedade, perseguindo meras
subtilezas, obrigamos a teologia, rainha de todas as disciplinas, a servir a metafísica»
(ibid., p. 51). Convertida, pelas rivalidades e agudezas das seitas, numa gíria
escolástica, a teologia precisa revigorar-se pelo regresso às fontes — às Escrituras e
aos Padres da Igreja; e muito particularmente, sublinha, pelo consórcio dos clássicos
cristãos com os clássicos pagãos: «Soframos que entre as divinas letras se misturem
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resistência dos lentes, que intentaram obstar a que a corporação saísse de Lisboa e
acabaram quase todos por se ficar na capital, teve de se improvisar um corpo docente
e aliciar, com salários principescos, mestres estrangeiros, como o renomado
canonista Martin de Azpilcueta (o «Doutor Navarro») e os teólogos Martinho de
Ledesma e Alfonso do Prado, provenientes das universidades espanholas de
Salamanca e Alcalá. Precárias tiveram também de ser as instalações para alojamento
dos estudantes e utilização de aulas. Na falta de edifícios adequados, acolheram-se na
maior parte ao Mosteiro de Santa Cruz e seus anexos e à residência do próprio reitor.
Escassos foram, nestas circunstâncias, os progressos registados na fase de transição,
que se prolongou até 1543, data em que Diogo de Murça assumiu o reitorado. Até aí,
o agente executivo e homem de confiança de D. João III fora Brás de Barros. Tanto
Barros como Murça eram monges jerónimos, e, regressados respetivamente em 1525
e 1533 de longos estágios em Paris e Lovaina, transportaram consigo luzes do
movimento erasmiano. Dedicaram-se, contando com as boas graças da corte, a
promover na congregação a que pertenciam a reforma espiritual e intelectual do
monacato. Frei Brás, apoiado pelo rei, fez construir nas cercanias do velho Mosteiro
de Santa Cruz quatro estabelecimentos (dois reservados às funções docentes, outros
tantos para residência de escolares) abertos à frequência de leigos. D. João III
aproveitou-os para neles instalar várias acuidades da universidade restaurada, e este
expediente, se obviava aos apertos financeiros do Estado, revelou-se em
contrapartida inviável pela confusão que proporcionava entre os níveis de ensino
preparatório e superior — que, afinal, se queriam separados e que, no entanto,
funcionavam debaixo do mesmo tecto, sob a dupla e conflitual autoridade do prior de
Santa Cruz e do reitor da universidade.
Coube a Frei Diogo de Murça (que cumpre incluir também na geração de
Quinhentos), para o efeito chamado do seu mosteiro de Santa Marinha da Costa
(Guimarães), onde depois de uma curta estada no de Penha Longa (Sintra) mantinha
um instituto de artes e humanidades, consumar a separação e desvincular
definitivamente a academia conimbricense da tutela monástica. Em 1544,
coincidindo com a outorga dos estatutos que revogaram os manuelinos, todas as
faculdades se reuniram nos paços reais, o doravante designado Paço das Escolas.
A reforma cobrava fôlego, mas subsistia o problema da institucionalização dos
estudos preparatórios a margem da universidade. Os colégios estabelecidos por Frei
Brás de Barros, que vinham funcionando desde 1535, constituíram um primeiro
ensaio nesse sentido; revelaram-se todavia pouco eficazes, mau grado a positiva
substituição da cediça orgânica escolástica do trívio e quadrívio por um currículo de
pendor humanístico em que destacavam as três línguas eruditas (Latim, Grego e
Hebraico), servidas por uns poucos regentes categorizados, entre os quais o francês
ou alemão Vicente Fabrício e o espanhol Juan Fernández. Estava há muito nos planos
de D. João III a chamada a Coimbra dos bolseiros no estrangeiro; era ao mesmo
tempo uma forma de rentabilizar o investimento efetuado e de suprir as dificuldades
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reformista.
Originalidade e marginalidade do humanismo dos Descobrimentos
Chamamos humanismo dos Descobrimentos ao movimento de ideias acionado pelas
navegações que abriram aos povos ibéricos a extensa redondez do orbe terrestre. A
mentalidade e os consequentes dinamismos culturais que elas suscitaram nos
intelectuais ligados ao mar não teve correspondência inteira com o impacte na
inteligência livresca e comentarística em vigor na cultura portuguesa. Nos homens de
letras, situados na retaguarda da ação, primou a visão épica e a exaltação mítica, o
entusiasmo «patriótico» e a retórica laudatória. E sem que o espírito de gesta e
cruzada religiosa deixasse de estar presente nos viajantes e exploradores — tamanho
foi o influxo desse complexo ideológico na conformação da mente nacional (Dias,
1982. pp. 13-52), estes homens práticos estabeleceram com o mundo alargado que se
lhes tornara explícito uma relação organizada mais na base das inéditas vivências
que experimentavam do que no império do livro e seu saber codificado. Recordemos
que, num Duarte Pacheco Pereira ou num Tomé Pires, foi o sentido da vista e o
deslumbramento do visto a despertar o ceticismo perante a tradição cultural e
científica.
Esse ceticismo acentuou-se, e converteu-se mesmo em criticismo larvar, naqueles
poucos humanistas da geração de Quinhentos que se interessaram pela Natureza,
observando-a e interrogando-a, tratando de conhecê-la e dominá-la, potenciando o
surto de um saber técnico e positivo e, acima de tudo, propulsionando a consciência
humanista no sentido do indivíduo pleno, autónomo, confiante na própria capacidade
criadora e conquistadora. Este humanismo dos Descobrimentos não repousa
contemplativamente em verdades estáveis e fixas, legadas pela Antiguidade; é
um humanismo que, apelando à razão e à experiência, aspira a alcançar a posse
empírica do Cosmos; é «essencialmente um descobrimento conexo ao descobrimento
do mundo, uma invenção do ser humano no espaço novamente inventado» (Godinho,
1990, p. 148).
Daí a sua vincada originalidade; e daí, também, a marginalidade, no contexto das
estruturas mentais da época, da sua primordial vertente técnico-naturalista.
O esforço de renovação cultural levado a efeito no vinténio 1530-1550 processou-se
no âmbito quase exclusivo do movimento europeu do erasmismo e das suas
incidências ideológicas nas letras e na espiritualidade, ambas solidárias e ambas
acolhidas na pedagogia humanística que inspirou o modelo do Colégio das Artes. Tal
modelo, contudo, acentuando a erudição livresca e os métodos literários, a
religiosidade e as suas manifestações espirituais, se depurou os textos clássicos das
adulterações escolásticas e recuperou outros olvidados ou desconhecidos, não
operou, em relação a essa mesma escolástica, qualquer mutação epistemológica.
Renovação não era necessariamente inovação. O abstrato saber dos textos
prevalecia e ofuscava o conhecimento concreto da realidade físico-natural e
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dos seus fenómenos. De lado, à margem, em todo o caso fora dos interesses e da
problemática dominantes, ficaram as atividades práticas ligadas à expansão marítima
— e todo o copioso acervo de novidades geográficas, etnográficas, zoo botânicas e
outras tão diferentes do que era norma em Portugal.
