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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

José Matoso – HISTÓRIA DE PORTUGAL Vol. 3 – Edição Estampa, 1997/98.


A VIDA CULTURAL – António Rosa Mendes
O pré-humanismo português (pp. 333-338)
Na viragem do século XV para o XVI começam a manifestar-se na vida
cultural portuguesa os incipientes sintomas de uma mudança que fez dela
partícipe do movimento geral do Renascimento europeu. Duas ordens de
fatores, na origem inteiramente independentes entre si, atuaram como
catalisadores dessa mudança: o classicismo, de um lado; os
descobrimentos marítimos, do outro. O primeiro, fenómeno
basicamente de importação, respeita às letras, ao que então se designava
por studia humanitatis, ou ideal de uma formação literária adquirida
mediante a leitura, o comentário e a imitação dos grandes autores greco-
latinos; os segundos, que não têm precedentes fora da Península Ibérica,
projetam-se no domínio mais vasto da relação do homem com a Natureza
e o Cosmos. Ambos, todavia, confluem no sentido de um humanismo:
um humanismo global, se se considerar que apontam convergentemente
para valores que têm no homem a sua centralidade; vários humanismos,
com tónicas diferentes, se se enfocar os diversos ângulos de incidência
desses valores (Godinho, 1990, pp. 144-150).
O classicismo
Foi, porém, lento o trânsito para os valores humanistas potenciados pela receção do
classicismo e pelo impacte dos Descobrimentos. Durante os reinados de D. João II e
de D. Manuel I, o peso da mundividência medieval sobrelevou ainda
esmagadoramente o das inovações, embora corresponda a estas a dinâmica da
mudança. Não cabe, em qualquer caso, falar de ruturas num processo que se arrastou
ao longo das três primeiras décadas de Quinhentos e só nas duas seguintes alcançou,
enfim, uma plena, embora efémera, maturação. À morosidade do curso evolutivo e ao
estado retardatário da «inteligência» portuguesa não é estranha a situação
periférica do País adentro do complexo histórico-cultural do Ocidente europeu. Os
gostos e interesses classicistas que por toda a centúria de Quatrocentos irradiaram
do centro desse sistema — na época a Itália, e principalmente a brilhante região
toscana — tardaram a chegar até nós e, quando chegaram, inseriram-se sem
conflitos na cultura eclesial dominante. Sofreram, por acréscimo, a intermediação
deformante da vizinhança castelhana (Dias, 1969, tomo II, pp. 846-868).
Uma muito pontual e restrita influência itálica deteta-se ainda no tempo de D. Afonso
V, pelos meados do século XV, com a fixação na corte dos eruditos transalpinos
Mateus Pisano e Justo Baldino, respetivamente encarregados de verter para latim a
história da conquista de Ceuta e as crónicas dos nossos reis — só daquele primeiro
nos ficou uma (De bello septensi, Livro da Guerra de Ceuta, escrito por mestre Mateus
Pisano em 1460, 1915), elaborada cerca de 1460 a partir do relato de Zurara. Mais
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acusado foi, porém, o magistério do siciliano Cataldo Sículo, que a convite de D. João
II veio para Portugal por volta de 1485 e aqui morreu depois de 1516. Entre os seus
discípulos — nos quais se contaram D. Jorge, filho bastardo do rei, e o herdeiro, D.
Afonso — destacou-se, pela precocidade, o fidalgo D. Pedro de Meneses. A oração de
sapiência que este jovem de 17 anos recitou em 1504 perante o Estudo Geral
(Universidade) de Lisboa, e em cuja redação não teria sido alheia a mão do mestre
que em 1500 dera à estampa um volume de Epistolae et orationes, atesta um apuro
notável no cânone latino e um conhecimento aturado das fontes clássicas (Sículo,
1988). Tanto que Cataldo Sículo já tem sido apontado como «introdutor» do
humanismo em Portugal. Importa, todavia, não identificar latinidade com
humanismo. Se é certo que a oração em causa se vaza num latim elegante e
contrastante com o tradicional barbarismo e corrupção no uso do idioma clássico,
não é menos verdade que a forma eloquente reveste um pensamento que permanece
íntegro na moldura medieval e do qual estão ausentes a problemática e a metódica
humanísticas.
Na visão do orador, com efeito, não existe outra cultura senão a que se ordena
segundo os esquemas e objetivos da dogmática e da apologética religiosas. De acordo
com o sistema de saberes que explana, a ciência «rainha de todas as rainhas»
(Meneses, 1964, p. 77) era, evidentemente, a teologia, secundada, enquanto
«companheira e irmã», pela filosofia (ibid., p. 83). Após elas, um séquito de três
«damas de companhia e auxiliares» (ibid., p. 87): os dois direitos — cuja subtil
distinção reside em ser o civil «santíssimo» e o canónico «divino» (ibid., pp. 89-95) —
e a medicina. E mesmo esta preocupa-se menos com a condição terrena da existência
humana do que com as almas, que, quando deveriam estar mais aplicadas ao seu
criador, «não podem exercer as suas operações em corpos enfermos» (ibid., p. 95).
Quanto às artes, e depois de passar em revista as disciplinas do trívio e do quadrívio
escolásticos, refere-se em último lugar à gramática, «precisamente por entender que
ela é, na realidade e na prática, a primeira entre todas as artes» (ibid., p. 107). A
precedência, contudo, está nos antípodas da primazia humanística conferida à
gramática como um saber autónomo e formativo, base de uma metodologia crítica e
positiva de acesso aos textos; para D. Pedro de Meneses, ela é a primeira tão-somente
porque, na escala pedagógica, se comporta como meio de iniciação nos estudos: é
uma arte «que se aprende na infância» e que serve para não errar «falando ou
escrevendo» (ibid., pp. 107-109).
Era esta, aliás, a conceção que vigorava no Estudo Geral lisboeta e que os estatutos
manuelinos, outorgados pela mesma data da oração de Meneses, mantiveram
praticamente incólume. A gramática latina continuou funcionalmente enquadrada
num nível de ensino elementar ou «trivial», uma espécie de ciclo vestibular dos
preparatórios para o acesso às faculdades maiores, e ministrada por mestres que
nem faziam parte da corporação universitária, embora estivessem debaixo da sua
alçada pedagógica (Dias, 1969, pp. 424-444 e 852-853; Carvalho, 1986, pp. 135-142).

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Acresce que a didática do latim se regia pelo compêndio do espanhol Juan Pastrana, a
Gramatica Pastrane, saída pela primeira vez entre nós em 1497, sucessivamente
reeditada na quinzena seguinte, e mesmo para além dela divulgado por
comentadores como Pedro Rombo, cujo magistério pontificou ao longo dos três
primeiros decénios do século XVI.
Ora, para desarreigar de toda a Espanha os «Pastranas e demais falsificadores»
(Quilis, 1989, p. 15), outro espanhol, Antonio de Nebrija, dera aos prelos de
Salamanca — ele que foi também o introdutor da imprensa neste centro intelectual
da Península —, no ano de 1481, as suas Introductiones latinae, que prontamente
trasladou para castelhano. Nesta obra, que marcou uma época na história do
humanismo ibérico, o «Nebrissensis», na esteira de Lorenzo Valia, denunciava o
jargão incompreensível e artificioso utilizado nas disquisições escolásticas. Assim se
chegou, acusava o gramática renascentista, a que faltasse «o conhecimento da língua
em que não somente está fundada a nossa religião e a república cristã, mas também o
direito civil e canónico, pelo qual os homens vivem igualmente neste grande
ajuntamento que chamamos cidade; a medicina, pela qual se mantém a nossa saúde e
vida; o conhecimento de todas as artes chamadas de “humanidades”, porque são
próprias do homem enquanto homem [...] as artes dignas de todo o homem livre» (ibid.,
p. 13). A degradação dos estudos bíblicos e teológicos, do direito, da medicina, das
artes liberais — as mais «próprias do homem enquanto homem» — era, pois, efeito
da ignorância do bom latim, pelo que a restituição deste à sua prístina pureza volvia-
se requisito iniludível para uma rigorosa depuração das restantes disciplinas.
Ao proclamar a gramática como chave para a reforma cultural e moral do
homem e, através dele, de toda uma sociedade submergida na barbárie, o programa
de Nebrija rompia com o classicismo medievalizado e incorporava no clássico o
ideário do humanismo. As letras profanas deixavam de valer apenas enquanto
fatores auxiliares e ornamentais das matérias religiosas, para se constituírem em
base de todo o saber. Ganhavam assim um estatuto autónomo em face da teologia
e um valor social correspondente aos interesses e tarefas do homem no Mundo.
Núcleo da reconversão humanística da ideia de cultura, a didática do latim
atravessou o período manuelino refratária ao influxo renovador de Nebrija. O
tentame de Estêvão Cavaleiro, que em 1516 produziu uma Nova gramatices ars
acorde com o método moderno, não logrou aceitação nas escolas menores, muito
menos desalojar delas o sistema arcaico de Pastrana. Existiam, contudo, partidários
de um e outro estilo; tanto que, em 1525, o conselho universitário deliberou dar
Nebrija a quem quisesse Nebrija e Pastrana a quem quisesse Pastrana, contanto que
sem mistura — ambos eram, de facto, inconciliáveis. A decisão salomónica, se revela
alguma abertura, manifesta, outrossim, que as humanidades ainda não tinham
conquistado, já nas primícias do reinado de D. João III, a dignidade e o prestígio de
disciplinas estruturantes do saber coevo. Foi assim que, «mesmo quando o compêndio
de Nebrija transpôs os umbrais da universidade, já na terceira década de Quinhentos,
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nem o magistério se apercebeu do contraste entre o horizonte tradicional da latinidade


eclesiástico-escolástica e o horizonte renascentista da latinidade clássica, nem a
própria corporação académica se resolveu a patrocinar, em suas determinações, a nova
senda da cultura humana» (Dias, 1969, p. 852).
Signo dessa desvalorização das letras encontramo-lo, também em 1525-1526, na
relutância universitária em admitir o doutor Martinho de Figueiredo à regência de
um curso de Retórica. Era aquele jurisconsulto, entre mais alguns como Luís Teixeira,
João Rodrigues de Sá de Meneses e, antes deles, Aires Barbosa, um dos poucos
portugueses que, no final do século anterior e inícios do vigente, demandaram Itália e
aí fizeram estudos, sob a direção de Ângelo Poliziano. Todos foram afeiçoados pela
escola florentina; e Martinho de Figueiredo deixou mesmo, no seu comentário ao
prólogo da História Natural de Plínio, editado em 1529, um exemplo ímpar de
aplicação da metodologia crítica, histórico-filológica e retórica (Osório, 1975, pp. 43-
47); quanto a Teixeira e a Sá de Meneses, o primeiro orientou-se para a praxe jurídica
e o segundo cultivou a poesia de gosto italianizante; já Aires Barbosa, que por um
quarto de século se dedicou ao ensino das humanidades, mormente do grego, em
Salamanca, e só regressou à pátria por volta de 1520, depois de jubilado, confinou-se
na estreita defesa de uma cultura literária que doutrinalmente se acomodava às
dominâncias eclesiásticas e teológicas. Limitada foi, em todo o caso, a influência de
qualquer destes pré-humanistas nos círculos intelectuais, no período que vai até ao
dobrar dos anos 20; e de nenhum deles — sequer de Martinho de Figueiredo, porque
o humanismo não é apenas um método filológico-crítico com vistas a alcançar-se
autenticidade de texto e de interpretação — se pode afirmar que tenha assimilado os
conteúdos do humanismo ideológico (Dias, 1969, pp. 196-228).
O impacte dos Descobrimentos
Mas, se a tardia e lenta progressão do classicismo de matriz itálica conferiu à vida
cultural portuguesa do tempo de D. João II e D. Manuel I um cunho relativamente
anacrónico e arcaizante no contexto europeu, não é menos verdade que esse
desfasamento atuou em sentido inverso no que toca ao outro fator já aludido: os
descobrimentos marítimos. Neste âmbito, os povos ibéricos foram pioneiros, e
aqui, nesta zona periférica do sistema europeu, o ritmo de atraso do que se recebia de
fora combinou-se com o ritmo de antecipação do que se produzia de dentro como
novidade adiantada. Ora essa originalidade, pelo carácter exótico que revestia, era
dificilmente assimilável pelos homens de letras regressados das universidades
estrangeiras, imbuídos de uma orientação mental livresca e estruturalmente
divorciada da realidade prática das coisas. Talvez por isso mesmo as duas correntes
— a de importação e a autóctone —, longe de se fundirem numa síntese fecunda,
desenvolveram-se à margem uma da outra; e só não há que dizer que se
desenvolveram paralelamente porque a que dimanava das Descobertas se chocou
com uma hegemonia que a reduziu à condição menor de expressão cultural
subalterna.
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Interessa, para avaliar da ressonância que as navegações suscitaram no escol


intelectual do período manuelino, reverter ainda à oração de sapiência de D. Pedro de
Meneses. A peça — recitada, como se viu, em 1504 — é omissa em relação ao tema,
salvo no que tange à exaltação do feito em termos de heroísmo e de cruzada — uma
nota ideológica que repercutiria amplamente na intelectualidade lusa de Quinhentos:
«Oh quantos homens bárbaros e selvagens, inimigos de Jesus Cristo [os Portugueses],
não derrotaram e eliminaram com pequenas forças por terra e mar, especialmente nos
últimos meses na expedição da Índia!» (Meneses, 1964, p. 117.) Nem o fidalgo nem o
seu mentor italiano se deixaram, todavia, impressionar pelos avanços técnico-
científicos propiciados pela empresa dos mares: ignoram crassamente a astronomia
náutica, que há bem pouco guiara as viagens de Gama e de Cabral, e ficam-se, à
maneira medieval, pelo elogio da astrologia, que «previne com êxito seguro o futuro
próspero ou infeliz, providência esta com que se podem facilmente evitar os males
patentes, e esperar os bens com mais segurança» (ibid., p. 105).
Não deve surpreender a indiferença, atendendo a que a astrologia judiciária
continuaria a ter aceitação generalizada nas camadas cultas do tempo, apesar da
impugnação que, numa perspecti- va apologética, dela fez Frei António de Beja no seu
Contra os Juízos dos Astrólogos, de 1523 (Martins, 1989, pp. 573-618). Ainda em
1541, no prefácio do De crepusculis, o sábio Pedro Nunes se via na necessidade de
exarar que a obra tratava da «teórica da Astronomia, isto é, da ciência que se ocupa
do curso dos astros e da universal composição do céu, que não da crendice vã e já
quase rejeitada que emite juízos sobre a vida e a fortuna» (Nunes, Obras, 1940-1960,
vol. n, p. 149).
A oração pronunciada por D. Pedro de Meneses em 1504 vale, assim, como índice de
uma atmosfera intelectual não recetiva à novidade (Carvalho, 1986, pp. 128-
134). Os estatutos manuelinos — que vigorariam cerca de quarenta anos, até 1544 —
corroboram, no imobilismo do seu plano de estudos e na prática rotineira do ensino
deles decorrente, essa impermeabilidade da inteligência universitária à
dinâmica científica e cultural das navegações.
E, no entanto, a consciência de viver uma nova época, consciência que revela a
profunda comoção histórica que se estava a viver, assomava já em 1493 na oração de
obediência pronunciada por Fernando de Almeida perante o papa Alexandre VI. O rei
D. João II, proclama o embaixador, «ampliou, como bem se sabe, o género humano com
o achamento de novos homens, dilatou o mundo dando ao mundo novas e inúmeras
ilhas remotas, e por sua iniciativa tomou certas e conhecidas as que ignorávamos»
(Orações de Obediência, 1958, IV, p. 17). Uma dúzia de anos volvidos, conquistada a
Índia, noutro ato idêntico, Diogo Pacheco acrescentava um novo preito ao pontífice
Júlio II: «Recebei a obediência oriental, desconhecida de vossos antecessores mas
reservada para vós [...] Recebei, enfim, o próprio mundo. O mundo? Não, outras terras,
outro mar, outros mundos, outras estrelas» (ibid., V, p. 18). O adjetivo «novo» (ou o
seu sucedâneo «outro»), que enfatiza os passos transcritos, surge também
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emblematicamente reiterado nos dois versos com que um vate do Cancioneiro Geral
(publicado em 1516) abre uma poesia dedicada a Vasco da Gama: o almirante «achou
novo mundo,/nova terra e novo clima» (Cancioneiro, 1910-1917, vol. III, p. 211).
Do que viu no novo mundo descoberto por Cabral deu Pêro Vaz de Caminha conta ao
rei D. Manuel na admirável carta que datou do primeiro dia de Maio de 1500. Simples
escrivão da armada, é pela singela «linguagem dos olhos», sem adereços verbais de
gabinete, que ele apreende e traduz as imagens insuspeitadas que o deslumbraram; o
verbo «ver», em catadupa anafórica, comanda a descrição, toda ela visualista e
animada de movimento e cor, da paisagem, da fauna e da flora exóticas — sobretudo
dos homens, que retrata num frémito de ecuménica fraternidade: «E dali houvemos
vista d’homens, que andavam pela praia [...] A feição deles é serem pardos, maneira
d’avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma
cobertura, nem estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão
acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto» (Caminha, 1974, pp.
34-38).
Melhor, pois, do que na oratória dos diplomatas ou nos panegíricos dos poetas
áulicos, o sentimento da novidade e da mudança assume uma vívida intensidade nas
relações manuscritas elaboradas pelos próprios protagonistas da aventura: os
roteiristas e pilotos, os homens do mar. Uma das mais plenas e puras imagens desse
novo tipo de homem que navega e escreve sobre mares e terras ignotos, depara-se
em Duarte Pacheco Pereira, um marinheiro nascido no terceiro quartel do século XV.
Desde 1508 até talvez 1520 (morreu em 1533), trabalhou na redação de um tratado
de marinharia e cosmografia a que deu o título (hoje algo enigmático) de Esmeraldo
de situ orbis e em que compendiou a sua experiência de navegante e técnico de
navegação. «Experiência», aliás, é palavra que amiúde lhe vem ao bico da pena. Mas
não se queira extrair da recorrência de máximas como «a experiência que é madre das
cousas, nos desengana e de toda a dúvida nos tira» (Pereira, 1988a, p. 20) qualquer
precocidade nos processos da metodologia experimentalista. O advento do moderno
espírito científico teria ainda de dobrar as tormentas de invalidação da epistemologia
escolástica, livresca e comentarística.
É esse giro de mentalidade, signo da passagem da conceção estática para a conceção
dinâmica da inteligência humana, que palpita no apelo de Duarte Pacheco a uma
experiência que, além de empírica, é sobretudo pessoal. «E assim seguiremos nosso
propósito nesta tão trabalhosa jornada da qual a experiência nos ensinou a verdade de
tudo o que adiante dissermos» (ibid., p. 205), enuncia ele. Não estava
desacompanhado no recurso ao «ver» e ao «praticar» como formas de captação da
realidade. Um seu contemporâneo, Tomé Pires, boticário enviado para a Índia como
«feitor das drogarias», de lá remeteu ao rei uma Suma Oriental, escrita pelos anos de
1512 a 1515, que é uma minuciosa e precisa descrição das terras e gentes asiáticas.
Logo no prólogo do manuscrito atesta a fonte em que recolheu os informes
históricos, geográficos, etnográficos e económicos que preenchem o seu relatório:
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«nós cá tudo passamos, experimentamos e vemos» (Cortesão, 1944, p. 77); e os verbos


que traduzem o afã de saber que o caracteriza são «inquirir» e «investigar»,
«perguntar» e «verificar» — o que o leva a descrer dos relatos sobre monstros e
outros fenómenos excecionais da Natureza, porque «nunca vi» (ibid., pp. 77-78).
A experiência pessoal converte-se, desde modo, senão na suprema autoridade, pelo
menos na única instância válida para a comprovação do legado científico e cultural
transmitido pelos antigos; e os efeitos de tal rotunda afirmação da individualidade
são demolidores para a sabedoria consagrada, quer a medieva quer a clássica. No
capítulo primeiro do IV livro do Esmeraldo — epigrafado: «Do que disseram alguns
escritores antigos, como a linha equinocial e a terra que jaz debaixo dela era
inabitável» — o autor confronta a geografia real, qual ele a testemunhara, com as
ideias cosmográficas de Ptolemeu e Pompónio Mela, de Plínio e Sacrobosco. E
declara, nomeadamente: «Nunca os nossos antigos antecessores, nem outros muito
mais antigos doutras estranhas gerações, puderam crer que podia vir tempo que o
nosso ocidente fora do oriente conhecido e da índia pelo modo que agora é; porque os
escritores, que daquelas partes falaram, escreveram delas tantas fábulas, por onde a
todos pareceu impossível que os indianos mares e terras do nosso ocidente se pudessem
navegar» (Pereira, 1988a, p. 195).
Ficava, assim, pela praxe dos portugueses envolvidos na exploração dos continentes e
mares, desmentida a inabitabilidade da zona tórrida, a incomunicabilidade dos
oceanos, a inexistência dos antípodas — toda uma dogmática milenária. Ficava, em
contrapartida, demonstrada a capacidade do homem para dominar o Mundo e
devassar os mistérios da Natureza. Tudo à custa do esforço humano, pois —
acrescenta pouco mais adiante — quando D. Manuel mandou Vasco da Gama «a
descobrir e saber aqueles mares e terras com que os antigos punham tão grande medo e
espanto [...] com muito trabalho achou o contrário do que os antigos escritores
disseram» (ibid., pp. 196-197).
A atitude mental que ditou este e outros passos revela uma profunda mudança na
relação do homem com o Mundo e, ao afetar radicalmente a conceção da pessoa, a
consciência da individualidade, abre caminho para a teorização
antropocêntrica que tipifica o humanismo. Um humanismo que, no caso vertente,
ao invés de se comprazer no programa de imitação e restituição dos antigos, em que
se havia empenhado a corrente classicista, surge animado de um impulso ascendente,
virado para o futuro, impelido por essa «vertigem do espaço» (Godinho, 1990, pp. 58 e
segs.) que, desde o limiar do século XVI, se apoderou dos homens ligados à Expansão.
Para Duarte Pacheco Pereira, os antigos já não são superiores nem podem servir de
exemplo face ao abundante repertório de descobertas de que se ufana. Fraco
latinista, utiliza, quer para a seguir quer para a rebater, a História Natural de Plínio
numa tradução italiana quatrocentista (Carvalho, 1982, p. 76). Diferentemente, e
como acima salientámos, Martinho de Figueiredo editou, em 1529, um erudito