O plano de estudos do Colégio das Artes, centrado nas «humanidades», ao entrar no
ciclo «filosófico» sacrificava «drasticamente a física em prol da ética e da metafísica», o
que era «a sequência geral do humanismo» (Dias, 1969, p. 555) — do humanismo
literário dos «bordaleses», sequazes de uma orientação mental que descurava prática
e teoricamente a observação da Natureza. «O aluno, depois de receber através das
humanidades uma disciplina de espírito no sentido da exposição retórica e da visão
ética, recebia uma outra, através da filosofia, no sentido da análise dialética e do
procedimento abstrato do pensamento, adquirindo, desse modo, um complexo de
aptidões que o tomavam idóneo para discernir o conteúdo moral dos acontecimentos e
se mover no meio das ideias gerais» (ibid., p. 552; cf. Brandão, 1924-1933, vol. I, p.
412). A pretensão de reforma espiritual que estava na base da pedagogia
erasmiana levou a um desinteresse pelo mundo físico, separando-o do
especificamente humano, que eram as letras.
Pedro Nunes
Também o ensino superior se manifestou arredio, quando não indiferente, à explosão
de vitalidade empírica que dimanava dos Descobrimentos. Uma única exceção é
comummente assinalada para este período: Pedro Nunes. Este médico e
cosmógrafo de ascendência judaica ingressou na universidade em 1530, ainda ela se
encontrava em Lisboa, para reger sucessivamente Filosofia Moral, Lógica e Metafísica
— matérias que estavam longe da sua especialidade e da sua vocação. Aí teve por
colega a Garcia de Orta, outro médico cristão-novo, o qual, depois de vários concursos
frustrados, obteve pela mesma data a cadeira de Filosofia Natural. Nada se sabe
acerca da sua efémera docência nessa disciplina; de qualquer modo, Garcia de Orta
embarcou para a Índia em Março de 1534, impelido talvez tanto pelo temor das
crescentes perseguições «antijudaicas» como pela insatisfação sobre a indigência do
estudo lisboeta. E Pedro Nunes, que só em 1544 passou a Coimbra para lecionar
Matemática, então introduzida pelos novos estatutos na Faculdade de Medicina,
realizou o principal do seu labor científico entre 1537 e 1546, portanto à margem da
universidade.
A obra de Pedro Nunes insere-se em grande parte no veio aberto na geração anterior
por Duarte Pacheco Pereira. A atitude de emulação e de superioridade sobre os
antigos, tão distinta do pendor imitativo e reverencial do humanismo das letras, bem
como a consciência de avanço que detetámos expressivamente no marinheiro
manuelino, ressoam também nesta vulgarizada página do cosmógrafo-mor de D. João
III: «Não há dúvida que as navegações deste Reino de cem anos a esta parte são as
maiores, de mais altas e discretas conjeturas que as de nenhuma outra gente do mundo.
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Os portugueses ousaram acometer o grande mar oceano. Entraram por ele sem receio.
Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares e, o que mais é, novo céu e novas
estrelas [...] Tiraram-nos muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior que o
mar, e haver aí antípodas, do que até os santos duvidaram, e que não há região que nem
por quente nem por fria se deixe de habitar» (Nunes, 1940-1960, vol. I, pp. 175-176).
Porém, as altas e discretas conjeturas de que fala Pedro Nunes «não foram muito
longe nem muito fundo na investigação científica e na especulação filosófica»
(Carvalho, 1982, vol. III, p. 368). O nosso cosmógrafo ateve-se mais às questões
técnicas levantadas pelas necessidades pragmáticas da navegação do que se
alcandorou especulativamente à definição de métodos gerais de pesquisa. Era para a
utensilagem aplicada à arte náutica que as suas preocupações se viravam, como se
infere do trecho que dá continuidade ao transcrito: «Ora manifesto é que estes
descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar, mas
partiram os nossos mercantes muito ensinados e providos de instrumentos e regras de
astrologia e geometria, que são as coisas de que os cosmógrafos hão-de andar
apercebidos» (Nunes, 1940-1960, vol. I, p. 176).
De facto não fora assim; a asserção peca, se referida às primeiras expedições
descobridoras, por anacronismo; contudo, «esta conceção humanista, que não
corresponde à realidade histórica da primeira metade de Quatrocentos, dá-nos,
precisamente no seu equívoco, a amplitude da revolução mental que entretanto se
operara» (Godinho, 1981-1983, vol. I, p. 36). Aos errores dos pioneiros sucedera a
praxe da experiência vivida e compendiada nas cartas de marear, nos roteiros, nos
diários de bordo, nas relações manuscritas e nomeadamente no Esmeraldo. E desta
emergira o apurar de um saber técnico, de ação que não propriamente de
compreensão explicativa dos mistérios da Natureza, mas tendente ao seu domínio
efetivo. Ora Pedro Nunes, ao postular a logística dos instrumentos e a lição das
regras, supera, com o seu espírito de precisão matemática e rigor quantitativo, o
mero registo empírico de Duarte Pacheco Pereira, embora sem ascender à
formulação teórica da metodologia experimentalista (Dias, 1982, pp. 79-82).
Desviou-o dessa direção tanto o zelo utilitário de instrutor de pilotos como a faceta
de sábio de gabinete, carregando ainda o lastro do prestígio das autoridades e livros
consagrados. A hibridez resultante do cruzamento das duas correntes mentais —
uma de inovadora feição técnico-prática, outra de retrospetiva restituição do saber
antigo — está patente no Tratado da Esfera, de 1537. Neste volume colige Pedro
Nunes obras que ilustram o compromisso — e, ao cabo, o latente conflito — entre a
subordinação livresca e a criação inventiva.
Dá corpo à coletânea a tradução portuguesa do De sphoera mundi, composto em
latim, no século XVIII, pelo monge inglês John of Hollywood (João de Sacrobosco), e
que era um epítome da doutrina cosmográfíca clássica, sobretudo ptolemaica. Nele se
continham afirmações, como aquela que pretendia não serem habitáveis as zonas
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a Diu e de Goa ao Suez, respetivamente — que escreveu entre 1538 e 1541, durante a
sua primeira expedição ao Oriente.
Sobre a «razão que levou os antigos chamarem a este mar todo Mar Roxo ou
Vermelho» corriam as mais desencontradas opiniões — «e de estas opiniões
escolheram os escritores a que lhes mais quadrou e pareceu certa»; D. João de Castro
propõe-se averiguar «se a sua cor é diferente de toda a outra do grande oceano ou
não» (ibid., p. 368). E, com ânimo resoluto, enfrenta objetivamente a realidade: «Eu,
tanto que cheguei [...] jamais dia nem noite deixei de considerar nestas águas e
contemplar a cor e maneira da terra que vai ao longo da ribeira; e certamente que para
nenhuma coisa tive tamanho alvoroço como para empregar meu trabalho em alcançar
a verdade destas coisas, e escoldrinhar a ocasião delas; e o que tirei de minha diligencia
e tenho visto clarissimamente muitas vezes é o seguinte» (ibid., p. 369).
Vale a pena acompanhá-lo na ação investigativa, exemplar exercício de critica ao
«parecer» das aparências espontâneas e ao saber erróneo da perceção sensorial: «O
modo que tive para alcançar este segredo foi surgir muitas vezes em cima das restingas
onde o mar me parecia vermelho e mandar mergulhadores que me trouxessem as
pedras que jaziam no fundo [ ] onde acontecia que todas, ou a maior parte das pedras
que arrancavam eram de coral vermelho e outras de coral coberto de musgo
alaranjado; e a mesma prática tinha onde quer que o mar parecia verde, e achava
pedra coral branca coberta de limo muito verde; e no mar branco achava areia muito
alva sem outra mistura alguma; do que podia nascer que, dando alguns navegadores
relação da cor vermelha que viam por este mar, como da maior e mais compendiosa de
todas, ignorando a causa ou não a querendo oferecer, por acrescentarem admiração a
suas navegações e caminhos, vieram os homens não somente a conhecer este mar por
nome de Mar Vermelho, mas crerem que as águas dele fossem de seu natural
vermelhas» (ibid., pp. 370-371).
Ao contrário da segunda, que seria política, militar e administrativa, essa primeira
enviatura de D. João de Castro à Índia teve carácter de missão científica. Nela ocupou-
se nomeadamente em elucidar o magno problema, importantíssimo para corrigir
erros de rota, da variação da intensidade do campo magnético terrestre e seus efeitos
sobre a declinação da bússola. Diariamente procedia a «operações» e respetivas
«notações» («Roteiro de Lisboa a Goa», in Castro, 1968-1981, vol. I, pp. 115 e segs.). A
alta complexidade das múltiplas observações provocadas e controladas que realizou,
sistematicamente repetidas e contrastadas pela revisão de outras testemunhas,
provisoriamente condensadas em hipóteses explicativas depois sujeitas a repetido
processo de verificação e validação — o estorço, enfim, de teorização e operatividade
prática, constitui um progresso assinalável em relação ao empirismo vulgar da
geração antecedente e uma aproximação, não menos digna de nota, da metodologia
experimentalista moderna (Albuquerque, 1987b, pp. 81-100).
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um dia agora pelos portugueses, do que se sabia em 100 anos pelos romanos»
(Orta, 1987, vol. I, p. 210). A frase é as mais das vezes citada fora de contexto, o que
lhe diminui o alcance significativo; a mais-valia do saber presente mede-se tanto em
extensão como em profundidade. Em extensão, resultava manifesto que as
navegações portuguesas revelaram «mundos» antes ignotos, e tal máxima, por
palavras análogas, já muitos a haviam enunciado desde os finais do século XV; em
profundidade, o novo saber a que se refere Garcia de Orta adquire-se não pelos livros
(«pelos romanos», por antonomásia), mas pela observação da Natureza. Reside nesta
segunda dimensão a específica originalidade dos Colóquios dos Símplices e Drogas e
Cousas Medicinais da Índia, estampados por um tosco impressor de Goa no ano de
1563.
O livro colige perto de três décadas de observações. Garcia de Orta, no devido lugar
se apontou, abalou para a Índia em 1534, na nau e ao serviço de Martim Afonso de
Sousa (aquele cujas «dúvidas de navegação» suscitaram a Pedro Nunes o tratado do
mesmo nome), a quem dedica os Colóquios. Na epístola nuncupatória deixa perceber
que tencionara elaborar um tratado latino, o que quadrava a um erudito formado em
Alcalá e Salamanca, para mais ex-lente do Estudo Geral de Lisboa; mas, afinal, mudou
de ideias: «Bem pudera eu compor este tratado em latim, como o tinha muitos anos
antes composto, e fora a vossa senhoria mais aprazível, pois o entendeis melhor que a
materna língua; mas trasladei-o em português por ser mais geral, e porque sei que
todos os que nestas indianas regiões habitam, sabendo a quem vai intitulado, folgarão
de o ler» (ibid., p. 5). A opção pelo vulgar explica-a melhor o licenciado Dimas
Bosque — outro médico cristão-novo passado ao Oriente — na apresentação da obra:
aí precisa que o Doutor Garcia de Orta «trabalhou de saber e descobrir a verdade das
medicinas simples, que nestas terras nascem, das quais tantos enganos e fábulas não
somente os antigos mas muitos dos modernos escreveram: e o que ele por diversas
partes alcançou, quis que o curioso leitor em uma hora, neste seu breve tratado, visse e
entendesse; o qual teve começado em língua latina, e por ser mais familiar a matéria de
que escrevia, por ser importunado de seus amigos e familiares para que o proveito fosse
mais comunicado, determinou escrevê-lo na língua portuguesa a modo de dialogo, e
isto causa, algumas vezes, apartar-se da matéria medicinal e tratar de algumas coisas
que esta terra tem dignas de serem sabidas. Não pôs seu trabalho em estilo elegante
nem por palavras retóricas aprazíveis às orelhas, tratou puras verdades com puro estilo
porque isto só a verdade basta» (ibid., p. 11).
Habitualmente desatendida, esta carta-prefácio do amigo de Garcia de Orta (toda ela
um hino ao humanismo!) constitui um importante documento, que fornece a chave
de acesso à compreensão dos Colóquios. Antes de tudo, privilegia o esforço
continuado do naturalista para arrancar à flora indígena o segredo das suas
propriedades farmacológicas; as certezas assim patenteadas vinham corrigir
inveterados erros, tanto dos antigos, que não demandaram aquelas paragens, como
dos modernos, que, debruçados sobre os livros, decalcaram os mesmos equívocos.
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último não têm paralelo no mero catálogo alfabético de espécies vegetais que aquele
oferece. E contudo, nos 70 anos que os separam, os dois livros aproximam-se pelo
nervo dramático com que, cada qual no seu tempo e circunstância, equacionaram o
problema nodal da autoridade em ciência: em astronomia, a autoridade do sistema
aristotélico-ptolemaico, no Diálogo de Galileu; em botânica e matéria médica, a
autoridade de Dioscórides, Plínio e seus epígonos, nos Colóquios de Garcia de Orta.
Divididos em duas metades, tão opostas quanto o par de interlocutores dos
Colóquios, o tempo e a circunstância de Garcia de Orta foram, num primeiro
momento, o domínio, nas universidades ibéricas por onde passou como aluno ou
docente, da ciência textualista, ora ainda escolástica, ora já senhora das técnicas
histórico-filológicas com que Nebrija explicou em Alcalá os autores clássicos, como
Dioscórides e Plínio, lendo um curso de Botânica que o estudante português com toda
a probabilidade seguiu (Ficalho, 1886, pp. 24-25); num segundo momento, esse
tempo e circunstância tiveram por cenário o exotismo da Natureza índica — então e
aí se deu o inelutável conflito do conhecimento livresco com a observação direta. Os
Colóquios são a dramatização desse conflito travado no íntimo de Garcia de Orta; mas
como, para que o drama transcenda a subjetividade de quem o experimenta, é
indispensável outra personagem que polarize a tendência adversa, cabe a um ficto
Doutor Ruano — «muito conhecido do autor em Salamanca e Alcalá» (Orta, 1987, vol.