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comentário filológico ao prólogo da mesma obra. As duas orientações de inteligência,


que podemos personificar nas figuras do técnico de navegação e do discípulo de
Poliziano, tinham em comum a atitude renovadora, mas afastavam-se na diretriz
fundamental. Enquanto a de cunho prático, valorizando a experiência empírica e
proclamando a superioridade dos modernos sobre os antigos, anuncia uma visão de
progresso, já a histórico-filológica e retórica, embora externamente modernizada,
atém-se à conceção tradicional de que o saber não se produz, antes se acha
depositado no reduzido continente de uns escassos livros, donde há que resgatá-lo.
Talvez por isso mesmo (já se insinuou) as novidades carreadas pelos humanistas
«práticos» depararam com a incompreensão e o alheamento quase generalizados da
parte dos humanistas «livrescos» (Albuquerque, 1987b, pp. 133-148). Talvez por isso
(acrescente-se agora) as obras de um Duarte Pacheco Pereira, de um Tomé Pires e de
outros que adiante se vão referir não tiveram divulgação pela imprensa — esse
invento fundamental para a difusão da cultura humanista — e sofreram um
ostracismo que durou séculos.
A geração de quinhentos e a modernização (pp. 338-356)
O erasmismo na renovação da cultura portuguesa
Já se pôs em relevo o fluxo e refluxo de escolares portugueses que, desde os finais do
século XV, frequentaram universidades estrangeiras, sobretudo italianas; e,
paralelamente, a «importação de eruditos» — caso de Cataldo Sículo —, que, na
qualidade de preceptores, se estabeleceram em Portugal. Quer uma quer outra
corrente desse duplo movimento assumiu, todavia, até ao segundo quartel do século
XVI, escassa dimensão. O que significa que, no período considerado, foram reduzidos
os contactos da vida cultural portuguesa com o humanismo europeu. Resultaram
antes de iniciativas individuais e desgarradas do que de um propósito assumido de
intercâmbio.
É inquestionável que sob D. João III ganhou vulto um fenómeno de «investimento na
cultura» que, tanto quantitativa quanto qualitativamente, não teve precedentes na
nossa história. A modernização do aparelho cultural respondia, aliás, e a um tempo, a
solicitações que se prendiam com a necessidade de acertar o passo pelo da
Europa evoluída e com as exigências do processo de concentração, racionalização e
secularização do Poder — portanto, da própria construção do Estado moderno.
O investimento na cultura, sobre ser um imperativo das circunstâncias históricas, só
a prazo relativamente largo poderia surtir. Na impossibilidade de, com os recursos
humanos existentes, promover a instituição imediata de novos focos de cultura no
País, as primeiras iniciativas do governo joanino dirigiram-se para a formação de
quadros no exterior. Inscreve-se nesse objetivo o acordo firmado em 1526 com
Diogo de Gouveia (designado «Sénior», para o distinguir de um sobrinho homónimo),
um doutor em Teologia pela Universidade de Paris e que aí granjeara, nos arraiais
tradicionalistas afetos à escolástica, prestígio de mestre insigne — e, sobretudo, de
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anti-erasmista militante. O teólogo arrendara anos antes o colégio parisiense de


Santa Bárbara, de que era Principal, e a munificência régia, proporcionando a
manutenção de cerca de 50 bolseiros estudantes portugueses, fez deste
estabelecimento o centro intelectual em que se forjaram muitos dos que, uma vez
regressados, vieram a ser (contra os desejos do mentor) os agentes das reformas do
ensino levadas à prática na década de 40. Mas isso não significa que o lapso de tempo
entretanto decorrido tivesse sido um mero compasso de espera. De 1527 — data do
impulso no envio de bolseiros para França — a 1547 — ano da fundação do Colégio
das Artes de Coimbra, expoente dos propósitos da cultura renovada —, o eixo da vida
cultural portuguesa deslocou-se decisivamente para o campo do humanismo.
Quem diz humanismo, no contexto dos anos 30 do século XVI, diz necessariamente
erasmismo. O prestígio do sábio de Roterdão estava por essa altura no auge; a sua
doutrina, que associava as técnicas e conteúdos do património humanístico — o
método histórico-filológico e a defesa das belas-letras contra os esquemas e
processos da escolástica — com as aspirações de um cristianismo espiritual, ético e
evangélico, suscitava, principalmente nos Países Baixos, na Alemanha meridional e
em França, a adesão de numerosos intelectuais influentes.
A Península Hispânica também não ficou imune ao influxo desse humanismo cristão,
para quem cultura e vivência religiosa obedeciam ao mesmo e indissociável impulso
renovador — e Nebrija é apenas um exemplo paradigmático e precoce de tal
consórcio. O inconclusivo debate que teve lugar na Assembleia de Valhadolid, reunida
de 27 de Junho a 13 de Agosto de 1527 para examinar a ortodoxia do pensamento
erasmiano, demonstra que entre os teólogos ibéricos havia quem se inclinasse para o
erasmismo. Não assim no que toca aos três representantes portugueses no conclave:
Pedro Margalho, Estêvão de Almeida e Diogo de Gouveia Sénior, todos se
pronunciaram pela condenação de Erasmo e das suas obras. O Principal de Santa
Bárbara, nomeadamente, fazia da escolástica uma armadura ideológica contra as
implicações religioso-culturais de um humanismo que, em sua opinião, conduziria ao
luteranismo (Dias, 1969, pp. 65-71).
A reação de Gouveia Sénior e seus pares prenunciava os confrontos que se
agudizaram na fase terminal do reinado de D. João III e se saldaram na liquidação da
corrente erasmiana. Por ora, contudo, a maré na corte joanina era favorável à
penetração dos ideais renovadores.
O erasmismo teve importantes adorações na obra, aparecida em 1532, de um alto
funcionário administrativo, João de Barros. Sob o título irregularmente helenizado de
Ropicapnefma — «a que em nossa linguagem podeis chamar Mercadoria espiritual»
(Barros, vol. n, 1983, p. 6) — o autor, tesoureiro e feitor da Casa da índia, Mina e
Ceuta transplantou analogicamente para o seu texto ético-filosófico a dinâmica da
comercialização, de que era abalizado conhecedor. E atendendo às suas funções, há
pouco interrompidas, e às de Duarte de Resende, a quem dedica o livro e que fora

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

feitor nas ilhas de Maluco, que Barros considera que «nenhuma linguagem podia
convir mais a vós e a mim que a que tratasse de mercadoria, feita em colóquios, por ser
tempo deles» (ibid., p. 5).
Com efeito, o cariz francamente inovador da obra ressalta desde logo da correlação
da mentalidade mercantilista que impregnara as relações humanas e que leva um
interlocutor a sustentar que «coisa alguma há no mundo fora da mercadoria [...] todas
as qualidades de homens, quer sejam eclesiásticos, quer seculares, com quantas
dignidades, estados e ofícios houver entre eles, nenhum vive sem comprar e vender»
(ibid., p. 45); e da estrutura dialógica, registando uma amena conversação, que, ao
invés do que sucedia nas disputas escolásticas, não se processa por diatribes em
forma de silogismos nem conclui pelo triunfo explícito de qualquer dos postulantes.
João de Barros, ao jeito do simbolismo medieval de ressaibos vicentinos, coloca em
cena quatro entidades alegóricas que define assim: «A Vontade e o Entendimento, que
são as principais partes da alma, deixando a Razão, sua superior, ajuntaram-se com o
Tempo e fizeram-se mercadores de espirituais mercadorias, que são os vícios que estas
duas potências aceitam e compram quando desobedecem à Razão [...] Vão as três
pessoas que disse seu caminho enquanto dura a vida e, à hora da morte (que é a ponte
por onde todos os mortais passam do reino deste mundo para o outro), acham a Razão
[...] pelo juízo da qual são, nesta vida, julgadas todas as mercadorias e empregos que
cada um nela fez» (ibid., pp. 7-8). Não é, bem entendido, a razão natural ou
secularizada (muito menos, claro, a posterior razão cartesiana) aquela que tem por
missão examinar os vícios mundanos «segundo as leis e preceitos que lhe foram dados
pelo Senhor» (ibid., p. 12): trata-se da razão católica — que, ainda assim, não deixa de
ser razão e de argumentar «racionalmente», se por este termo entendermos
disposição para convencer pela persuasão e não para impor juízos dogmáticos
(também não é, portanto, a razão abstrata e dialética da escolástica).
Mais do que atacar, a Razão defende-se. E é aqui, quando se entrega à apologia dos
valores éticos e espirituais da mensagem evangélica, que a marca da influência
erasmiana mais sobressai. Longe de fulminar com anátemas os heréticos
contrabandistas, a Razão dispõe-se tolerantemente a ouvi-los, estabelece com eles
uma relação de reciprocidade e assina-lhes mesmo os respetivos papéis: como «a
maior parte deste negócio é da Vontade, ela apresente suas mercadorias, diga as
bondades que lhe acha e eu responderei. O Entendimento nas coisas em que tiver dúvida
pode perguntar e algumas mover segundo o que disso sente. Tu [Tempo], como padre
em quem está a experiência do passado e do presente, peço-te que aproves o justo, e
reproves o contrário» (ibid., p. 19).
Decorre desta abertura à explanação de diversos pontos de vista uma ambiguidade
que não cessa de se acentuar ao longo do debate e convida, por isso à sugestão de
múltiplas leituras. Recorrendo a uma ironia que por vezes raia a sátira, segundo o
processo erasmiano de condenar através do elogio — «louvando eles a si mesmos,

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

repreendem por ela [pela Razão]» (ibid., p. 9) —, as três personificações dos vícios
mundanos vão trazendo à cotação a inanidade do saber escolástico e seus cultores
(geógrafos, astrólogos, médicos, legistas, etc.) (ibid., pp. 41-48), a teologia disputativa
e a arenga ininteligível dos pregadores (ibid., pp. 49-50), a hipocrisia cortesã e a
corrupção clerical (ibid., pp. 51 e segs.), a adulteração monástica da doutrina cristã e
a falsa devoção santeira (ibid., pp. 94-96), o belicismo e a prosápia linhagística da
nobreza (ibid., pp. 141-142)...
O carácter não sistematizado das críticas — para muitas das quais a Razão não
encontra resposta, tacitamente as aprovando, e chega a confessar ao Tempo:
«verdade é que entre tuas palavras, vão muitas proveitosas e justas» (ibid., p. 130) —,
bem como a linguagem figurada em que se cifram, não favorecem a sua ilustração
com enunciados do texto. Sirva aqui de amostragem esta eloquente fala que a
Vontade dirige à Razão: «E quero-te descobrir alguns segredos desta nossa negociação,
por saberes quanto mais proveitosos são os meus que os teus preceitos, e tão estimados
de todos que a maior parte dos príncipes eclesiásticos e seculares mais se governa por
eles que por os artigos da fé que têm. E sabes a causa? Por verem que o estado está no
poder, e o poder no dinheiro, e o dinheiro no trato, e o trato na cobiça, que é uma
perenal fonte donde todos os bens manam» (ibid., p. 68).
Finalmente, antes de o colóquio se suspender por intervenção do Tempo e para
permitir aos seus dois companheiros uma mais ponderada meditação dos conselhos
da Razão (o que dá à Ropicapnefma um imprevisto carácter de «Obra aberta»), esta
última exorta os interlocutores a renovarem-se em espírito, a confiarem na imensa
misericórdia de Deus e a fazerem da mensagem evangélica um ideal de vida; e,
entremeando no seu discurso edificante citações tanto dos Santos Padres como dos
moralistas pagãos, remata enfatizando a conceção espiritualista, personalista e
laicista do cristianismo: «Porque a deleitação da boa e pura consciência é um terreal
paraíso, semelhança do celestial que esperamos» (ibid., p. 150).
A filiação erasmiana deste e de outros tópicos (cf. a análise exaustiva de Dias, 1969,
pp. 257-279) não impediu que o livro saísse em 1532 dos prelos do impressor
francês Germão Galharde. Bem advertira, in limine, o autor, para se precaver de
interpretações malévolas, que «a maior parte desta obra que vai em metáfora, e que as
coisas que a Vontade, Entendimento e Tempo arguem contra a Razão são as que
qualquer infiel e pecador pode arguir, e, com esta condição, sem lhe dar outro crédito,
as receba [o leitor]. Esta é a principal coisa que encomendo e peço àqueles que tanto
não alcançam» (Barros, vol. n, 1983, p. 7). Tanto, de facto, não alcançaram os
censores que em 1581 (João de Barros morrera em 1570), quando a ordem
ideológica contra-reformista dominava cultural e politicamente e não deixava já
margem sequer para as expressões moderadas do erasmismo, puseram a
Ropicapnefma no Index.
Texto de vincada originalidade no domínio ermo da reflexão ético-filosófica em

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

Portugal, para além do valor intrínseco da obra merece que se gaste nela quem
pretenda inteligir as linhas de força mentais do reinado joanino. O valimento de
Barros junto de D. João III, de quem foi amigo, panegirista e historiador oficial, e os
altos cargos que continuou a desempenhar até muito depois de publicada a Ropica,
nomeadamente os de feitor das Casas de Guiné e da Índia, inculcam a permeabilidade
da corte, no raiar do decénio de 30, ao humanismo cristão.
Os próceres europeus deste movimento de ideias merecem-lhe, aliás, um interesse
que excedeu a mera amabilidade: o chefe espiritual de todos eles, Erasmo, chegou a
dedicar a D. João III as suas Chrysostomi lucubrationes, de 1527, e o monarca
português, a crer no testemunho de Damião de Góis, cogitou convidá-lo para a
Universidade de Coimbra; e Luis Vives, o erudito espanhol que gozava da estima de
João de Barros, também ofereceu ao rei o seu De disciplinis, impresso em Antuérpia
em 1531, livro que «é, ao mesmo tempo, a crítica mais sistemática da cultura
universitária preexistente e o manifesto mais completo do humanismo no campo
pedagógico, até ali publicado» (Dias, 1969, p. 582; Cf. também p. 866) — e a cuja
influência não teria sido estranha a mudança da Universidade para Coimbra.
Outro forte motivo justifica ainda a atenção dedicada a João de Barros. Consiste em
o futuro historiógrafo da Ásia, nascido cerca de 1496, ser o «decano» da geração de
Quinhentos, geração decisiva, que marca na cultura portuguesa um ponto de
inflexão e o começo de uma etapa nova.
Com efeito, com o século (mais exatamente no triénio 1500-1502), vêm ao mundo
André de Resende, D. João de Castro, Garcia de Orta, Pedro Nunes, Damião de Góis,
André de Gouveia (este em data incerta, mas chegada) — e o próprio D. João III. Estes
homens, todos coetâneos, irromperam (afora o rei, que sucedeu no trono em 1521)
na história pelos anos 30, depois de uma fase de gestação mental determinada pelas
transformações oriundas dos descobrimentos marítimos e do humanismo europeu. A
Ropicapnefma assinala, precisamente, o advento do período efetivo e produtivo
dessa plêiade de humanistas. As trajetórias díspares que cada um deles seguiu e a
desigual fortuna do seu labor não invalidam a objetiva unidade de propósitos que
conferiu afinidade aos integrantes do compósito grupo. Foram eles que
(excetuando o caso específico de Garcia de Orta, que se expatriou exatamente quando
os restantes se afirmavam), na «idade ativa» da geração, que decorre até aos meados
do século, agenciaram a modernização da cultura portuguesa.
Damião de Gois
Não foi decerto por acaso que, corria o ano de 1533, D. João III tributou um generoso
acolhimento a André de Resende e a Damião de Góis, então regressados de longas
digressões no estrangeiro. O segundo pouco se demorou; havia uma década que,
secretário da feitoria da Flandres, no desempenho de missões comerciais e
diplomáticas viajava por Inglaterra, França e Países Bálticos; numa dessas
deslocações, a curiosidade de conhecer Lutero e Melanchton levou-o a Wittenberg, e
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

aí jantou com os dois reformadores; ultimamente estudara em Lovaina e dali partira


para Friburgo, onde, hospedado por Erasmo, firmou com o arauto do humanismo
cristão uma sólida e duradoura amizade.
A família real e a sua roda interessaram-se vivamente pelas relações cosmopolitas de
Damião de Góis; e muitos anos volvidos, em 1571, recordava ele perante os
inquisidores: «Depois que vim a Portugal no ano de 1533, chamado para o ofício de
tesoureiro da Casa da Índia, El-rei que santa glória haja e os Infantes seus irmãos e
outros senhores do Reino me perguntaram com muito gosto e mui particularmente pelo
discurso das minhas peregrinações, falando-me em Lutero e nas cousas da Alemanha,
reis e príncipes dela, e por El-rei que santa glória haja saber que vira eu já Erasmo
Roterodamo e que éramos amigos, me perguntou se o poderia eu fazer vir a este Reino
para se dele servir em Coimbra, onde tinha já ordenado de fazer os estudos que fez, ao
que lhe respondi o que disso me parecia» (Rêgo, 1971, p. 139).
Queria-o o rei junto de si, e, se esse desejo se tivesse concretizado, mais vincado teria,
quiçá, sido o papel de Damião de Góis na definição do rumo da modernização cultural
do País; optou, contudo, por se retirar logo no princípio de 1535 e foi-se a viver uns
meses com Erasmo, depois a frequentar por quatro anos a Universidade de Pádua.
Reinstalado em Lovaina, publicou em 1540 uma defesa da genuinidade do
cristianismo etíope, em aplicação do princípio, tão caro a Erasmo, da primazia da
adesão espiritual sobre os formalismos e as diversidades cultuais. O opúsculo —
Fides, religio moresque Æthiopum — teve má aceitação em Portugal e o cardeal D.
Henrique, amavelmente embora, proibiu-o de circular. Quando o autor voltou de vez
em 1545, a conjuntura político-cultural já estava em vias de viragem e, embora sem
consequências imediatas, foi acolhido, da parte do influente introdutor da Companhia
de Jesus no Reino, Simão Rodrigues, que o arguia de simpatias luteranas, com uma
denúncia no Santo Ofício.
André de Resende
À data deste segundo e definitivo regresso de Damião de Góis, esmorecera já, embora
ainda não de todo, a voz potente e audaz de André de Resende. Mas em 1534, no
ano seguinte à chegada do dominicano egresso, ela soara, com uma impetuosa
vibração de acentos erasmianos, nessa Oratio pro rostris que, pela veemência da
expressão e arrojado do conteúdo, pelo lugar em que foi proferida — a Universidade
de Lisboa, na abertura das aulas e ainda por se situar cronologicamente nas vésperas
das reformas escolares de D. João III, bem pode considerar-se o manifesto do
humanismo pedagógico em Portugal.
Quando ingressou, entusiasticamente recebido, na corte, que por então estava em
Évora, sua terra natal, Resende trazia no ativo um poema recente, conhecido como
Erasmi encomium, editado em Basileia em 1531 e que era um caloroso panegírico do
roterdamês. Estava, pois, firmemente imbuído do ideário religioso e cultural (ambas
as componentes eram indissociáveis) da escola erasmiana. Não lograra conhecer
CULTURA - 13
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

pessoalmente o mestre, mas, após ter sido iniciado na gramática latina pelo
malogrado propugnador da «arte nova», Estêvão Cavaleiro (Resende, 1956, p. 55),
ouvira Nebrija nas Universidades de Alcalá de Henares e de Salamanca; depois tomou
o caminho dos Países Baixos, entremeando a frequência de Lovaina com surtidas a
Paris. Das amizades que aí travou nos círculos do humanismo cristão resultou a
primeira incumbência que o rei lhe cometeu: deslocou-se a Salamanca e trouxe o
flamengo Nicolau Clenardo para preceptor do infante D. Henrique, futuro cardeal e
então, à idade de 21 anos, arcebispo de Braga.
Sucedeu isto nos finais de 1533, e a Oratio pro rostris foi pronunciada no dia 1 de
Outubro de 1534. Trinta anos exatos separam a oração de sapiência de André de
Resende daquela sua congénere de D. Pedro de Meneses, atrás referida. De uma à
outra vai a distância do classicismo, ainda metido na moldura do medievalismo, ao
humanismo doutrinário e polémico, em declarada rutura com o passado medieval —
o remoto e o recente. Não sofrem dúvidas os termos em que o orador increpa o
primeiro: «Para quê lamentarmos mais que a ruína mortal da elegância grega e latina,
que remonta há mais de mil anos, à invasão dos Godos, da qual se seguiu uma
desmedida ignorância, até nas outras artes? Oh! Tenebrosos tempos, que não
recordamos sem ofensa dos nossos maiores, e dor dos nossos corações; que não
esquecemos sem suma vergonha; de que não nos enojamos e lamentamos sem vergonha
ainda maior!» (ibid., p. 37); e o segundo; «A vossa fé, doutíssimos senhores, sobre quem
impende o cuidado de instruir a juventude, a vossa fé, digo, peço e imploro, para que
não sofrais que engenhos, aliás bons, continuem mais tempo envoltos em mísero e
nebuloso erro, mormente agora que, por onde quer que se estende, quase toda a Europa
renasce, agora que todas as terras, até as outrora mais bárbaras, aspiram à antiga
felicidade do século mais culto |...] No entanto, estas nações [cultas da Europa] vencem-
nos, não pelo engenho, não pela felicidade de um clima mais favorável, mas somente, e
com vantagens, pelo cuidado e paciência dos estudos. Por isso, nelas, todos os dias
aparecem homens doutos, que com os monumentos do seu engenho alcançam renome
para si, e imortalidade para a pátria. Quando lemos os seus escritos, em boa verdade
devíamos envergonhar-nos da nossa barbárie e do nosso desleixo» (ibid., pp. 37-39).
Há a consciência histórica de viver uma nova idade e uma valoração positiva do
presente; a Europa emerge do caliginoso e ominoso milénio gótico, a Europa
«renasce» — resipiscit, no latim original (ibid., p. 38). E esta visão das diferenças
qualitativas entre tempos históricos distintos, mas referidos ao mesmo espaço
unitário europeu, dobra-se de uma comparação sincrónica operada sobre a bitola dos
valores humanistas. Quem, como André de Resende, estanciara longos anos no
estrangeiro, em contacto — e, logo, em necessário confronto — com outras
realidades culturais, podia medir com objetividade o diferencial de níveis entre a
restante Europa — «não já da própria Itália, da Alemanha, que no presente disputa a
palma das letras à Itália, e finalmente, da Sarmácia, outrora a mais bárbara das
terras» (ibid., p. 39) — e Portugal. Julgamos que ninguém, antes de Resende,

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

formulou com tamanha pertinência crítica um juízo relativo sobre o atraso da cultura
portuguesa e equacionou a sua superação pela integração no ritmo europeu do
movimento humanista.
O programa pedagógico de André de Resende desenvolve-se a partir do tópico, que se
depara num trecho de Nebrija, do elogio do estudo das letras, «que, por ser o mais
digno de um homem livre, já outrora, com propriedade reivindicava o título de liberal»
(ibid., p. 33). A promoção das letras é também a de um tipo social novo, o homem
educado, que, mesmo sendo plebeu, se nobilita pelo saber, ao passo que a ignorância
degrada o tipo social arcaico, o homem de armas, «embora glorioso pela linhagem,
pelos costumes e pelos feitos» (ibid., p. 33).
A formação intelectual prevalece, pois, sobre o privilégio de nascimento, a
humanitas sobre a nobilitas. Comparando a dignidade dos estudos com as outras
ocupações humanas, o orador invoca «o pai da filosofia e da eloquência latinas»,
Cícero, que «considerou o fazer guerras mais próximo das feras que dos homens»; ao
invés, «o estudo das letras tem labores dulcíssimos, frutos mais doces, cuidados de alma
recreativos, e, devido à indagação da verdade ou perspiciência, uma propriedade muito
semelhante à divindade» (ibid., p. 35). E começa, invertendo a ordem dos fatores
elencados na oração de D. Pedro de Meneses, por falar da gramática — entendida,
explica ele, no sentido moderno de filologia; dedica uns estirados períodos a verberar
o menosprezo a que era votada nas escolas, após o que adverte: «Não deve, pois, ser
tratada superficialmente esta arte, raiz de todas as mais, que vagueia engenhosamente
por entre todas as outras, à semelhança da graciosa abelha do Himeto, que, errando
pelos agros verdejantes, pasce ora estas, ora aquelas flores» (ibid., p. 37) — imagem
retirada de Erasmo, que queria que os escritores fossem coMo abelhas que fabricam
o seu mel com os néctares de variadas flores.
Nenhuma das disciplinas do currículo sai indemne do articulado exercício crítico a
que André de Resende se aplica. À dialética e retórica disputativa e sofística opõe a
busca da verdade e o efeito da persuasão (ibid., pp. 41-43): na medicina, postula,
contra a incúria e inaptidão dos médicos, a incindível unidade das partes dietética,
farmacêutica e cirúrgica (ibid., pp. 45-47); para o cabal conhecimento das leis civis e
pontifícias, exige a prévia assimilação da ética natural e divina, coisa que, ao
contrário do que era norma, não se aprende em poucos meses (ibid., pp. 47-49); de
propósito, deixa para o final a teologia. Ouçamo-lo neste ponto: «A tal nível chegámos,
que, abandonado o extensíssimo campo das Escrituras, abandonado o brilho e a
elegância da expressão, que os Antigos sempre juntaram à piedade, perseguindo meras
subtilezas, obrigamos a teologia, rainha de todas as disciplinas, a servir a metafísica»
(ibid., p. 51). Convertida, pelas rivalidades e agudezas das seitas, numa gíria
escolástica, a teologia precisa revigorar-se pelo regresso às fontes — às Escrituras e
aos Padres da Igreja; e muito particularmente, sublinha, pelo consórcio dos clássicos
cristãos com os clássicos pagãos: «Soframos que entre as divinas letras se misturem