I, p. 19) — servir de oponente e de adjuvante do Doutor Orta, por sua vez feito
personagem de si próprio. Oponente que, a cada instante saltando com a lição das
autoridades, lhe permite réplicas como esta: «Não me ponhais medo com Dioscórides,
nem Galeno; porque não hei-de dizer senão a verdade e o que sei» (ibid., p. 105); e
adjuvante na medida em que, com esse procedimento, propicia a crítica dos textos e a
descoberta da verdade, que é o objetivo confesso do diálogo: «E ora vinde com vossas
contradições, para que melhor se examine a verdade» (ibid., vol. II, p. 33).
Ao recém-chegado Ruano, que lhe declara o «grande desejo de saber» que o animou a
viajar à Índia, promete Orta dizer a verdade, não sem acrescentar ironicamente, como
para marcar a diferença entre os ex-condiscípulos de Alcalá e Salamanca: «Mas temo
que as coisas que eu disser não sejam dignas de notar, porque a um tão grande letrado,
e que tanto sabe no especulativo, não lhe contentam senão raras coisas» (ibid., vol. I,
pp. 19-20). Criado assim, no colóquio introdutório, o clima dramático — o saber «no
especulativo» opõe-se ao saber positivo —, a conversação faculta sobejos lances em
que se evidenciam a pertinência da estratégia dialógica e a amplitude das suas
virtuais ressonâncias filosóficas. Valha, por todos, o que versa acerca da pimenta, a
apetecida especiaria (ibid., vol. II, pp. 242-247). Da árvore que a produz afirma Orta
terem errado quantos a descreveram: «Todos a uma voz se concertaram a não dizer a
verdade, senão que Dioscórides é digno de perdão, porque escreveu por falsa
informação, e de longes terras, e o mar não ser navegado como agora é; e a esse imitou
Plínio, e Galeno e Isidoro, e Avicena e todos os Arábios. E mais os que agora escrevem,
como António Musa e os Frades, têm maior culpa, pois não fazem mais que dizer todos
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de uma maneira, sem fazer diligência em coisa tão sabida, como é a feição da árvore, e
a fruta, e como amadurece, e como se colhe.» Tamanha iconoclastia choca Ruano:
«Como, todos esses que dizeis erraram?»; resposta de Orta: «Sim, se chamais errar a
dizer o que não é», e descreve a planta. Então, escandalizado, Ruano atalha: «Parece-
me que destruís a todos os escritores antigos e modernos, por isso olhai o que fazeis» —
e a censura é gémea da que, no Diálogo de Galileu, o homólogo de Ruano dirige ao
homólogo de Orta, quando este ousa apoucar as autoridades: «Suplico-vos, Senhor
Salviati, falai com mais respeito de Aristóteles» (Galilei, 1987, p. 46; Lima, 1964, p. 26).
Mas o visado não se intimida e insiste no que «sei eu muito bem sabido como
testemunha de vista». Ao fim, Ruano confessa-se «corrido de ver que nunca isto
especularam bem os escritores novos».
Resulta crucial a confissão de Ruano: «corrido» (isto é: humilhado) ante o contraste
entre a nua verdade das coisas que se veem e a esterilidade do aparato especulativo
dos «escritores novos» — fossem eles o português Amato Lusitano, o italiano Pietro
Mattioli ou o espanhol Andrés de Laguna, que em 1553, 1554 e 1555 publicaram, por
esta ordem, comentários aos textos helénicos de Dioscórides, corrigindo alguns
pormenores, mas reproduzindo o essencial, introduzindo uma que outra melhoria,
mas não ampliando o âmbito do saber. Sobre os seus pares europeus dispunha o
modesto naturalista de Goa, que, aliás, dominava a bibliografia especializada antiga e
moderna (até a mais recente), da vantagem de, apoiado numa base observacional, se
entregar à metódica, paciente e humilde recoleção de dados objetivos. Daí que a
rendida humilhação de Ruano comparticipe da «verdadeira e legítima humilhação do
espírito humano» face à Natureza, reivindicada por Francis Bacon, no prefácio à
Instauratio magna (1620), como índice da ciência nova (Bacon, 1985, pp. 56-57.) A
percuciente visão epocal do chanceler inglês evita a falaciosa questão dos
«precursores»: para ele, o advento dessa ciência nova não aconteceu de golpe,
processou-se gradual e concomitantemente às viagens marítimas (ibid., pp. 138-139
e 152; Hooykaas, in Abertura, 1986, vol. I, pp. 165-184). É neste quadro do barco que
se aventura no oceano, deixando atrás as colunas do «non plus ultra» geográfico e
cultural, que os Colóquios se perfilam como obra maior do humanismo dos
Descobrimentos.
Não procede, contudo, estender à cultura portuguesa coeva a caracterizada atitude
mental, crítica e de independência em relação aos textos, que perpassa na obra de
Garcia de Orta. Esta, a ter circulado no País, carregava virtualidades suscetíveis de
metamorfosear sentimentos, reflexões e experiências alheios em autênticas vivências
próprias; continha todos os ingredientes — o vernáculo e a teatralidade do diálogo
eram fatores acrescidos de permeabilidade — para aliciar os leitores e minar neles a
confiança no saber tradicional. Simplesmente, o livro teve limitado curso —
raríssimos o leram, a não ser, além-fronteiras, nas adaptações de Clusius (Ficalho,
1886, pp. 368-369 e 379-380). E os exemplares da tiragem goesa que puderam
encontrar-se arderam com as ossadas do autor na fogueira do auto-da-fé a que a
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renúncia a «coisa tão baixa, como é o mundo» (ibid., p. 242), e realiza-se na vida
solitária, que, «quanto vai mais cortando das conversações e contentamentos humanos,
tanto vai mais acrescentando e subindo por contemplação aos divinos» (ibid.. p. 360).
Implica, por conseguinte, que «o principal estudo há-de ser por livros católicos, porque
deixar os divinos pelos profanos é erro grave, em que muitos embicam, e outros caiem»
(ibid., n, p. 257); Ou como, insistindo na antinomia, admoesta noutro passo:
«Deixemos logo os livros que nos excitam a coisas profanas, e leamos pelos que nos
excitam às divinas: porque quanto mais soubermos das umas, tanto menos quereremos
saber das outras» (ibid., pp. 220-221). Ora isto tende, em suma, à condenação do
valor social de toda a cultura estranha às perspetivas teológicas e, fora dos aspetos
estritamente utilitários, vinculada aos interesses e tarefas do homem no século.
É assim que, pela reabilitação do estado monástico como único exemplo de perfeição
e pela subordinação funcional das letras humanas ao ideal devoto, recusando-lhes
validade intrínseca, Heitor Pinto, «sem exagero, pode chamar-se um contra-
humanista» (Dias, 1969, p. 880). Contra-humanismo, precisamente, suscita a
designação exata à instrumentalização teológico-confessional da cultura. O bom
gosto literário, a prosa vernácula, o esmero estilístico, a rasgada erudição, o aturado
conhecimento dos mestres da Antiguidade — sendo predicados do escritor de eleição
que o jerónimo foi, não são, todavia, suficientes para deferir a chancela de humanista
a Frei Heitor Pinto. Entre o exercício erudito e literário, de um lado, e a visão
ideológico-material, de outro, cavou-se um distanciamento: o primeiro é acessório da
segunda, esta de maneira nenhuma é inerente àquele. Outrossim o monge
contemplativo e solitário, recolhido no ócio da clausura, é o reverso do «cavaleiro
cristão», aquele miles christianus que Erasmo apontou por modelo e para quem,
incutindo-lhe a confiança numa fé ativa e propondo-lhe ser antes que nada homem
entre os homens, elaborou um código de conduta moral apta a intervir nas querelas
da temporalidade.
O contra-humanismo doutrinário teve um expoente maior em Frei Amador
Arrais. Os seus Diálogos, de 1589, estão bem longe de afinar pelo diapasão benigno e
esclarecido dos de Frei Heitor Pinto; compartilham o estilo de associar inumeráveis
autores e lugares seletos do classicismo ao discurso apologético da causa católica,
mas esta causa é assumida com um tónus «político» e militante, que cerceia
qualquer margem de tolerância. O frade carmelita e bispo de Portalegre não faz
concessões ao inimigo — seja ele o judeu, que extensamente incrimina no
pseudodiálogo III, seja o cristão humanista, que explicitamente excomunga no IX. É
quando Antíoco, eixo das conversas e presuntivo porta-voz do autor, interrogado
pelo comparsa — «Lestes acaso um opúsculo de Erasmo da preparação para a morte?»
—, profere a seguinte diatribe: «Valha-vos Deus, Calidónio, como pudestes pronunciar
o nome desse homem? Lavai a boca se quereis mais falar comigo. Praguejou dos santos
da terra e dos céus, e foi inconsiderado e pouco pio em suas censuras, as quais se foram
recebidas por legítimas perderemos boa parte dos livros de vários sábios, e alguns das
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Sagradas Escrituras. [...] Se esse letrado que nomeaste se abraçara com esta doutrina,
não preferira seus errados juízos e temerárias presunções aos decretos dos sagrados
cânones, sentenças dos santos e doutrinas comuns dos teólogos» (Arrais. 1974, pp. 581-
582).
Dificilmente as teses do contra-humanismo encontrariam mais clara e condensada
expressão do que no trecho acabado de citar. Por interpostos Arrais e Erasmo, o
teólogo ata ao pelourinho o humanista; e, nos «santos da terra e dos céus», vitupera-
lhe a sátira do clero, do monacato, da supersticiosa devoção santeira; nos «livros de
vários sábios», a rejeição da escolástica e seus doutores subtis; nos «das Sagradas
Escrituras», a aplicação da metódica histórico-filológica à depuração do texto bíblico;
enfim, e sentenciando, nos «errados juízos e temerárias presunções» fulmina de um
golpe as ousadias criticistas do «letrado», que se intromete nos domínios privativos
das autoridades da Igreja. Domesticado, desprovido da autónoma tensão moral e
intelectual que lhe dera o ser, degradado à condição servil de ornamento estético e
aparato erudito, o que restava do humanismo depois dos tratos a que o submeteram
os teólogos da Contra-Reforma eram, de facto, despojos com que se revestiu outro
corpo, outra cultura.
«Humanidades» e «Filosofia» no ensino da Companhia de Jesus
Só aparentemente é paradoxal que o triunfo do contra-humanismo na doutrina
coincida com a expansão das «humanidades» no campo do ensino. A
instrumentalização doutrinária da cultura incorporou nas escolas os estudos
clássicos à docência religiosa — e dessa simbiose resultou o classicismo católico, que
vigorou na pedagogia portuguesa desde que o sistema educativo pré-universitário
ficou na alçada da Companhia de Jesus. Aos Colégios de Santo Antão, em Lisboa, e do
Espírito Santo, em Évora, a Companhia juntou, em 1555, o das Artes, de Coimbra,
passando assim a dispor de estabelecimentos nos três centros intelectuais do País.
Nessa rede escolar, que depois se estendeu a outras cidades da província, o programa
geral dos cursos foi elaborado em obediência aos fins apostólicos e à política
eclesiástica do instituto fundado por Santo Inácio de Loiola. Em primeiro lugar,
orientar a formação da mocidade dentro da ortodoxia católica; em segundo
lugar, explorar no interesse dessa causa as conquistas irreversíveis da
inteligência moderna.
O primeiro objetivo estava inscrito nas constituições outorgadas pelo fundador. O
segundo decorreu da adaptação às exigências da época. Independentemente de
opções ideológicas, o surto humanista conferira ao saber das línguas clássicas e das
técnicas filológicas o carácter de requisitos de base do homem cultivado. Algo que
não escapou à perspicácia dos notáveis da Companhia, e nomeadamente do Padre
Juan de Polanco, o colaborador mais chegado de Loiola e dos dois gerais que lhe
sucederam, o qual, numa carta de 1564 para o seu confrade Diogo Mirão, provincial
dos jesuítas portugueses, fazia estas judiciosas recomendações; «Na era em que
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estamos, por toda a parte se tem muito em conta a erudição nas coisas de humanidades,
tanto que sem elas a doutrina melhor e mais sólida parece que luz menos. Por isso ao
Padre Geral pareceu muito conveniente que se escrevesse às províncias, que tenham
conta com estas letras humanas, e façam estudar' bem, quem mostrar aptidão, pelo
menos o Latim e a Retórica, e que não passem às Artes ou pelo menos à Teologia sem se
exercitarem bem nestas letras» (Braga, 1892-1902, vol. II, s/d, p. 352).
Haveria, pois, que lustrar a doutrina com o esmalte das boas letras. O escopo era
conformar o «homem religioso», munido da panóplia erudita que a atmosfera
intelectual criada pelo humanismo reclamava e apto a com ela sustentar as posições
professadas pela igreja institucional. Simplesmente, humanismo e «humanidades»
não são equivalentes; naquele, as disciplinas clássico-filológicas concebiam-se
intrinsecamente vinculadas ao ideal ético de aperfeiçoamento do «cristão bem
formado», afirmando-se como um indivíduo autónomo, dinâmico e realizador de si
mesmo; e as últimas, na conceção jesuítica, não passavam de expediente eficaz
para a veiculação de uma cultura aparentemente modernizada, mas induzida
pela hierarquia eclesiástica. No ensino ministrado pelos novos possuidores do
Colégio das Artes, o plano de estudos dos «bordaleses» não sofreu, formalmente,
solução de continuidade — os conteúdos materiais é que se esvaziaram do sentido
civil ou laico, humanístico-individual, substituído pelo elemento religioso-social
assente no princípio da autoridade.