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

os princípios do divino Platão e do grande Aristóteles. Não desprezemos os preceitos


dos melhores filósofos» (ibid., p. 51).
Desde o início que ele vinha proclamando a concórdia da cultura cristã com a cultura
profana: quer sustentando a importância do grego, complementar do latim para o
acesso aos textos sagrados, literários e científicos (ibid., pp. 39-41); quer repudiando
os que, arrogando-se uma suficiência petulante — «cristão sou, não ciceroniano» —,
procedem «como se o ornato do estilo contendesse com a religião» (ibid., p. 43); quer
ainda reivindicando a consonância das duas morais: «estes princípios de tal modo
foram formulados pelo mais ilustre príncipe da filosofia latina, que em nada divergem
dos preceitos da nossa religião» (ibid., p. 47); quer, enfim, confessando
desenfadadamente não ver «em que ponto a eloquência brigue com as letras divinas»
(ibid., p. 53). Numa palavra, a lição que sobre o homem, a vida e a virtude nos
legaram os autores pagãos é perfeitamente incorporável no cristianismo.
Ignoramos como calou, na seleta assembleia que nas calendas de Outubro de 1534 se
congregou na academia lisboeta para escutar o «estrangeirado» André de Resende,
esta apologia do ideal humanístico, a que não faltou sequer a menção desse
«Desidério Erasmo, varão de agudíssimo engenho, um segundo Aristarco no julgar os
escritores do nosso século» (ibid., p. 55). Sabemos, contudo, que por essa altura já D.
João III decidira reformar a universidade e a oração de Resende, se alguma
influência teve no ânimo do monarca (e decerto que a teve), contribuiu seguramente
para consolidar a resolução e a urgência em ser efetivada. Tomava-se de facto
inadiável pôr cobro ao marasmo de uma instituição que, de tão desacreditada,
curricular, pedagógica e disciplinarmente, se convertera num corpo virtualmente
irreformável.
A reforma da Universidade
Daí a transferência, em 1537, da sede do Estudo Geral para Coimbra, o que, na
prática, equivaleu a uma refundação. Concomitantemente, operava-se a
reestruturação do sistema educativo, rompendo-se enfim com o medievo figurino
generalista de concentrar numa única escola todo o ciclo de estudos que ia das
primeiras letras às faculdades maiores. A atualização pedagógica e curricular do
ensino superior — sabiam-no quantos, como André de Resende, haviam passado
pelos grandes centros escolares da Europa — dependia de um ensino preparatório
de qualidade, ministrado em estabelecimentos independentes, à maneira de Paris, de
Oxford, de Salamanca e da renascentista Universidade de Alcalá de Henares, fundada
em 1509 pelo cardeal Cisneros. Ajustou-se a este modelo a diretriz que esteve
subjacente à reforma joanina: criar uma rede autónoma de colégios para leccionação
das disciplinas de base, preparatórias do grau superior.
Por ora, o processo de transferência, dada a magnitude dos meios exigidos e dos
interesses envolvidos, a que acresciam indefinições de conceptualização e
deficiências de planificação, sofreu atribulações de diversa ordem. Atalhada a
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

resistência dos lentes, que intentaram obstar a que a corporação saísse de Lisboa e
acabaram quase todos por se ficar na capital, teve de se improvisar um corpo docente
e aliciar, com salários principescos, mestres estrangeiros, como o renomado
canonista Martin de Azpilcueta (o «Doutor Navarro») e os teólogos Martinho de
Ledesma e Alfonso do Prado, provenientes das universidades espanholas de
Salamanca e Alcalá. Precárias tiveram também de ser as instalações para alojamento
dos estudantes e utilização de aulas. Na falta de edifícios adequados, acolheram-se na
maior parte ao Mosteiro de Santa Cruz e seus anexos e à residência do próprio reitor.
Escassos foram, nestas circunstâncias, os progressos registados na fase de transição,
que se prolongou até 1543, data em que Diogo de Murça assumiu o reitorado. Até aí,
o agente executivo e homem de confiança de D. João III fora Brás de Barros. Tanto
Barros como Murça eram monges jerónimos, e, regressados respetivamente em 1525
e 1533 de longos estágios em Paris e Lovaina, transportaram consigo luzes do
movimento erasmiano. Dedicaram-se, contando com as boas graças da corte, a
promover na congregação a que pertenciam a reforma espiritual e intelectual do
monacato. Frei Brás, apoiado pelo rei, fez construir nas cercanias do velho Mosteiro
de Santa Cruz quatro estabelecimentos (dois reservados às funções docentes, outros
tantos para residência de escolares) abertos à frequência de leigos. D. João III
aproveitou-os para neles instalar várias acuidades da universidade restaurada, e este
expediente, se obviava aos apertos financeiros do Estado, revelou-se em
contrapartida inviável pela confusão que proporcionava entre os níveis de ensino
preparatório e superior — que, afinal, se queriam separados e que, no entanto,
funcionavam debaixo do mesmo tecto, sob a dupla e conflitual autoridade do prior de
Santa Cruz e do reitor da universidade.
Coube a Frei Diogo de Murça (que cumpre incluir também na geração de
Quinhentos), para o efeito chamado do seu mosteiro de Santa Marinha da Costa
(Guimarães), onde depois de uma curta estada no de Penha Longa (Sintra) mantinha
um instituto de artes e humanidades, consumar a separação e desvincular
definitivamente a academia conimbricense da tutela monástica. Em 1544,
coincidindo com a outorga dos estatutos que revogaram os manuelinos, todas as
faculdades se reuniram nos paços reais, o doravante designado Paço das Escolas.
A reforma cobrava fôlego, mas subsistia o problema da institucionalização dos
estudos preparatórios a margem da universidade. Os colégios estabelecidos por Frei
Brás de Barros, que vinham funcionando desde 1535, constituíram um primeiro
ensaio nesse sentido; revelaram-se todavia pouco eficazes, mau grado a positiva
substituição da cediça orgânica escolástica do trívio e quadrívio por um currículo de
pendor humanístico em que destacavam as três línguas eruditas (Latim, Grego e
Hebraico), servidas por uns poucos regentes categorizados, entre os quais o francês
ou alemão Vicente Fabrício e o espanhol Juan Fernández. Estava há muito nos planos
de D. João III a chamada a Coimbra dos bolseiros no estrangeiro; era ao mesmo
tempo uma forma de rentabilizar o investimento efetuado e de suprir as dificuldades
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

no recrutamento de docentes. Cerca de 1543, perante o insucesso da experiência


crúzia, encetara o rei contactos com um dos seus ex-bolseiros de França, André de
Gouveia. No horizonte perfilava-se aquela que deveria ser a escola-padrão do
instituído sistema educativo estadual — o Colégio das Artes.
O Colégio das Artes
O projeto do Colégio Real das Artes significava, para a geração de Quinhentos, e que
desde os anos 30 porfiava pela modernização cultural do País, um patamar decisivo
no acesso às instâncias ideológicas do poder social: enquanto ponto de chegada,
representava o cúmulo dos esforços despendidos para implantar na terra portuguesa
um ensino digno de ombrear com o da Europa evoluída; enquanto ponto de partida,
augurava a passagem do testemunho a uma nova geração forjada nos moldes laicos e
cristãos do humanismo.
Era essa matriz laica e cristã que infundia na instituição um carácter que a
singularizava dos restantes colégios, monásticos e clericais. Num conhecido
passo de uma carta para D. João III, André de Gouveia denuncia a índole que quis
imprimir à sua academia: referindo-se aos arquitetos da corte, diz que «todos eles
entendem tão pouco em fazer colégio como o eu quero e deve ser como aqueles que
nunca fizeram outro senão para frades» (Dias, 1969, p. 560). O programa pedagógico-
cultural assente na combinação de cristianismo e laicismo desdobrava-se na tríplice
aliança da educação e do ensino, da piedade e do estudo, das letras e das «ciências»
— e tudo, em suma, tendendo para um vértice de unívoca valorização do homem bem
formado, cristão e culto realizando-se no mundo e não no cenóbio.
O primeiro e o segundo binómios — educação e ensino, piedade e estudo — refletem-
se na organização interna do estabelecimento, em que um professor-preceptor
acompanhava em permanência as quotidianas atividades letivas, religiosas e
recreativas de cada grupo de alunos; o terceiro as letras e as «ciências» — foi
consagrado no plano de estudos: após a instrução primária, passava-se ao ciclo
intermédio das «humanidades» e deste ao da «filosofia» (designação genérica que
abrangia também as matérias naturais), a que acresciam lições extraordinárias de
Grego, Hebraico e Matemática. No termo, adquiria-se a graduação em Artes, que tanto
tinha finalidade em si mesma como dava acesso direto à universidade. Garante da
autonomia pedagógica e administrativa do colégio em relação a esta última era a
disposição preambular do regimento: «Que o Reitor da dita Universidade, nem outra
pessoa alguma tenha superioridade sobre o dito Colégio» (ibid., pp. 543-563).
O Colégio das Artes nasceu porém minado por insanáveis contradições — e
contradições tanto internas como externas. Se as primeiras atuaram como mais
evidente fator de dissolução do empreendimento, nem por isso através delas menos
jogava o antagonismo que de fora, da sociedade e do Estado, opunha, aos que
preconizavam a abertura cultural e religiosa, os sectários da reação integrista,
apostados em identificar a causa de Erasmo com a de Lutero. Para estes últimos, a
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

cultura renovada era incompatível com a ortodoxia; e, à consubstanciação erasmiana


de humanismo e cristianismo, eles replicavam com a dissociação.
O ano de 1547 não é só o da fundação do colégio; é também o da confirmação e
constituição orgânica do Tribunal do Santo Ofício (criado em 1536) e o da saída
do primeiro rol de livros proibidos — e a coincidência não deixa de ser altamente
significativa. A ação judiciária e censória da Inquisição começava a abater-se
sobre os cristãos desconformes com o catolicismo dogmático e sobre as obras
— na frente, a maioria das de Erasmo — teologicamente mal reputadas.
Entretanto, ia chegando a Portugal o eco das definições doutrinárias adaptadas na
fase inicial do Concílio de Trento (1545-1547).
Nestas circunstâncias, ao inaugurar-se, em 22 de Fevereiro de 1548, o Colégio das
Artes assemelhava-se a uma cidadela sitiada. Reduto e guarda avançada da
modernização cultural e ideológica na terra portuguesa, a sua precária existência
correspondeu, na realidade, a uma transitória situação de compromisso. E a transição
apontava no sentido do integrismo contra-reformista, não do humanismo
progressista.
As contradições internas que dilaceraram a instituição remontavam a Paris e a 1534.
Nesta data, André de Gouveia abandonou a direção do Colégio de Santa Bárbara, em
que fora investido por delegação do tio, Diogo de Gouveia Sénior, e mudou-se,
levando consigo os melhores professores, entre os quais outros ex-bolseiros
portugueses, para o colégio bordalês da Guiena. A cisão teve motivações ideológicas
de fundo. «Folgaria» — escreve André três anos volvidos, já instalado em Bordéus —
«que [o senhor meu tio] me ouvisse, para ver se a teologia que se aprende pela Sagrada
Escritura e pelos Doutores da Igreja é melhor que a sua teologia sofística que se
aprende por Tartareto e Durando [teólogos escolásticos], nos quais porquanto eu não
quis perder o meu tempo tem ele comigo o que tem, porque daqui procede o princípio»
(Brandão, 1944, p. 273).
O que o tio tinha com ele e nunca escondeu era uma visceral animadversão. Logo que
soube que o sobrinho fora chamado para fundar o Colégio das Artes, apressou-se a
escrever ao rei insinuando que André «sente da farinha de Lutero» (ibid., p. 327). E o
tom das invetivas não cessou de crescer: além de luterano e herético, o menos que
lhe chama é ladrão — «esse ladrão de Mestre André, herético maldito» (Brandão, vol. I,
1926, p. 99), epítetos extensíveis aos restantes lentes bordaleses. Em contrapartida,
assumido mentor da falange escolástico-integrista, Gouveia Sénior empenhou-se
particularmente em recomendar ao rei os seus fiéis discípulos parisienses; foi assim
que Paio Rodrigues de Vilarinho e Marcos Romeiro, entre outros, ingressaram na
Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra e que ao sobrinho dileto, Diogo
de Gouveia Júnior, concedesse D. João III a mercê de seu capelão.
André de Gouveia — acerca do qual é obrigatório citar-se a sentença de Montaigne,
seu colegial em Guiena: «le plus grand et plus noble principal de France» (Essais, I, cap.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

25) — transplantou para a nova escola de Coimbra uma capacitada e experimentada


equipa de pedagogos oriunda do colégio bordalês: os compatriotas João da Costa,
Diogo de Teive e António Mendes de Carvalho; os franceses Nicolau de Grouchy,
Guilherme de Guérente, Elias Vinet, Arnaldo Fabrício e Jacques Tapie; e os escoceses
Jorge e Patrício Buchanan. A este núcleo coeso de mestres «bordaleses» agregaram-
se, para complementar o quadro de efetivos, alguns «parisienses» procedentes de
Santa Bárbara — e o enxerto revelou-se, no imediato, funesto para o destino da frágil
planta, já de si alojada em terreno hostil.
Como escola de vanguarda, o Colégio das Artes exigia, para poder vingar, a unidade
interna do corpo professoral. A intromissão do inimigo ideológico, acirrado à
distância pelo activo Gouveia Sénior, espalhou a cizânia no seio da família
humanística. Em carta de 13 de Março de 1548 para o rei, André de Gouveia faz o
ponto da situação à data da abertura do estabelecimento: «[Os alunos] passam de 800
e segundo o que vejo antes de um ano ajuntarei duas mil ovelhas ou bem perto delas.
Estão em tanto sossego e continuam tão bem seus estudos, que faz espanto a todos. De
sorte que os inimigos desta obra arrebentam pelas ilhargas porque não ousam dizer
mal pela muita contradição que teriam, e os outros dão louvores a Deus de verem o que
vêem» (Brandão, 1944, p. 276).
Três meses depois, em Junho, com a morte súbita e prematura de mestre André,
rompeu-se o equilíbrio instável que só o prestígio do falecido Principal moderara, e
os acontecimentos precipitaram-se. O colégio foi então palco do decisivo ajuste de
contas entre «bordaleses», acusados de protestantismo encoberto ou potencial, e
«parisienses», guardiães da ortodoxia.
Sob a feroz polarização de irredutibilidades pessoais escondia-se um intrincado
complexo de interesses políticos e religiosos. Nos anos conturbados de 1548-1550, o
cargo de Principal, refletindo as hesitações do rei, oscilou entre Diogo de Gouveia
Júnior, o tal primo de André recomendado pelo tio velho, e o mais próximo
colaborador do mesmo André, João da Costa. Entretanto, os professores estrangeiros
começaram a debandar, e uma provisão de 8 de Novembro de 1549, ao subordiná-lo
hierarquicamente à universidade, assestou um golpe fatal na independência
doutrinária do colégio.
Por fim, em Agosto de 1550, a prisão de João da Costa, de Diogo de Teive e de Jorge
Buchanan pelo Santo Ofício desagregou de vez o grupo dos «bordaleses» e soou como
um dobre de finados sobre o projeto pedagógico inspirado nos princípios do
humanismo cristão — e sobre a própria viabilidade desta corrente espiritual e
cultural. Confirmou-o a investidura, em 1551, de Paio Rodrigues de Vilarinho, teólogo
«parisiense» e criatura de Gouveia Sénior, no principalato do Colégio das Artes,
prenúncio do fim deste renovador ensaio, que se resolveria com a sua entrega
definitiva, quatro anos volvidos, aos homens da Companhia cujo alfobre fora o
Colégio de Santa Bárbara, os jesuítas, máxima expressão do espírito contra-

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

reformista.
Originalidade e marginalidade do humanismo dos Descobrimentos
Chamamos humanismo dos Descobrimentos ao movimento de ideias acionado pelas
navegações que abriram aos povos ibéricos a extensa redondez do orbe terrestre. A
mentalidade e os consequentes dinamismos culturais que elas suscitaram nos
intelectuais ligados ao mar não teve correspondência inteira com o impacte na
inteligência livresca e comentarística em vigor na cultura portuguesa. Nos homens de
letras, situados na retaguarda da ação, primou a visão épica e a exaltação mítica, o
entusiasmo «patriótico» e a retórica laudatória. E sem que o espírito de gesta e
cruzada religiosa deixasse de estar presente nos viajantes e exploradores — tamanho
foi o influxo desse complexo ideológico na conformação da mente nacional (Dias,
1982. pp. 13-52), estes homens práticos estabeleceram com o mundo alargado que se
lhes tornara explícito uma relação organizada mais na base das inéditas vivências
que experimentavam do que no império do livro e seu saber codificado. Recordemos
que, num Duarte Pacheco Pereira ou num Tomé Pires, foi o sentido da vista e o
deslumbramento do visto a despertar o ceticismo perante a tradição cultural e
científica.
Esse ceticismo acentuou-se, e converteu-se mesmo em criticismo larvar, naqueles
poucos humanistas da geração de Quinhentos que se interessaram pela Natureza,
observando-a e interrogando-a, tratando de conhecê-la e dominá-la, potenciando o
surto de um saber técnico e positivo e, acima de tudo, propulsionando a consciência
humanista no sentido do indivíduo pleno, autónomo, confiante na própria capacidade
criadora e conquistadora. Este humanismo dos Descobrimentos não repousa
contemplativamente em verdades estáveis e fixas, legadas pela Antiguidade; é
um humanismo que, apelando à razão e à experiência, aspira a alcançar a posse
empírica do Cosmos; é «essencialmente um descobrimento conexo ao descobrimento
do mundo, uma invenção do ser humano no espaço novamente inventado» (Godinho,
1990, p. 148).
Daí a sua vincada originalidade; e daí, também, a marginalidade, no contexto das
estruturas mentais da época, da sua primordial vertente técnico-naturalista.
O esforço de renovação cultural levado a efeito no vinténio 1530-1550 processou-se
no âmbito quase exclusivo do movimento europeu do erasmismo e das suas
incidências ideológicas nas letras e na espiritualidade, ambas solidárias e ambas
acolhidas na pedagogia humanística que inspirou o modelo do Colégio das Artes. Tal
modelo, contudo, acentuando a erudição livresca e os métodos literários, a
religiosidade e as suas manifestações espirituais, se depurou os textos clássicos das
adulterações escolásticas e recuperou outros olvidados ou desconhecidos, não
operou, em relação a essa mesma escolástica, qualquer mutação epistemológica.
Renovação não era necessariamente inovação. O abstrato saber dos textos
prevalecia e ofuscava o conhecimento concreto da realidade físico-natural e
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

dos seus fenómenos. De lado, à margem, em todo o caso fora dos interesses e da
problemática dominantes, ficaram as atividades práticas ligadas à expansão marítima
— e todo o copioso acervo de novidades geográficas, etnográficas, zoo botânicas e
outras tão diferentes do que era norma em Portugal.
O plano de estudos do Colégio das Artes, centrado nas «humanidades», ao entrar no
ciclo «filosófico» sacrificava «drasticamente a física em prol da ética e da metafísica», o
que era «a sequência geral do humanismo» (Dias, 1969, p. 555) — do humanismo
literário dos «bordaleses», sequazes de uma orientação mental que descurava prática
e teoricamente a observação da Natureza. «O aluno, depois de receber através das
humanidades uma disciplina de espírito no sentido da exposição retórica e da visão
ética, recebia uma outra, através da filosofia, no sentido da análise dialética e do
procedimento abstrato do pensamento, adquirindo, desse modo, um complexo de
aptidões que o tomavam idóneo para discernir o conteúdo moral dos acontecimentos e
se mover no meio das ideias gerais» (ibid., p. 552; cf. Brandão, 1924-1933, vol. I, p.
412). A pretensão de reforma espiritual que estava na base da pedagogia
erasmiana levou a um desinteresse pelo mundo físico, separando-o do
especificamente humano, que eram as letras.
Pedro Nunes
Também o ensino superior se manifestou arredio, quando não indiferente, à explosão
de vitalidade empírica que dimanava dos Descobrimentos. Uma única exceção é
comummente assinalada para este período: Pedro Nunes. Este médico e
cosmógrafo de ascendência judaica ingressou na universidade em 1530, ainda ela se
encontrava em Lisboa, para reger sucessivamente Filosofia Moral, Lógica e Metafísica
— matérias que estavam longe da sua especialidade e da sua vocação. Aí teve por
colega a Garcia de Orta, outro médico cristão-novo, o qual, depois de vários concursos
frustrados, obteve pela mesma data a cadeira de Filosofia Natural. Nada se sabe
acerca da sua efémera docência nessa disciplina; de qualquer modo, Garcia de Orta
embarcou para a Índia em Março de 1534, impelido talvez tanto pelo temor das
crescentes perseguições «antijudaicas» como pela insatisfação sobre a indigência do
estudo lisboeta. E Pedro Nunes, que só em 1544 passou a Coimbra para lecionar
Matemática, então introduzida pelos novos estatutos na Faculdade de Medicina,
realizou o principal do seu labor científico entre 1537 e 1546, portanto à margem da
universidade.
A obra de Pedro Nunes insere-se em grande parte no veio aberto na geração anterior
por Duarte Pacheco Pereira. A atitude de emulação e de superioridade sobre os
antigos, tão distinta do pendor imitativo e reverencial do humanismo das letras, bem
como a consciência de avanço que detetámos expressivamente no marinheiro
manuelino, ressoam também nesta vulgarizada página do cosmógrafo-mor de D. João
III: «Não há dúvida que as navegações deste Reino de cem anos a esta parte são as
maiores, de mais altas e discretas conjeturas que as de nenhuma outra gente do mundo.

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

Os portugueses ousaram acometer o grande mar oceano. Entraram por ele sem receio.
Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares e, o que mais é, novo céu e novas
estrelas [...] Tiraram-nos muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior que o
mar, e haver aí antípodas, do que até os santos duvidaram, e que não há região que nem
por quente nem por fria se deixe de habitar» (Nunes, 1940-1960, vol. I, pp. 175-176).
Porém, as altas e discretas conjeturas de que fala Pedro Nunes «não foram muito
longe nem muito fundo na investigação científica e na especulação filosófica»
(Carvalho, 1982, vol. III, p. 368). O nosso cosmógrafo ateve-se mais às questões
técnicas levantadas pelas necessidades pragmáticas da navegação do que se
alcandorou especulativamente à definição de métodos gerais de pesquisa. Era para a
utensilagem aplicada à arte náutica que as suas preocupações se viravam, como se
infere do trecho que dá continuidade ao transcrito: «Ora manifesto é que estes
descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar, mas
partiram os nossos mercantes muito ensinados e providos de instrumentos e regras de
astrologia e geometria, que são as coisas de que os cosmógrafos hão-de andar
apercebidos» (Nunes, 1940-1960, vol. I, p. 176).
De facto não fora assim; a asserção peca, se referida às primeiras expedições
descobridoras, por anacronismo; contudo, «esta conceção humanista, que não
corresponde à realidade histórica da primeira metade de Quatrocentos, dá-nos,
precisamente no seu equívoco, a amplitude da revolução mental que entretanto se
operara» (Godinho, 1981-1983, vol. I, p. 36). Aos errores dos pioneiros sucedera a
praxe da experiência vivida e compendiada nas cartas de marear, nos roteiros, nos
diários de bordo, nas relações manuscritas e nomeadamente no Esmeraldo. E desta
emergira o apurar de um saber técnico, de ação que não propriamente de
compreensão explicativa dos mistérios da Natureza, mas tendente ao seu domínio
efetivo. Ora Pedro Nunes, ao postular a logística dos instrumentos e a lição das
regras, supera, com o seu espírito de precisão matemática e rigor quantitativo, o
mero registo empírico de Duarte Pacheco Pereira, embora sem ascender à
formulação teórica da metodologia experimentalista (Dias, 1982, pp. 79-82).
Desviou-o dessa direção tanto o zelo utilitário de instrutor de pilotos como a faceta
de sábio de gabinete, carregando ainda o lastro do prestígio das autoridades e livros
consagrados. A hibridez resultante do cruzamento das duas correntes mentais —
uma de inovadora feição técnico-prática, outra de retrospetiva restituição do saber
antigo — está patente no Tratado da Esfera, de 1537. Neste volume colige Pedro
Nunes obras que ilustram o compromisso — e, ao cabo, o latente conflito — entre a
subordinação livresca e a criação inventiva.
Dá corpo à coletânea a tradução portuguesa do De sphoera mundi, composto em
latim, no século XVIII, pelo monge inglês John of Hollywood (João de Sacrobosco), e
que era um epítome da doutrina cosmográfíca clássica, sobretudo ptolemaica. Nele se
continham afirmações, como aquela que pretendia não serem habitáveis as zonas

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

tórrida e frígidas, desmentidas há muito pelas viagens dos Portugueses e pelo


próprio Pedro Nunes no passo atrás citado. Seguem-se as versões também «em
linguagem», da quatrocentista Teórica do Sol e da Lua, do alemão Georg von Peurbach
(Jorge Purbáquio), e do livro I da Geografia de Ptolemeu, este do século II. Ao editar
criticamente tais textos, anotados e expurgados à maneira da erudição filológica,
visava o compilador divulgá-los, aproveitando as possibilidades da impressão
tipográfica, e, pelo cotejo dos autores escolhidos conseguir, segundo o critério da
metodologia comentarística, um conhecimento seguro.
Orientação muito diversa inspirou a Pedro Nunes os dois pequenos tratados anexos,
que são de sua original lavra: o Tratado de Certas Dúvidas da Navegação e o Tratado
em Defensão da Carta de Marear. Basta atentar neste par de trechos extraídos de cada
um deles. Assim, do primeiro: «Satisfiz eu a estas dúvidas por palavra o melhor que
pude, e todavia determinei de escrever o que nisso me pareceu, porque se não perdesse
meu trabalho em coisa que segundo eu estimo é a principal parte para quem deseja
saber como se há-de navegar por arte e por razão» (Nunes, 1940-1960, vol. I, p. 159).
As dúvidas pertenciam a Martim Afonso de Sousa, amigo do cosmógrafo e capitão-
mor da armada que em 1531 rumara ao Brasil, em cujas costas se entregou a
observações astronómicas e donde regressou em 1533. Por seu turno, o segundo
escrito principia remetendo para o precedente: «Eu fiz [...] tempo há um pequeno
tratado sobre certas dúvidas que trouxe Martim Afonso de Sousa quando veio do Brasil.
Para satisfação das quais me conveio trazer não somente coisas práticas da arte de
navegar, mas ainda partes de geometria e da parte teórica. E sou tao escrupuloso em
misturar, com regras vulgares desta arte, termos e pontos de ciência de que os pilotos
tanto se riem [...]» (ibid.. p. 175).
A alusão ao escárnio dos pilotos, se nos mostra, por um lado, as lutas do autor contra
os simples empíricos da navegação, também nos revela, por outro, a colaboração com
eles, manifesta até na passagem a discurso escrito do esclarecimento oral prestado a
Martim Afonso de Sousa, para que dele fique memória e atinja mais amplo universo
de destinatários. A coordenação da teoria e da prática, postas ao serviço da
técnica da navegação, e o papel central da Matemática, base do pensamento
científico moderno, atestam igualmente o alcance inovador do magistério de
Pedro Nunes.
D. João de Castro
Mas, se o mestre universitário intuiu a necessidade metodológica de juntar a teoria à
prática, e por carência desta última fez no De crepusculis, de 1541, um ensaio de
ciência pura sobre o tema delimitado da duração dos crepúsculos nos diversos
climas, coube a D. João de Castro operar o efetivo intercâmbio de uma e de
outra. Quando, em 1538, embarcou para a Índia, o soldado-naturalista ia já
capacitado sobre a mútua dependência da observação e da razão. Elaborara pouco
antes um Tratado da Esfera, homónimo mas não exatamente homólogo do de Pedro

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

Nunes; enquanto o deste era uma tradução comentada de Sacrobosco, o de D. João de


Castro é uma «intertextualidade criativa» com o texto do monge inglês, «uma
adaptação semântica realizada com alto grau de autonomia e mesmo originalidade»
(Barreto, 1985, p. 44).
Autonomia e originalidade indicados no aposto do título: o tratado é por perguntas e
respostas. A estrutura de questionário suporta um discurso didático polarizado nas
figuras do mestre e do discípulo. As perguntas deste subordinam-se elementarmente
às respostas daquele, como no seguinte enunciado da conceção de avanço com que,
desde Duarte Pacheco Pereira, deparamos em todos os humanistas dos
Descobrimentos: «— Pois quem pode arrancar ao mundo esta opinião dos antigos? —
A muita experiência dos modernos, e principalmente a muita navegação de Portugal»
(Castro, 1968-1981, vol. I. p. 50); ou neste outro exemplo, que já revela um
diferencial de problematização inacessível ao mesmo Pereira: «— Pois qual e a razão
que convence o entendimento? — É a que se toma da experiência dos instrumentos
matemáticos» (ibid., p. 67).
De entre os diversos significados que a palavra «experiência» recobre no Tratado da
Esfera, o sentido preponderante remete para uma «observação provocada e
controlada de um qualquer fenómeno natural» (Barreto, 1983, p. 68). Esta
experiência-observação e conceitual e funcionalmente distinta da imediata
experiência empírica tão alardeada no Esmeraldo de situ orbis.
Para D. João de Castro, a mera perceção sensorial e subjetiva, que identificava as
aparências com a realidade, não permitia a apreensão correta do mundo físico, a qual
carecia dos cálculos da ciência matemática e do amparo dos aparelhos de medida. Por
isso, ao discípulo que, dando voz ao realismo ingénuo do vulgo, confessa não atinar
na razão que «nega o que se vê com os olhos», replica o mestre expondo-lhe os
rudimentos de uma gnoseologia crítica: «E necessário aqui o sentido obedecer ao
entendimento, e como cego deixar-se guiar por ele, porque certo esta que em muitas
coisas nos enganaram os sentidos, se não fossem guiados e examinados pelo
entendimento. Julgando somente pelo sentido, todos julgaríamos que o sol é pouco mais
ou menos como uma roda de carro, e estas estrelas como umas laranjas, e ficaríamos
nisso muito enganados, pois o entendimento tem demonstrado, e está nisso convencido,
ser o sol e muitas estrelas muitas vezes maiores que toda a terra. Engana-se a cada
passo o sentido dos brutos com as semelhanças das coisas tendo-as por verdadeiras
porque não é ajudado de algum entendimento; e assim o sentido humano, se não fosse
ajudado do entendimento, não haveria diferença entre ele e o bruto, e tao facilmente se
enganaria um como o outro» (Castro, 1968-1981, vol. I, pp. 54-55).
Foi aplicando estes princípios que o investigador determinou que a cor aparente das
águas do mar Roxo advinha do coral vermelho dos fundos. Chegou a essa conclusão
após uma meticulosa recolha de extratos de areias, pedras e plantas aquáticas,
pesquisas cuja sequência relata no último dos três roteiros — de Lisboa a Goa, de Goa

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

a Diu e de Goa ao Suez, respetivamente — que escreveu entre 1538 e 1541, durante a
sua primeira expedição ao Oriente.
Sobre a «razão que levou os antigos chamarem a este mar todo Mar Roxo ou
Vermelho» corriam as mais desencontradas opiniões — «e de estas opiniões
escolheram os escritores a que lhes mais quadrou e pareceu certa»; D. João de Castro
propõe-se averiguar «se a sua cor é diferente de toda a outra do grande oceano ou
não» (ibid., p. 368). E, com ânimo resoluto, enfrenta objetivamente a realidade: «Eu,
tanto que cheguei [...] jamais dia nem noite deixei de considerar nestas águas e
contemplar a cor e maneira da terra que vai ao longo da ribeira; e certamente que para
nenhuma coisa tive tamanho alvoroço como para empregar meu trabalho em alcançar
a verdade destas coisas, e escoldrinhar a ocasião delas; e o que tirei de minha diligencia
e tenho visto clarissimamente muitas vezes é o seguinte» (ibid., p. 369).
Vale a pena acompanhá-lo na ação investigativa, exemplar exercício de critica ao
«parecer» das aparências espontâneas e ao saber erróneo da perceção sensorial: «O
modo que tive para alcançar este segredo foi surgir muitas vezes em cima das restingas
onde o mar me parecia vermelho e mandar mergulhadores que me trouxessem as
pedras que jaziam no fundo [ ] onde acontecia que todas, ou a maior parte das pedras
que arrancavam eram de coral vermelho e outras de coral coberto de musgo
alaranjado; e a mesma prática tinha onde quer que o mar parecia verde, e achava
pedra coral branca coberta de limo muito verde; e no mar branco achava areia muito
alva sem outra mistura alguma; do que podia nascer que, dando alguns navegadores
relação da cor vermelha que viam por este mar, como da maior e mais compendiosa de
todas, ignorando a causa ou não a querendo oferecer, por acrescentarem admiração a
suas navegações e caminhos, vieram os homens não somente a conhecer este mar por
nome de Mar Vermelho, mas crerem que as águas dele fossem de seu natural
vermelhas» (ibid., pp. 370-371).
Ao contrário da segunda, que seria política, militar e administrativa, essa primeira
enviatura de D. João de Castro à Índia teve carácter de missão científica. Nela ocupou-
se nomeadamente em elucidar o magno problema, importantíssimo para corrigir
erros de rota, da variação da intensidade do campo magnético terrestre e seus efeitos
sobre a declinação da bússola. Diariamente procedia a «operações» e respetivas
«notações» («Roteiro de Lisboa a Goa», in Castro, 1968-1981, vol. I, pp. 115 e segs.). A
alta complexidade das múltiplas observações provocadas e controladas que realizou,
sistematicamente repetidas e contrastadas pela revisão de outras testemunhas,
provisoriamente condensadas em hipóteses explicativas depois sujeitas a repetido
processo de verificação e validação — o estorço, enfim, de teorização e operatividade
prática, constitui um progresso assinalável em relação ao empirismo vulgar da
geração antecedente e uma aproximação, não menos digna de nota, da metodologia
experimentalista moderna (Albuquerque, 1987b, pp. 81-100).

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

Lídima expressão técnico-naturalista do humanismo dos Descobrimentos, a trilogia


dos roteiros pouca divulgação teve fora do restrito círculo que tinha por protetor o
infante D. Luís, irmão do rei, e por figura tutelar Pedro Nunes — «fique a dúvida para
o Doutor Pedro Nunes» é verba que ocorre amiúde e sempre que a prudência
aconselhava o investigador a deixar em suspenso a dilucidação de uma qualquer
dificuldade. De resto, toda a obra náutica e oceanográfica de D. João de Castro ficou
inédita no País, o Tratado da Esfera, até ao nosso século, os roteiros até ao XIX; mas o
de Goa ao Suez, ou do mar Roxo, como também é titulado, tomou-se conhecido na
Europa graças às traduções que nos séculos XVII e XVIII correram impressas em
latim, inglês, francês e holandês (a primeira edição portuguesa, coordenada,
prefaciada e anotada por António Nunes de Carvalho, data de Paris, 1833).
O ineditismo dos textos técnicos de D. João de Castro pode dever-se, em parte, a uma
deliberada política de ocultação de informações estratégicas que convinha evitar
caíssem em mãos dos concorrentes europeus de Portugal no senhorio dos mares
(Barreto, 1989, pp. 48-56). Mas o sigilo não explica, nem minimamente justifica, a
escassa e em todo o caso irrelevante receção das matérias ultramarinas e dos
métodos experienciais nos planos e conteúdos de ensino do Colégio das Artes e da
Universidade de Coimbra. Tirante a apontada e singularíssima ressalva de Pedro
Nunes, os «naturalistas» dos Descobrimentos — já de si uma pequena minoria —
exerceram a sua atividade inteiramente à margem das instituições escolares e ao
arrepio da pauta cultural que elas modelavam e refletiam.
A epopeia da Expansão
As linhas dessa pauta ilaquearam, na cerebração do escol intelectual, a sensibilidade
para as incidências dos Descobrimentos na ordem do saber positivo. Ao invés, o que
feriu a inteligência dominante foi a dimensão épica e proselitista da Expansão. A
variante nacional do humanismo cristão assimilou os ideais da gesta e de cruzada, se
bem que tal simbiose implicasse renunciar a um dos preceitos — o da tolerância
religiosa — mais caros a Erasmo e à sua escola. Mesmo erasmianos ativos, como
André de Resende, Damião de Góis ou Diogo de Teive, não se tolheram de sacrificar o
pacifismo evangélico nas aras do pragmatismo que tinha por eixo os interesses
imediatos da Nação como potência marítima (Dias, 1969, pp. 802-843, e 1982, 49-
52). E o Poder, apostado essencialmente em legitimar a presença portuguesa no
Oriente e o monopólio comercial que reivindicava — uma frase condenando
implicitamente esse monopólio fora o motivo por que D. João III não correspondera à
dedicatória, por Erasmo, das Chrysostomi lucubrationes —, estimulou tudo quanto,
para efeitos de propaganda, exaltasse as proezas lusitanas. O complexo doutrinário
hegemónico, centrado na dilatação da fé e do Império, contribuiu assim
decisivamente para a marginalidade do humanismo técnico-naturalista das
navegações, que teve em D. João de Castro a sua figura de proa.

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

Se o explorador índico e as suas descobertas «naturalistas» não mereceram o


reconhecimento dos compatriotas, o governador da índia e as suas façanhas bélicas
atearam a comoção uníssona da grei. Regressado ao Oriente, em 1546 teve de acudir
a Diu, pela segunda vez sitiada por forças desproporcionadas, logrando libertá-la do
assédio turco-hindu — e os êxitos alcançados de parceria com D. João de
Mascarenhas deram-lhe jus a enfileirar na galeria dos varões ilustres. Sobre os
relatórios e documentação dos acontecimentos, enviados por D. João de Castro ao rei
e por este comunicados a Diogo de Teive com o pedido de que trasladasse a latim a
história do cerco, elaborou o humanista de Coimbra um Commentarius de rebus apud
Dium gestis, publicado em 1548 naquela cidade. Teive vazou a sua narrativa no
modelo de Tito Lívio e, mitigando embora o entusiasmo pelas vitórias com reservas
pelos excessos violentos das conquistas, qualificou a campanha contra o infiel de
guerra pia e justa — iustum ac pium bellum (Rebelo, 1982, pp. 255-279). Acerca da
mesma gesta de Diu e na mesma perspetiva histórica classicista, mas exprimindo
incondicionada adesão à política oficial, fez Damião de Góis sair em Lovaina, no ano
imediato, também na língua de Cícero para o dar a ler à Europa culta, o seu De bello
cambaico.
Os ensaios de Teive e de Góis respondiam à aspiração, sentida por muitos humanistas
de raiz classicista, de celebrar epicamente as glórias lusíadas. Os méritos de um
pequeno povo e de um punhado de heróis despertaram neles o anelo de se
realizarem como letrados empreendendo no seu tempo uma obra equiparável à dos
escritores gregos e latinos. O anseio épico, que teria remate no poema de Camões,
pretendeu ser a réplica literária da grandeza ímpar do feito nacional. Não nos
interessa aqui analisar as repercussões desse estado de espírito da «inteligência»
pátria na literatura da época, mas tão-só relevar a drástica influência dos
Descobrimentos e conquistas no giro mental que dá origem a uma generalizada visão
ascendente e progressiva — quase uma visão de progresso — do tempo histórico.
Essa visão reflete-se na leitura do esforço português como superação do paradigma
legado pela Antiguidade; e esse esforço, expressão da capacidade e ilimitado poder
do homem sobre as circunstâncias adversas, adquire uma natureza quase divina —
divinização que, ao alçar o ser humano a uma condição transcendente, fica, por outra
parte, laicizada. Decerto que uma missão providencial ilumina os heróis, mas são
estes que ocupam o proscénio e, pela vontade e sublime energia física e moral,
impelem a história humana para um mais além que não tem precedentes em
qualquer idade do pretérito (Dias, 1982, pp. 122-137).
Há que reconhecer que esta imagem dinâmica da história é correlata da conceção de
avanço evidenciada pelos homens do mar ou a ele ligados, e ambas conexas com a
grande empresa da Expansão. Para a revolução da consciência histórica que
escancarou as portas à ideia de progresso e à ideia de modernidade concorreram,
assim, a face «literária» e a face «naturalista» do humanismo dos Descobrimentos,
faces opostas e complementares, como o anverso e o reverso da original medalha

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

com que o humanismo português contribuiu para o tesouro da cultura europeia do


Renascimento. Muito desigual foi, todavia, o relevo, dentro e fora do País, de uma e de
outra.
Através dos seus opúsculos latinos, Diogo de Teive e Damião de Góis levaram até ao
coração da Europa o eco dos triunfos lusos no Oriente, decalcados na ordem
ideológico-cultural de tipos e situações do mundo clássico. Não são, porém, os
latinistas que melhor testemunham a significativa mudança que a projeção das
descobertas e conquistas imprimiu à cronicografia da época. É em linguagem vulgar
que, no início da segunda metade do século, respetivamente em 1551 e 1552,
começam a sair a História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses,
de Fernão Lopes de Castanheda, e a Asia (ou dos feitos que os portugueses fizeram no
descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente), de João de Barros.
Castanheda
O erudito autor da Ropicapnefina e o modesto bedel da Universidade de Coimbra
convergiriam no sentimento de que a universal atualidade das glórias que se
propunham festejar, superiores a tudo quanto a humanidade, incluindo Gregos e
Romanos, até aí realizara, deveria ter reciprocidade na primazia do idioma
pátrio sobre o latino. Esta convicção, na esteira da famosa máxima de Nebrija —
«sempre a língua foi companheira do império» (Antonio de Nebrija, 1989, p. 109) —,
manifestara-a já João de Barros, dando-lhe o tónus espiritual da cruzada, no Diálogo
em Louvor da Nossa Linguagem, apenso à Gramática da Língua Portuguesa, que fizera
publicar em 1540: «Certo que não há glória que se possa comparar a quando os
meninos etíopes, persianos, índios, d’aquém e d’além do Gange, em suas próprias terras,
na força de seus templos e pagodes, onde nunca se ouviu o nome romano, por esta nossa
arte aprenderem a nossa linguagem, com que possam ser doutrinados em os preceitos
da nossa fé, que nela vão escritos» (Buescu, 1978, p. 91).
Por sua vez, Castanheda, espécie de «historiador andarilho» (Lapa, 1972, XV) que
conheceu presencialmente o teatro da ação — «vi tormentas vi batalhas no mar e
pelejas na terra, e espedaçar navios, e bater muros, e vencer a inimigos, e falo como
experimentado» (Castanheda, 1979, livram, p. 495, no prólogo do livro III da sua
História reclama nos seguintes termos a prioridade de consignar em português a
gesta portuguesa: «Deu-me ousadia a escrever o que os portugueses fizeram no
descobrimento e conquista da Índia, serem as façanhas tais que em grandeza, fama e
admiração tiveram muita vantagem às que escreveram Tito Lívio e Homero. E tenho
que ganhei muito em ser o primeiro português que na nossa língua as ressuscitei,
estando mortas de cinquenta anos, e não somente em Portugal mas nos outros reinos
onde desejavam muito de as saber: do que é testemunho imprimir-se agora em Paris em
língua francesa o primeiro livro desta História, que tornou na mesma língua mestre
Nicolau [de Grouchy], que cá foi lente de artes no Colégio Real» (ibid., pp. 493-494).
O «bordalês», com efeito, retirado ao país natal na sequência dos processos
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

inquisitoriais que envolveram os seus colegas Costa, Teive e Buchanan, vertera em