Reter e apropriar-se das realizações do humanismo para as pôr ao serviço do
apostolado católico, tal foi a estratégia pedagógica da Companhia de Jesus.
Ninguém o explicou melhor do que um seu historiador oficial, quando escreveu que
os Jesuítas, «conformando-se com o espírito da sua Ordem, que procurava acomodar-se
a todos para a todos melhorar e levar à perfeição da vida cristã, aproveitaram muito
avisadamente os métodos em que toram educados, e procuraram aperfeiçoá-los para
conseguirem por esse meio o fim nobilíssimo que suas vocações lhes assinalava. Ora a
Companhia apareceu na sociedade quando na região das letras dominava
irresistivelmente o chamado humanismo e o estudo dos autores da antiguidade clássica.
Esse método geral de formação abraçaram com entusiasmo, e o seguiram na sua
atividade pedagógica, afeiçoando-o cuidadosamente às exigências particulares de sua
profissão e apostolado» (Rodrigues, 1931-1950, vol. I, 2, 1931-1950, p. 433). E outro
historiador, este oficioso, exarou igualmente que os inacianos, «fiéis servidores da
Igreja Católica, aproveitam o que há de bom no seu século, mas fustigam os desvarios e
contrapõem-lhes a sã doutrina, revestida de roupagem nova, atraente, ao gosto da
época» (Andrade, s/d, p. 97).
O preceptorado do classicismo católico concretizou-se fundamentalmente, e atingiu
repercussão cultural duradoura em sucessivas gerações de portugueses, na praxe do
ensino dos mestres jesuítas. Quanto à aprendizagem do Latim, prólogo de todo o
saber, teve o seu regimento em 1572 no De institutione grammatica, do Padre Manuel
Álvares, a famigerada Arte, cuja fortuna conheceu (no original e seus derivados)
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centenas de edições e vingou entre nós por quase 200 anos, até que a reforma
pombalina de 1759 a proscreveu «como aquela que contribuiu mais para fazer
dificultoso o estudo da latinidade neste Reino» (Alvará de 28 de Junho de 1759, art. 7).
Anti jesuitismo à parte, o compêndio, complicadíssima fábrica de regras e exceções,
consagrava uma didática formalista e abstrata da língua latina, fornecendo esquemas
que do exterior se impunham à matéria, sem integração estrutural da expressão e do
pensamento.
Por sua vez, a outra disciplina nuclear do ciclo das «humanidades», a Retórica, que
garantia o discurso bem ordenado e as galas da eloquência, teve noutro regente do
Colégio das Artes, Cipriano Suárez, um legislador proficiente. Este padre fez sair em
1562 o De arte rhetorica, manual também reproduzido até ao século XVIII, e dirigiu
concomitantemente, por incumbência da Companhia e para uso das classes, um
programa editorial, em volumes distintos, de autores latinos prévia e zelosamente
«limpos» dos lanços atentatórios da pureza de costumes. O expurgo metódico
pretendia obstar a que os alunos assimilassem, com as elegâncias da linguagem, a
sensibilidade e o conteúdo moral que as obras clássicas inculcavam. Apresentando
assim Plauto e Marcial, Séneca e Cícero, Floro e Tito Lívio truncados e desintegrados
do seu contexto histórico-cultural, assegurava-se o contacto com o bom latim sem
que a virtude sofresse o detrimento da má doutrina — que essa, a boa, era extrínseca
aos textos estudados.
De acordo com as diretrizes superiores da Companhia, a doutrina teológica
atravessava verticalmente os cursos. A ela se acomodavam as «humanidades» sob
a espécie de classicismo católico e dela dependiam ancilarmente os complementares
estudos «filosóficos». Por «filosofia» entenda-se, no jargão tomado do aristotelismo
escolástico, um sistema de saberes de lato âmbito, que, em escala ascendente de
dignidade hierárquica, abarcava, precedido pela «dialética» enquanto técnica de
pensar e argumentar mediante o mecanismo silogístico, o grupo das matérias físico-
naturais, seguido, no topo, pelo das morais e metafísicas — mas todas elas uma longa
propedêutica para a teologia católica, ministrada na universidade eclesiástica que os
Jesuítas mantinham desde 1559 em Évora, além de na de Coimbra. Em qualquer
circunstância, o ingresso nas outras faculdades maiores desta última academia —
Cânones, Leis e Medicina —, que é o mesmo que dizer nas carreiras da Igreja e do
Estado, passava pelos mesmos preparatórios de «filosofia».
No tocante aos preliminares, o ciclo «filosófico» dispôs a partir de 1564, com os
Institutionum dialecticarum, de Pedro da Fonseca, de uma iniciação geral à lógica
aristotélica, que compaginava a tradição escolástica e os modernos subsídios
filológicos de restituição textual. Tornava-se, porém, necessário confecionar um
curso uniforme e compacto, que impedisse tergiversações de magistério e se ativesse
estritamente ao corpus aristotélico. Subjacente ao empreendimento estava a
convicção de que a escolástica medieval, mormente a codificada na síntese de S.
Tomás de Aquino, representava um non plus ultra, que apenas carecia de ser
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as Décadas de Barros que Frei Amador Arrais remete, quando nos seus Diálogos de
1589, que não têm pretensões de obra «científica», usando um «nós» patrimonial,
amalgama no mesmo ufano registo sucessos tão díspares como estes: «Pusemos o
oriente debaixo das nossas leis e império, e metemos suas riquezas pela barra do
delicioso Tejo, e descobrimos o nascimento do Nilo (disputado com contumaz e
soberba porfia de engenhos humanos) e as causas verdadeiras por que o mar Arábio é
roxo, coisa de que os antigos falaram vária e fabulosamente» (Arrais, 1974, p. 295).