1553 para a escrita gaulesa (depois fizeram-se traduções em alemão, italiano e
inglês) o I tomo da obra de Castanheda, não obstante, no prefácio que lhe antepôs,
considerar que o autor tinha «mais experiência que saber, principalmente em letras
humanas», aludindo, ademais, à rusticidade e pouco polimento da língua portuguesa
(Brandão, 1924-1933, vol. I, p. 409) juízo que Castanheda impugna, reputando o seu
compatriota Sá de Miranda equivalente aos maiores clássicos: «E afora isto, fui
também o primeiro que mostrei o engano que muitos tinham que na língua portuguesa
não se podia escrever quanto quisessem assim como nas outras, se houvesse quem o
soubesse fazer. E ajudou-me a mostrar esta verdade aquele grande poeta português, de
muita erudição, o doutor Francisco de Sá [de Miranda], com as obras que tem
compostas na nossa língua, em prosa e em verso, outro Terêncio de nosso tempo, outro
Plauto e outro Virgílio, e outro tão maravilhoso engenho como o de cada um destes»
(Castanheda, 1979. livro III, p. 494).
Afigura-se que a apologia da língua portuguesa comporta em Barros e em
Castanheda um cambiante digno de menção. No historiador «sedentário» (Lapa,
1972, p. XV), de gabinete, bom conhecedor das letras antigas, o português revela-se
um sucedâneo do latim enquanto língua imperial e, por acréscimo, evangélica; era a
expressão do novo império, transferido dos Romanos aos Portugueses, a composição
da Ásia, prezando os refinamentos da forma e o convencionalismo retórico, paga o
tributo do compromisso cultural com os padrões historiográficos de Tito Lívio e de
Salústio. Não é o caso de Castanheda: mau retórico e pior latinista, mas encharcado
de experiência pessoal, o «patriotismo linguístico» (Paul Teyssier, in L’Humanisme,
1984, pp. 841-845) ia nele de par com a intuição de que só o vernáculo dispunha da
força comunicativa apta a transmitir validamente a sinceridade e flagrância de
vivências — «soube eu a verdade do que havia de escrever, de muitas coisas de vista e
outras de ouvida» (Castanheda, 1979, livro III, p. 494) — insuscetíveis de registo
numa linguagem artificial e postiça. Tal como Duarte Pacheco Pereira e D. João de
Castro empregaram a fala comum nos seus relatos cosmográficos, dados numa prosa
impressiva e correntia, assim procede Castanheda nos seus relatos cronográficos.
Fernão de Oliveira
Com a promoção do vulgar, marca da sua identidade e originalidade — também da
sua marginalidade, porque a língua das escolas era o latim —, o humanismo dos
Descobrimentos liberta-se do peso morto do idioma clássico e das galas do
estilo afetado e grandiloquente que caracterizavam o humanismo formal. A
latinistas e a quantos arguiam a rudeza e imperfeição da língua materna, respondeu
Fernão de Oliveira apelando à consciência cívica dos coevos para que, deixando o
grego e o latim, «tomemos sobre nós agora que é tempo e somos senhores, porque
melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma», após o que concebe
esta admirável reflexão. «E não desconfiemos da nossa língua, porque os homens
fazem a língua e não a língua os homens. E é manifesto que as línguas grega e latina
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

primeiro foram grosseiras e os homens as puseram na perfeição que agora têm»


(Buescu, 1978, p. 94).
Ou seja: para o autor de Gramática da Linguagem Portuguesa — a primeira que entre
nós se produziu, precedendo quatro anos a de João de Barros, e onde consta o passo
citado —, a língua, como toda a obra humana, não surge de repente consumada, antes
se apura e aperfeiçoa progressivamente, pela aplicação dos próprios homens. Seria
porém encarar Fernão de Oliveira de maneira truncada valorizar em separado, como
tão amiúde se tem feito, um parcelar aspeto — o de gramático — do humanista
integral que captou, protagonizou e consubstanciou as variadas facetas do unitário
(embora não homogéneo) movimento cultural de Quinhentos. E senão, atente-se
brevemente nos traços dessa irradiante diversidade, tocada pelo sopro de
inquietação mental que agitou o século.
Tendo vivido entre 1507 e 1581 — datas aproximativas—, depois de abandonar, ia
pela idade dos 20, a Ordem dos Dominicanos, peregrinou por Espanha, serviu de
preceptor em casas nobres, fez diplomacia secreta em Itália, andou de piloto numa
nau francesa, foi dar a Londres, contactou com a dissidência anglicana e, regressado
em 1547, a Inquisição encarcerou-o até 1551, o que tomou a suceder de 1555 a 1557
— a sua posição religiosa era próxima do erasmismo (Dias, 1960, pp. 191-193). No
terço final da existência perde-se-lhe o rasto; sabe-se, todavia, que escreveu uma Arte
da Guerra do Mar, impressa em Coimbra no ano de 1555, e que deixou manuscritos
um original latino intitulado Ars nautica (Barata, 1972), um Livro da Fábrica das Naus
(Mendonça, 1898), e uma ainda inédita História de Portugal (Paul Teyssier, I, 1959,
pp. 359-379). Em Fernão de Oliveira, gramático e nautógrafo, letrado e técnico naval,
erasmiano e aventureiro, opera-se a fusão do eu e do mundo, da sabedoria e da
experiência, numa totalizadora visão humanística que, incida sobre a arte da
língua ou sobre a arte da navegação, atribui ao homem a multímoda capacidade de
imprimir ao curso do tempo o sentido qualitativo que vai do inferior ao superior, do
imperfeito ao perfeito, do atraso ao progresso. Basta considerar este extrato do Livro
da Fábrica das Naus, paralelo daquele outro da Gramática, não obstante distarem de
cerca de quatro décadas: «Poucas vezes se lê que os gregos nem latinos navegassem
fora do seu Mar Mediterrâneo, de que somente eram capazes os seus navios: os nossos
agora são capazes também do oceano todo por todo o mundo, ou maior parte dele. O
qual os nossos marinheiros em nossos dias descobriram, e os seus nunca conheceram.
Mais louvor se deve nisto aos nossos, que aos gregos nem latinos: porque mais têm feito
pelas navegações em oitenta anos, do que eles fizeram em dois mil que reinaram. E mais
perfeições têm acrescentado a esta arte, do que eles nunca fizeram» (Mendonça, 1898,
p. 154).
Garcia de Orta
A aceleração da história, que os Descobrimentos proporcionaram, encontrou uma
síntese lapidar na consabida fórmula de Garcia de Orta: «Digo que se sabe mais em

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

um dia agora pelos portugueses, do que se sabia em 100 anos pelos romanos»
(Orta, 1987, vol. I, p. 210). A frase é as mais das vezes citada fora de contexto, o que
lhe diminui o alcance significativo; a mais-valia do saber presente mede-se tanto em
extensão como em profundidade. Em extensão, resultava manifesto que as
navegações portuguesas revelaram «mundos» antes ignotos, e tal máxima, por
palavras análogas, já muitos a haviam enunciado desde os finais do século XV; em
profundidade, o novo saber a que se refere Garcia de Orta adquire-se não pelos livros
(«pelos romanos», por antonomásia), mas pela observação da Natureza. Reside nesta
segunda dimensão a específica originalidade dos Colóquios dos Símplices e Drogas e
Cousas Medicinais da Índia, estampados por um tosco impressor de Goa no ano de
1563.
O livro colige perto de três décadas de observações. Garcia de Orta, no devido lugar
se apontou, abalou para a Índia em 1534, na nau e ao serviço de Martim Afonso de
Sousa (aquele cujas «dúvidas de navegação» suscitaram a Pedro Nunes o tratado do
mesmo nome), a quem dedica os Colóquios. Na epístola nuncupatória deixa perceber
que tencionara elaborar um tratado latino, o que quadrava a um erudito formado em
Alcalá e Salamanca, para mais ex-lente do Estudo Geral de Lisboa; mas, afinal, mudou
de ideias: «Bem pudera eu compor este tratado em latim, como o tinha muitos anos
antes composto, e fora a vossa senhoria mais aprazível, pois o entendeis melhor que a
materna língua; mas trasladei-o em português por ser mais geral, e porque sei que
todos os que nestas indianas regiões habitam, sabendo a quem vai intitulado, folgarão
de o ler» (ibid., p. 5). A opção pelo vulgar explica-a melhor o licenciado Dimas
Bosque — outro médico cristão-novo passado ao Oriente — na apresentação da obra:
aí precisa que o Doutor Garcia de Orta «trabalhou de saber e descobrir a verdade das
medicinas simples, que nestas terras nascem, das quais tantos enganos e fábulas não
somente os antigos mas muitos dos modernos escreveram: e o que ele por diversas
partes alcançou, quis que o curioso leitor em uma hora, neste seu breve tratado, visse e
entendesse; o qual teve começado em língua latina, e por ser mais familiar a matéria de
que escrevia, por ser importunado de seus amigos e familiares para que o proveito fosse
mais comunicado, determinou escrevê-lo na língua portuguesa a modo de dialogo, e
isto causa, algumas vezes, apartar-se da matéria medicinal e tratar de algumas coisas
que esta terra tem dignas de serem sabidas. Não pôs seu trabalho em estilo elegante
nem por palavras retóricas aprazíveis às orelhas, tratou puras verdades com puro estilo
porque isto só a verdade basta» (ibid., p. 11).
Habitualmente desatendida, esta carta-prefácio do amigo de Garcia de Orta (toda ela
um hino ao humanismo!) constitui um importante documento, que fornece a chave
de acesso à compreensão dos Colóquios. Antes de tudo, privilegia o esforço
continuado do naturalista para arrancar à flora indígena o segredo das suas
propriedades farmacológicas; as certezas assim patenteadas vinham corrigir
inveterados erros, tanto dos antigos, que não demandaram aquelas paragens, como
dos modernos, que, debruçados sobre os livros, decalcaram os mesmos equívocos.

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

Em seguida, realça o propósito filantrópico de comunicar — no vero sentido


etimológico de tomar comum — o saber útil recopilado na obra; o português era,
portanto, o código social adequado a atingir um leitorado menos circunscrito do que
a pequena hoste dos iniciados na língua erudita. Finalmente, justifica o estilo simples
e familiar — coloquial — das descrições botânicas (e dos excursos geográficos,
históricos, etnográficos), cuja intrínseca riqueza sugestiva dispensava atavios
retóricos. O humanismo formal, com o seu empolamento da letra e do ornato sobre a
substância do conteúdo, está, aliás, e em mais de uma ocasião, na mira de Garcia de
Orta, nomeadamente quando adverte o interlocutor Ruano: «Se quereis saber minha
intenção é necessário que deiteis de vós as afeiçoes que tendes a estes escritores novos, e
folgueis de ouvir minhas verdades ditas sem cores retóricas, porque a verdade se pinta
nua» (ibid., p. 79).
Resta ainda o método expositivo — «a modo de diálogo», esclarece Dimas Bosque.
Também aqui transparece o escopo de educar o público, conferindo ao discurso o
atrativo que os diálogos sempre encerram, quebrando pela vivacidade espontânea o
tom monocórdico de outros livros igualmente com fins didáticos, como o foi (em
projeto) o Tratado da Esfera, de D. João de Castro, cuja estrutura de questionário de
discípulo a mestre o converte num catecismo da ciência cosmográfica. Algo mais,
todavia, o diálogo acrescenta à mensagem que a obra comporta. Os resumos latinos
que lhe deram fama internacional, sucessivamente editados, de 1567 em diante, por
Charles de l’Écluse (Clusius), retiveram dela somente o cabedal informativo que
continha, e com isso reduziram de facto os Colóquios a um «breve tratado» de
botânica descritiva (Ficalho, 1886, p. 367 e segs.), Mas, ao prescindirem da forma
coloquial, amputaram o valor heurístico e a fecundidade pedagógica do diálogo para
relatar uma vivência filosófica. Sobre transmitir informações fidedignas, Garcia de
Orta quis inculcar um processo de as obter; e, para esse efeito, o processo dialógico
de construção do texto define melhor o processo cognitivo do naturalista não apenas
enquanto o expressa, mas sim enquanto, ao expressá-lo, o recria — do que a mais
penetrante das descrições. Pelo ângulo deste método humanista de exposição (que o
é também de investigação), não retido nas versões que chegaram aos meios
científicos de além-Pirenéus os Colóquios de Garcia de Orta poderiam integrar um elo
da cadeia que conduz à revolução científica do século XVII. Foi, porém, como
repositórios inéditos de fármacos e plantas asiáticas que os epitomes latinizados
tiveram repercussão europeia e ocuparam um lugar nos manuais de História Natural.
Conferindo os Colóquios e o Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo, de
Galileu, publicado (também em vernáculo) no ano de 1632, apura-se que ambos
usaram «o mesmo artifício e para fins idênticos» (Sérgio, Ensaios, vol. II, 1922): duas
personagens-tipo encarnam antiteticamente outras tantas atitudes mentais, num
confronto polémico que estimula o pensamento ativo de quem vive o debate. Acabam
aqui as similitudes, porque a «observação» do naturalista português está muito longe
da «experimentação» do físico pisano, e porque as generalizações indutivas deste

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

último não têm paralelo no mero catálogo alfabético de espécies vegetais que aquele
oferece. E contudo, nos 70 anos que os separam, os dois livros aproximam-se pelo
nervo dramático com que, cada qual no seu tempo e circunstância, equacionaram o
problema nodal da autoridade em ciência: em astronomia, a autoridade do sistema
aristotélico-ptolemaico, no Diálogo de Galileu; em botânica e matéria médica, a
autoridade de Dioscórides, Plínio e seus epígonos, nos Colóquios de Garcia de Orta.
Divididos em duas metades, tão opostas quanto o par de interlocutores dos
Colóquios, o tempo e a circunstância de Garcia de Orta foram, num primeiro
momento, o domínio, nas universidades ibéricas por onde passou como aluno ou
docente, da ciência textualista, ora ainda escolástica, ora já senhora das técnicas
histórico-filológicas com que Nebrija explicou em Alcalá os autores clássicos, como
Dioscórides e Plínio, lendo um curso de Botânica que o estudante português com toda
a probabilidade seguiu (Ficalho, 1886, pp. 24-25); num segundo momento, esse
tempo e circunstância tiveram por cenário o exotismo da Natureza índica — então e
aí se deu o inelutável conflito do conhecimento livresco com a observação direta. Os
Colóquios são a dramatização desse conflito travado no íntimo de Garcia de Orta; mas
como, para que o drama transcenda a subjetividade de quem o experimenta, é
indispensável outra personagem que polarize a tendência adversa, cabe a um ficto
Doutor Ruano — «muito conhecido do autor em Salamanca e Alcalá» (Orta, 1987, vol.
I, p. 19) — servir de oponente e de adjuvante do Doutor Orta, por sua vez feito
personagem de si próprio. Oponente que, a cada instante saltando com a lição das
autoridades, lhe permite réplicas como esta: «Não me ponhais medo com Dioscórides,
nem Galeno; porque não hei-de dizer senão a verdade e o que sei» (ibid., p. 105); e
adjuvante na medida em que, com esse procedimento, propicia a crítica dos textos e a
descoberta da verdade, que é o objetivo confesso do diálogo: «E ora vinde com vossas
contradições, para que melhor se examine a verdade» (ibid., vol. II, p. 33).
Ao recém-chegado Ruano, que lhe declara o «grande desejo de saber» que o animou a
viajar à Índia, promete Orta dizer a verdade, não sem acrescentar ironicamente, como
para marcar a diferença entre os ex-condiscípulos de Alcalá e Salamanca: «Mas temo
que as coisas que eu disser não sejam dignas de notar, porque a um tão grande letrado,
e que tanto sabe no especulativo, não lhe contentam senão raras coisas» (ibid., vol. I,
pp. 19-20). Criado assim, no colóquio introdutório, o clima dramático — o saber «no
especulativo» opõe-se ao saber positivo —, a conversação faculta sobejos lances em
que se evidenciam a pertinência da estratégia dialógica e a amplitude das suas
virtuais ressonâncias filosóficas. Valha, por todos, o que versa acerca da pimenta, a
apetecida especiaria (ibid., vol. II, pp. 242-247). Da árvore que a produz afirma Orta
terem errado quantos a descreveram: «Todos a uma voz se concertaram a não dizer a
verdade, senão que Dioscórides é digno de perdão, porque escreveu por falsa
informação, e de longes terras, e o mar não ser navegado como agora é; e a esse imitou
Plínio, e Galeno e Isidoro, e Avicena e todos os Arábios. E mais os que agora escrevem,
como António Musa e os Frades, têm maior culpa, pois não fazem mais que dizer todos

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

de uma maneira, sem fazer diligência em coisa tão sabida, como é a feição da árvore, e
a fruta, e como amadurece, e como se colhe.» Tamanha iconoclastia choca Ruano:
«Como, todos esses que dizeis erraram?»; resposta de Orta: «Sim, se chamais errar a
dizer o que não é», e descreve a planta. Então, escandalizado, Ruano atalha: «Parece-
me que destruís a todos os escritores antigos e modernos, por isso olhai o que fazeis» —
e a censura é gémea da que, no Diálogo de Galileu, o homólogo de Ruano dirige ao
homólogo de Orta, quando este ousa apoucar as autoridades: «Suplico-vos, Senhor
Salviati, falai com mais respeito de Aristóteles» (Galilei, 1987, p. 46; Lima, 1964, p. 26).
Mas o visado não se intimida e insiste no que «sei eu muito bem sabido como
testemunha de vista». Ao fim, Ruano confessa-se «corrido de ver que nunca isto
especularam bem os escritores novos».
Resulta crucial a confissão de Ruano: «corrido» (isto é: humilhado) ante o contraste
entre a nua verdade das coisas que se veem e a esterilidade do aparato especulativo
dos «escritores novos» — fossem eles o português Amato Lusitano, o italiano Pietro
Mattioli ou o espanhol Andrés de Laguna, que em 1553, 1554 e 1555 publicaram, por
esta ordem, comentários aos textos helénicos de Dioscórides, corrigindo alguns
pormenores, mas reproduzindo o essencial, introduzindo uma que outra melhoria,
mas não ampliando o âmbito do saber. Sobre os seus pares europeus dispunha o
modesto naturalista de Goa, que, aliás, dominava a bibliografia especializada antiga e
moderna (até a mais recente), da vantagem de, apoiado numa base observacional, se
entregar à metódica, paciente e humilde recoleção de dados objetivos. Daí que a
rendida humilhação de Ruano comparticipe da «verdadeira e legítima humilhação do
espírito humano» face à Natureza, reivindicada por Francis Bacon, no prefácio à
Instauratio magna (1620), como índice da ciência nova (Bacon, 1985, pp. 56-57.) A
percuciente visão epocal do chanceler inglês evita a falaciosa questão dos
«precursores»: para ele, o advento dessa ciência nova não aconteceu de golpe,
processou-se gradual e concomitantemente às viagens marítimas (ibid., pp. 138-139
e 152; Hooykaas, in Abertura, 1986, vol. I, pp. 165-184). É neste quadro do barco que
se aventura no oceano, deixando atrás as colunas do «non plus ultra» geográfico e
cultural, que os Colóquios se perfilam como obra maior do humanismo dos
Descobrimentos.
Não procede, contudo, estender à cultura portuguesa coeva a caracterizada atitude
mental, crítica e de independência em relação aos textos, que perpassa na obra de
Garcia de Orta. Esta, a ter circulado no País, carregava virtualidades suscetíveis de
metamorfosear sentimentos, reflexões e experiências alheios em autênticas vivências
próprias; continha todos os ingredientes — o vernáculo e a teatralidade do diálogo
eram fatores acrescidos de permeabilidade — para aliciar os leitores e minar neles a
confiança no saber tradicional. Simplesmente, o livro teve limitado curso —
raríssimos o leram, a não ser, além-fronteiras, nas adaptações de Clusius (Ficalho,
1886, pp. 368-369 e 379-380). E os exemplares da tiragem goesa que puderam
encontrar-se arderam com as ossadas do autor na fogueira do auto-da-fé a que a

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

Inquisição de Goa condenou postumamente, em 1580, como criptojudeu, Garcia de


Orta, morto em 1568.
Contra-humanismo, classicismo católico, neo-escolasticismo (pp. 356-365)
A falência da geração de Quinhentos
Desde a derradeira fase do reinado de D. João III que vinha a adensar-se uma
ambiência hostil à abertura humanista que durante os anos 30 e grande parte dos de
40 proporcionara o impulso mais eficaz de modernização da cultura portuguesa — e
da sociedade no seu todo, pois só por procedimento abstrato ou simplificação
didática cabe distinguir nela uma «vida» cultural.
O fluir da história, com maioria de razão o da cultura, não comporta ruturas, mas
processos; e, nestes, a convergência de episódios políticos, religiosos e culturais
inclina a postular um período de cerca de um vinténio no decurso do qual se registou
uma sucessão de mudanças articuladas, externas e internas, que culminaram no
advento de uma ordem ideológica de carácter imobilista e intransigente. Dois
eventos simbólicos, cuja similitude é terem como agente um dos pilares dessa nova
ordem — o Santo Ofício — e como pacientes destacados intelectuais humanistas,
permitem balizar tal período de transição: o encarceramento, em 1550, dos lentes
«bordaleses» — Diogo de Teive, João da Costa, Buchanan — do Colégio das Artes; e,
em 1571, o de Damião de Góis.
Quando Diogo de Teive, na sua defesa de 6 de Novembro de 1550, se queixava
perante os inquisidores dos que «chamavam luteranos [a] homens que sabiam grego e
filosofia e estavam mal com a sofismaria» — quer dizer, com a escolástica —, bem
como das «pessoas que têm comummente por suspeitos todos os homens bons latinos e
gregos» (Braga, 1892-1902, vol. I, pp. 543-547); e quando o jesuíta Martim Gonçalves
da Câmara, escrivão da puridade de D. Sebastião, em carta de 21 de Maio de 1570 ao
reitor da Universidade de Coimbra, traça um paralelo entre «o tempo em que alguns
dos principais mestres [do Colégio das Artes] foram presos pela Inquisição» e os atuais
«tempos muito mais perigosos, em que o demónio parece já tem descoberta toda a sua
artilharia», pelo que a conjuntura político-religiosa demandava com «sermos
cristãos e católicos, ainda que menos latinos» (Dias, 1969, p. 872, e 1981, p. 17),
verifica-se que a síntese de cristianismo e cultura, ideal-base da corrente do
humanismo cristão, se cindira, mais do que numa dicotomia, numa inelutável
antítese.
Na linguagem do valido sebástico, a crença estava na razão inversa da cultura:
«menos latinos» equivalia a «menos cultos» — logo, menos propensos a seduções
humano-criticistas e mais avassalados às constrições sócio-religiosas do catolicismo
formalista e exclusivista. Onde André de Resende, na oração de 1534, repudiando a
oposição entre cristianismo e ciceronianismo, não enxergara contradição, mas
congruência, pelo que religiosidade e boas letras harmoniosamente se associavam
para alcançar os objetivos éticos e vivenciais de uma plenitude humana integral
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

dentro da sociedade cristã e laica — projeto mais tarde intentado na efémera


experiência pedagógica do Colégio das Artes —, o poder político-religioso da era pós-
joanina só encontrava uma incompatibilidade de princípio. O movimento
humanista dos decénios de 30 e 40 também assumira, a seu modo, uma
resistência à Reforma protestante, que destruíra a unidade cristã —, mas uma
resistência operada de forma positiva e criadora, ditada por um sincero desejo
de renovação espiritual e cultural, de secularização e convivência civil, com
vista a restaurar uma concórdia contínua e universal na Cristandade. Em
contrapartida, a reação que se foi plasmando a partir da década de 50 cedo evoluiu
de uma atitude defensiva e de visceral desconfiança face ao pluralismo de
pensamento no âmbito cristão, ostensivamente assimilado a luteranismo encoberto
ou potencial, para uma estratégia dirigida a erradicar, se necessário pela força,
quaisquer tendências suscetíveis de afetar o rígido monismo ideológico.
É nesse contexto que colhe relevo e significado o drama de Damião de Góis. O guarda-
mor da Torre do Tombo (cargo no qual substituiu Fernão de Pina, em 1548 preso
pela Inquisição por heresia) desfrutara da complacência do cardeal-inquisidor D.
Henrique; daí que tivessem sido arquivadas as denúncias que, logo após o regresso
de 1545 e reiteradas em 1550, lhe movera o jesuíta Simão Rodrigues. Atravessou
incólume o vinténio seguinte, ainda cumulado de atenções e mercês, entregue ao
labor historiográfico de redigir as crónicas do rei D. Manuel e da regência do príncipe
D. João, saídas em 1566-1567 e que lhe causaram não poucos dissabores na alta-roda
palaciana. No fatídico ano de 1571, porém, aquele que era o último sobrevivente
ativo da geração humanista nascida com o século, arrostou, perante a indiferença e,
no mínimo, tácita aquiescência do antigo protetor, o vexame de um processo que, na
pessoa do septuagenário e achacado cronista, tinha como verdadeiro réu o
humanismo cristão — ou, mais exatamente, os seus resquícios inconformistas, que
cumpria banir de vez da sociedade portuguesa.
No entretempo, André de Resende abdicara das veleidades renovadoras com que um
dia regressara da Europa e refugiara-se na erudição e no antiquarismo do seu
remanso eborense; Diogo de Teive e João da Costa remeteram-se a uma obscura
existência de sacerdotes de província; Diogo de Murça, suspeito de simpatias para
com os «bordaleses», foi destituído em 1555 de reitor da Universidade de Coimbra,
aquando da entrega do Colégio das Artes à Companhia de Jesus... Resignados uns,
extintos outros, silenciados todos. Damião de Góis era mesmo a derradeira
sombra da seleta minoria intelectual de formação europeia e afinidades
erasmianas, política e culturalmente comprometida nas reformas joaninas,
antes de estas soçobrarem nas ambiguidades do final do reinado.
Pejorativamente «estrangeirada» à face das vigências sociais e mentais portuguesas,
essa plêiade de humanistas desaparece de cena nos anos 50 e 60 do século XVI. A sua
morte «histórica» — física ou cívica — arrastou a do humanismo enquanto cultura
secular e autónoma — cultura da confiança no poder do homem e da rejeição do