Ambas as obras — a «científica», do jesuíta, e a «espiritual», do frade carmelita —
colhem na matriz de João de Barros os termos anónimos e imprecisos com que as
descobertas de D. João de Castro ingressaram na tradição épico-lendária. A ausência
do autor dos «roteiros», assaz relevante no caso de Manuel de Góis, é significativa de
como a cultura escolar portuguesa — a única oficializada, e que tinha um público —
não reteve o saber técnico-positivo legado pelos homens do mar e as aproximações
da metodologia experimentalista de que alguns deles foram artífices. Deriva daí a
facilidade crédula com que o conimbricense se fez eco da versão simplista que
transformou as meticulosas observações críticas do navegador numa elementar
evidência espontânea. Muito menos lhe seria inteligível, se acaso com ele tivesse
contactado, o axioma, contido no Tratado da Esfera, de que «a razão que convence o
entendimento [...] é a que se toma da experiência dos instrumentos matemáticos»
(Castro, 1968-1981, vol. I, p. 67). Neste terreno epistemológico, os Comentarii
regridem ao estádio da experiência-facto, do tosco empirismo ingénuo que ainda
desconhece os processos corretores das impressões qualitativo-subjetivas do mundo
físico. Não deixa de ser sintomático que certas expressões de Manuel de Góis —
«experiência, madre da filosofia», ou «experiência, soberana da filosofia e mestra da
verdade» (Dias, 1985, pp. 43-46) evoquem o quase centenário enunciado de que «a
experiência é madre das cousas [e] por ela soubemos radicalmente a verdade»
(Esmeraldo de situ orbis, Pereira, 1988a, p. 169). Num e noutro, a mesma fórmula
destituída de sentido metodológico; com a substancial diferença, porém, de que um
Duarte Pacheco Pereira brandia a sua «experiência» de marinheiro para questionar,
no dealbar do século XVI, as autoridades antigas ou medievais, ao passo que o jesuíta,
no advento do seguinte, retrograda à noção vulgar, então já arcaica porque alheia à
instrumentação matemática exigida por D. João de Castro e a propósitos de
construção teórica a partir da observação; e precisamente essa «falta de perceção da
experiência como experimentação e da experimentação como fonte única do progresso
científico e caminho único do conhecimento exato no âmbito natural é que retira à
evocação da experiência por Góis todo o alcance epistemológico que ela estava a
adquirir na Europa e que, em breve, ia ser consagrado por Galileu e Bacon» (Dias 1985,
pp. 45-46).
Uma Física aristotélica das qualidades — que se movia em redor de categorias
ontológicas como as de seco e quente, frio e húmido, pesado e leve — prescindia do
rigor, exatidão e precisão da Matemática. Não por acaso, esta última disciplina, base
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«Uma austera, apagada e vil tristeza» (Os Lusíadas, canto X, 145). Tão forte ação
condicionante das transformações registadas na consciência e na sensibilidade dos
Portugueses exerceram-na os insucessos políticos, os reveses militares, as deceções
que, nos umbrais do século XVII, advinham do transe da perda da autonomia e, mais
agudamente, do pendor do Império. Este, após o fastígio da primeira metade da
centúria, precipitou-se, com o abandono forçado de várias praças-fortes e cidades no
Norte de África, o encerramento da feitoria de Antuérpia, o incremento dos ataques
do corso francês e inglês contra a navegação da carreira da índia, num alarmante
processo descensional; sucedeu, já no domínio filipino, o assalto dos rivais
europeus às possessões asiáticas e o definitivo colapso do monopólio do tráfego
oriental, fulcro da estratégia ultramarina de D. João III (Godinho, 1981-1983, vol. IV,
pp. 216-223). Acresciam, no plano interno, os apertos financeiros do Estado, o
empobrecimento económico, a decomposição social e, aquém e além-mar, a
generalizada corrupção administrativa.
Impõe-se, com a derrocada das veleidades imperiais de grande potência colonial e
marítima, o sentimento de uma inelutável decadência; e, correlatamente,
sobrevém a reação de desilusão, de desesperança — de «desengano» — perante o
mundo e os homens. O otimismo do apogeu expansionista volve-se amargo
pessimismo; a euforia do avanço esmorece na disforia da queda; a tensão de futuro
cede à refração passadista. Agregado à rígida inspiração religiosa provinda da
Contra-Reforma, todo este complexo ideológico de inferioridade e abatimento
permite falar do fim de uma época da cultura — a do Renascimento —, marcada
pelo vitalismo renovador e ascendente, e do prelúdio de outra, gerada nesse clima de
crise moral e material — a do Barroco (Maravall, 1983, pp. 23-51).
Frei Amador Arrais
A visão providencialista da história que ressuma das páginas que Frei Amador Arrais
dedicou, nos seus Diálogos de 1589, à «glória e triunfo dos Lusitanos», só
relutantemente admitia a ideia de decadência. No diálogo IV, propõe-se o bispo de
Portalegre resumir, «como em um breve compêndio, o que está difuso por longos
volumes, da conquista das índias Orientais pelos portugueses» (Arrais, 1974, p. 293).
Antes, deplorara a carência de um trabalho de conjunto que, acerca da gesta nacional,
emulasse os clássicos: «Os feitos ilustres dos atenienses e romanos cresceram e
amplificaram-se com a eloquente pena de seus escritores: mas para os nossos até agora
faltaram engenhos, e aos que houve faltaram palavras para igualarem sua glória e
majestade. De maneira que vai o tempo triunfando de nossas vitórias e conquistas,
sepultadas e quase extintas por falta de historiadores» (ibid., p. 237). Desvaloriza
assim o labor de Castanheda e dos cronistas oficiais João de Barros e Damião de Góis,
bem como a retumbante versão latina que da Crónica de D. Manuel, da autoria
daquele último, D. Jerónimo Osório realizou, «a fim de que o nome deste rei seja
conhecido no estrangeiro» (Matos, 1991, p. 525), conforme lhe solicitou o cardeal D.
Henrique. Seguindo de perto o texto de Góis, embora introduzindo variantes,
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Sem a vibração polémica das objurgações do Soldado Prático, antes numa toada
«discreta» e amena, semelhante nostalgia da idade de ouro de Portugal perpassa na
Corte na Aldeia, esse manual de cortesania que Francisco Rodrigues Lobo fez publicar
em 1619, ano da visita e da receção triunfal prestada a Filipe II na cidade de Lisboa,
onde a corte era acabada. Extinto desde 1580 o foco intelectualmente criador
irradiado pela casa real, o referente da obra é também a decadência, não a do
Império, mas a interna, cujo cenário de pungente melancolia se reflete na
dedicatória a D. Duarte, bisneto de D. João III e irmão do titular da família ducal dos
Braganças; «Depois que faltou a Portugal a corte dos Sereníssimos Reis ascendentes de
V. Excelência [...] retirados os títulos pelas vilas e lugares do Reino e os fidalgos e
cortesãos por suas quintãs e casais, vieram a fazer corte nas aldeias, renovando as
saudades da passada com lembranças devidas àquela dourada idade dos portugueses»
(Lobo, 1992, p. 51.)
Nessas circunstâncias deprimentes, o fito do autor parece ser procurar no passado
um encorajamento para enfrentar as agruras do presente e formar um novo escol
aristocrático que mantivesse acesos os valores da antiga corte portuguesa, no
pressuposto, é lícito aventá-lo, de uma corte portuguesa futura (Carvalho,
«Introdução» a Corte na Aldeia, p. 41). Por enquanto, a corte é «na aldeia» e, em
«noites de Inverno», reúne-se «em casa de um antigo morador daquele lugar, que
também o fora em outra idade da casa dos reis, donde, com a mudança e experiência
dos anos, fez eleição dos montes para passar neles os que lhe ficavam da vida. Grande
acerto de quem colhe este fruto maduro entre desenganos» (Corte na Aldeia, pp. 54-
55). Ao anfitrião, sobre quem, noutra nota reiterativa da sua condição de
representante da época áurea, se diz que «se achou no paço ainda em tempo em que
éramos troianos e viu luzir o que está cheio de ferrugem» (ibid., p. 255), fazem
companhia diversos coloquiantes, todos homens «bem nascidos», uns que como ele
de algum modo compõem os «riscos e sombras que ficaram dos cortesãos antigos e
tradições suas» (ibid., p. 52), outros, mais mancebos, que pelos primeiros são
adestrados nos esquemas normativos do comportamento áulico. Era, pois, uma
«corte pintada, que inda com as sombras da verdadeira enganava os sentidos» (ibid., p.