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

domínio teológico-eclesial, sem negação dos valores religiosos. É uma mudança


geracional, mas é também uma mudança na vida política, espiritual e cultural
do País.
Há um nexo de fatores externos e internos na curva evolutiva para a ordem
«integrista». Avulta, naqueles, o magno acontecimento religioso-cultural que foi o
Concílio de Trento. As suas três fases pontuaram, por assim dizer, o crescendo
do imobilismo ideológico em Portugal. Se ao retomo, próximo de 1550, dos
teólogos que participaram na primeira não foi estranho o retrocesso da política
cultural de D. João III, ao encerrar-se a segunda, em 1552, o extremar de campos
tornara-se irremissivelmente fatal. Não se tinha chegado a nenhum compromisso
entre católicos e protestantes, e era evidente que ele já não seria exequível. Em
consequência, o erasmismo perdeu bruscamente toda a viabilidade de alternativa
irenista ou conciliatória à fratura da unidade cristã; e a corrente cultural, nele filiada,
do humanismo cristão, deteve-se e refluiu perante as barreiras dogmáticas das
irredutibilidades luterana e romana. A síntese de humanismo religioso e religião
humanista já não correspondia à realidade institucional e não tardou a
mergulhar numa zona clandestina da cultura portuguesa, doravante polarizada
na ortodoxia católica.
Aquele ano de 1552 é a provável data de uma edição escolar dos Colloquia, de
Erasmo, devida ao sevilhano Juan Fernández, que ensinara Retórica em Coimbra e
estava por então ao serviço do duque de Bragança. Apesar dos cortes e emendas do
editor e da supressão dos diálogos mais contundentes, o cardeal D. Henrique
interditou a circulação do livro, que, aliás, constava dos índices proibitórios de 1547
e 1551 (Dias, 1960, pp. 182-183 e 499-500; Osório, 1967,pp. 18-19; Rêgo, 1982, p.
44). Ainda assim, a relativa seletividade desses dois primeiros róis — de um para o
outro número de textos do roterdamês cresceu de três para treze — sofreu um salto
qualitativo quando, no de 1561, coincidindo com o início da terceira e última fase do
concílio, autor e obra foram plenariamente condenados. Como que prenunciando a
clarificação final de posições, rematada pela promulgação, em 1564, dos decretos
conciliares, o Santo Ofício sabe o que tem a fazer, e fá-lo inflexivelmente (Bataillon,
1991, pp. 699 e segs.). Na dupla vertente da sua ação repressiva a censória e a
judiciária —, monta um acerbo aparelho de supressão dos veículos de cultura
reputados danosos, na expressão do cardeal D. Henrique, «à sã e verdadeira doutrina
em que fomos criados» (Rêgo, 1982, p. 52); e abate-se (para além dos judaizantes, que
são a maioria) sobre os cristãos refratários à Contra-Reforma. Valha, por todos, o
caso paradigmático do erasmizante Frei Valentim da Luz, queimado em 10 de Maio
de 1562 na Ribeira de Lisboa (Dias 1974).
A doutrina católica definida em Trento, pronta e cabalmente acatada e
executada pela coroa como lei nacional, constituiu-se elemento nuclear da
razão de Estado. Concorreu para o efeito a reunião dos dois poderes, secular e
eclesiástico, consumada no lustro em que o cardeal-infante D. Henrique exerceu a
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

governação. Investido, em Dezembro de 1562, regente do Reino, incorporou essa


função às de inquisidor-geral e legado apostólico perpétuo, com o que o Santo Ofício
reforçou o perfil característico de instituição mista, apoiada ao mesmo tempo na
autoridade real e na autoridade pontifícia. Chegados a Janeiro de 1568, quando D.
Sebastião entrou a reinar, podiam ter-se por definitivamente implantadas as
estruturas políticas e eclesiásticas da monarquia «integrista».
O primado, na escala ideológica unitária da Igreja e do Estado, da uniformização
religiosa afetou de maneira eminente a cultura e traduziu-se, no imediato, pela
drástica redução, em volume e qualidade, do pensamento laico e da temática profana,
e pela correlativa efusão de uma literatura doutrinal e apologética. Que o
humanismo, como fenómeno histórico, se havia esgotado, prova-o o êxito
editorial cobrado pela Imagem da Vida Cristã, de Frei Heitor Pinto, cujas primeira e
segunda partes apareceram respetivamente em 1563 e 1572, nos parâmetros epocais
da consolidação do «integrismo». É uma obra repassada de sincera espiritualidade e
anseio de purificação moral, penetrada de um sincretismo ideológico em que assoma
o neoplatonismo e literariamente vazada numa linguagem tão rica e sortílega quanto
correntia e persuasória. Não se deparam, nessa série de 11 diálogos «à maneira dos
de Platão» (p. XIV) — em boa verdade, outros tantos discursos edificantes, as
invetivas e anátemas com que o polemismo contra-reformista usava estigmatizar a
conceção critica e interiorista do cristianismo, que bebia a sua inspiração nas fontes
evangélicas revivificadas pelos afluentes pagãos. Nesse sentido, e também pelas
copiosas referências clássicas em que se louva, se pode afirmar que o frade da Ordem
de S. Jerónimo não exclui e até cauciona um aceno à corrente erasmiana (Pinto, 1984;
Martins, «Introdução»); mas também a justo título vale dizer-se que a Imagem, sem
ser «anti-erasmista», é — e é-o carregadamente — um livro «não erasmista»
(Lourenço, 1983, p. 105).
Tal negatividade ressalta logo do pessimismo antropológico e do rigorismo ascético
que presidem, no texto de Heitor Pinto, à busca do caminho da perfeição cristã. Essa
perfeição, prescreve ele, conquista-a quem «deixa as coisas humanas pelas divinas, e
se entrega a Deus em holocausto e perpétuo sacrifício. E a esta maior perfeição é
ordenada a religião como a fim. E esta é a que devem buscar, e trabalhar por alcançar
os religiosos, pois para isso foram as religiões (congregações religiosas) constituídas.
Porque Deus inspirou os santos que fizessem regras, e estatutos, e clausuras, onde os
religiosos separados dos inconvenientes do mundo guardassem a vida evangélica
gastando o tempo nos louvores de Deus, rezando e cantando os divinos ofícios, suprindo
e sopeando os apetites com vigílias, abstinências, lições, meditações, disciplinas, e
outros espirituais e corporais trabalhos e exercícios e obras de misericórdia,
empregando nisto o cabedal de suas obrigações» (Pinto, 1984, vol. I, pp. 120-121).
O hiperbólico elogio da vida monástica dá o tom à obra e recupera os velhos lemas
medievos do desprezo do mundo e do mundo como vale de lágrimas. Sempre no
mesmo acento ascético, o protótipo do bom cristão encontra-se no monacato, na
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

renúncia a «coisa tão baixa, como é o mundo» (ibid., p. 242), e realiza-se na vida
solitária, que, «quanto vai mais cortando das conversações e contentamentos humanos,
tanto vai mais acrescentando e subindo por contemplação aos divinos» (ibid.. p. 360).
Implica, por conseguinte, que «o principal estudo há-de ser por livros católicos, porque
deixar os divinos pelos profanos é erro grave, em que muitos embicam, e outros caiem»
(ibid., n, p. 257); Ou como, insistindo na antinomia, admoesta noutro passo:
«Deixemos logo os livros que nos excitam a coisas profanas, e leamos pelos que nos
excitam às divinas: porque quanto mais soubermos das umas, tanto menos quereremos
saber das outras» (ibid., pp. 220-221). Ora isto tende, em suma, à condenação do
valor social de toda a cultura estranha às perspetivas teológicas e, fora dos aspetos
estritamente utilitários, vinculada aos interesses e tarefas do homem no século.
É assim que, pela reabilitação do estado monástico como único exemplo de perfeição
e pela subordinação funcional das letras humanas ao ideal devoto, recusando-lhes
validade intrínseca, Heitor Pinto, «sem exagero, pode chamar-se um contra-
humanista» (Dias, 1969, p. 880). Contra-humanismo, precisamente, suscita a
designação exata à instrumentalização teológico-confessional da cultura. O bom
gosto literário, a prosa vernácula, o esmero estilístico, a rasgada erudição, o aturado
conhecimento dos mestres da Antiguidade — sendo predicados do escritor de eleição
que o jerónimo foi, não são, todavia, suficientes para deferir a chancela de humanista
a Frei Heitor Pinto. Entre o exercício erudito e literário, de um lado, e a visão
ideológico-material, de outro, cavou-se um distanciamento: o primeiro é acessório da
segunda, esta de maneira nenhuma é inerente àquele. Outrossim o monge
contemplativo e solitário, recolhido no ócio da clausura, é o reverso do «cavaleiro
cristão», aquele miles christianus que Erasmo apontou por modelo e para quem,
incutindo-lhe a confiança numa fé ativa e propondo-lhe ser antes que nada homem
entre os homens, elaborou um código de conduta moral apta a intervir nas querelas
da temporalidade.
O contra-humanismo doutrinário teve um expoente maior em Frei Amador
Arrais. Os seus Diálogos, de 1589, estão bem longe de afinar pelo diapasão benigno e
esclarecido dos de Frei Heitor Pinto; compartilham o estilo de associar inumeráveis
autores e lugares seletos do classicismo ao discurso apologético da causa católica,
mas esta causa é assumida com um tónus «político» e militante, que cerceia
qualquer margem de tolerância. O frade carmelita e bispo de Portalegre não faz
concessões ao inimigo — seja ele o judeu, que extensamente incrimina no
pseudodiálogo III, seja o cristão humanista, que explicitamente excomunga no IX. É
quando Antíoco, eixo das conversas e presuntivo porta-voz do autor, interrogado
pelo comparsa — «Lestes acaso um opúsculo de Erasmo da preparação para a morte?»
—, profere a seguinte diatribe: «Valha-vos Deus, Calidónio, como pudestes pronunciar
o nome desse homem? Lavai a boca se quereis mais falar comigo. Praguejou dos santos
da terra e dos céus, e foi inconsiderado e pouco pio em suas censuras, as quais se foram
recebidas por legítimas perderemos boa parte dos livros de vários sábios, e alguns das

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

Sagradas Escrituras. [...] Se esse letrado que nomeaste se abraçara com esta doutrina,
não preferira seus errados juízos e temerárias presunções aos decretos dos sagrados
cânones, sentenças dos santos e doutrinas comuns dos teólogos» (Arrais. 1974, pp. 581-
582).
Dificilmente as teses do contra-humanismo encontrariam mais clara e condensada
expressão do que no trecho acabado de citar. Por interpostos Arrais e Erasmo, o
teólogo ata ao pelourinho o humanista; e, nos «santos da terra e dos céus», vitupera-
lhe a sátira do clero, do monacato, da supersticiosa devoção santeira; nos «livros de
vários sábios», a rejeição da escolástica e seus doutores subtis; nos «das Sagradas
Escrituras», a aplicação da metódica histórico-filológica à depuração do texto bíblico;
enfim, e sentenciando, nos «errados juízos e temerárias presunções» fulmina de um
golpe as ousadias criticistas do «letrado», que se intromete nos domínios privativos
das autoridades da Igreja. Domesticado, desprovido da autónoma tensão moral e
intelectual que lhe dera o ser, degradado à condição servil de ornamento estético e
aparato erudito, o que restava do humanismo depois dos tratos a que o submeteram
os teólogos da Contra-Reforma eram, de facto, despojos com que se revestiu outro
corpo, outra cultura.
«Humanidades» e «Filosofia» no ensino da Companhia de Jesus
Só aparentemente é paradoxal que o triunfo do contra-humanismo na doutrina
coincida com a expansão das «humanidades» no campo do ensino. A
instrumentalização doutrinária da cultura incorporou nas escolas os estudos
clássicos à docência religiosa — e dessa simbiose resultou o classicismo católico, que
vigorou na pedagogia portuguesa desde que o sistema educativo pré-universitário
ficou na alçada da Companhia de Jesus. Aos Colégios de Santo Antão, em Lisboa, e do
Espírito Santo, em Évora, a Companhia juntou, em 1555, o das Artes, de Coimbra,
passando assim a dispor de estabelecimentos nos três centros intelectuais do País.
Nessa rede escolar, que depois se estendeu a outras cidades da província, o programa
geral dos cursos foi elaborado em obediência aos fins apostólicos e à política
eclesiástica do instituto fundado por Santo Inácio de Loiola. Em primeiro lugar,
orientar a formação da mocidade dentro da ortodoxia católica; em segundo
lugar, explorar no interesse dessa causa as conquistas irreversíveis da
inteligência moderna.
O primeiro objetivo estava inscrito nas constituições outorgadas pelo fundador. O
segundo decorreu da adaptação às exigências da época. Independentemente de
opções ideológicas, o surto humanista conferira ao saber das línguas clássicas e das
técnicas filológicas o carácter de requisitos de base do homem cultivado. Algo que
não escapou à perspicácia dos notáveis da Companhia, e nomeadamente do Padre
Juan de Polanco, o colaborador mais chegado de Loiola e dos dois gerais que lhe
sucederam, o qual, numa carta de 1564 para o seu confrade Diogo Mirão, provincial
dos jesuítas portugueses, fazia estas judiciosas recomendações; «Na era em que

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

estamos, por toda a parte se tem muito em conta a erudição nas coisas de humanidades,
tanto que sem elas a doutrina melhor e mais sólida parece que luz menos. Por isso ao
Padre Geral pareceu muito conveniente que se escrevesse às províncias, que tenham
conta com estas letras humanas, e façam estudar' bem, quem mostrar aptidão, pelo
menos o Latim e a Retórica, e que não passem às Artes ou pelo menos à Teologia sem se
exercitarem bem nestas letras» (Braga, 1892-1902, vol. II, s/d, p. 352).
Haveria, pois, que lustrar a doutrina com o esmalte das boas letras. O escopo era
conformar o «homem religioso», munido da panóplia erudita que a atmosfera
intelectual criada pelo humanismo reclamava e apto a com ela sustentar as posições
professadas pela igreja institucional. Simplesmente, humanismo e «humanidades»
não são equivalentes; naquele, as disciplinas clássico-filológicas concebiam-se
intrinsecamente vinculadas ao ideal ético de aperfeiçoamento do «cristão bem
formado», afirmando-se como um indivíduo autónomo, dinâmico e realizador de si
mesmo; e as últimas, na conceção jesuítica, não passavam de expediente eficaz
para a veiculação de uma cultura aparentemente modernizada, mas induzida
pela hierarquia eclesiástica. No ensino ministrado pelos novos possuidores do
Colégio das Artes, o plano de estudos dos «bordaleses» não sofreu, formalmente,
solução de continuidade — os conteúdos materiais é que se esvaziaram do sentido
civil ou laico, humanístico-individual, substituído pelo elemento religioso-social
assente no princípio da autoridade.
Reter e apropriar-se das realizações do humanismo para as pôr ao serviço do
apostolado católico, tal foi a estratégia pedagógica da Companhia de Jesus.
Ninguém o explicou melhor do que um seu historiador oficial, quando escreveu que
os Jesuítas, «conformando-se com o espírito da sua Ordem, que procurava acomodar-se
a todos para a todos melhorar e levar à perfeição da vida cristã, aproveitaram muito
avisadamente os métodos em que toram educados, e procuraram aperfeiçoá-los para
conseguirem por esse meio o fim nobilíssimo que suas vocações lhes assinalava. Ora a
Companhia apareceu na sociedade quando na região das letras dominava
irresistivelmente o chamado humanismo e o estudo dos autores da antiguidade clássica.
Esse método geral de formação abraçaram com entusiasmo, e o seguiram na sua
atividade pedagógica, afeiçoando-o cuidadosamente às exigências particulares de sua
profissão e apostolado» (Rodrigues, 1931-1950, vol. I, 2, 1931-1950, p. 433). E outro
historiador, este oficioso, exarou igualmente que os inacianos, «fiéis servidores da
Igreja Católica, aproveitam o que há de bom no seu século, mas fustigam os desvarios e
contrapõem-lhes a sã doutrina, revestida de roupagem nova, atraente, ao gosto da
época» (Andrade, s/d, p. 97).
O preceptorado do classicismo católico concretizou-se fundamentalmente, e atingiu
repercussão cultural duradoura em sucessivas gerações de portugueses, na praxe do
ensino dos mestres jesuítas. Quanto à aprendizagem do Latim, prólogo de todo o
saber, teve o seu regimento em 1572 no De institutione grammatica, do Padre Manuel
Álvares, a famigerada Arte, cuja fortuna conheceu (no original e seus derivados)
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

centenas de edições e vingou entre nós por quase 200 anos, até que a reforma
pombalina de 1759 a proscreveu «como aquela que contribuiu mais para fazer
dificultoso o estudo da latinidade neste Reino» (Alvará de 28 de Junho de 1759, art. 7).
Anti jesuitismo à parte, o compêndio, complicadíssima fábrica de regras e exceções,
consagrava uma didática formalista e abstrata da língua latina, fornecendo esquemas
que do exterior se impunham à matéria, sem integração estrutural da expressão e do
pensamento.
Por sua vez, a outra disciplina nuclear do ciclo das «humanidades», a Retórica, que
garantia o discurso bem ordenado e as galas da eloquência, teve noutro regente do
Colégio das Artes, Cipriano Suárez, um legislador proficiente. Este padre fez sair em
1562 o De arte rhetorica, manual também reproduzido até ao século XVIII, e dirigiu
concomitantemente, por incumbência da Companhia e para uso das classes, um
programa editorial, em volumes distintos, de autores latinos prévia e zelosamente
«limpos» dos lanços atentatórios da pureza de costumes. O expurgo metódico
pretendia obstar a que os alunos assimilassem, com as elegâncias da linguagem, a
sensibilidade e o conteúdo moral que as obras clássicas inculcavam. Apresentando
assim Plauto e Marcial, Séneca e Cícero, Floro e Tito Lívio truncados e desintegrados
do seu contexto histórico-cultural, assegurava-se o contacto com o bom latim sem
que a virtude sofresse o detrimento da má doutrina — que essa, a boa, era extrínseca
aos textos estudados.
De acordo com as diretrizes superiores da Companhia, a doutrina teológica
atravessava verticalmente os cursos. A ela se acomodavam as «humanidades» sob
a espécie de classicismo católico e dela dependiam ancilarmente os complementares
estudos «filosóficos». Por «filosofia» entenda-se, no jargão tomado do aristotelismo
escolástico, um sistema de saberes de lato âmbito, que, em escala ascendente de
dignidade hierárquica, abarcava, precedido pela «dialética» enquanto técnica de
pensar e argumentar mediante o mecanismo silogístico, o grupo das matérias físico-
naturais, seguido, no topo, pelo das morais e metafísicas — mas todas elas uma longa
propedêutica para a teologia católica, ministrada na universidade eclesiástica que os
Jesuítas mantinham desde 1559 em Évora, além de na de Coimbra. Em qualquer
circunstância, o ingresso nas outras faculdades maiores desta última academia —
Cânones, Leis e Medicina —, que é o mesmo que dizer nas carreiras da Igreja e do
Estado, passava pelos mesmos preparatórios de «filosofia».
No tocante aos preliminares, o ciclo «filosófico» dispôs a partir de 1564, com os
Institutionum dialecticarum, de Pedro da Fonseca, de uma iniciação geral à lógica
aristotélica, que compaginava a tradição escolástica e os modernos subsídios
filológicos de restituição textual. Tornava-se, porém, necessário confecionar um
curso uniforme e compacto, que impedisse tergiversações de magistério e se ativesse
estritamente ao corpus aristotélico. Subjacente ao empreendimento estava a
convicção de que a escolástica medieval, mormente a codificada na síntese de S.
Tomás de Aquino, representava um non plus ultra, que apenas carecia de ser
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

informativamente beneficiado em alguns aspetos e didaticamente aclimatado à época


do Renascimento. E sob esta conceção de uma «filosofia perene» encobria-se, afinal,
um dos vetores do contra humanismo: a pretensão de que a inteligência humana
atingira já o ponto final do saber e de que esse termo ad quem se situava no sistema
aristotélico-escolástico. Sistema cujos elementos são solidários em função de um
valor unitivo — a teologia — que a todos subordina. Sistema, portanto, ao arrepio do
processo de reestruturação profana da cultura que o humanismo começara a esboçar.
O projeto de um «curso inteiro de Artes» para servir nos colégios da Companhia cedo
laborou na mente dos responsáveis; a sua concretização, dada a magnitude da tarefa,
é que teve de defrontar vicissitudes que a protelaram para o dobrar do século. Ao
reputado mestre Pedro da Fonseca — por epíteto, o «Aristóteles português» — foi
cometida a missão de coordenar um grupo de trabalho que, ao dissolver-se, em 1570,
não lograra resultados conclusivos; Luís de Molina, espanhol, mas formado em
Coimbra e docente em Évora, intentou sem êxito, cerca de 1582, que um curso da sua
autoria fosse adotado como texto oficial; finalmente, coube a Manuel de Góis redigir a
compendiação. Aproveitou para o efeito os materiais deixados pelos seus
antecessores e as postilas manuscritas ditadas nas aulas ao longo de sucessivas
regências.
Assim, em 1592 saía dos prelos o primeiro dos Commentarii Collegii Conimbricensis
Societatis Jesu — título genérico da obra —, dedicado à «física» (in octo libros
physicorum Aristotelis Stagiritae); seguiram-se no ano imediato os volumes sobre
«astronomia e cosmografia» (in quator libros de coelo Aristotelis Stagiritae),
«meteorologia e geografia física» (in libros meteororum Aristotelis Stagiritae),
«psicologia» (in libros Aristotelis qui parva naturalia apellantur) e «ética» (in libros
ethicorum Aristotelis); em 1597 surgiu o que tratava da «geração e corrupção» (in
duos libros de generatione et corruptione Aristotelis Stagiritae); e, não obstante ter
falecido nessa data, Manuel de Góis ainda deixou preparado o tomo que versava a
«alma» (in tres libros de anima Aristotelis Stagiritae), estampado em 1598, com
anexos pertencentes a Baltasar Álvares e Cosme de Magalhães. Após um hiato de oito
anos, em 1606 Sebastião do Couto acrescentou ao acervo uma «lógica» (in universam
dialecticam Aristotelis Stagiritae), que veio substituir a de Fonseca. Para cerrar a
enciclopédia faltou apenas a «metafísica» (lacuna em parte suprida pelo mesmo
Fonseca, que publicara entretanto uns Commentariorum in libros metaphysicorum
Aristotelis, extravagantes à coleção conimbricense).
Oito livros ao todo e todos comentários a Aristóteles. O método expositivo
consistia em imprimir, ao centro da página, um excerto do texto latino do Estagirita;
e, nas margens da esquadria, explanavam-se as paráfrases, «grosas» e exegeses
interpretativas. As consequências epistemológicas deste proceder não podiam ser
outras: o lecionário da autoridade esmagava o ânimo perscrutador e inibia o apelo à
razão e experiência pessoais como fontes de conhecimento e instâncias de
comprovação crítica das verdades estáveis, ne varietur, canonizadas pela Bíblia, pelos
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

Padres da Igreja e pelos doutores da escolástica. Há uma clara tendência para a


excogitação transcendente da Natureza, encarada pelo prisma especulativo,
ontologístico e metafísico — sempre com a teologia no fulcro da problemática. Volta,
não volta, questões pontualmente naturais são dirimidas com recurso a argumentos
teológicos e artigos de fé: assim quanto à imobilidade da Terra, sustentada pela
Escritura, ou quanto aos dogmas da Eucaristia, da Trindade, da Ressurreição,
invocados a propósito das propriedades, da substância, da «geração e corrupção» dos
corpos... «Com alguma frequência, as teses físicas são afirmadas por uma leitura
literalista da Sagrada Escritura que, a essa luz, era incontraditável» (Gomes, 1992, p.
103).
Continuadores e renovadores da escolástica medieva — donde o nome de «segunda
escolástica» atribuído ao sistema em que se integram —, os conimbricenses não se
revelaram permeáveis à corrente naturalista dimanada dos descobrimentos
marítimos. Esta, mais do que novidades materiais que o tempo — transcorridas
sobre elas toda uma centúria, desde as primeiras grandes viagens até aos
Commentarii — se encarregou de vulgarizar, abrira brechas irreparáveis nos diques
epistemológicos que se opunham ao avanço da inteligência humana para além dos
comentários dialéticos de velhos textos. E o impulso dessa corrente concitava as
mentes a buscar outros critérios de certeza — outras metodologias — para o
progresso do saber. Ora, frente a tal influxo, a atitude dos conimbricenses
«corresponde à quinta-essência do escolasticismo; está nos antípodas da de um Garcia
de Orta, um Gomes Pereira, um Francisco Sanches e quantos, por toda a Europa,
preparavam os espíritos para os caminhos projectados por Francis Bacon e rasgados
por Galileu e Descartes» (Dias, 1985, p. 35).
Neste rol de batedores, estamos entendidos quanto a Garcia de Orta — os seus
Colóquios, metodologicamente tão fecundos, não tiveram projeção entre nós. Acerca
de Gomes Pereira e Francisco Sanches insiste-se com frequência no parentesco do
seu pensamento com Bacon e Descartes, na medida em que os germes de empirismo
e nacionalismo que os segundos desenvolveram se deparam já nas obras dos
primeiros. A relação é pertinente, mas estranha ao ambiente intelectual português,
que não gerou nem acolheu nenhum dos dois peninsulares. O médico Gomes Pereira
era natural de Medina del Campo, formou-se em Salamanca e foi na cidade natal que
publicou, em 1554, a sua Antoniana Margarita, tratado filosófico em cujo prólogo
adverte ousadamente: «Em não se tratando de coisas de religião, não me submeterei
ao parecer nem sentença de nenhum filósofo se não estiver fundado na razão. Em
questões de especulação, não de fé, toda a autoridade deve ser condenada» (Abellán,
vol. n, 1986, p. 190). Por seu turno, Francisco Sanches, o «Céptico», viveu quase
sempre longe da pátria, sendo despicienda e ociosa a polémica sobre qual pátria era
essa. «Hispanus» ou «lusitanus», como umas que outras vezes se refere a si mesmo
(no que não há contradição), nascido em Valença ou Tui pelo meado do século e no
seio de uma família de conversos, é seguro que em 1562, aos 12 anos de idade, já se

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

encontrava em Bordéus, onde estudou, no Colégio de Guiena, que fora de mestre


André de Gouveia. Em França, depois de uma estada em Roma, graduou-se em
Medicina pela Universidade de Montpellier e ensinou nela e na de Toulouse até à
morte, em 1623. A obra que o fez famoso apareceu em Lyon, em 1581: Quodnihil
Scitur, «Que nada se sabe», título ilustrativo do ceticismo metódico que o levou a
sacudir os preconceitos escolásticos que desvirtuavam a busca filosófica da verdade,
rejeitar toda a autoridade — e acima de todas a aristotélica — e virar-se para a
Natureza com o intuito de fundar, mediante a observação, «uma ciência segura e fácil,
baseada não em quimeras ou ficções alheias à realidade das coisas úteis só para
mostrar o engenho e subtileza de quem escreve, mas sim nos métodos firmes e positivos
que podem conduzir a uma conceção científica verdadeiramente racional e elevada»
(ibid., p. 204). Uma conceção, com efeito, nos antípodas da dos conimbricenses, e que,
se além-Pirenéus teve possibilidade de se afirmar e influir — o que parece provado
— na cerebração de Descartes e de Bacon, não tinha guarida no ensino monolítico
pautado pelos Commentarii.
Como não a teve o para-experimentalismo de D. João de Castro. No «Roteiro do mar
Roxo» o navegador-inquiridor fez o detalhado relato das «operações» a que procedeu
no decurso da expedição de 1540-1541 com o fim de pôr a limpo o mistério da
vermelhidão das águas. Manuel de Góis, 50 anos volvidos, nos comentários in libros
meteororum, também trata o tópico. E eis de que modo: «Coisas contraditórias foram
avançadas pelos antigos acerca da imposição do nome ao Mar Vermelho. Já porém
diminuiu a controvérsia delas a navegação dos portugueses, os quais, como João de
Barros, preclaro historiógrafo dos assuntos indianos, refere no capítulo 1 do livro 8 da
Década II, tendo percorrido em vários sentidos aquele mar, souberam em primeiro
lugar que as águas aparentavam cor vermelha. Depois, para conhecerem a causa da
cor, tiraram água do mar para o barco, vista a qual como diáfana e isenta de todo o
rubor, logo compreenderam que as águas não eram em si vermelhas, mas reproduziam
a cor das areias vermelhas ou dos corais em que abunda a profundidade daqueles
mares» (Commentarii Collegii Conimbrincensis S. I., in libros meteororum Aristotelis
Stagiritae, Lisboa. 1593, p. 77. Cf. trad. de Dias, 1985, p. 38; cf. a versão de Andrade,
s/d, p. 71).
Cotejando os textos de D. João de Castro e de Manuel de Góis, salta à vista que o
conimbricense reduziu a simples perceção sensorial e impessoal — «Tiraram água»...
e «logo compreenderam» — o que, na realidade, resultara de um processo complexo,
experiencial e individual, de observações provocadas e aferidas, repetidas e
contrastadas. Não há que estranhar o arremedo: a fonte de que Góis se serve é João
de Barros, e o cronista, homem de letras imbuído da visão épico-classicista da
expansão marítima, com toda a probabilidade não leu o roteiro de D. João de Castro,
ou se o leu não o compreendeu; limitou-se a arquivar o feito, referindo-o
anacronicamente à época de D. Manuel e difusamente à gesta coletiva dos
Portugueses. Por essa via se divulgou e converteu num lugar-comum; é também para

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

as Décadas de Barros que Frei Amador Arrais remete, quando nos seus Diálogos de
1589, que não têm pretensões de obra «científica», usando um «nós» patrimonial,
amalgama no mesmo ufano registo sucessos tão díspares como estes: «Pusemos o
oriente debaixo das nossas leis e império, e metemos suas riquezas pela barra do
delicioso Tejo, e descobrimos o nascimento do Nilo (disputado com contumaz e
soberba porfia de engenhos humanos) e as causas verdadeiras por que o mar Arábio é
roxo, coisa de que os antigos falaram vária e fabulosamente» (Arrais, 1974, p. 295).
Ambas as obras — a «científica», do jesuíta, e a «espiritual», do frade carmelita —
colhem na matriz de João de Barros os termos anónimos e imprecisos com que as
descobertas de D. João de Castro ingressaram na tradição épico-lendária. A ausência
do autor dos «roteiros», assaz relevante no caso de Manuel de Góis, é significativa de
como a cultura escolar portuguesa — a única oficializada, e que tinha um público —
não reteve o saber técnico-positivo legado pelos homens do mar e as aproximações
da metodologia experimentalista de que alguns deles foram artífices. Deriva daí a
facilidade crédula com que o conimbricense se fez eco da versão simplista que
transformou as meticulosas observações críticas do navegador numa elementar
evidência espontânea. Muito menos lhe seria inteligível, se acaso com ele tivesse
contactado, o axioma, contido no Tratado da Esfera, de que «a razão que convence o
entendimento [...] é a que se toma da experiência dos instrumentos matemáticos»
(Castro, 1968-1981, vol. I, p. 67). Neste terreno epistemológico, os Comentarii
regridem ao estádio da experiência-facto, do tosco empirismo ingénuo que ainda
desconhece os processos corretores das impressões qualitativo-subjetivas do mundo
físico. Não deixa de ser sintomático que certas expressões de Manuel de Góis —
«experiência, madre da filosofia», ou «experiência, soberana da filosofia e mestra da
verdade» (Dias, 1985, pp. 43-46) evoquem o quase centenário enunciado de que «a
experiência é madre das cousas [e] por ela soubemos radicalmente a verdade»
(Esmeraldo de situ orbis, Pereira, 1988a, p. 169). Num e noutro, a mesma fórmula
destituída de sentido metodológico; com a substancial diferença, porém, de que um
Duarte Pacheco Pereira brandia a sua «experiência» de marinheiro para questionar,
no dealbar do século XVI, as autoridades antigas ou medievais, ao passo que o jesuíta,
no advento do seguinte, retrograda à noção vulgar, então já arcaica porque alheia à
instrumentação matemática exigida por D. João de Castro e a propósitos de
construção teórica a partir da observação; e precisamente essa «falta de perceção da
experiência como experimentação e da experimentação como fonte única do progresso
científico e caminho único do conhecimento exato no âmbito natural é que retira à
evocação da experiência por Góis todo o alcance epistemológico que ela estava a
adquirir na Europa e que, em breve, ia ser consagrado por Galileu e Bacon» (Dias 1985,
pp. 45-46).
Uma Física aristotélica das qualidades — que se movia em redor de categorias
ontológicas como as de seco e quente, frio e húmido, pesado e leve — prescindia do
rigor, exatidão e precisão da Matemática. Não por acaso, esta última disciplina, base

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

da Física experimental, decaiu notavelmente na própria Universidade de Coimbra


depois que Pedro Nunes se retirou, nos princípios de 1558, e nem o magistério de
André de Avelar, que regeu a cadeira de 1592 a 1612, a reabilitou da indigência
(Albuquerque, 1987, pp. 143-148); ficou, desde o afastamento daquele lente,
penitenciado pela Inquisição em 1620, vaga até 1653. Tão-pouco a «aula da esfera»,
mantida pelos jesuítas no Colégio de Santo Antão a partir de 1590, em que se
ensinavam, com recurso a mestres estrangeiros, rudimentos de astronomia e
cosmografia, ultrapassou o nível medíocre (Carvalho, 1986, pp. 378-383). Algo de
semelhante, confirmando a generalizada postergação dos estudos apoiados na
observação, ocorreu na Medicina, em cuja faculdade se suprimiram as dissecções em
cadáveres humanos promovidas pelo espanhol Alonso Ruiz de Guevara nos anos 50.
Na Medicina, na Matemática, na Física e nas restantes matérias englobadas na
chamada «história natural», o modelo epistemológico neo-escolástico travou o
impulso de curiosidade acerca do homem e do mundo que exuberantemente
caracterizara o ímpeto criador dos «naturalistas» ligados às navegações. Com o
«curso filosófico» conimbricense pautando o rumo do saber na rede pedagógica
jesuítica e sequencialmente na universidade, consuma-se a marginalização, na
cultura portuguesa, da corrente técnico-prática dos Descobrimentos. Ou melhor: a
uma existência marginal às instituições de ensino — mas ainda assim existência, e
com repercussões no magistério de um Pedro Nunes —, subalternizada pela
hegemonia do humanismo «ético-literário», o que se explica pela funcionalidade
deste último na crise sócio-religiosa do segundo quartel do século, sucede no período
sebástico e filipino a ostensiva exclusão do espírito positivo e da liberdade individual
na análise dos fenómenos naturais. Os Commentarii, com a sua gnoseologia vulgar
que repelia a experimentação e a formulação teórica de generalidades indutivas, com
a sua preeminência do argumento de autoridade sobre a razão crítica, acima de tudo
com a sua conceção metafísica e transcendente da Natureza, subordinada à teologia e
aos mistérios cristãos, quebraram o elo do humanismo «naturalista» — elo que se
encadeou na metodologia baconiana, na física galilaica, no cogito cartesiano, mas que,
rompido entre nós por esse «Obstáculo epistemológico» (Dias, in A Abertura, 1986,
vol. I, pp. 41-52), coartou o acesso à revolução científica que na Europa Ocidental não
hispânica estava já fermentando.
Para tal descontinuidade, o «obstáculo epistemológico» referido foi talvez mais
determinante do que a censura inquisitorial. Formaram, sem dúvida, um bloco
integrado, sendo, em rigor, indiscernível a quota de responsabilidade que, no fixismo
da cultura portuguesa seiscentista, há que adjudicar a um e a outro dos fatores que
embargaram o progresso da inteligência. A escola imobilizou o intelecto discente nos
métodos, discurso e linguagem da escolástica; ao Santo Ofício coube velar para que
quaisquer doutrinas alternativas à visão do mundo aristotélico-tomista afetassem,
ainda que tão-só reflexamente, a única «filosofia» ortodoxa; e como, desde princípios
do século XVII, a maioria dos inovadores europeus não se alistava nas fileiras

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

católicas, o grande Index expurgatório de 1624 (obra do jesuíta Baltasar Álvares, um


dos colaboradores dos Commentarii), que vinha sendo preparado e na prática
aplicado desde 1597, proibia na sua regra X «quaisquer livros» em língua inglesa,
flamenga ou alemã, «porquanto neste Reino, e particularmente em Lisboa, há muito
comércio de estrangeiros setentrionais das partes entradas ou infestadas pela heresia»
(Index autorum damnatt memorix, Lisboa, 1624, p. 83; cf. Rêgo, 1982, pp. 95-115). A
«heresia» contaminava a «ciência»; preservadas as mentes do vírus alienígena, os
censores podiam confiar na eficácia do padrão ideológico nacional: «As garantias
oferecidas, mesmo à Inquisição, em matéria de doutrina, eram tais, que os livros de
ideias, cujas teses fossem concordantes com as dos Conimbricenses, não careciam de
licença do Tribunal da Inquisição de Coimbra» (Gomes, 1992, p. 109).
Num ambiente cultural misoneísta, centrado na dominância teológico-metafísica e na
soberania das diretrizes eclesiais, não podia desenvolver-se um pensamento
filosófico crítico, original e independente — isto é, genuíno. Restringida a circulação
das ideias, comprimido o ternário profano, o espaço de criatividade ficou circunscrito
às querelas intestinas ao catolicismo. Assim sucedeu na rija polémica — subiu ao
papa — em torno da questão teológica de auxiliis divinae gratiae, que teve origem no
livro do jesuíta espanhol, mas de formação portuguesa, Luís de Molina, publicado em
Lisboa no ano de 1588 e conhecido como Concordia — concórdia do livre arbítrio
humano com a graça divina, tese rebatida pelos tomistas intransigentes da ordem
dominicana. Molina estudou em Coimbra, regeu «Filosofia» no Colégio das Artes de
1561 a 1567 e elaborou a sua obra quando ensinava na Universidade de Évora — era,
pois, um produto da escola conimbricense. Acorde, no essencial, com a doutrina
molinista manifestou-se o também jesuíta Francisco Suárez — «granatense» pela
naturalidade, «doctor eximius» pelo prestígio —, que, por decreto de Filipe II e
previamente doutorado em Évora, ocupou entre 1597 e 1615, na Universidade de
Coimbra, a cátedra de «prima» de Teologia — a mais famosa da Península Ibérica. As
suas não menos famosas Disputationes metaphysicae, saídas em Salamanca na mesma
data em que o autor ingressou em Portugal, apresentam um corpo sistemático de
metafísica em lugar dos escolásticos comentários a Aristóteles e não se subordinam à
teologia no sentido tradicional; são, portanto, nula ou escassamente tributários dos
conimbricenses.
O sentimento de «desengano» (pp. 365-371)
Os fatores em que se insistiu para caracterizar cultural e ideologicamente o período
sebástico e as duas últimas décadas do século XVI — o triunfo do tridentinismo no
que este tem de mais negativo e intolerante, a centralidade teológica e a primazia
ascética substituindo-se ao humanismo laico e cívico, a fé dogmática sobrepondo-se
aos foros da razão, o ensino exclusivista emanado da Companhia de Jesus represando
o espírito criador — não foram os únicos que concorreram para configurar uma
situação histórica depressiva, tal a que Camões, quando, ainda nos inícios dos anos
70, epilogava o poema em que exaltara o passado glorioso, cifrou num verso sombrio:
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

«Uma austera, apagada e vil tristeza» (Os Lusíadas, canto X, 145). Tão forte ação
condicionante das transformações registadas na consciência e na sensibilidade dos
Portugueses exerceram-na os insucessos políticos, os reveses militares, as deceções
que, nos umbrais do século XVII, advinham do transe da perda da autonomia e, mais
agudamente, do pendor do Império. Este, após o fastígio da primeira metade da
centúria, precipitou-se, com o abandono forçado de várias praças-fortes e cidades no
Norte de África, o encerramento da feitoria de Antuérpia, o incremento dos ataques
do corso francês e inglês contra a navegação da carreira da índia, num alarmante
processo descensional; sucedeu, já no domínio filipino, o assalto dos rivais
europeus às possessões asiáticas e o definitivo colapso do monopólio do tráfego
oriental, fulcro da estratégia ultramarina de D. João III (Godinho, 1981-1983, vol. IV,
pp. 216-223). Acresciam, no plano interno, os apertos financeiros do Estado, o
empobrecimento económico, a decomposição social e, aquém e além-mar, a
generalizada corrupção administrativa.
Impõe-se, com a derrocada das veleidades imperiais de grande potência colonial e
marítima, o sentimento de uma inelutável decadência; e, correlatamente,
sobrevém a reação de desilusão, de desesperança — de «desengano» — perante o
mundo e os homens. O otimismo do apogeu expansionista volve-se amargo
pessimismo; a euforia do avanço esmorece na disforia da queda; a tensão de futuro
cede à refração passadista. Agregado à rígida inspiração religiosa provinda da
Contra-Reforma, todo este complexo ideológico de inferioridade e abatimento
permite falar do fim de uma época da cultura — a do Renascimento —, marcada
pelo vitalismo renovador e ascendente, e do prelúdio de outra, gerada nesse clima de
crise moral e material — a do Barroco (Maravall, 1983, pp. 23-51).
Frei Amador Arrais
A visão providencialista da história que ressuma das páginas que Frei Amador Arrais
dedicou, nos seus Diálogos de 1589, à «glória e triunfo dos Lusitanos», só
relutantemente admitia a ideia de decadência. No diálogo IV, propõe-se o bispo de
Portalegre resumir, «como em um breve compêndio, o que está difuso por longos
volumes, da conquista das índias Orientais pelos portugueses» (Arrais, 1974, p. 293).
Antes, deplorara a carência de um trabalho de conjunto que, acerca da gesta nacional,
emulasse os clássicos: «Os feitos ilustres dos atenienses e romanos cresceram e
amplificaram-se com a eloquente pena de seus escritores: mas para os nossos até agora
faltaram engenhos, e aos que houve faltaram palavras para igualarem sua glória e
majestade. De maneira que vai o tempo triunfando de nossas vitórias e conquistas,
sepultadas e quase extintas por falta de historiadores» (ibid., p. 237). Desvaloriza
assim o labor de Castanheda e dos cronistas oficiais João de Barros e Damião de Góis,
bem como a retumbante versão latina que da Crónica de D. Manuel, da autoria
daquele último, D. Jerónimo Osório realizou, «a fim de que o nome deste rei seja
conhecido no estrangeiro» (Matos, 1991, p. 525), conforme lhe solicitou o cardeal D.
Henrique. Seguindo de perto o texto de Góis, embora introduzindo variantes,
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

aditamentos e cortes nas partes excrescentes, o bispo de Silves emprestou-lhe a


perfeição estilística de «Cícero do seu tempo» e deu à estampa, em 1571, o De rebus
Emmanuelis gestis, com que levou ao conhecimento da Europa os fastos do reinado
manuelino. Desde esse ano de 1571, falecido Barros, recluso Góis, a historiografia da
expansão ficou deserta por um quarto de século, até Diogo do Couto ser nomeado, em
1595, para continuador das Décadas da Asia.
Mas, no ocaso de Quinhentos, mesmo os arroubos de ufania heróica e
providencialismo ingénuo, em que abunda Amador Arrais, soavam com um dobre
fúnebre. Ainda se compraz o teólogo dos Diálogos na sublimação das «miraculosas e
sobrenaturais» vitórias alcançadas pelo «grande Duarte Pacheco», pelo «claríssimo
Almeida», pelo «valoroso Albuquerque» — e que todas, mérito dos varões à parte, «se
devem atribuir ao favor divino» (Arrais, 1974, p. 307). Pertencem ao passado, porém,
essas vitórias. Ocorreram «quando nos soldados e capitães reluzia temor a Deus e zelo
da religião»: «Mas agora, Herculano, nesta nossa idade entram os cristãos na batalha
com a cruz no peito, e com as almas cativas de suas depravadas afeições, e
acompanhados de más mulheres, e fumando pela boca blasfémias» (ibid., p. 308). E
como, ignorando quaisquer outras causas da moléstia, o diagnóstico assenta apenas
na dissolução dos ideais ético-religiosos da cruzada, aduz larga cópia de exemplos
escriturísticos para prescrever o receituário miraculoso: «A conclusão seja, que
reformem os capitães e soldados cristãos suas vidas e costumes, frequentem os
sacramentos, continuem os exercícios da milícia cristã que professaram, se querem ser
vencedores em suas conquistas» (ibid., p. 310).
Não tem dúvidas, o severo asceta, sobre a eficácia do remédio. A realidade da
decadência, que para ele se reduz ao fenómeno da ambição mercantilista — a auri
sacra fames que se apoderou dos seus compatriotas —, seria em breve reversível
pelo reacender do espírito cruzadístico inerente à alma lusitana, esse «alto, natural e
grandioso espírito» que o sossega quanto a temer «que se transformem os portugueses
em mercadores cobiçosos, e assim percam o império da Índia, que conquistaram como
esforçados cavaleiros» (ibid., p. 312). Era, no fundo, o regresso à doutrina tradicional
que privilegiava as ações militares, a guerra santa; o regresso à tese camoniana, que
n’ Os Lusíadas também atribuíra todos os males ao «gosto da cobiça» (Os Lusíadas,
canto X, 145) e, aviltando os que se dedicavam ao trato comercial, enaltecera «aqueles
que por obras valorosas/se vão da lei da morte libertando» (ibid., canto 1,2), os
mesmos heróis que, a concluir, recomenda a D. Sebastião nestes termos: «Os
cavaleiros tende em muita estima,/Pois com seu sangue intrépido e fervente/Estendem
não somente a Lei de cima,/Mas inda vosso Império preminente» (ibid., canto X, 151; cf.
Saraiva, 1992, pp. 137-143). Frustradas, contudo, em Alcácer Quibir as esperanças
que o Épico depositara no infausto rei-cavaleiro, as de Frei Amador Arrais voltam-se
agora para o «potentíssimo rei católico D. Filipe senhor nosso, devotíssimo da
verdadeira religião, que sobretudo traz ante seus olhos a plenária conversão da
gentilidade das partes Orientais e Ocidentais» (Arrais, 1974, p. 312), o que equivale ao