269), e na qual «se podiam ensaiar os que quisessem aparecer na [verdadeira] corte
apercebidos, aprovando a maneira que se tinha de discursar sobre coisas tão miúdas e
tão esquecidas, sem causa, dos cortesãos» (ibid., p. 226).
Entre miudezas de etiqueta e reflexões de mais elevado cunho ético e cívico —
destaca, nestas, a apologia da língua portuguesa, que «tem de todas as línguas o
melhor» e «só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem
mais remendada que capa de pedinte» (ibid., p. 69) se desdobra o ternário dos
dezasseis diálogos didáticos. Os três últimos tratam da «criação da corte, da milícia e
das universidades, que são os três exercícios nobres em que os homens se ocupam,
apuram e engrandecem» (ibid., p. 255). Mas o modelo proposto do cortesão
«perfeito», educado no Paço, nas armas ou nas letras para ser «um homem político,
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eles tivessem lume de fé ou conhecimento da nossa santa lei cristã» (Pinto, 1983, cap.
CIII, p. 300).
Daí que sejam gentios, como o mouro ou o menino chinês, os que censuram, à luz de
preceitos analogicamente cristãos, a atuação prática dos Portugueses. Estes, já o
dissera o «soldado» de Diogo do Couto noutra das várias intertextualidades com a
Peregrinação, «em passando o Cabo da Boa Esperança, perdem a memória de tudo, e
não sei se diga que o temor a Deus e ao rei» (Couto, 1980, p. 69). Para lá do cabo, a
moral era outra. Di-lo também o rei dos Léquios, ao afirmar serem os Portugueses
«gente que, conhecendo muito de Deus, usa pouco da sua lei, tendo por costume tomar o
alheio» (Pinto, 1983, cap. CXLII, p. 421). Gente que, observa por seu turno o rei dos
Tártaros, «dá claramente a entender que há entre eles muita cobiça e pouca justiça» —
no que tem o assentimento de um conselheiro, o qual admite que «a vaidade e a
cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela renegam a Deus e a seus
pais» (ibid., cap. CXXII, pp. 357)
O móbil da cobiça levou António de Faria, que «era naturalmente muito curioso e não
lhe faltava também cobiça» (ibid., cap. LXX, p. 199) — e é de crer que a curiosidade
fosse mera sequela da cupidez, a demandar Calempluy, a misteriosa ilha onde jaziam
os 17 sumptuosos mausoléus de soberanos chineses. Descobrem-na, enfim, no termo
de incontáveis trabalhos não para dilatar a fé e o Império, mas para profanarem
sacrilegamente os túmulos imperiais guardados por eremitães inofensivos! E então
que um desses veneráveis anciãos, a quem Faria hipocritamente procurava consolar
— «porém não deixou de acenar aos soldados que continuassem com o que tinham
entre mãos, que era escolher a prata que se achava no caixão de mistura com os ossos
dos finados que também estavam dentro» —, profere a terrível apóstrofe contra os
«ministros da Noite, que como cães esfaimados me parece que toda a prata do mundo
os não poderá fartar» (ibid., cap. LXXVI, pp. 215-216).
Desvelando assim o lado noturno dos Descobrimentos (Rocha, 1986, p. 32), Fernão
Mendes Pinto inclina-se a uma perspectiva oposta à de João de Barros, de Camões, de
Arrais e da generalidade da «inteligência» portuguesa de Quinhentos. Na contra-
epopeia da Peregrinação os «cavaleiros» são «esforçados», sim, mas porque são
«cobiçosos», sem, contudo, serem «mercadores». O «mercador», antítese do «cavaleiro
cobiçoso» que tem o seu paradigma em António de Faria, não rouba nem mata e rege-
se, nos seus tratos e comércios, pelos preceitos da moral evangélica. Dito
sumariamente, a «cobiça» revela-se atributo da «cavalaria», não do espírito
mercantil. Neste espírito mercantil, que vai de par com o sentimento ético-religioso,
inscreve-se a obsidiante propensão estatística de Fernão Mendes Pinto, que em tudo
e acerca de tudo avalia, enumera, quantifica — desde o valor da fazenda perdida num
naufrágio aos rendimentos do império chinês e à altura da sua famosa muralha,
medida a palmos... Na China, que sobremaneira o cativou — «uma tão nova, tão
espantosa, e quase incrível maravilha» (Pinto, 1983, cap. XCVII, p. 275) —, detém a
vertiginosa narrativa para se demorar na minuciosa descrição do sistema económico,
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social e político; erige-o utopicamente em modelo de justiça e ordem, «que aos reinos
e repúblicas cristãs pode ser exemplo, assim de caridade como de bom governo» (ibid.,
cap. CXIII, p. 327); e põe mesmo na boca do Padre Francisco Xavier a intenção de
pedir ao rei de Portugal que reformasse as ordenações portuguesas pelos regimentos
chineses, «porque tinha por sem dúvida que eram muito melhores que os romanos nos
tempos da sua felicidade, e que os de todas as outras nações de gentes de que todos os
escritores antigos trataram» (ibid., p. 328).
Precisamente este elemento exótico e utópico combina com outra característica da
Peregrinação, que a coloca à margem da cultura da época; não é subsidiária do
classicismo, seja em matéria de géneros, de temas ou de imagética, sequer de léxico,
que prima pela vivacidade pitoresca, direta e coloquial. O autodidata Fernão
Mendes Pinto dispensou componentes eruditas e prescindiu de quaisquer fontes,
greco-latinas ou outras, para compor, numa inconfundível criação individual, o
«romance» da aventura portuguesa de Quinhentos, protagonizada não só por heróis e
santos mas também pela anónima arraia-miúda em que o autor se revê — e para a
qual a aventura foi mais uma «peregrinação» do que uma epopeia. E pouco importa
se ele próprio protagonizou ou não todas as peripécias insólitas e extraordinárias
que relata, na primeira pessoa, nessa elaboração estético-literária incomparável.
O efeito de verosimilhança produzido pelo procedimento narrativo autobiográfico e
cuja confusão com veracidade historiográfica deu azo à estafada controvérsia sobre a
sinceridade do escritor, permitiu a Fernão Mendes Pinto, conjugando o real e o
imaginário, a experiência e a fantasia, oferecer à posteridade o testemunho humano
mais original — o mais «peregrino» do humanismo português.
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