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

reconhecimento, partilhado pela opinião dominante, de que a salvação do Império


residia na aliança peninsular — na união de Portugal com uma Castela que, por sua
vez, também resvalava na decadência.
Diogo do Couto
Outra é a perspetiva — e outras eram as expectativas — de Diogo do Couto. Quando,
entre 1610 e 1612, reescrevia em Goa o seu Diálogo do Soldado Prático, cujo
original, redigido ainda no tempo de D. Sebastião, lhe fora sonegado, comunicou uma
inflexão drástica e «desenganada» ao teor crítico mas «enganado» com que, na
primitiva versão, um soldado veterano explanava as medidas que se lhe
representavam instantes para reformar o aparelho burocrático-administrativo e
debelar os vícios da gestão oriental. No manuscrito ulterior, a crença desfez-se, e o
«soldado velho da índia, que ia a dar a sua petição e papéis» a um «despachador de
Portugal», desenvolve, na presença deste funcionário régio e de «um fidalgo, que fora
governador da Índia» (Couto, 1980, p. 17), um implacável requisitório do iminente
descalabro do império. Era já manifesto que, ao contrário do que Frei Amador
Arrais augurara, o apoio castelhano — conquanto este segundo diálogo continue a
reportar-se ao reinado sebástico — não sustara o plano inclinado do desastre e que a
hora extrema, agónica, se aproximava, «porque já na Índia não há coisa sã: tudo está
podre e afistulado, e muito perto do herpes, e se se não cortar um membro, virá a
enfermar todo o corpo e a corromper-se» (ibid., p. 88).
Com O Soldado Prático — que ficou inédito, como inéditas ficaram as Lendas da Índia,
de Gaspar Correia, que corroboram com detalhes crus os abusos e desmandos da
governação portuguesa —, Diogo do Couto opera uma inversão de agulhagem na
consciência histórico-social de avanço, que, suscitada pelo alor das descobertas e
conquistas, se proclamara vencedora dos antigos e tivera a sua apoteose épica no
poema que, in limine, cominava Gregos e Romanos a renderem-se ao «peito ilustre
lusitano», aos seus heróis, príncipes e sábios: «Cesse tudo o que a musa antiga
canta,/Que outro valor mais alto se alevanta» (Os Lusíadas, canto I, 3). N’Os Lusíadas
quase nem aflora a sombra do declínio: cantam o pretérito esplendor da pátria e
desentendem-se do presente, pese a soturna premonição emitida in fine, no passo já
citado: O Soldado Prático, em contrapartida, da primeira à última linha acusa a
vergonha desse presente quando comparado com aquele pretérito — o libelo de
Couto «começa», digamo-lo assim, onde a epopeia de Camões «acaba».
Os dois amigos estavam imbuídos da cultura do classicismo. Assimilaram-na, Camões,
mais cedo, talvez em Santa Cruz de Coimbra, Diogo do Couto no colégio jesuíta de
Santo Antão de Lisboa. Juntaram depois as armas às letras, e, como soldados e
letrados — «numa mão a pena e noutra a espada», que «nunca a pena embotou a
lança», enunciam eles respetivamente, cada qual se reclamando do comum exemplo
de César (Os Lusíadas, canto V, 96, e O Soldado Prático, p. 31; cf. Rebelo, 1982, pp.
195-240) —, acamaradaram nas paragens índicas. O ideal cívico de César inseriam-

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

no também ambos no ideal da cruzada: Camões principia celebrando «as memórias


gloriosas/Daqueles reis que foram dilatando/A fé, o império...» (Os Lusíadas, canto
1,2), e termina incitando a realeza a prossegui-la em Marrocos (ibid., canto X, 156);
Couto, que condena esta última expedição (1980, pp. 136 e 204-216), encarece os
tempos da «Índia primitiva», quando «aqueles Césares que a governavam não traziam
olho em mais que em dilatar a santa fé católica, em acrescentar o património real e em
enriquecer o Estado», mas para logo os contrastar com o agora — «agora já se não
costuma isto» (ibid., p. 108), agora «os viso-reis da Índia [são] tão diferentes em tudo
de César» (ibid., p. 168).
Diferentes porque, devendo imitar e até exceder o paradigma romano de inteireza
moral e cívica, os vice-reis, governadores e seus apaniguados são antes exemplos
negativos da religião que professam. Diogo do Couto — nisso se apartando de
Camões ou de Arrais, e aproximando-se de Fernão Mendes Pinto — afinca-se em
denunciar a moral prática anticristã das hierarquias (não dos soldados, que estes são
vítimas), responsáveis pela ruína do domínio português no Oriente. Diluídos no seu
ideário de reformação imperial pervivem ressaibos erasmianos que por diversas
vezes assomam explícitos à tona do discurso, nomeadamente quando, socorrendo-se,
aliás, de uma história que vem contada por Erasmo nos Apotegmas, confronta a
devassidão das altas patentes da Índia e a temperança personificada por Cipião,
Antíoco e Agesilau: «Gentios eram estes todos, que trabalharam tanto para conservar a
pureza, sem preceitos que a isso os obrigassem mais que os da razão. Confusão grande
para um governador cristão, estragado em seus apetites» (Couto, 1980, p. 74. Cf.
Rebelo, 1982, pp. 224-225).
Repetidamente o «soldado» exprobra as torpezas, as injustiças e a rapacidade de
vice-reis, governadores e fidalgos administradores. Repetidamente equipara o
império português ao romano, prósperos quando vingavam as virtudes morais e
cívicas, decaídos quando soçobraram na corrupção. E desejaria «de ver ressuscitado
aquele bom rei D. Manuel, e com ele um daqueles soldados veteranos com que a Índia se
conquistou»; desejaria «que se torne tudo àquela primeira idade, se querem que a Índia
torne a seu ser» (Couto, 1980. p. 132). Que idade era essa? Responde de seguida: «Os
soldados daqueles tempos, capitães e viso-reis eram todos ouro na verdade, na
liberalidade, ouro na fidelidade, ouro no valor, ouro no primor, ouro no esforço; enfim
que daquela idade toda de ouro viemos a descair nesta toda de ferro, em que tudo isto
falta» (ibid., p. 133). A Idade de Ouro, que a tradição clássica situava num remoto
tempo mítico, fora projetada no futuro pelo otimismo antropológico, que,
impulsionado pelo surto expansionista, forjara a convicção da superioridade dos
modernos sobre os antigos e esboçara a ideia-força do progresso (Godinho, 1990, pp.
58 e segs.). Agora, na ressaca do Império e na pena «desenganada» do soldado e
letrado Diogo do Couto, voltava a ser colocada no passado.
Rodrigues Lobo

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Sem a vibração polémica das objurgações do Soldado Prático, antes numa toada
«discreta» e amena, semelhante nostalgia da idade de ouro de Portugal perpassa na
Corte na Aldeia, esse manual de cortesania que Francisco Rodrigues Lobo fez publicar
em 1619, ano da visita e da receção triunfal prestada a Filipe II na cidade de Lisboa,
onde a corte era acabada. Extinto desde 1580 o foco intelectualmente criador
irradiado pela casa real, o referente da obra é também a decadência, não a do
Império, mas a interna, cujo cenário de pungente melancolia se reflete na
dedicatória a D. Duarte, bisneto de D. João III e irmão do titular da família ducal dos
Braganças; «Depois que faltou a Portugal a corte dos Sereníssimos Reis ascendentes de
V. Excelência [...] retirados os títulos pelas vilas e lugares do Reino e os fidalgos e
cortesãos por suas quintãs e casais, vieram a fazer corte nas aldeias, renovando as
saudades da passada com lembranças devidas àquela dourada idade dos portugueses»
(Lobo, 1992, p. 51.)
Nessas circunstâncias deprimentes, o fito do autor parece ser procurar no passado
um encorajamento para enfrentar as agruras do presente e formar um novo escol
aristocrático que mantivesse acesos os valores da antiga corte portuguesa, no
pressuposto, é lícito aventá-lo, de uma corte portuguesa futura (Carvalho,
«Introdução» a Corte na Aldeia, p. 41). Por enquanto, a corte é «na aldeia» e, em
«noites de Inverno», reúne-se «em casa de um antigo morador daquele lugar, que
também o fora em outra idade da casa dos reis, donde, com a mudança e experiência
dos anos, fez eleição dos montes para passar neles os que lhe ficavam da vida. Grande
acerto de quem colhe este fruto maduro entre desenganos» (Corte na Aldeia, pp. 54-
55). Ao anfitrião, sobre quem, noutra nota reiterativa da sua condição de
representante da época áurea, se diz que «se achou no paço ainda em tempo em que
éramos troianos e viu luzir o que está cheio de ferrugem» (ibid., p. 255), fazem
companhia diversos coloquiantes, todos homens «bem nascidos», uns que como ele
de algum modo compõem os «riscos e sombras que ficaram dos cortesãos antigos e
tradições suas» (ibid., p. 52), outros, mais mancebos, que pelos primeiros são
adestrados nos esquemas normativos do comportamento áulico. Era, pois, uma
«corte pintada, que inda com as sombras da verdadeira enganava os sentidos» (ibid., p.
269), e na qual «se podiam ensaiar os que quisessem aparecer na [verdadeira] corte
apercebidos, aprovando a maneira que se tinha de discursar sobre coisas tão miúdas e
tão esquecidas, sem causa, dos cortesãos» (ibid., p. 226).
Entre miudezas de etiqueta e reflexões de mais elevado cunho ético e cívico —
destaca, nestas, a apologia da língua portuguesa, que «tem de todas as línguas o
melhor» e «só um mal tem: e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem
mais remendada que capa de pedinte» (ibid., p. 69) se desdobra o ternário dos
dezasseis diálogos didáticos. Os três últimos tratam da «criação da corte, da milícia e
das universidades, que são os três exercícios nobres em que os homens se ocupam,
apuram e engrandecem» (ibid., p. 255). Mas o modelo proposto do cortesão
«perfeito», educado no Paço, nas armas ou nas letras para ser «um homem político,

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cortês e agradável aos outros» (ibid., p. 256), privilegia o formalismo convencional


das atitudes artificiais e «ensaiadas» sobre a formação integral e intrínseca do
indivíduo autónomo e socialmente activo, que era o ideal da pedagogia humanista.
Nem as conveniências permitiam ir além da comedida reserva de um Rodrigues Lobo
já infamado na inquisição. A cautela em não pisar o risco do interdito é patente
quando, no derradeiro capítulo, um dos interlocutores critica a gíria escolástica dos
«letrados» que deitam a perder «corpo, fazenda e consciência», mas os remoques com
que atinge médicos e legistas abstém-se prudentemente de os estender aos teológos,
«por ser coisa perigosa» (ibid., p. 292).
Fernão Mendes Pinto
Entretanto, e numa conjuntura em que o clero assume o quase exclusivo da produção
cultural — floresce a historiografia eclesiástica, desde o historicismo lendário e
milagreiro de Frei Bernardo de Brito na Monarquia Lusitana (1597-1609), a
hagiografias como a Vida de Frei Bartolomeu dos Mártires (1619), de Frei Luís de
Sousa —, surgia em 1614, como fruto fora de estação, a obra póstuma de Fernão
Mendes Pinto. O autor, falecido em 1583, partira para a Índia em 1537, regressara em
1558 e narra na sua Peregrinação os «trabalhos e perigos da vida que passei no
discurso de vinte e um anos em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido» (Pinto,
1983, cap. I, p. 13). Escreveu-a pela década de 70, quando, recolhido à sua quintinha
do Pragal, frente ao Tejo, se desenganara das «boas palavras e melhores esperanças»
com que a burocracia régia o embaiu durante os quatro anos e meio perdidos na
corte a requerer o prémio dos «trabalhos e pesadumes que passei» (ibid., cap.
CCXXVIL, p. 717) — uma situação em tudo similar, até na expressão, à do «soldado»
de Diogo do Couto, que também desespera pelo despacho devido aos «trabalhos da
viagem e dos anos da minha peregrinação» (Couto, 1980, pp. 18-20).
Só três meses antes de morrer começou Fernão Mendes Pinto a auferir a módica
tença com que Filipe II finalmente o agraciou. O manuscrito da Peregrinação foi
legado à Casa Pia das Penitentes de Lisboa, instituição de beneficência sob cuja asa
protetora o espesso volume veio a ser impresso e, eventualmente, com o patrocínio
dos Jesuítas, motivado pelas referências elogiosas ao seu «apóstolo» Francisco
Xavier. No apêndice do título consta que no fim do livro se «trata brevemente de
algumas coisas, e da morte do santo padre mestre Francisco Xavier, única luz e
esplendor daquelas partes do Oriente, e Reitor nelas universal da Companhia de Jesus»
— ordem na qual Fernão Mendes Pinto noviciara, para pouco depois a abandonar, em
circunstâncias nunca esclarecidas, mas, ao que tudo indica, amistosas. Talvez assim
se explique que a Peregrinação (não se sabe se expurgada) tenha franqueado as
licenças do Paço, do Ordinário (bispo) e, sobretudo, do Santo Ofício.
Surpreende, com efeito, que a censura as concedesse a um texto tão intimamente
penetrado de idealismo evangélico e veiculador de uma visão anti-épica da expansão
portuguesa — portanto, dissonante dos cânones ideológicos e políticos vigentes.

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Ambas as dimensões, que se consubstanciam na denúncia, ora frontal ora satírica, da


imoralidade da praxe colonial dos Portugueses, emergem exemplarmente em
episódios disseminados pela extensão do relato, como sejam os das façanhas de
António de Faria, nos quais se inclui o assalto à ilha de Calempluy.
António de Faria, chefe do bando de aventureiros em que o narrador — «o pobre de
mim» — se integra, é um fidalgo de alta estirpe, que mesmo no Oriente ostenta «as
armas da sua nobreza [ganhas] nas guerras que antigamente houve entre Portugal e
Castela» (Pinto, cap. LXVIII, p. 193), e que por ocasião de cada sucesso eleva uma
prece ao «Senhor Jesus Cristo, eterno filho de Deus». No entanto, dedica-se à pirataria,
como um mouro se encarrega de advertir ao notar-lhe que «este ofício em que agora
andas não é muito conforme à lei cristã que no baptismo professaste», o que deixou
Faria «tão atalhado que não soube que lhe respondesse» (ibid., cap. XXXXII, p. 118).
Justamente célebre é a eloquente fala que uma criança chinesa dirige ao corsário
português, cristão e brasonado, que a raptou após lhe espoliar o pai: «Vos vi louvar a
Deus depois de fartos, com as mãos alevantadas e com os beiços untados, como os
homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao Céu sem satisfazer o que
têm roubado. Pois entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga tanto a bulir
com os beiços quanto nos defende tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são
dois pecados tão graves quanto depois de mortos conheceres no rigoroso castigo de sua
divina justiça [...] Bendita seja, Senhor, a tua paciência, que sofre haver na terra gente
que fale tão bem de ti e use tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e cegos, que
cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer como aos príncipes tiranos que reinam na
terra (ibid,. Cap. LV, p. 154)
A elevação espiritual e moral da lei evangélica, do interiorismo e da caridade
contrapostos a ritos e cerimónias sem conteúdo — «arreganhar os dentes ao Céu»,
«bulir com os beiços», «furtar e pregar» —, eis a mensagem de um erasmismo críptico,
que não ousa confessar o seu nome e que se pronuncia pela boca ingénua de um
menino chinês. O seu discurso evoca irresistivelmente aquelas palavras «o que toca
as orelhas de Deus não é o ruído dos lábios, mas o desejo ardente das entranhas»
(Abellán, vol. II, 1986, p. 49) — do Enchiridion militis chrístiani, o livro erasmiano por
excelência, cuja tradução castelhana, saída em 1526 dos prelos de Alcalá e com
sucessivas reedições nos anos imediatos, atingiu as camadas mais populares e não é
impossível que Fernão Mendes Pinto tenha frequentado antes de viajar para o
Oriente ou depois do regresso. Como quer que seja, afigura-se latejar na Peregrinação
a doutrina erasmista da «philosophia Christi» ou do «corpo místico de Cristo», segundo
a qual todos os homens são membros de um corpo cuja cabeça é Cristo. A metáfora,
ampliada por Fernão Mendes Pinto à escala da ecúmena, sublinha a unidade
fundamental do género humano, animado por uma mesma moral essencial cristã —
um cristianismo universalista e interiorizado, extensível aos diversos povos, ainda
àqueles que o não receberam por Revelação, mas nem por isso participam menos da
vivência comunitária das virtudes evangélicas e por vezes comportam-se «como se

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 4 – O QUADRO CULTURAL

eles tivessem lume de fé ou conhecimento da nossa santa lei cristã» (Pinto, 1983, cap.
CIII, p. 300).
Daí que sejam gentios, como o mouro ou o menino chinês, os que censuram, à luz de
preceitos analogicamente cristãos, a atuação prática dos Portugueses. Estes, já o
dissera o «soldado» de Diogo do Couto noutra das várias intertextualidades com a
Peregrinação, «em passando o Cabo da Boa Esperança, perdem a memória de tudo, e
não sei se diga que o temor a Deus e ao rei» (Couto, 1980, p. 69). Para lá do cabo, a
moral era outra. Di-lo também o rei dos Léquios, ao afirmar serem os Portugueses
«gente que, conhecendo muito de Deus, usa pouco da sua lei, tendo por costume tomar o
alheio» (Pinto, 1983, cap. CXLII, p. 421). Gente que, observa por seu turno o rei dos
Tártaros, «dá claramente a entender que há entre eles muita cobiça e pouca justiça» —
no que tem o assentimento de um conselheiro, o qual admite que «a vaidade e a
cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela renegam a Deus e a seus
pais» (ibid., cap. CXXII, pp. 357)
O móbil da cobiça levou António de Faria, que «era naturalmente muito curioso e não
lhe faltava também cobiça» (ibid., cap. LXX, p. 199) — e é de crer que a curiosidade
fosse mera sequela da cupidez, a demandar Calempluy, a misteriosa ilha onde jaziam
os 17 sumptuosos mausoléus de soberanos chineses. Descobrem-na, enfim, no termo
de incontáveis trabalhos não para dilatar a fé e o Império, mas para profanarem
sacrilegamente os túmulos imperiais guardados por eremitães inofensivos! E então
que um desses veneráveis anciãos, a quem Faria hipocritamente procurava consolar
— «porém não deixou de acenar aos soldados que continuassem com o que tinham
entre mãos, que era escolher a prata que se achava no caixão de mistura com os ossos
dos finados que também estavam dentro» —, profere a terrível apóstrofe contra os
«ministros da Noite, que como cães esfaimados me parece que toda a prata do mundo
os não poderá fartar» (ibid., cap. LXXVI, pp. 215-216).
Desvelando assim o lado noturno dos Descobrimentos (Rocha, 1986, p. 32), Fernão
Mendes Pinto inclina-se a uma perspectiva oposta à de João de Barros, de Camões, de
Arrais e da generalidade da «inteligência» portuguesa de Quinhentos. Na contra-
epopeia da Peregrinação os «cavaleiros» são «esforçados», sim, mas porque são
«cobiçosos», sem, contudo, serem «mercadores». O «mercador», antítese do «cavaleiro
cobiçoso» que tem o seu paradigma em António de Faria, não rouba nem mata e rege-
se, nos seus tratos e comércios, pelos preceitos da moral evangélica. Dito
sumariamente, a «cobiça» revela-se atributo da «cavalaria», não do espírito
mercantil. Neste espírito mercantil, que vai de par com o sentimento ético-religioso,
inscreve-se a obsidiante propensão estatística de Fernão Mendes Pinto, que em tudo
e acerca de tudo avalia, enumera, quantifica — desde o valor da fazenda perdida num
naufrágio aos rendimentos do império chinês e à altura da sua famosa muralha,
medida a palmos... Na China, que sobremaneira o cativou — «uma tão nova, tão
espantosa, e quase incrível maravilha» (Pinto, 1983, cap. XCVII, p. 275) —, detém a
vertiginosa narrativa para se demorar na minuciosa descrição do sistema económico,
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social e político; erige-o utopicamente em modelo de justiça e ordem, «que aos reinos
e repúblicas cristãs pode ser exemplo, assim de caridade como de bom governo» (ibid.,
cap. CXIII, p. 327); e põe mesmo na boca do Padre Francisco Xavier a intenção de
pedir ao rei de Portugal que reformasse as ordenações portuguesas pelos regimentos
chineses, «porque tinha por sem dúvida que eram muito melhores que os romanos nos
tempos da sua felicidade, e que os de todas as outras nações de gentes de que todos os
escritores antigos trataram» (ibid., p. 328).
Precisamente este elemento exótico e utópico combina com outra característica da
Peregrinação, que a coloca à margem da cultura da época; não é subsidiária do
classicismo, seja em matéria de géneros, de temas ou de imagética, sequer de léxico,
que prima pela vivacidade pitoresca, direta e coloquial. O autodidata Fernão
Mendes Pinto dispensou componentes eruditas e prescindiu de quaisquer fontes,
greco-latinas ou outras, para compor, numa inconfundível criação individual, o
«romance» da aventura portuguesa de Quinhentos, protagonizada não só por heróis e
santos mas também pela anónima arraia-miúda em que o autor se revê — e para a
qual a aventura foi mais uma «peregrinação» do que uma epopeia. E pouco importa
se ele próprio protagonizou ou não todas as peripécias insólitas e extraordinárias
que relata, na primeira pessoa, nessa elaboração estético-literária incomparável.
O efeito de verosimilhança produzido pelo procedimento narrativo autobiográfico e
cuja confusão com veracidade historiográfica deu azo à estafada controvérsia sobre a
sinceridade do escritor, permitiu a Fernão Mendes Pinto, conjugando o real e o
imaginário, a experiência e a fantasia, oferecer à posteridade o testemunho humano
mais original — o mais «peregrino» do humanismo português.

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